Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01049/23.0BEPRT
Data do Acordão:09/26/2024
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:HELENA MESQUITA RIBEIRO
Descritores:SUSPENSÃO DE EFICÁCIA
APOSENTAÇÃO COMPULSIVA
INVIABILIDADE DA MANUTENÇÃO DA RELAÇÃO FUNCIONAL
Sumário:I - A adoção de uma providência cautelar de suspensão de eficácia de ato administrativo exige a verificação cumulativa dos requisitos previstos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 120.º do CPTA: (i) fumus boni iuris; (ii) periculum in mora; (iii) ponderação de interesses
II - Não se verifica o requisito do fumus boni iuris, se estando em causa uma infração disciplinar grave, em que um agente da PSP, embora condenado como coautor pela prática de um crime de ofensas à integridade física qualificada, em pena de prisão de 3 anos suspensa nos seus efeitos, se constata que a Administração, na decisão final sancionatória, não concretizou as razões em que suporta a inviabilidade da manutenção do vínculo laboral com o mesmo, de molde a justificar a aplicação da sanção de aposentação compulsiva, tanto mais que, a prática da infração ocorreu na data de 19.01.2011 e aquele continuou no exercício das suas funções de agente policial, e com avaliação de desempenho notada de Bom e Muito Bom, durante mais de 10 anos consecutivos.
III - No âmbito do contencioso disciplinar da função pública a aplicação de sanções de natureza expulsiva, não pode resultar de forma automática da verificação da infração disciplinar, antes pressupõe a verificação da gravidade da infração cometida pelo funcionário, como, adicionalmente, a formulação de um juízo de prognose, a concretizar na decisão de aplicação da sanção, no qual a Administração terá de justificar que a prática da infração, perante as concretas circunstâncias do caso, determina a inviabilidade da manutenção da relação funcional.
IV - A execução imediata da sanção de aposentação compulsiva causará uma situação de facto consumado, uma vez que o agente, durante o tempo em que aquela sanção estiver a ser executada, não poderá exercer a sua atividade profissional, pelo que, ver-se-á afastado do serviço, situação em que se manterá até ao trânsito em julgado da decisão que venha a ser proferida na ação principal, o que gera uma situação irreversível no plano dos factos.
V - O longo período de tempo que decorreu entre o momento da prática dos factos pelos quais o agente foi sancionado e o momento em que lhe foi aplicada a sanção disciplinar, durante o qual continuou a exercer as suas funções como agente da PSP, com mérito reconhecido pelas avaliações que lhe foram efetuadas, leva a que se tenha de concluir que aquele seu pretérito comportamento, pese embora tivesse sido objetiva e subjetivamente gravoso, não passou de um incidente isolado, que como tal foi percecionado pelo próprio Recorrido, o que também não deixa de ser percecionado pelos seus colegas e pela comunidade em geral, como tal.
(Sumário elaborado pela relatora – art.º 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil).
Nº Convencional:JSTA000P32628
Nº do Documento:SA12024092601049/23
Recorrente:AA
Recorrido 1:MAI - MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:


I.RELATÓRIO

1.AA, Agente da Polícia de Segurança Pública, residente na Praceta ...., ... ..., requereu contra o MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA providência cautelar de suspensão da eficácia do despacho da autoria do Senhor Ministro da Administração Interna, datado de 11 de abril de 2023, que lhe aplicou a sanção disciplinar de aposentação compulsiva.

Para tanto, alegou, em síntese, que se encontra preenchido o pressuposto do fumus boni iuris, uma vez que o ato suspendendo: (i) viola o princípio da independência entre o processo penal e o processo disciplinar, enfermando o último do consequente deficit instrutório; (ii) viola o princípio da proporcionalidade; (iii) padece de falta de fundamentação e do erro quanto aos pressupostos de facto e, bem assim, (iv) viola o princípio da igualdade;

Mais alega que se encontram preenchidos os demais pressupostos cumulativos necessários ao deferimento da providência cautelar de suspensão de eficácia do ato administrativo.

E isso, porque, no que respeita ao periculum in mora, caso não seja concedida a providência requerida, a cessação do seu vínculo profissional à PSP produzirá os seus efeitos, e com isso ficará privado do seu rendimento, e de poder sustentar a sua família, composta pela sua companheira e o filho de ambos, menor de idade. Ademais, só a concessão da providência poderá evitar que o mesmo se veja confrontado com o vexame, humilhação e vergonha de ser desarmado, de todos os seus colegas e superiores hierárquicos tomarem conhecimento de tal situação, que lhe provocará um mal irreparável a nível psicológico e psiquiátrico, ficando impedido de prestar a sua atividade profissional.

No que tange à ponderação dos interesses, com a suspensão de eficácia da decisão que lhe aplicou a sanção de aposentação compulsiva, nenhum prejuízo ou dano será causado ao interesse público, por ser manifesto o valor e o contributo do Requerente para o seu trabalho, seu aprumo, dedicação, empenho e verdadeiro “amor” à profissão de Polícia de Segurança Pública, para com os cidadãos e para com o Estado.

2.Citada, a Entidade Requerida deduziu oposição, sustentando, em síntese, que não se encontram preenchidos os pressupostos cumulativos necessários ao decretamento da providência cautelar requerida, pelo que a mesma deve ser indeferida.

Assim, no que tange ao fumus boni iuris, alega que o ato suspendendo é totalmente conforme à lei, pelo que não enferma de nenhum vício; em relação ao periculum in mora, o Requerente não faz prova dos prejuízos irreparáveis que alega; quanto à ponderação de interesses a concessão da providência traduzir-se-ia num elevado prejuízo para o interesse público inerente à confiança e credibilidade que os cidadãos depositaram e depositam na PSP, bem como à disciplina, funcionamento e missão desta instituição.

3.O TAF do Porto julgou a providência cautelar requerida improcedente, com fundamento na falta do requisito do fumus boni iuris, e absolveu a Entidade Requerida do pedido.

4.Inconformado com a decisão proferida o requerente interpôs recurso de apelação para o TCA Norte, que por acórdão de 15 de março de 2024, negou provimento ao recurso.

5.É deste acórdão que o Requerente vem pedir a admissão do recurso de revista, ao abrigo do disposto no artigo 150.º do CPTA para o que formulou alegações, que culminaram nas seguintes Conclusões:

