Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0121/24.4BCLSB
Data do Acordão:04/30/2025
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:PROCESSO DISCIPLINAR MILITAR
GARANTIAS
DIREITO DE DEFESA
DIREITO À PROVA
Sumário:I - A decisão de antecipação do juízo sobre a causa principal, prevista no art. 121.º do CPTA, depende da verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: (i) que exista processo principal intentado; (ii) que haja urgência na resolução definitiva do caso ou que a simplicidade do mesmo o justifique; e (iii) que do processo cautelar constem todos os elementos indispensáveis à tomada da decisão no processo principal.
II - Não se discutindo que o processo dispõe de todos os elementos para a decisão de fundo da causa e não existindo dúvida acerca das questões colocadas e da gravidade dos interesses em presença, os quais vão muito para além dos interesses pessoais e profissionais dos militares em causa e que contendem com os valores essenciais da condição militar, em particular, da hierarquia – estrutura de comando e obediência - e da disciplina – cumprimento dos normativos e das ordens, está justificada a decisão de antecipação do juízo sobre a causa principal.
III - O envolvimento do oficial instrutor nos mesmos factos que deram origem ao processo disciplinar militar, por via das funções que desempenhava, e a circunstância de poder ser chamado a depor como testemunha, torna-o ipso facto impedido de exercer as funções de instrutor, conforme decorre dos artigos 91.º, n.ºs 1 e 2 do RDM, e 39.º, n.ºs 1 e 2 do CPP ex vi art. 10.º do RDM.
IV - A falta de informação aos arguidos, em sede de processo disciplinar militar, dos seus direitos e deveres, nomeadamente o direito a serem assistidos por advogado e o direito ao silêncio, constitui violação dos direitos de audiência e defesa e gera invalidade da tomada de declarações e em todos os atos que dela dependam.
V - A garantia de defesa do arguido impõe a sua audiência após a realização de diligências complementares de prova realizadas depois de apresentada a defesa, sob pena de nulidade insanável.
VI - O indeferimento de prova testemunhal considerada essencial para a defesa dos arguidos, sem fundamento legal válido, constitui violação do direito de audiência e defesa, consagrado no art. 269.º, n.º 3 da CRP, e do artigo 103.º, n.º 2, do RDM.
VII - No direito sancionatório militar, à semelhança do sucede no procedimento disciplinar comum, regulado na Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, o RDM não contém qualquer previsão legal que admita a possibilidade de formação de um órgão para presidir a uma audiência pública para discussão da prova no âmbito do cometimento de infrações disciplinares militares (essa possibilidade de realização de uma audiência pública no âmbito disciplinar foi acolhida pelo legislador ordinário em alguns estatutos profissionais e/ou regulamentos disciplinares).
VIII - O que decorre do art. 32.º, n.º 10 e 269.º, n.º 3, da Constituição é a salvaguarda nos processos sancionatórios de natureza disciplinar, ao que aqui releva, do direito de audição do arguido, do direito à prova e da possibilidade de contraditar a prova produzida a seu desfavor. Como afirmado na jurisprudência constitucional, as garantias de audiência e defesa, na dimensão decorrente do princípio do contraditório, “compreendem necessariamente, não apenas a possibilidade de o arguido influir na decisão sancionatória através do oferecimento de prova dos factos que alega em sua defesa, mas também de intervir ativamente na sua produção, assim como, em geral, a possibilidade de contradizer as provas que contra si sejam produzidas”.
IX - A nulidade da decisão sancionatória disciplinar por vícios do procedimento, obsta à apreciação e qualificação do comportamento dos militares da Marinha descrito nos autos e à (in)validade da subsunção normativa que lhe será inerente, bem como, consequentemente, prejudica a aferição da legalidade substancial das sanções aplicadas.
Nº Convencional:JSTA00071933
Nº do Documento:SA1202504300121/24
Recorrente:MARINHA PORTUGUESA (E OUTROS)
Recorrido 1:AA (E OUTROS)
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Recursos Jurisdicionais de Acórdãos dos TCA em 1.ª instância


Acordam na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I. DO OBJETO DO RECURSO