I- O presente recurso deve ser admitido, ao abrigo do artigo 150.º do CPTA, pois a sua admissão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, e por se encontrarem preenchidos os requisitos de admissibilidade legalmente previstos, considerando que a questão controversa: interpretação e densificação do conceito indeterminado de inviabilidade da manutenção da relação funcional, apresenta (como mostram as inúmeras decisões judiciais sobre o tema) uma enorme possibilidade de repetição num número indeterminado de casos futuros e consequente necessidade de garantir a uniformização do direito em matérias importantes tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória, pelo que se impõe como imprescindível a intervenção deste STA, o que só com a admissibilidade do presente recurso e com a prolação do respetivo acórdão se conseguirá.
II- A interpretação dos conceitos que permitem densificar o critério qualitativo de admissibilidade do recurso é jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal Administrativo, nomeadamente, e como é caso vertente, de: “(…) as instâncias terem tratado a matéria de forma ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, sendo objetivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema”, conforme Acórdão do STA, de 2 de abril de 2014, rec. n.º 1553/13.
III- O douto Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 15 de março de 2024, não interpretou devidamente conceitos jurídicos essenciais do ordenamento jurídico português, tendo tratado a matéria de forma ostensivamente errada, falhando no tratamento de questões de direito com inescapável relevância jurídica e social, como é a questão da concretização e fundamentação da inviabilização da manutenção da relação funcional em processos disciplinares que importem a aplicação de penas expulsivas, tendo, por isso, decidido de forma juridicamente insustentável, com grande prejuízo para o Recorrente.
IV- O Tribunal a quo, ao não perscrutar da ausência da ponderação que a lei impõe à Administração — a saber: na aplicação de penas de natureza expulsiva cabe à Administração carrear factos para o processo que lhe permitam demonstrar que a relação funcional entre a PSP e o agente policial se encontra, em função dessa factualidade e da gravidade da infração cometida, irremediavelmente comprometida — incorreu em erro do julgamento, pois é evidente, nos presentes autos, o erro manifesto sobre os pressupostos de facto e de direito por parte da Administração, mormente no que respeita à violação do princípio da proporcionalidade na escolha da pena aplicada na falta de preenchimento, em concreto, do conceito indeterminado de inviabilidade da manutenção da relação funcional.
V- O Acórdão recorrido decidiu em sentido absolutamente contrário à abundante e consensual jurisprudência, nomeadamente deste Colendo Supremo Tribunal Administrativo, que vem entendendo que, para aferir, em concreto, da existência de inviabilização da manutenção da relação funcional, a tónica deve centrar-se no “juízo de prognose” necessário e imprescindível para, posteriormente, ser considerada que a pena expulsiva aplicada o seja em respeito pelo princípio da proporcionalidade.
VI- Este Supremo Tribunal proferiu acórdão em 21 de fevereiro de 2024, no processo n.º 368/21.5BESNT, em se discutia a sanção disciplinar expulsiva aplicada a um outro agente da PSP, que esteve envolvido na MESMA ocorrência policial, investigada no MESMO processo-crime e do qual resultaram AMBOS e IDÊNTICOS processos disciplinares, motivo pelo qual, também, está em condições de evitar que se mantenha na ordem jurídica uma decisão judicial de última instância que, devido aos seus erros de apreciação de facto e de direito, induziria em erro os tribunais que, de futuro, nela confiassem.
VII- Pelo que, e considerando a jurisprudência deste STA, e aqui em particular o aresto proferido no processo n.º 368/21.5BESNT, de 21.2.2024, tal exigirá que o recurso em apreço seja admitido, já que a sua admissão é “claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”.
VIII- O Acórdão recorrido, ao decidir que, “ao contrário do que vem alegado, foi bem julgado na sentença recorrida, que não se verifica o requisito do fumus boni iuris, exigido pelo artigo 120.º do CPTA para o decretamento da providência cautelar”, incorreu em erro de julgamento pois toda a prova produzida deixou evidente que a decisão administrativa foi tomada com erro manifesto sobre os pressupostos de facto e de direito, bem assim como lavrou em erro grosseiro quanto à escolha da medida da pena disciplinar.
IX- Em qualquer das vertentes: (i) pressupostos de facto e de direito; (ii) escolha da medida da pena disciplinar; foi grosseiro e manifesto o erro em que a decisão da Administração incorreu, pelo que ao Acórdão recorrido apenas restava reconhecer que esse erro manifesto e grosseiro confere ao Recorrente um elevado grau de certeza na pretensão anulatória da decisão da Administração, pelo que, inelutavelmente, em sede de tutela cautelar, não se pode deixar de reconhecer como preenchido o requisito do fumus boni iuris, tal como decidiram todas as instâncias, incluindo este Supremo Tribunal Administrativo, no processo n.º 368/21.5BESNT, onde estava em causa a anulação de uma pena expulsiva aplicada num processo disciplinar EM TUDO IGUAL ao que está em crise nos presentes autos e que havia resultado da MESMA ocorrência policial e julgado no MESMO processo-crime.
X- O Tribunal a quo, ao invés de perscrutar sobre se um dos pressupostos para a aplicação de uma pena expulsiva estava verificado aquando da prolação do ato administrativo (in casu, a inviabilidade da manutenção da relação) deu o mesmo como verificado, quando a factualidade dada como provada evidencia o contrário, pelo que incorreu em grosseiro e clamoroso erro de julgamento que inquina inelutavelmente todo o expendido no Acórdão e a decisão nele vertida, não podendo o mesmo manter-se na ordem jurídica sob pena de total incoerência do sistema.
XI- O Tribunal a quo, atenta a factualidade dada como provada no âmbito do processo disciplinar, não podia ter ignorado que a aplicação de penas expulsivas pela Administração, exige que esta demonstre que dos factos concretos provados no processo resulta a inviabilidade da manutenção da relação funcional, o que, nos presentes autos, nunca foi feito pela Administração, pois se o Tribunal a quo o tivesse feito chegaria à mesma conclusão que este Supremo Tribunal chegou: a de que “o tempo decorrido desde a prática dos factos de que o Recorrido foi sancionado, que já atinge 13 anos, mantendo-se durante todo esse tempo no respetivo exercício de funções, sem que a Administração tivesse oportunamente atuado, é absolutamente contrário ao juízo de inviabilidade da manutenção do vínculo funcional” (Acórdão do STA, de 21.2.2024, processo n.º 368/21.5BESNT).
XII- Tal como o Acórdão do STA n.º 368/21.5BESNT, de 21.2.2024, sobre a mesma questão decidenda (que se debruçou sobre os mesmos factos imputados a outro agente policial), deixou de forma lapidar e cristalina explicado “não se põe em crise que a factualidade de que o ora Recorrido foi punido em sede criminal e sancionado disciplinarmente, integre a previsão das normas jurídicas previstas e invocadas pela Entidade Demandada, consubstanciando a prática de infrações disciplinares muito graves, que abstratamente fundamentam o juízo de inviabilização da manutenção da relação funcional, nos termos do n.º 1, do artigo 23.° do Estatuto Disciplinar da PSP”, mas releva, “no entanto, a demais factualidade apurada, concretamente respeitante à situação funcional do Recorrido, durante mais de dez anos, desde a prática dos factos ilícitos, em janeiro de 2011, até à data em que foi praticado o ato impugnado, em março de 2021 — além do que decorre até à atualidade, por o agente, durante mais de uma década nunca ter sido suspenso do exercício das suas funções —, é reveladora de um juízo inverso, de que não se mostram verificados os factos de onde se possa inferir o juízo afirmado pela Administração, relativo à inviabilização da manutenção da situação funcional, incorrendo em erro nos pressupostos de facto e de direito, assim como, em erro grosseiro quanto à escolha da medida da pena disciplinar aplicada ao arguido” (parágrafos 47 e 49 do acórdão do STA, de 21.2.2024).
XIII- Não só o tempo decorrido desde a prática dos factos ilícitos até à conclusão do processo disciplinar é, em concreto, absolutamente contrário a qualquer juízo de inviabilidade da manutenção do vínculo funcional, como toda a restante factualidade dada como provada pela instrução-decisão da PSP no processo disciplinar, é, em si, indiciadora de juízo de sentido contrário.
XIV- A Administração, pela sua atuação ao longo dos anos, tendo permitido e consentido o normal exercício de funções por parte do Recorrente durante mais de uma década, tendo-lhe atribuído classificações de serviço meritórias, confiando-lhe o desempenho de funções que traduzem um aumento da responsabilidade funcional, incluindo funções como Graduado de Serviço, jamais entendeu que a relação funcional entre o Recorrente e a PSP estivesse irremediavelmente inviabilizada.
XV- Os factos provados no processo disciplinar, relativos ao exercício das funções do Recorrente, enquanto agente da PSP, designadamente, no tocante ao modo e ao tempo desse exercício funcional, são absolutamente contrários à demonstração do conceito indeterminado de inviabilidade da manutenção da relação funcional, pois, ao invés de comprovarem essa inviabilidade, comprovam o facto contrário, de que a manutenção da relação funcional é possível, conforme tem ocorrido há cerca de 13 anos, desde a prática dos factos ilícitos ocorridos em janeiro de 2011, pelo que o Tribunal a quo, ao não reconhecer que a decisão de aplicação de pena expulsiva ao Recorrente havia sido feita em violação de um pressuposto essencial — donde, e sem necessidade de grande argumentação, resultava claramente preenchido o requisito do fumus boni iuris — , incorreu em erro de julgamento que obriga à revogação do Acórdão recorrido.
XVI- É jurisprudência consensual que “pertence à Administração justificar e demonstrar, como é seu ónus, atenta a natureza sancionatória do processo disciplinar, que as infrações cometidas inviabilizam a manutenção da relação funcional, tendo essa demonstração de ser realizada em concreto, que o comportamento do arguido é suscetível de comprometer a continuidade do vínculo e daí justificar a escolha daquela pena disciplinar”, Acórdão do STA no processo n.º 368/21.5BESNT, de 21.2.2024 e jurisprudência aí citada.
XVII- É também jurisprudencialmente pacífico que “qualquer decisão administrativa pode ser controlada judicialmente quanto aos seus respetivos pressupostos de facto e de direito, por nessa parte, consistir em aspetos vinculados do ato, assim como, quanto à densificação do preenchimento do conceito indeterminado de inviabilidade da manutenção da relação funcional, necessário e instrumental à aplicação da pena disciplinar mais gravosa de demissão” (passagem do Acórdão do STA de 21.2.2024, no processo n.º 368/21.5BESNT), pelo que, ao constatar que a Administração, na aplicação da pena expulsiva ao Recorrente, o tinha feito com preterição de um pressuposto essencial, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao não considerar verificado o requisito do fumus boni iuris para decretamento da providência cautelar requerida, o que inquina o seu Acórdão, cuja revogação se torna incontornável.
XVIII- Ao decidir como decidiu, nomeadamente, ao entender não verificado o requisito do fumus boni iuris por referência à invalidade do ato administrativo por violação do princípio da proporcionalidade e falta de fundamentação e densificação, em concreto, do conceito indeterminado de inviabilidade da manutenção da relação funcional, o douto Acórdão recorrido incorreu em ostensivo e grosseiro erro de direito, devendo, em consequência, ser anulado.”

6. O Recorrido apresentou contra-alegações, que rematou com as seguintes Conclusões:

“A. A Douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo não padece de qualquer vício que afete a sua validade, nomeadamente, aqueles imputados pelo Recorrente.

B. Não subsiste qualquer razão ao Recorrente, cedendo in totum todos os argumentos por si apresentados.

C. No âmbito do processo-crime n.° 113/11... e por douto acórdão proferido em 29-05-2017 pelo Juiz 1 do Juízo Central Criminal ... - Tribunal Judicial da Comarca ..., foi o ora Recorrente, ali Arguido, condenado pela prática, em coautoria e na forma consumada, de 1 (um) crime de ofensa à integridade física grave qualificada, p. e p. pelos artigos 26.°, 143.°, n.° 1, 144.°, al. c) e 145, n.°s 1, al. c) e 2, por referência ao art.° 132.°, n.° 2, alíneas h) e m), todos do Código Penal (CP), na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, bem como a pagar ao demandante, solidariamente e a título de indemnização por danos morais, a quantia de €15.000,00 (quinze mil euros).

D. Tendo a decisão suprarreferida sido confirmada na íntegra pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão proferido em 20-02-2018, e transitada em julgado em 06-04-2018.

E. Por sua vez, tendo o Recorrente sido condenado pela prática de crime doloso punível com pena superior a três anos de prisão, à luz do princípio da legalidade e tratando-se de infração muito grave, a Administração nunca teria outra solução à sua disposição que não a aplicação da pena expulsiva nos termos do art.° 23.°, n.°s 1 e 2 al. f), do EDPSP.

F. Optando, no entanto, pela pena menos gravosa - aposentação compulsiva.

G. Por sua vez, são critérios de decisão para se adotar uma providência cautelar os três requisitos cumulativos previstos nos números 1 e 2 do art.° 120.º do CPTA, ou seja: i) existência do periculum in mora; ii) o fumus boni juris do direito invocado e a garantia de proporcionalidade na ponderação dos interesses privados e públicos.

H. O Recorrente não logrou demonstrar qualquer probabilidade de existência do direito por si invocado, pelo que não se verifica o requisito do fumus boni juris do direito.

I. Destarte, fica afastada a verificação cumulativa dos requisitos necessários à procedência da providência cautelar, nos termos dos n.°s 1 e 2 do art.° 120.° do CPTA.

J. Em sede de recurso jurisdicional, o Recorrente não foi capaz, mais uma vez, de concretizar e muito menos provar as alegações ora vertidas no presente recurso, socorrendo-se a argumentos vagos e genéricos, não tendo sido capas de as concretizar, e muito menos fundamentar.

K. O Tribunal a quo apreciou exaustivamente o pedido cautelar, socorrendo à análise de todos os elementos constantes do processo disciplinar e criminal, fazendo uma apreciação global da matéria probatória e das circunstâncias em concreto do Recorrente.

L. A decisão recorrida revela uma análise detalhada e completa, levando em consideração toda a factualidade dada como assente no processo criminal e disciplinar.

M. O Tribunal a quo debruçou-se exaustivamente sobre a providência cautelar requerida.

N. Como tal, a decisão recorrida não padece, assim, de qualquer vício e, muito menos, de erros sobre os pressupostos de facto e de direito ou erro de julgamento grosseiro e manifesto quanto à violação do princípio da proporcionalidade.

O. Em face de tudo quanto foi exposto, resta concluir pela manifesta e absoluta falta de fundamentação do recurso em apreço, devendo o mesmo ser julgado improcedente e o Réu absolvido do mesmo.”

7. A revista foi admitida por Acórdão prolatado pela formação preliminar deste Supremo Tribunal Administrativo, de 06 de junho de 2024, que se transcreve, na parte que releva:

«A sentença, para indeferir a requerida suspensão de eficácia, julgou não verificado o requisito do “fumus boni iuris”, previsto na 2.ª parte do n.° 1 do art.° 120.° do CPTA, por não ser provável a procedência de qualquer dos vícios que o requerente imputara ao ato suspendendo e que designara por “violação do princípio da independência entre o processo penal e o processo disciplinar e consequente défice instrutório deste último”, por “violação do princípio da proporcionalidade” na pena aplicada, por “falta de fundamentação e erro nos pressupostos de facto” quanto ao pressuposto da inviabilidade da relação funcional e por “violação do princípio da igualdade” na escolha da pena. Este entendimento foi totalmente confirmado pelo acórdão recorrido.

O requerente justifica a admissão da revista com a necessidade de se proceder a uma melhor aplicação do direito, alegando que o acórdão incorreu em erro ostensivo quando decidiu a matéria relativa ao preenchimento do conceito indeterminado da “inviabilidade da manutenção da relação funcional”, que deu por adquirido sem aferir da sua verificação no caso concreto, colidindo frontalmente com o decidido no Ac. do STA de 21/2/2024, proferido no processo n.° 368/21.5BESNT, onde também estava em causa a aplicação de uma sanção disciplinar expulsiva a um agente da PSP envolvido na mesmo ocorrência policial, que foi objeto do mesmo processo criminal de que resultaram idênticos processos disciplinares onde se deram por provados os mesmos factos e não se efetuara qualquer ponderação nem formulara um juízo de prognose sobre a inviabilização da relação funcional entre o agente e a instituição PSP.

Está em causa na presente revista apenas a questão do preenchimento da cláusula geral da “inviabilidade da manutenção da relação funcional” que se afere pelas circunstâncias concretas do caso e que implica que, face à natureza do processo cautelar, se averigue se, numa apreciação meramente sumária e perfunctória, é de concluir pela probabilidade de procedência da ação principal por a Administração não ter demonstrado que o comportamento do requerente era suscetível de comprometer a continuidade do vínculo que o ligava à PSP.

Embora tenha sido proferido no âmbito de um processo principal, o citado Ac. deste STA de 21/2/2024, que se debruçou sobre os mesmos factos e apreciou a mesma questão jurídica, terá óbvia repercussão sobre a análise do requisito do “fumus boni iuris” em causa nos presentes autos, podendo determinar a adoção de uma posição jurídica divergente daquela que foi sustentada pelas instâncias.

Convém, pois, que o Supremo reanalise o caso, quebrando-se, assim, a regra da excecionalidade da admissão da revista.

4. Pelo exposto, acordam em admitir a revista

8. Notificado nos termos do artigo 146º, nº 1, do CPTA, o Magistrado do Ministério Público pronunciou-se no sentido da procedência do presente recurso de revista “com a consequente revogação das decisões das instâncias, no que importará a baixa dos autos à 1ª instância para o consequente prosseguimento da instância cautelar, e desde logo para apreciar se estão verificados os demais requisitos de que depende o decretamento da requerida providência cautelar”.

9. Sem vistos, atenta a natureza urgente do processo, mas com envio prévio do projeto de acórdão aos adjuntos, o processo vai à Conferência para julgamento.


II- QUESTÕES A DECIDIR

10.Tendo em conta as conclusões das alegações apresentadas pelo Recorrente - as quais delimitam o objeto do recurso, nos termos dos artigos 635.º nº 4 e 639º nº 1 do CPC, ex vi, artigos 1º e 140.º n.º 3 do CPTA (sem prejuízo de eventual matéria de conhecimento oficioso) - as questões a decidir na presente revista são as seguintes:
b.1. a aferir se o acórdão do TCA Norte incorreu em erro de julgamento ao confirmar a sentença proferida pela 1.ª instância, o que passa por saber, se no caso, diversamente do entendimento das instâncias, a correta interpretação e densificação do conceito indeterminado de inviabilidade da manutenção da relação funcional, justificava que na situação concreta se tivesse dado essa cláusula geral, numa analise sumária e perfunctória, como não preenchida e nesse pressuposto como verificado o requisito do fumus boni iuris necessário ao decretamento da providência cautelar requerida;
b.2. caso se conclua pela verificação do requisito do fumus boni iuris, aferir se estão verificados os demais pressupostos - periculum in mora e ponderação de interesses- necessários para o decretamento da providência cautelar.

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III- FUNDAMENTAÇÃO
III.A- Fundamentação de facto

11.No Acórdão recorrido foi fixado o seguinte probatório reputado relevante para a decisão:

“1) Em 14.06.2016, foi remetido ao Sr. Comandante do Comando Metropolitano de Polícia de Lisboa o Ofício n.° ...72, com o seguinte teor:
“(...)
Junto envio a V. Exª., em anexo, fotocópia autenticada do ofício n.° ...37, de 07.06.2016, da Comarca ... – Ministério Público – ... – DIAP – ... Secção, que remete cópia do despacho final proferido no âmbito do Inquérito n.° 113/11...., no qual são arguidos os Agentes (...) ...71, AA (...), todos desse Comando, para os adequados procedimentos.
(...)” – cfr. fls. 2 e seguintes do PA junto aos autos, a fls. 142 e seguintes do SITAF;
2) Em 29.06.2016, foi proferido despacho de instauração de processos disciplinares, na sequência do ofício mencionado no ponto anterior – cfr. fls. 2 e 26 do PA junto aos autos, a fls. 142 e seguintes do SITAF;
3) Em 01.07.2016, o instrutor nomeado autuou o processo disciplinar ...58... contra AA – cfr. fls. 26 do PA junto aos autos, a fls. 142 e seguintes do SITAF;
4) Em 29.05.2017, no âmbito do Processo n.º 113/11...., foi proferido acórdão, pelo Juiz 1 do Juízo Central Criminal ... do Tribunal Judicial da Comarca ..., nos termos da qual AA foi condenado pela prática, em co-autoria e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física grave qualificada, p. e p. pelos artigos 26º, 143º, nº 1, 144º, al. c) e 145º, nº 1, al. c) e nº 2, por referência ao artigo 132º, nº 2, als. h) e m), todos do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, bem como a pagar ao demandante BB, solidariamente e a título de indemnização por danos morais, a quantia de € 15.000,00 - cfr. fls. 149 e seguintes do PA junto aos autos, a fls. 392 e seguintes do SITAF, e fls. 159 e seguintes do PA junto aos autos, a fls. 419 e seguintes do SITAF;
5) Em 20.02.2018, foi proferido acórdão, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do Processo n.º 113/11...., que negou provimento aos recursos interpostos e confirmou a decisão recorrida - cfr. fls. 67 e seguintes do PA junto aos autos, a fls. 204 e seguintes do SITAF, e fls. 80 e seguintes do PA junto aos autos, a fls. 266 e seguintes do SITAF;
6) Em 06.04.2018, transitou em julgado o acórdão mencionado no ponto anterior – cfr. fls. 108 e seguintes do PA junto aos autos, a fls. 266 e seguintes do SITAF;
7) Em 06.07.2022, no âmbito do processo disciplinar ...58..., foi elaborado o “Relatório Final”, com o seguinte teor:
“(...)

[IMAGEM]

(...)” – cfr. fls. 262 e seguintes do PA, junto aos autos a fls. 516 e seguintes do SITAF, e fls. 264 e seguintes do PA, junto aos autos a fls. 578 e seguintes do SITAF;

8) Em 11.04.2023, no âmbito do processo disciplinar ...58..., o Ministro da Administração Interna proferiu o seguinte despacho:
“Considerando os autos, o relatório do Senhor Instrutor, o Despacho do Senhor DN/PSP, o parecer da DSAJCPL, seus termos e fundamentos, com os quais concordo, aplico ao Agente da PSP ...71: AA, a pena disciplinar de APOSENTAÇÃO COMPULSIVA, nos termos do disposto no artigo 30° n.° 1, alínea e) e 35° do ED/PSP.
Remeta-se à DN/PSP, para notificação nos termos gerais.
(...)” – cfr. fls. 285 e seguintes do PA, junto aos autos a fls. 578 e seguintes do SITAF;
Do Requerente
9) Em 18.09.2009, o Requerente ingressou na PSP, como agente – cfr. documento n.° 7, junto com a petição inicial, a fls. 87 e 88 do SITAF;
10) No âmbito da avaliação de desempenho, o Requerente obteve as seguintes classificações:

[IMAGEM]

- cfr. documento n.º 7, junto com a petição inicial, a fls. 87 e 88 do SITAF.
Em sede de factualidade não provada o Tribunal consignou:
Com relevância para a decisão dos autos, considero indiciariamente não provados os seguintes factos:
A. O Subcomissário da PSP CC foi condenado a três anos de prisão, suspensa na sua execução, em 1.ª instância, a qual foi agravada para três anos e meio de prisão, suspensa na sua execução, pelo Tribunal da Relação de Guimarães, por agressão a dois adeptos do Benfica em Guimarães, em maio de 2015 (cfr. artigo 84.º da petição inicial);
B. O Subcomissário da PSP CC foi condenado por dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, relativos às agressões, e dois crimes de falsificação de documento e dois crimes de denegação de justiça e prevaricação, por ter feito constar factualidade falsa no auto de notícia (cfr. artigo 85.º da petição inicial);