1. AA, BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ, KK, identificados nos autos, intentaram junto do Tribunal Central Administrativo Sul, ao abrigo do disposto nos art.s 112.º e s. do CPTA e da Lei n.º 34/2007, de 13 de agosto, contra a MARINHA PORTUGUESA, preliminarmente à ação principal de impugnação, providência cautelar com pedido de decretamento provisório, peticionando a suspensão de eficácia do ato de 1.07.2024, proferido pelo CHEFE DE ESTADO MAIOR DA ARMADA – CEMA, que indeferiu o recurso hierárquico interposto, mantendo, em consequência, as penas disciplinares de suspensão de serviço – cuja graduação varia, consoante os casos, entre 10 a 45 dias de suspensão – que lhes haviam sido aplicadas pelo VICE-ALMIRANTE COMANDANTE NAVAL – VALM CN, no âmbito do processo disciplinar único que tinha sido instaurado.

2. O TCA Sul, por decisão de 26.07.2024, indeferiu o pedido de decretamento provisório da providência cautelar de suspensão de eficácia.

3. Subsequentemente, por acórdão de 19.12.2024, o TCA Sul, antecipando o juízo da causa principal e conhecendo de mérito, julgou: (i) inaplicável ao caso concreto a Lei n.º 38-A/23, de 2 de agosto (Lei da Amnistia); (ii) justificada a antecipação do juízo final sobre o mérito da causa, procedendo à convolação da decisão cautelar na decisão principal; (iii) inexistente a inutilidade superveniente da lide; (iv) nulo o ato impugnado.

4. É deste acórdão que a Entidade Requerida, MARINHA PORTUGUESA, inconformada, vem interpor o presente recurso jurisdicional, apresentando alegações que terminam com as seguintes conclusões:

A. Por douto Acórdão de 19.12.2024, foi considerado nulo, por vício de violação de lei, o despacho emitido em ../../2024 pelo ALM CEMA, que indeferiu o recurso hierárquico interposto pelos Requerentes do despacho de 26.03.2024 do VALM COMNAV, que lhes aplicou as penas de suspensão de serviço – variando a respetiva graduação, consoante os casos, entre 10 (dez) e 45 (quarenta e cinco) dias – no âmbito do PD com o N...72 a ...72.

B. O Venerando Tribunal a quo concluiu pela existência de vício de violação de lei por considerar que todos os atos de instrução e subsequentes são inválidos pois, no seu entender, consubstanciam atos praticados por oficial impedido no caso concreto (v.g. artigo 91.º, n.º 1, do RDM), daí que também o seja o ato sindicado, na exata medida em que manteve, em sede de recurso hierárquico, os alegados atos ilegais.

C. Considerou também que houve violação de lei por terem os Requerentes sido ouvidos na qualidade de arguidos, sem que tenham sido informados, pelo oficial instrutor, dos direitos e deveres que lhes assistiam, nomeadamente do direito à constituição de defensor e direito ao silêncio.

D. Concluiu igualmente por vício de violação de lei por considerar que o oficial instrutor, não logrou justificar porque, no caso concreto, considerava que não era necessária a inquirição do VALM COMNAV; o mesmo se passando relativamente ao impedimento do CZMM, que, confrontado, na qualidade de instrutor, com o facto de ter sido arrolado como testemunha, não terá logrado justificar porque considerava que não era necessária a sua própria inquirição.

E. E concluiu existir nulidade insanável (v.g. artigo 103.º, n.º 4 do RDM) por considerar não ter sido dado o contraditório aos Requerentes após a realização de diligências complementares de prova executadas depois de apresentada a defesa. Assim, entendeu verificar-se a violação do princípio do contraditório e, consequentemente, verificada a falta de audiência dos Requerentes sobre matéria da acusação, o que terá violado as respetivas garantias de defesa.

F. O Venerando TCA Sul determinou ainda – contrariamente ao propugnado pela ora Recorrente – a antecipação do juízo sobre a causa principal com base na amplitude do ato de desobediência militar cometido, na sua alegada dimensão mediática e sensível, e, por outro lado, perante as alegadas implicações concretas para a carreira de cada um dos Requerentes.