C. A Entidade Requerida aplicou ao Subcomissário da PSP CC a pena disciplinar de 200 dias de suspensão (cfr. artigo 86.º da petição inicial);

D. Ao Chefe ...30 – DD, por despacho de 03.11.2021, de Sua Excelência o Ministro da Administração Interna, foi-lhe aplicada a pena disciplinar de Suspensão, fixada em 240 (duzentos e quarenta) dias graduada, no âmbito do processo disciplinar com o N...32..., porquanto, e em síntese, no dia 04.08.2015, ter não só agredido e ameaçado de morte com um objeto com a configuração de uma pistola um cidadão, tendo sido transportado para a esquadra ..., detido e algemado sem qualquer fundamento legal. No dia 05.08.2015, ter lavrado um aditamento ao expediente respeitante à ocorrência anterior, relatando uma atuação que não tinha ocorrido. No dia 31.10.2015, quando conduzia o seu veículo, ao ver o mesmo cidadão, imobiliza o veículo, passou a mão aberta pela zona do pescoço, proferindo-lhe ameaças de morte (cfr. artigo 90.º da petição inicial);

E. Pelos mesmos factos o aludido agente de autoridade foi condenado pela prática de dois crimes de coação agravada, na forma tentada, um crime de falsificação de documento, um crime de sequestro e um crime de ameaça agravada, em cúmulo jurídico na pena de 4 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, no âmbito do processo-crime n.º 268/15...., por Acórdão de 25.06.2018, transitado em julgado 07.02.2019, de acordo com Ordem de Serviço de 06.01.2022 (cfr. artigo 91.º da petição inicial);

F. O Requerente vive em união de facto com a sua companheira e o filho de ambos com 3 anos e meio (cfr. artigo 103.º da petição inicial);

G. O Requerente depende do seu vencimento para prover pelo sustento do seu agregado familiar, para pagar crédito habitação, água, luz, gás, telecomunicações, seguros, alimentação, em suma, as despesas básicas e essenciais de um agregado familiar de 3 pessoas (cfr. artigo 104.º da petição inicial).»


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III.B. DE DIREITO

b.1.Do erro de julgamento decorrente do não preenchimento da cláusula geral da “inviabilidade da manutenção da relação funcional”

12.Constitui objeto do presente recurso de revista, prima facie, decidir se o acórdão recorrido, proferido pelo TCA Norte em 15/03/2024, errou ao julgar improcedente o recurso de apelação que fora interposto pelo Recorrente contra a sentença cautelar proferida pelo TAF do Porto, com data de 06/12/2023, que por sua vez, julgou improcedente a providência cautelar de suspensão de eficácia do despacho de 11/04/2023, da autoria do Senhor Ministro da Administração Interna, que aplicou ao Recorrente, agente da PSP, a sanção disciplinar de aposentação compulsiva, com o fundamento de não se mostrar preenchido o pressuposto do fumus boni iuris.
13. A formação preliminar do STA que admitiu o presente recurso de revista refere no respetivo acórdão que no caso se impõe aferir sobre as circunstâncias em que pode dar-se como verificada a cláusula geral da inviabilidade da manutenção da relação funcional, devendo, para o efeito, atender-se ao Acórdão do STA, de 21/02/2024, citado pelo Recorrente, não obstante ter sido proferido “no âmbito de um processo principal…”, porquanto o mesmo “ se debruçou sobre os mesmos factos e apreciou a mesma questão jurídica” pelo que “terá óbvia repercussão sobre a análise do requisito do “fumus boni iuris” em causa nos presentes autos, podendo determinar a adoção de uma posição jurídica divergente daquela que foi sustentada pelas instâncias.”
14. Diz-nos a matéria de facto assente, que o Recorrente ingressou nos quadros da PSP em 18/09/2009 (vide facto 9 do elenco dos factos provados), e por factos relativos a uma ocorrência policial verificada em 2011, em que estiveram envolvidos outros agentes, o mesmo foi alvo de uma participação criminal.
Em 14.06.2016, foi comunicada à PSP, através do Ofício n.º ...72 remetido pelo DIAP ..., ao Senhor Comandante do Comando Metropolitano de Polícia de Lisboa (vide facto 1. do elenco dos factos provados) os factos objeto da mencionada participação criminal, e nessa sequência, por despacho de 29/06/2016, foi instaurado processo disciplinar contra o Recorrente.
Entretanto, por acórdão proferido pelo Juiz 1, do Juízo Central Criminal ... do Tribunal Judicial da Comarca ..., no âmbito do processo o n.º 113/11...., o Recorrente foi condenado pela prática, em co-autoria e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física grave qualificada, p. e p. pelos artigos 26º, 143º, nº 1, 144º, al. c) e 145º, nº 1, al. c) e nº 2, por referência ao artigo 132º, nº 2, als. h) e m), todos do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, bem como a pagar ao demandante BB, solidariamente e a título de indemnização por danos morais, a quantia de € 15.000,00. Essa decisão foi confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 20/02/2018, transitado em julgado 06/04/2018- cfr. factos 4, 5 e 6 do elenco dos facos assentes.
Seguidamente, no âmbito do processo disciplinar que lhe havia sido instaurado pelos mesmos factos e por despacho de 23/04/2023, foi aplicada ao Recorrente a sanção disciplinar de aposentação compulsiva.
Apurou-se ainda que durante o período que decorreu entre o momento da prática dos factos pelos quais o Recorrente veio a ser punido criminalmente e sancionado disciplinarmente com a medida de aposentação compulsiva, ou seja, entre 2011 e abril de 2023, o Recorrente manteve-se no pleno exercício das suas funções de agente da PSP, tendo obtido a classificação de serviço de Muito Bom nos anos de 2012, 2013, 2014, 2015, 2016, 2018, 2020 e 2021 e de Bom nos outros anos.
15. A 1.ª Instância decidiu indeferir a providência cautelar de suspensão de eficácia do despacho que aplicou ao Recorrente a sanção disciplinar de aposentação compulsiva, com fundamento no não preenchimento do pressuposto do fumus boni iuris, abstendo-se de julgar, perante a falência deste pressuposto, dos demais pressupostos necessários ao decretamento da providência requerida dado o seu caráter cumulativo. Essa decisão foi confirmada pelo Tribunal a quo, sendo desta decisão que vem admitido o recurso de revista interposto pelo Recorrente para este STA.
16. O Recorrente considera que o acórdão proferido pelo TCAN, enferma de um erro ostensivo quanto ao que nele vem decidido em relação ao preenchimento do conceito indeterminado da “inviabilidade da manutenção da relação funcional”.
Prima facie, assevera que a conclusão sobre “a inviabilidade da manutenção da relação funcional” a que o TCAN chegou, terá sido dada por adquirida sem que tivesse sido feita uma aferição da sua verificação no caso concreto.
Secundo, alega que este segmento do acórdão recorrido traduz uma afronta ao que sobre esse mesmo aspeto foi decidido no Acórdão do STA de 21/02/2024, proferido no processo nº 368/21.5BESNT, no qual se discutia legalidade da aplicação de uma sanção disciplinar de natureza expulsiva a um agente da PSP envolvido na mesma ocorrência policial, apreciada no âmbito do mesmo processo criminal, do qual resultaram idênticos processos disciplinares nos quais foi apurada uma factualidade com os mesmos contornos e em que se não efetuara qualquer juízo de ponderação ou de prognose sobre a inviabilização da manutenção da relação de serviço entre o agente e a PSP.
17.Cremos assistir inteira razão ao Recorrente. Se é certo que perante os factos provados, que levaram à condenação criminal do Recorrente por crime de ofensas à integridade física qualificada, não temos qualquer dúvida em como o mesmo agiu de forma ilícita e censurável, violando de forma grave os deveres decorrentes da sua função, tanto mais que se trata de um agente de autoridade, praticando atos que, além do mais, são suscetíveis de ferir a imagem da PSP, já se nos afigura que em concreto, essa sua conduta, no contexto dos demais factos apurados, não permite sem mais que se possa concluir pela inviabilidade da manutenção do vínculo funcional que o liga à PSP, como fez a Administração e foi corroborado pelas instâncias.
Vejamos.
18. A problemática relativa à questão de saber se da prática da infração disciplinar resulta a inviabilidade da manutenção da relação funcional tem sido equacionada e tratada pela jurisprudência do STA, em múltiplos acórdãos, dos quais se retira que é prevalente o entendimento jurisprudencial de acordo com o qual a aplicação duma pena expulsiva pressupõe a prévia certeza de que a infração inviabiliza a manutenção da relação funcional, o que impõe a realização de um juízo de prognose acerca dessa inviabilidade, que embora tenha como condição necessária a gravidade objetiva da falta, essa condição necessária não é suficiente, exigindo-se que a infração disciplinar revele, seja por que razões forem, que definitivamente se rompeu a possibilidade da relação funcional persistir.
19. Quer a doutrina, quer a jurisprudência, aquiescem que o preenchimento da cláusula geral de “inviabilidade da manutenção da relação funcional”, é pressuposto necessário para que a Administração possa aplicar a um seu trabalhador, que tenha cometido uma infração disciplinar grave, uma sanção extintiva do respetivo vínculo de emprego público.
Ademais, também é consensual o entendimento de acordo com o qual o juízo sobre a “inviabilidade da manutenção da relação funcional” se afere pelas circunstâncias concretas do caso, e concretiza-se através de juízos de prognose, na fixação dos quais a Administração goza de grande liberdade de apreciação.
Também é categórico, que atenta a natureza sancionatória do processo disciplinar, constitui ónus da Administração tornar percetível que “o comportamento do arguido é suscetível de comprometer a continuidade do vínculo e daí justificar a escolha daquela pena disciplinar- cfr. Acórdão do STA, de 22/01/2024, processo n.º 368/21.5BESNT.
Neste sentido, decidiu também o Pleno do STA, no seu Acórdão de 19/03/99, proferido no processo n.º 30.896, “o preenchimento da cláusula geral de «inviabilidade da manutenção da relação funcional» (…) constitui tarefa da Administração a concretizar por juízos de prognose efetuados com grande margem de liberdade administrativa”.
20. Daí que, no âmbito do contencioso disciplinar da função pública seja inquestionável que a aplicação das penas de natureza expulsiva não pode resultar de forma automática da verificação da infração disciplinar, antes pressupõe não só a verificação da gravidade da infração cometida pelo funcionário, como, adicionalmente, a formulação de um juízo de prognose, a concretizar na decisão de aplicação da sanção, no qual a Administração terá de justificar que a prática da infração determina a inviabilidade da manutenção da relação funcional- cfr. Acs. do STA, de 02.06.2011, processo nº 0103/11); de 25.02.2016, processo nº 0212/15), de 30.05.2019, processo nº 02474/12.8BELSB, entre muitos outros.
21. É com este alcance que no artigo 187º, da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (aprovada pela Lei nº 35/2014, de 20 de junho), atualmente em vigor, se estabelece expressamente que: “…. As sanções de despedimento disciplinar ou de demissão são aplicáveis em caso de infração que inviabilize a manutenção do vínculo de emprego público nos termos previstos na presente lei…”.
E já se dispunha nos mesmos termos, quer no anterior Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas (artigo 18º, da Lei nº 58/2008, de 9 de setembro), assim como no precedente Estatuto Disciplinar dos Funcionários, Agentes da Administração Central, Regional e Local (artigo 26º, do Decreto-Lei nº 24/84, de 16 de janeiro).
22.Quanto aos corpos policiais, a solução normativa é similar, conforme resulta do disposto no artigo 23º, do Estatuto Disciplinar da PSP, (aprovado pela Lei nº 37/2019, de 30 de maio), que sob a epígrafe “Infrações disciplinares muito graves”, prescreve:
«1 - São infrações disciplinares muito graves os comportamentos dos polícias que violem um ou mais deveres a que se encontram sujeitos, cometidos com negligência grosseira ou dolo, quando deles resultem danos ou prejuízos elevados para o serviço ou para terceiros e que ponham gravemente em causa o prestígio e o bom nome da instituição, inviabilizando, dessa forma, a manutenção da relação funcional.
2 - São suscetíveis de inviabilizar a manutenção da relação funcional, nomeadamente, os seguintes comportamentos:
a) Usar de poderes de autoridade não conferidos por lei ou abusar dos poderes inerentes às suas funções, tratando de forma cruel, degradante ou desumana quem se encontre sob a sua guarda ou vigilância, ou atentar, de forma grave, contra a integridade física ou outros direitos fundamentais das pessoas;
b) Fazer uso da arma de fogo que lhe tenha sido distribuída, contra pessoa, fora dos pressupostos legalmente previstos e internamente regulamentados, especialmente se dele resultarem danos pessoais graves;
c) Fazer uso indevido doloso de outras armas menos letais que lhe tenham sido distribuídas, de forma que resulte risco grave para a integridade física ou vida de terceiros;
d) Praticar ou tentar praticar ato demonstrativo da perigosidade da sua permanência na instituição ou ato de desobediência ou insubordinação, bem como de incitamento à desobediência ou insubordinação coletiva, que afetem gravemente a imagem e o prestígio da instituição;
e) Agredir, injuriar ou desrespeitar gravemente outro polícia ou terceiro, em local de serviço ou em público;
f) Praticar, no exercício de funções ou fora delas, crime doloso punível com pena de prisão superior a três anos, que, pela sua natureza, comprometa a confiança necessária ao exercício da função;
g) Encobrir suspeitos da prática de crimes ou prestar-lhes auxílio ilegítimo;
h) Solicitar ou aceitar, direta ou indiretamente, dádivas, gratificações, participações em lucros ou outras vantagens patrimoniais indevidas, com o fim de praticar ou omitir ato inerente às suas funções ou resultante do cargo ou posto que ocupa;
i) Retirar vantagens de qualquer natureza da função, em contrato, em que tome parte ou interesse, diretamente ou por interposta pessoa, celebrado ou a celebrar por qualquer serviço público;
j) Faltar aos deveres funcionais com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício económico ilícito, não promovendo atempadamente os procedimentos adequados, ou praticando atos que lesem, em negócio jurídico ou por mero ato material, designadamente por destruição, adulteração ou extravio de documentos ou por viciação de dados para tratamento informático, os interesses patrimoniais que, no todo ou em parte, lhe cumpre, em razão das suas funções, administrar, fiscalizar, defender ou realizar;
k) Utilizar ou reter ilicitamente fundos públicos;
l) Revelar, sem autorização, dados ou documentos relativos à atividade da PSP, classificados com grau de reservado ou superior;
m) Revelar, sem autorização, matérias que constituam segredo de Estado, de justiça ou profissional;
n) Não observar as normas de segurança ou deveres funcionais, daqui resultando grave prejuízo para a atividade da PSP e dos bens e missões que lhe estão confiados, devidamente comprovado;
o) Ofender gravemente, quando no exercício de funções, as instituições e princípios consagrados na Constituição da República Portuguesa;
p) Violar grosseiramente o regime de incompatibilidades previsto na lei;
q) Participar, dolosamente, falsa infração criminal, contraordenacional ou disciplinar alegadamente cometida por superior hierárquico, de igual categoria ou subordinado, ou por qualquer pessoa singular ou coletiva;
r) Dar cinco faltas seguidas ou dez interpoladas, sem justificação;
s) Estando colocado na 4.ª classe de comportamento, cometer nova infração disciplinar;
t) Contribuir, com culpa, para o extravio, furto, roubo ou apropriação por terceiros de armamento ou equipamento que lhe tenha sido distribuído ou à sua guarda;
u) Abusar habitual e reiteradamente de bebidas alcoólicas, apesar de lhe ter sido proporcionada a possibilidade de reabilitação ou a mesma ter sido por si recusada;
v) Consumir ou traficar estupefacientes ou substâncias psicotrópicas ou de natureza análoga.»
23. De modo idêntico, também se dispunha no n.º1 do artigo 47º, do Estatuto Disciplinar da PSP, aprovado pela Lei nº 7/90, de 20 de fevereiro, nos termos do qual « …As penas de aposentação compulsiva e de demissão são aplicáveis, em geral, por infrações disciplinares que inviabilizam a manutenção da relação funcional. »
24. Em face do que antecede, pode concluir-se que não basta à Administração efetuar uma ponderação sobre a gravidade da infração, o grau de desvalor jurídico-disciplinar e as circunstâncias atenuantes e agravantes da responsabilidade disciplinar de um seu trabalhador, para automaticamente poder concluir que a relação funcional se tornou inviável, aplicando-lhe uma pena extintiva da relação funcional, antes acresce sobre a Administração o ónus de demonstrar que perante as concretas circunstâncias do caso, a atuação do agente tornou inviável a manutenção da relação funcional.
25. Conforme se escreveu no Acórdão do STA, de 09/05/2002, proc. 048209, se é certo que cabe à Administração concretizar o conceito de inviabilidade da manutenção da relação funcional, através de “juízos de prognose produzidos com grande margem de liberdade administrativa”, também é seguro que cabe ao tribunal apreciar e sindicar os mesmos perante “(…) erros manifestos de apreciação na determinação desses juízos”.
26. Daí que, sem deixar de ter presente que a margem de liberdade administrativa não é sindicável pelo tribunal, salvo caso de erro grosseiro ou palmar, como sucederá nos casos em que se verifique que a pena fixada se revela, em concreto, como manifestamente injusta ou desproporcionada, na linha, aliás, do que se afirmou no Acórdão do Pleno deste STA, de 23/06/98, Processo n.º 40.332, é pacifico que o juiz administrativo «não se encontra impedido de sindicar a legalidade da decisão punitiva que ofenda os critérios gerais de individualização e graduação estabelecidos na lei ou que ultrapasse os limites normativos correspondentes, aferindo se foram ou não ponderadas as circunstâncias concretas, que, pela sua gravidade, indiciariam a concreta pena aplicada e, no caso, a inviabilização da manutenção da relação funcional.»- cfr. Acórdão do STA, de 21/02/2024.
27. Partindo para o caso em análise, ponderando nas suas circunstâncias especificas, afigura-se-nos, numa análise sumária e perfunctória, que a Administração não conseguiu efetuar a demonstração de que a conduta do Recorrente, ainda que grave, no caso, tornou inviável a manutenção da sua relação profissional como agente da PSP.