G. No que concerne à antecipação do juízo sobre a causa principal, não parece, contudo, que a lei processual aplicável ao caso em apreço tenha previsto que o alegado mediatismo de um determinado processo possa, ou deva, ser erigido em critério ou fundamento para antecipar o juízo sobre a causa principal; do mesmo modo que não logra demonstrar o Venerando Tribunal quais as alegadas implicações concretas para a carreira de cada um dos Requerentes.

H. Atento o disposto no artigo 121.º do CPTA, a jurisprudência considera que este mecanismo processual «[d]epende da verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: (i) Que exista processo principal intentado; (ii) Que haja urgência na resolução definitiva do caso ou que a simplicidade do mesmo o justifique; e (iii). Que do processo cautelar constem todos os elementos indispensáveis à tomada da decisão no processo principal.» [cf. acórdão do TCA Sul, de 30.03.2017, Processo n.º 305/16.9BECTB (Gomes Correia), disponível em www.dgsi.pt] (aqui sublinhado).

I. Com o devido respeito (que é muito, pelo Venerando TCA Sul), o que a decisão recorrida qualifica como situação de urgência na resolução definitiva do caso, tem a ver com a característica típica das providências cautelares, decorrente da sua própria natureza, que é a sua provisoriedade.

J. A provisoriedade da tutela cautelar impede, como tal, que o Tribunal adote uma regulação que dê resposta à questão de fundo sobre a qual versa o litígio, questão de fundo esta a resolver no processo principal. Tem, por isso, de estar em causa uma composição provisória de um litígio, cabendo à ação principal a composição definitiva do mesmo.

K. A partir do momento em que a cognição do pedido cautelar implique a resolução definitiva do litígio, a pretensão de determinado Requerente não se compadece com a provisoriedade que caracteriza a tutela cautelar e, inexistindo «simplicidade do caso ou urgência na sua resolução definitiva» (cf. se verifica no caso vertente e ficou amplamente demonstrado nestas alegações recursivas), não pode ser antecipada, para o processo cautelar, a decisão sobre o mérito da causa – pelo que mal andou o Tribunal ao fazê-lo.

L. Até porque as penas disciplinares aplicadas aos Requerentes já se encontravam (há muito) cumpridas, pelo que a resolução definitiva do diferendo não assume urgência que justificasse a possibilidade de convolação da providência cautelar no processo principal.

M. E, caso estes viessem a obter provimento na ação principal, a eventual reconstituição das respetivas carreiras sempre seria possível, recuperando os Requerentes, por essa via, as suas antiguidades e respetivas remunerações. Assim, este efeito prático poderia ser obtido em tempo útil através da ação principal, não existindo urgência que justificasse a aplicação do artigo 121.º do CPTA no caso concreto.

N. Daí que, caso não tivesse ocorrido a antecipação da decisão da causa principal, o desfecho da lide cautelar certamente teria sido outro, em sentido desfavorável à pretensão dos Requerentes, desde logo por falta de demonstração do periculum in mora.

O. Acresce que o caso dos autos também não é de simples resolução – é, aliás, o próprio Tribunal a quo que reconhece essa mesma complexidade, ao expressamente referir na sua decisão de 26.07.2024 sobre o indeferimento do decretamento provisório que «a causa é complexa –, desde logo atendendo à extensão dos argumentos expendidos (de facto e de direito) pelas partes e do vasto acervo documental já junto aos autos.

P. É, portanto, manifesto que o caso sub judice encerra a complexidade própria de um PD com nuances muitos particulares, cuja análise e cuidada ponderação não se compadece com a antecipação do juízo sobre a causa principal.

Q. Como tal, e com o devido respeito, o Venerando Tribunal a quo terá incorrido em erro de julgamento na análise feita, por ter considerado que, no caso dos autos, se encontravam reunidos os pressupostos para a aplicação do mecanismo processual previsto no artigo 121.º do CPTA, que permite a antecipação da decisão da causa principal (neste sentido, Acórdão do TCA Sul de 24.10.2019, referente ao Processo n.º 1113/18.8BEALM, bem como o douto Acórdão do STA de 06.02.2020 sobre o mesmo processo).