28. Não se olvidando estar em causa uma infração disciplinar grave, em que o Recorrente, agente da PSP, foi condenado como coautor pela prática de um crime de ofensas à integridade física qualificada, em pena de prisão de 3 anos suspensa nos seus efeitos, o certo é que, perante os considerandos que antecedem, a inviabilidade da manutenção da relação funcional por força da atuação do agente não dispensava que na decisão final sancionatória a Administração tivesse concretizado as razões em que suportava a inviabilidade da manutenção do vínculo laboral com o mesmo, de molde a justificar a aplicação da sanção de aposentação compulsiva, o que devia ter realizado mediante a formulação de um juízo de prognose, que pressupõe que se possa extrair que, em função da prática da infração ou infrações disciplinares imputadas ao agente, está irremediavelmente comprometida a subsistência da relação funcional.
29. Ora, no caso sob sindicância, verifica-se que em sede disciplinar, no relatório final, foi proposta a aplicação ao ora Recorrente da sanção disciplinar de aposentação compulsiva ou de demissão, nos termos do disposto nos artigos 23º, nº 1 e 2, alíneas a), c), e) e f), 30º, nº 1, alínea e), e f), 35º, 36º e 46º, todos do ED/PSP. Acontece que, perscrutada a decisão na qual se propõe a sanção disciplinar, que consta do relatório do processo disciplinar-vide facto 7 do elenco dos factos assentes-, na qual se fundamenta a decisão sancionatória da autoria do Ministro da Administração Interna, corporizada no despacho com data de 11.04.2023, não encontramos nela a demonstração feita em concreto de que o comportamento do ora Recorrente, que integra o ilícito disciplinar, compromete de forma irremediável a continuação e a manutenção do vinculo da relação de serviço público com a PSP.
30.E, como bem se refere no parecer apresentado pelo Ministério Público “essa demonstração era tanto mais exigente quanto é certo que, e como resulta da factualidade assente nos autos, não obstante a prática da infração imputada ao Requerente, que ocorreu na data de 19.01.2011, o mesmo tem continuado no exercício das suas funções de agente policial, e com avaliação de desempenho notada de Muito Bom ou de Bom
31. Perante a prova indiciária produzida, não descortinamos razões para nos distanciarmos da análise que o STA, no citado acórdão de 21/02/2024, numa situação similar a esta, em que estava em causa a aplicação de uma sanção de demissão a um agente da PSP, por força de factos que também envolveram o Recorrente, investigados e julgados no mesmo processo-crime, efetuou, e cujas considerações, embora relativas a um processo principal, são inteiramente transponíveis para a situação sub judice, e que por isso ora se transcrevem:
«56. Embora conste da acusação disciplinar que a PSP apenas tomou conhecimento dos factos ilícitos praticados pelo Recorrido em 2016, o certo é que a instituição policial, ora Entidade Demandada, tinha condições para conhecer logo em 2011, aquando a ocorrência dos factos, toda a factualidade relevante que determinou a instauração do procedimento disciplinar, considerando que se encontra provado que os factos ocorreram no exercício de funções policiais e nas imediações da esquadra policial, além de, em grande parte, também no próprio interior das instalações da PSP, envolvendo outros agentes da PSP.
57. Perante o conceito de infração disciplinar, previsto no artigo 3.º do Estatuto Disciplinar da PSP, aprovado pela Lei n.º 37/2019, de 30/05, segundo o qual, se considera infração disciplinar “o ato ou conduta, ainda que meramente negligente, praticado pelos polícias, por ação ou omissão, com violação de algum dos deveres previstos no presente estatuto”, dispunha a Entidade Demandada de todas as condições para conhecer os factos ilícitos e agir em conformidade, por, segundo o disposto no n.º 1, do artigo 4.º da citada lei, “Os polícias respondem perante os respetivos superiores hierárquicos pelas infrações disciplinares que cometam.”.
58. Não era forçoso que a instituição policial da PSP aguardasse a comunicação do DIAP ..., nos termos do n.º 6, do artigo 6.º do Estatuto Disciplinar da PSP, para agir disciplinarmente, não podendo invocar que não tinha conhecimento dos factos, considerando que os mesmos não só envolveram vários agentes, como ocorreram nas próprias instalações da PSP.
59. Tanto mais que, segundo o disposto no artigo 61.º do Estatuto Disciplinar da PSP, “A notícia da infração disciplinar é adquirida por conhecimento próprio, por participação, queixa ou denúncia nos termos dos artigos seguintes.”.
60. Deste modo, não é sustentável que a hierarquia administrativa policial não tivesse tomado conhecimento dos factos naturalísticos do cometimento das infrações disciplinares, designadamente, dos elementos caracterizadores da situação, de modo a poder efetuar uma ponderação criteriosa para determinar, de forma consciente, quanto a usar do poder disciplinar.
61. Como observou Eduardo Correia, “um mesmo facto pode constituir ao mesmo tempo uma falta penal e uma falta disciplinar; mas, igualmente pode acontecer que esse facto constitua uma infracção penal sem ter o carácter de falta disciplinar e que, inversamente, um facto constitua uma falta disciplinar, sem reunir as condições de uma infracção penal”, por a autonomia dos campos disciplinar e penal se caracterizar “pela coexistência de espaços valorativos e sancionatórios próprios” e “só as faltas cometidas no exercício da função ou susceptíveis de comprometer a dignidade desta podem ser objecto de repressão disciplinar. (…) Na verdade, enquanto a repressão penal é exercida no interesse e segundo as necessidades da sociedade em geral, a repressão disciplinar é-no no interesse e segundo as necessidades do serviço. A sanção penal atinge o cidadão na sua liberdade e nos seus bens, a sanção disciplinar atinge o funcionário na sua situação de carreira (…). A valoração é, assim, autónoma e independente, donde resulta, pois, que a mesma conduta pode ser apreciada simultaneamente no campo penal e no campo disciplinar, sem que isso envolva violação do princípio “ne bis in idem”, que apenas funciona no âmbito de cada específico ordenamento sancionatório”, Direito Criminal II, Coimbra 1992, pág. 5 e Parecer da PGR n.º 24/95, de 07/12/1995, citado no Parecer do Conselho Consultivo da PGR n.º 24/95, de 07/12/1995 (sublinhados nossos).
62. Constitui jurisprudência assente deste STA, que “o processo disciplinar é autónomo do processo criminal, uma vez que são diversos os fundamentos e fins das respectivas penas, bem como os pressupostos da respectiva responsabilidade, podendo ser diversas as valorações que cada uma delas faz dos mesmos factos e circunstâncias. Por isso, a existência de ilícito disciplinar não está prejudicada ou condicionada pela decisão que, sobre os mesmos factos, tenha sido, ou venha a ser tomada em processo penal”, Acórdãos do STA de 25/02/99, Proc. n.º 37.235; de 11/12/2002, Proc. n.º 38.892; de 09/10/2003, Proc. n.º 856/03; de 11/02/2004, Proc. n.º 42.203; de 15/02/2004, Proc. n.º 797/04 e de 19/06/2007, Proc. n.º 01058/06, e do Pleno de 24/01/2002, Proc. n.º 48.147; de 15/01/2002, Proc. n.º 47.261; de 22/10/98, Proc. n.º 42.519; de 25/09/97, Proc. n.º 38.658 e de 06/12/2005, Proc. n.º 42.203.
63. No entanto não só entre 2011 e 2016, data em que o procedimento disciplinar foi instaurado, a Entidade Demandada nada fez, como, mesmo depois disso, nunca sentiu a necessidade de sancionar os ilícitos cometidos, nem sequer por razões de prevenção ou de preservação da imagem e prestígio da instituição.
64. À semelhança do direito criminal, o direito sancionatório disciplinar em que se move o ato impugnado, é eticamente fundado, na medida em que protege valores de obediência e disciplina, no quadro de um serviço público, necessários para o seu perfeito funcionamento e, portanto, visa também dar satisfação a um interesse público de punir e não só prevenir as infrações violadoras de determinados deveres funcionais.
65. Além disso, também desde 2016 o Recorrido tem-se mantido ao serviço, sem que, por alguma vez, a Entidade Demandada tenha promovido a sua suspensão ou manifestado, por algum meio ou forma, a inviabilidade de manutenção da relação funcional.
66. E mesmo que não tivesse agido logo após os atos ocorridos em 2011, mas só quando recebeu o ofício do DIAP ..., em 2016, o certo é que mesmo nessa data não foi promovida a suspensão do arguido, até hoje, não tendo a instituição da PSP formulado o juízo de extrema gravidade dos factos e de afetação da imagem e prestígio da Corporação.
67. Por isso, desde 2011, data em que foram praticados os atos criminosos e passíveis de procedimento disciplinar, o agente da PSP tem-se mantido no ativo.
68. Daí que, embora os factos imputados ao arguido se subsumam às clausulas legalmente previstas tipificadoras dos ilícitos disciplinares muito graves, na verdade toda a atuação da Entidade Demandada desde a prática dos atos ilícitos, ao longo de 13 anos, demonstram que não se opôs à manutenção do vínculo laboral, nem se opôs a essa relação funcional, atestando a realidade a inversa da que invoca quanto à inviabilidade da relação funcional.
69. Pois que se ocorresse a inviabilidade da manutenção da relação funcional o agente da PSP não se teria mantido ao serviço durante todos esses anos desde a prática dos atos ilícitos ocorridos em 2011, mantendo a integralidade das respetivas funções policiais, nem poderia ter evoluído na carreira.
70. Não pode a Entidade Demandada manter o agente ao serviço e, para mais, na plenitude das suas funções, durante mais de uma década e depois, decorrido todo esse período sobre a prática dos factos e cerca de três anos após a condenação penal transitada em julgado, quando nada mais havia factualmente a investigar, vir praticar o ato punitivo de demissão.
71. Em segundo lugar, não foi apenas o tempo decorrido entre a prática dos atos ilícitos, mas também a demais factualidade julgada provada, acerca das classificações de serviço de mérito atribuídas ao Recorrido, assim como o Louvor atribuído, são igualmente demonstrativas do desempenho profissional do arguido, em sentido contrário ao alegado pelo Recorrente, respeitante à inviabilidade da manutenção da relação laboral.
72. Não pode a Administração permitir e consentir o normal exercício de funções do agente da PSP durante mais de uma década, atribuir-lhe duas classificações de serviço meritórias, conceder-lhe um louvor, conferir-lhe funções que traduzem um aumento da responsabilidade funcional, passando-o a Graduado de serviço, tudo isto depois de praticados os factos ilícitos, sem nunca manifestar qualquer oposição em relação à sua permanência no serviço ativo de funções e depois invocar que os factos praticados são de tal modo graves que inviabilizam a manutenção da relação funcional.
73. Os factos provados relativos ao exercício das funções do Autor, enquanto agente da PSP, designadamente, no tocante ao modo e ao tempo desse exercício funcional, são absolutamente contrários à demonstração do conceito indeterminado de inviabilidade da manutenção da relação funcional, pois, ao invés de comprovarem essa inviabilidade, comprovam o facto contrário, de que a manutenção da relação funcional é possível, conforme tem ocorrido há cerca de 13 anos, desde a prática dos fatos ilícitos ocorridos em janeiro de 2011.»
32. Tal como na situação versada no acórdão acabado de transcrever, ainda que os factos cometidos pelo Recorrente sejam graves, a verdade é que o mesmo, de acordo com a prova indiciária efetuada, se manteve no pleno exercício das suas funções durante mais de 10 anos após o cometimento da infração disciplinar, e durante todo esse período, muito extenso (vários anos) esteve, ao que nos é dado concluir, no pleno exercício das suas funções de agente da PSP, ao serviço dessa corporação, tendo até sido avaliado em termos positivos, obtendo várias classificações de Muito Bom e algumas de Bom, ou seja, notas de mérito. Talvez por isso, a Administração não tenha conseguido, na decisão punitiva que proferiu, demonstrar em concreto que o comportamento do ora Recorrente, que integra o ilícito disciplinar, compromete de forma irremediável a continuação e a manutenção do vínculo da relação de serviço público com a PSP.
33. Como afirmado na jurisprudência deste STA “o fundamento do direito disciplinar assenta na necessidade de garantir o bom funcionamento dos serviços, através de medidas corretivas aos funcionários que violem os deveres impostos e, consequentemente, embaracem ou prejudiquem o bom funcionamento dos serviços e a prossecução do interesse público. Porém, quando as condutas infracionárias atingem uma gravidade tal que das mesmas resulta não ter sido o funcionário capaz de se adaptar ao serviço e interiorizar, responsavelmente, as suas funções, prevê a lei a pena de demissão ou aposentação compulsiva - pena expulsiva - com o afastamento do funcionário que desse modo se revelou inadaptado às funções e, por isso, não merecedor da confiança que os cidadãos e a Administração nele depositaram, Administração que assim se vê livre de quem se revelou, pela sua conduta, não merecer pertencer-lhe.” - Acórdão deste Tribunal de 14/03/2002 (rec. 48166). O que significa que a aplicação da medida expulsiva - quer se trate de demissão quer de aposentação compulsiva - só pode ter lugar quando a conduta do infrator atinge de tal forma o prestígio e a credibilidade da instituição de que faz parte que a sua não aplicação não só iria contribuir para degradar a imagem de seriedade e de isenção dessa instituição como também poderia ser considerada pela opinião pública como chocante ou escandalosa. E por ser assim é que a aplicação daquelas penas aos agentes ou funcionários da PSP depende da prática de “infrações disciplinares que inviabilizam a manutenção da relação funcional” (art.º 47.º/1 do RD/PSP), isto é, de comportamentos capazes de minar de forma inapagável não só a imagem de prestígio e de credibilidade daquela Corporação como também a confiança que nelas depositam os cidadãos e, por isso, impossibilitem a relação de confiança indispensável à manutenção do vínculo funcional. Tais comportamentos encontram-se indicados de forma exemplificativa no art.º 47.º/2 (…) Todavia, a aplicação de uma ou de outra dessas medidas não é arbitrária (…)”- cfr. Ac. do STA, de 05/05/2011, Proc. n.º 0934/10.
34. Ponderando que, conforme se viu resultar do disposto no artigo 23º, do atual Estatuto Disciplinar da PSP, para que o Recorrente possa ser alvo de uma sanção de natureza expulsiva, como é o caso da aposentação compulsiva, a mesma não pode ser o resultado automático da simples constatação de que o mesmo praticou uma infração disciplinar grave, sendo condição necessária que a Administração demonstre a inviabilidade da manutenção da relação funcional, incumbindo-lhe tal ónus, de modo que, mediante um juízo de prognose, torne claro que a prática da infração disciplinar cometida pelo Recorrente compromete de uma forma irreversível a manutenção dessa relação, não podemos senão concluir, com um elevado grau de segurança, ainda que em sede cautelar, que esse ónus não foi cumprido pela Administração, e como tal, não podia validamente aplicar ao Recorrente a sanção extintiva do vinculo laboral como é a aposentação compulsiva. Basta ler o que se escreveu na decisão disciplinar, para se constar que a Administração não efetuou qualquer ponderação nem formulou nenhum juízo de prognose sobre a inviabilidade, ou não, da manutenção da relação de serviço do Recorrente.
35.A valoração da infração disciplinar cometida pelo Recorrente como inviabilizante da manutenção da relação funcional não pode radicar apenas na gravidade objetiva da conduta resultante dos factos que praticou ( que, no caso, levaram mesmo à sua condenação penal), tendo ainda e necessariamente de atender aos reflexos que os seus efeitos tiveram na função por ele exercida e no reconhecimento “através da natureza do ato e das circunstâncias em que foi cometido, de que o seu autor revela uma personalidade inadequada ao exercício dessas funções” – cfr. Acórdão do STA, de 11/10/2006, processo 010/06.
36.Não tendo a Administração, como se viu, efetuado nenhum juízo de prognose sobre a inviabilidade da manutenção da relação funcional do Recorrente em consequência da infração cometida, a mesma incorreu na prática de uma decisão punitiva em relação à qual é provável que em sede de ação principal que venha a ser julgada ilegal por enfermar dos vícios que o Recorrente lhe assaca, seja a falta de fundamentação, seja o erro sobre os pressupostos de facto, seja a violação do princípio da proporcionalidade, o que redunda no erro de julgamento do Acórdão recorrido e da sentença cautelar da 1ª instância, pois, ao contrário do que decidiram, será de considerar verificado o requisito do fumus boni iuris.
39.Em face do exposto, não podemos senão decidir que se encontra preenchido o pressuposto do fumus boni iuris, impondo-se revogar a decisão proferida, e em substituição verificar se estão preenchidos os demais requisitos de que depende o decretamento da requerida providência cautelar.

b.2. da verificação dos demais pressupostos cumulativos para o decretamento da providência cautelar de suspensão de eficácia

40.As providências cautelares só podem ser decretadas se, efetuada uma apreciação meramente perfunctória, o tribunal concluir por um juízo de probabilidade de procedência da pretensão formulada ou a formular na ação principal- i) fumus boni iuris-, mas a verificação desse pressuposto, só por si, não basta para que a providência cautelar possa ser concedida.
41. O legislador exige ainda a verificação de outros dois pressupostos, a saber: (ii) que haja fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal (periculum in mora); e iii) que da ponderação dos interesses públicos e privados em presença se conclua que os danos resultantes da concessão da providência não se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa ou que, sendo superiores, possam ser evitados ou atenuados pela adoção de outras providências (juízo de ponderação de interesses destinado a aferir a proporcionalidade e a adequação da providência)- artigo 120.º, n.ºs 1 e 2 do CPTA.
42. Vejamos se no caso estão preenchidos os demais pressupostos para a atribuição ao Recorrente da providência cautelar de natureza conservatória que formula nos presentes autos.

(ii) do periculum in mora

43.
No que tange ao periculum in mora, a lei exige para que este requisito cumulativo se dê como preenchido que ocorra um fundado receio, de que quando o processo principal chegue ao fim e sobre ele venha a ser proferida uma decisão, essa decisão já não venha a tempo de dar resposta adequada às situações jurídicas envolvidas em litígio, seja porque a evolução das circunstâncias durante a pendência do processo tornou a decisão totalmente inútil, seja porque, essa evolução conduziu à produção de danos dificilmente reparáveis.
44. Nessa senda, “deve considerar-se que o requisito do periculum in mora se encontra preenchido sempre que os factos concretos alegados pelo requerente permitam perspetivar a criação de uma situação de impossibilidade da restauração natural da sua esfera jurídica, no caso de o processo principal vir a ser julgado procedente” –cfr. citando Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto F. Cadilha, in “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, 4ª edição, Almedina, 2017, pp. 970-972 (anotação 2. ao art.º 120º).
45.Na aferição deste requisito, como ensina o Senhor Professor Vieira de Andrade, o juiz deve começar por efetuar um juízo de prognose averiguando que efeito útil terá a decisão final a proferir no processo principal em que o requerente cautelar venha a ter ganho de causa, se entretanto se tiver consumado uma situação de facto incompatível com essa sentença, ou por entretanto se terem efetivado prejuízos graves de difícil reparação, que impedem a reintegração especifica da sua esfera jurídica: se concluir pela afirmativa, terá de dar como preenchido este pressuposto basilar.
46.Na síntese da autoria de Abrantes Geraldes, o fundado receio a que a lei se refere é o receio “(…) apoiado em factos que permitam afirmar, com objetividade e distanciamento, a seriedade e atualidade da ameaça e a necessidade de serem adotadas medidas tendentes a evitar o prejuízo. Não bastam, pois, simples dúvidas, conjeturas ou receios meramente subjetivos ou precipitados assentes numa apreciação ligeira da realidade, embora, de acordo com as circunstâncias, nada obste a que a providência seja decretada quando se esteja ainda face a simples ameaças advindas do requerido, ainda não materializadas, mas que permitam razoavelmente supor a sua evolução para efetivas lesões” -Cfr. António dos Santos Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, volume III, 3ª edição, Almedina, pág. 103.
47. Daí que, a aferição dos critérios a atender na apreciação do periculum in mora devem obedecer a um maior rigor na apreciação dos factos integradores de tal requisito visto que a qualificação legal do receio como fundado visa restringir as medidas cautelares, evitando a concessão indiscriminada de proteção meramente cautelar com o risco inerente de obtenção de efeitos que só podem ser obtidos com a segurança e ponderação garantidas pelas ações principais.
48.É apreensível sem dificuldade que o que justifica o fenómeno jurisdicional das providências cautelares é o aludido periculum in mora, por haver casos em que a formação demorada de decisão definitiva expõe o presumido titular do direito a danos irreparáveis.
49.Como se bem se elucida no Acórdão deste STA, de 24/05/18, processo n.º 0311/18, “O periculum in mora constitui o verdadeiro leitmotiv da tutela cautelar, pois é o fundado receio de que a demora na obtenção da decisão no processo principal, causa danos de difícil ou impossível reparação aos interesses perseguidos nesse processo que motiva ou justifica esse tipo de tutela urgente».
50. É sobre o Requerente que impende o ónus de tornar credível a sua posição através do encadeamento lógico e verosímil de razões convincentes e objetivas nas quais sustenta a verificação dos requisitos da providência, não estando o mesmo dispensado de provar os factos integradores dos referidos pressupostos, para o que deve alegar, de forma concreta, a causa petendi em que fundamenta a sua pretensão cautelar (- Cfr. entre outros, Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 14/07/2008 (proc. n.º 0381/08), de 19/11/2008 (proc. n.º 0717/08) e de 22/01/2009 (proc. n.º 06/09)).
51. Todavia, tal não significa que se exija ao requerente em sede cautelar um “esforço titânico” de alegação e prova de factos que consubstanciem o fundado receio de que o processo principal, uma vez decidido, se torne inútil para a defesa dos interesses do requerente, mas exige-se-lhe o ónus de alegar (e provar) de forma concreta a causa petendi em que fundamenta a sua pretensão cautelar, tal como decorre do disposto no artigo 114.º, n.º 3, alínea g) do CPTA, artigo 5.º, n.º 1 do Código de Processo Civil e 342.º do Código Civil, ou seja, de especificar, de forma articulada, os fundamentos do pedido, oferecendo prova sumária da respetiva existência e provar os mesmos.
52. E como se salienta no Acórdão do STA de 16/09/2016 (revista nº 0979/16), “a aferição da bondade desta providência deve metodologicamente começar pela análise dos requisitos ínsitos no n.º 1 do art.º 120º do CPTA – sendo indiferente principiar por qualquer deles; e só no caso de ambos se verificarem passaremos ao cotejo imposto no n.º 2 do artigo” - cfr. no mesmo sentido, Ac. do STA, de 20.05.2017, processo n.º 049/07.
53. A jurisprudência do STA, de que é exemplo o acórdão já citado, proferido em 14/06/2018, na revista nº 0435/18, tem secundado, a propósito do periculum in mora, o seguinte entendimento:
« II - Se o fundado receio de a decisão da ação principal não vir a tempo de dar resposta às pretensões jurídicas envolvidas no litígio porque a evolução da situação, entretanto, a tornou totalmente inútil, verifica-se o periculum in mora na vertente do facto consumado;
III - Se o fundado receio de que durante a pendência da ação principal surjam danos dificilmente reparáveis, porque a reintegração da legalidade não é capaz de os reparar, ou pelo menos de os reparar integralmente, verifica-se periculum in mora na vertente da produção de prejuízos de difícil reparação (…)”
54. Ora, no caso as instâncias deram como não provado que:
«F. O Requerente vive em união de facto com a sua companheira e o filho de ambos com 3 anos e meio (cfr. artigo 103.º da petição inicial);