R. Aliás, esse mesmo Venerando Tribunal, perante os mesmos factos descritos nos autos, pese embora praticados, in casu, pelos outros 2 (dois) militares (concretamente, o ...01 1SAR MQ LL e o ...00 1SAR L MM) constituídos arguidos no mesmo PD, já decidiu anteriormente de forma diferente, cf. se afere pelo teor do douto Acórdão de 16.10.2024 referente ao Proc. n.º 291/24.1BEALM (processo cautelar).

S. É que nesse processo cautelar, o Venerando Tribunal a quo, para além de não decidir pela antecipação do juízo sobre a causa principal, concluiu pela inobservância de um dos pressupostos de admissibilidade definidos na Lei n.º 34/2007, de 13.08., in casu, da probabilidade de êxito na ação principal, também denominado por fumus boni iuris, o que prejudicou a análise dos demais requisitos processualmente previstos.

T. E centrando-se na aferição do critério do fumus boni iuris qualificado nesse processo cautelar, o Venerando Tribunal a quo foi claro e inequívoco ao ajuizar que «(…) atento o alegado pelas partes, da factualidade indiciariamente assente e da legislação aplicável não resulta evidente, manifesta ou palmar a ilegalidade do ato suspendendo» (aqui sublinhado).

U. Ademais, por assumirem a condição de militar, aludiu o mesmo Tribunal nesse douto aresto – cuja argumentação aqui se sufraga – que os Requerentes estão adstritos a deveres estatutários que se distinguem, em larga medida, aos que são exigidos, entre outros, aos funcionários públicos, com enfoque para o dever de defesa da Pátria, ainda que com sacrifício da própria vida, e ainda o «fortíssimo» dever de obediência à hierarquia e às cadeias de comando, correção, aprumo e dos demais que se encontram inscritos nos artigos 1.º a 4.º e 12.º a 24.º do RDM. Por ser assim, afiançou o TCA Sul no referido Acórdão que, por discorrerem de tais deveres por efeito do ato de desobediência de 11.03.2023, «a conduta dos militares foi grave e censurável, pois aqueles tinham consciência que lhe estava totalmente vedado tal comportamento».

V. Daí que, atento o vertido no douto Acórdão de 16.10.2024 referente ao Proc. n.º 291/24.1BEALM, resultou, assim, o entendimento claro e incontestável por parte do Venerando TCA Sul de que, precisamente o artigo 3.º da Lei n.º 34/2007, de 13.08., não se mostrou preenchido no caso desses autos (em tudo idêntico ao dos presentes autos, visto assentar nos mesmos pressupostos e estar em causa a mesma factualidade subjacente), donde, se justificou aí a rejeição da providência cautelar requerida, o que, salvo melhor e douta opinião na matéria, também deveria ter ocorrido na situação vertente.

W. No respeitante aos alegados vícios de violação de lei referentes à participação do instrutor no PD (v.g. artigos 91.º, n.º 1, 102.º, n.º 2, e artigo 103.º, do RDM), já antes os Requerentes haviam suscitado judicialmente a alegada falta de imparcialidade e de isenção do instrutor em vários processos – nos quais ficou amplamente demonstrado que não se encontravam reunidos os pressupostos de admissibilidade da suspeição a que aludem o artigo 91.º do RDM e, a título subsidiário, o artigo 73.º do CPA –, avultando o decidido pelo TAC Lisboa (Proc. n.º 2213/23.8BELSB), por douta sentença de 06.07.2023, que concluiu, por um lado, (i) que o instrutor não praticou qualquer ato que condicionou o direito de audiência e defesa dos arguidos, e por outro, (ii) que a sua atuação na cadeia de factos, por decorrer do exercício de funções militares, em nada prejudicou ou sonegou sua isenção, imparcialidade e equidistância enquanto instrutor do PD.