G. O Requerente depende do seu vencimento para prover pelo sustento do seu agregado familiar, para pagar crédito habitação, água, luz, gás, telecomunicações, seguros, alimentação, em suma, as despesas básicas e essenciais de um agregado familiar de 3 pessoas (cfr. artigo 104.º da petição inicial).»

55.Nao obstante, efetuado um juízo de prognose, vislumbra-se que a execução imediata da pena de aposentação compulsiva causará uma situação de facto consumado, uma vez que o Recorrente, durante o tempo em que aquela sanção estiver a ser executada, não poderá exercer a sua atividade profissional, pelo que, ver-se-á afastado do serviço, situação em que se manterá até ao trânsito em julgado da decisão que venha a ser proferida na ação principal, em regra, morosa, com todas as consequências que daí decorrem para a sua esfera jurídica.
Ora, porque assim é, forçoso é concluir que uma situação desta jaez se mostra irreversível no plano dos factos, na medida em que, até que seja proferida decisão na ação principal, não poderá exercer o seu direito ao trabalho, vendo-se impedido, durante esse período, de prestar a sua atividade profissional e essa privação do direito ao trabalho durante esse lapso de tempo, é um facto que se consuma após cada dia de trabalho em que se fique impedido de estar ao serviço.

Assim sendo, tanto basta para que dê como verificado o requisito do periculum in mora.

(iii) da ponderação de interesses.

56. Quanto à ponderação de interesses, o n.º 2 do artigo 120.º do CPTA prescreve que “ Nas situações previstas no número anterior, a adoção da providência ou das providências é recusada quando, devidamente ponderados os interesses públicos e privados em presença, os danos que resultariam da sua concessão se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adoção de outras providências.”
57.Em anotação a este preceito, Mário Aroso de Almeida e Carlos Fernandes Cadilha frisam que «[a]concessão da providência não depende, pois, exclusivamente da formulação de um juízo de valor absoluto sobre a situação do requerente, como sucederia se apenas se atendesse aos critérios do periculum in mora e do fumus boni iuris, previstos no n.º1, mas também depende da verificação de um requisito negativo: a atribuição da providência não pode causar danos desproporcionados, com o que se dá expressão, neste contexto, ao princípio da proporcionalidade.», considerando que esta norma atua como uma «cláusula de salvaguarda neste domínio, permitindo que, no interesse dos demais envolvidos, a providência ainda seja recusada quando, pese embora o preenchimento, em favor do requerente, dos requisitos previstos no n.º1, seja de entender que a sua adoção provocaria danos ( ao interesse público e/ou de eventuais terceiros) desproporcionados em relação àqueles que se pretenderia evitar que fossem causados ( à esfera jurídica do requerente)»- cfr. in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 5.ª edição, Almedina, 2021, pág. 1023-1024.
Mais referem que «o CPTA consagra um critério de simples prevalência de interesses, que permite ao juiz, em função das circunstâncias de cada caso, comparar o peso relativo dos interesses em presença, procurando assegurar que a decisão que toma é aquela que, objetivamente, provoca menos prejuízos. O Código retoma, assim, a solução do CPC de 1939, que determinava que o tribunal procurasse “manter o justo equilíbrio entre os dois prejuízos, o que a providência pode causar e o que pode evitar» - cfr. ob. cit. pág.1024-1025.
58.O requerente alega que nenhum prejuízo ou dano será causado ao interesse público com a procedência da presente providência, por ser manifesto o valor e o contributo do mesmo com o seu trabalho, aprumo, dedicação, empenho e verdadeiro “amor” à profissão para a Polícia de Segurança Pública, para os cidadãos e para o próprio Estado. Mais alega que é um elemento válido, com conhecimentos profissionais e técnicos acima da média, que tem estado ao serviço a PSP desde 2011, até ao presente, período durante o qual foi avaliado pelos seus superiores hierárquicos com notas altas, entre o Bom (2010, 2011, 2017 e 2019) e o Muito Bom ( entre 2012 e 2016, em 2018, 2021 e 2022), estando colocado em classe de comportamento exemplar.
59.Diversamente, o requerido, ora Recorrido, advoga que o Recorrente ao praticar o crime de que foi acusado e punido colocou em causa a imagem, o prestígio, a confiança e a respeitabilidade da PSP, mas primordialmente a disciplina dos seus agentes que é garante absoluto do bom funcionamento de qualquer instituição desta natureza, constituindo-se como um mau exemplo, seja perante a sociedade, seja perante os outros agentes da PSP, pelo que, o decretamento da providência se traduziria num elevado e grave prejuízo para o interesse público.
60.Conforme tem sido reiterado pela jurisprudência, o interesse público lesado com a suspensão da eficácia do ato que releva no âmbito desta norma, não é o interesse genérico da legalidade e eficácia dos atos, mas o interesse público específico e concreto que as circunstâncias do caso revelarem.
61.Na situação em análise, não obstante ter-se apurado que o Recorrente, em 2011, incorreu na prática de um crime de ofensas à integridade física qualificada, pelo qual foi posteriormente julgado e punido, comportamento que não podia deixar de constituir também, naturalmente, uma infração disciplinar grave, a verdade é que o mesmo, manteve-se sempre em funções como agente da PSP, ao longo de mais de 10 anos. E durante esse período, foi avaliado pelos seus superiores hierárquicos com classificações de serviço que oscilaram entre o BOM e o MUITO BOM ( cfr. ponto 10 do elenco dos factos provados).
62.O tempo decorrido entre o momento em que praticou o crime pelo qual foi punido- ano de 2011- e o momento em que veio a ser punido disciplinarmente- ano de 2023- não é despiciendo na ponderação a efetuar sobre os danos que o Recorrido alega que adviriam do decretamento da providência cautelar requerida.
63. Um tão longo período de tempo passado sobre o momento da prática dos factos pelos quais o Recorrente foi punido, durante o qual o mesmo desempenhou cabalmente as suas funções, como se retira das classificações de serviço que lhe foram atribuídas em cada um desses concretos anos, não permite, nas especificas circunstâncias deste caso, sustentar que a sua permanência ao serviço, até que se decida se a decisão disciplinar enferma ou não dos vícios que lhe são impetrados, ou seja, por mais algum tempo, que podem ser escassos meses, seja de molde a afetar a imagem, o prestígio e a credibilidade da PSP ou a fazer perigar a disciplina dos seus demais agentes.
64. Esse longo período de tempo que decorreu entre o momento da prática dos factos pelo Recorrente e aquele em que lhe foi aplicada a sanção disciplinar, em que o mesmo continuou a exercer as suas funções como agente da PSP, com mérito reconhecido pelo próprio Recorrido, que o avaliou pela forma já enunciada, leva a que se tenha de concluir que aquele seu pretérito comportamento, pese embora tivesse sido objetiva e subjetivamente gravoso, não passou de um incidente isolado, que como tal foi percecionado pelo próprio Recorrido, não só ao mantê-lo no exercício das suas funções, como ao atribuir-lhe aquelas classificações de serviço, o que também não deixa de ser percecionado pelos seus colegas e pela comunidade em geral, como tal.
65.Quanto ao Recorrente, como supra se deixou antedito, a execução imediata da sanção de aposentação compulsiva até que seja proferida decisão no processo principal, impede-o de exercer a sua atividade profissional, privando-o do seu direito constitucional ao trabalho, criando uma situação que no plano dos factos, é irreversível.
66.Deste modo, fazendo a necessária ponderação dos interesses em jogo, impõe-se concluir que são mais gravosos os danos decorrentes da não concessão da providência para o Recorrente, do que os danos decorrentes da sua concessão para os interesses do Recorrido, o que impõe o deferimento da providência e, logo, a procedência do recurso e a revogação do acórdão recorrido.


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IV-DECISÃO

Nos termos expostos, acordam em conferencia os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal, em conceder provimento ao recurso e, em consequência:
a) revogar o acórdão recorrido;
b) e em substituição, deferir o pedido cautelar e suspender a eficácia do Despacho do Ministro da Administração Interna, de 11 de abril de 2023 que aplicou ao Requerente a sanção disciplinar de aposentação compulsiva.

Custas pelo Recorrido em todas as instâncias.
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Lisboa, 26 de setembro de 2024. - Helena Maria Mesquita Ribeiro (relatora) - José Augusto Araújo Veloso - Pedro José Marchão Marques (em substituição).