X. Ficou assim judicialmente validada a intervenção do CMG NN como instrutor do PD, e, bem assim, considerada a inexistência de indícios, objetivos, que o instrutor tivesse algum preconceito contra os Requerentes ou interesse pessoal no desfecho do processo, ou que tenha tido um comportamento que, objetivamente, suscitasse dúvidas, sérias e graves, quanto à sua isenção na tramitação do procedimento disciplinar de modo a perigar o exercício do direito de audiência e defesa dos Requerentes.

Y. Tendo os Requerentes interposto recurso dessa referida decisão, o TCA Sul proferiu Acórdão em 13.09.2023, negando provimento ao recurso e mantendo a decisão que rejeitou liminarmente a intimação, assim se confirmando a validade da nomeação do oficial instrutor do PD.

Z. Relativamente ao oficial instrutor do processo, salienta-se que a sua participação na cadeia de factos dos quais veio a resultar a desobediência dos Requerentes, entre outros atos ilícitos com relevância disciplinar, sucedeu, exclusivamente, pela sua qualidade de CZMM, ou seja, por motivo do exercício dessas funções, e não outras.

AA. E o mesmo sempre pautou a sua atuação pelo estrito respeito das diretrizes legais previstas no RDM, mormente os direitos de audiência e de defesa dos arguidos. E sempre se manteve equidistante relativamente ao órgão decisor do procedimento disciplinar, limitando-se a proceder às diligências de prova que, de acordo com a sua convicção, assumiam relevância para a descoberta da verdade, de acordo com as vinculações legais do artigo 94.º do RDM.

BB. Resulta, então, inequivocamente demonstrado nos autos, que o oficial instrutor (bem como o VALM COMNAV) se encontrava plenamente legitimado para intervir no PD, nos termos em que o fez.

CC. Acresce que, no já mencionado douto Acórdão de 16.10.2024, referente ao Proc. n.º 291/24.1BEALM (processo cautelar), o respetivo coletivo de juízes do Venerando TCA Sul negou provimento ao processo cautelar em questão, por entender que o PD não padece de uma evidente ilegalidade, nomeadamente, referente à nomeação do instrutor e da entidade competente para o instaurar, sendo ainda de referir que, como ficou bem evidenciado no PD, quer as fases procedimentais, quer os direitos consagrados aos arguidos pelo RDM, foram integralmente cumpridos.

DD. Ou seja, também nesse douto Acórdão o Venerando Tribunal a quo declinou as alegações em torno da falta de imparcialidade e de isenção do oficial instrutor e da entidade competente para instaurar o processo disciplinar, por se comprovar que a atuação de ambos na cadeia de acontecimentos do dia 11.03.2023, além de desconexas com as ilicitudes imputadas aos arguidos, circunscreveu-se ao exercício de funções militares, respetivamente, como CZMM e COMNAV.

EE. Daí que, para espanto da Recorrente, venha o Venerando TCA Sul contrariar, em larga medida, anteriores decisões judiciais (algumas delas decididas pelo próprio Tribunal a quo) já devidamente consolidadas na ordem jurídica sobre o caso dos autos.

FF. Tivessem as decisões judiciais prévias sobre a matéria em causa sido outras, nomeadamente no que tange à participação do instrutor (decisões essas nas quais a ora Recorrente depositou a sua confiança), teria também, muito seguramente, a Entidade Recorrente, por respeito ao princípio da legalidade e às decisões dos tribunais, tido a oportunidade de diligenciar, em tempo útil, pela nomeação de outro instrutor do PD. Não o fez, precisamente, alicerçando a sua plena confiança nas várias decisões judiciais que foram sendo tomadas a respeito da matéria em apreço.

GG. Encontrando-se, assim, por demais justificada nos termos legais e regulamentares a intervenção do CZMM (instrutor do processo) e do VALM COMNAV (entidade que aplicou a punição aos Requerentes) no PD, decai, por conseguinte, o arrazoado argumentativo plasmado no douto Acórdão recorrido concernente ao alegado vício de violação de lei (v.g. artigo 102.º, n.º 2, e artigo 103.º, ambos do RDM).

HH. No concernente aos demais alegados vícios de violação de lei (v.g., artigos 94.º, n.º 3, e 103.º, n.º 4, do RDM) invocados no douto Acórdão recorrido, trata-se de considerações que, pese embora o devido respeito pelo Venerando Tribunal a quo, não possuem qualquer sustentabilidade, devendo como tal improceder.

II. Atente-se que do teor de cada um dos autos de declarações recolhidos pelo instrutor, constam expressamente as razões pelas quais os Requerentes seriam inquiridos no procedimento, e ainda as questões concretas a responder. Do mesmo modo que, em todas essas diligências, foram os Requerentes bem elucidados sobre os direitos de que dispunham enquanto arguidos.

JJ. E, na qualidade de arguidos, não foram impelidos ou de algum modo coagidos a responder às questões que lhes foram sendo colocadas, optando por prestar declarações de forma totalmente livre e consciente. Prova disso sucedeu quando os arguidos foram confrontados com os novos factos que lhe foram imputados na P.O. do dia 14.03.2023 acerca da difusão de informação classificada [cf. artigos 3.º e alíneas r), s) e t) do artigo 14.º do relatório final], em que decidiram não prestar declarações, sem qualquer cominação associada.

KK. Sobre a decisão do instrutor indeferir algumas das diligências de prova requeridas pelos Requerentes, o Tribunal a quo entendeu já no seu douto Acórdão de 16.10.2024 (referente ao Proc. n.º 291/24.1BEALM), que essa prorrogativa foi corretamente exercida, porquanto decorre do disposto no n.º 5 do artigo 94.º do RDM, afigurando-se patente que tais diligências se afiguravam impertinentes, dilatórias e inúteis para a descoberta da verdade material.

LL. Relativamente ao facto de o instrutor ter apenso aos autos em 19.01.2024 um conjunto de documentos que não foram notificados à defesa, cumpre salientar estarem em causa os documentos mencionados nos pontos 9 a 11 do Termo de Juntada, i.e., a nota de assentamentos do comandante do NRP ..., o 1TEN OO, o Anexo A ao PA 15 e um Termo de responsabilidade. E essa junção de elementos documentais pelo instrutor, quando sucedeu, nada tem de ilegal nem sonega o direito de audiência e de defesa dos Requerentes.

MM. Porquanto, tal prerrogativa integra-se no preceituado no n.º 4 do artigo 103.º do RDM, que garante ao instrutor a possibilidade de, após deduzida a defesa à acusação, realizar diligências complementares que considere pertinentes para a descoberta da verdade, afigurando-se como uma decorrência do princípio do inquisitório que norteia toda a sua atuação.

NN. A necessidade de realizar diligências complementares de prova, após a apresentação de defesa à acusação foi, de igual modo, plasmada pelo instrutor no artigo 13.º do relatório final, observando, com o devido rigor, o preceituado no n.º 4 do artigo 103.º do RDM, no que atinente aos requisitos de fundamentação.

OO. Em todo o caso, acerca dos documentos juntos aos autos, mais não são que uma correspondência a factos perante os quais os Requerentes já haviam sido confrontados em sede instrutória, prévia à dedução de acusação, e que passaram, entretanto, a integrar os autos na sequência da defesa por estes apresentada.

PP. Por ser assim, atente-se que a nota de assentamentos do comandante do NRP ..., foi apensa para contradizer o alegado sobre a sua inexperiência, demonstrando o que sempre se declarou acerca da sua idoneidade para exercer aquelas funções, não contendendo, assim, com as ilicitudes de que foram acusados e punidos os Requerentes.

QQ. Assim, porque o instrutor não se encontrava condicionado apenas às provas requeridas pela defesa, verifica-se que esta sua atuação não infringiu nenhuma das normas definidas no RDM ao ponto de ferir o processo de nulidade insuprível, antes pelo contrário, sufraga a prorrogativa prevista no n.º 4 do artigo 103.º, tendo habilitado o órgão competente na melhor tomada de decisão.

Terminam pedindo que o presente recurso seja julgado procedente e revogado o acórdão recorrido.

5. O Requerente AA apresentou contra-alegações, culminando-as com as seguintes conclusões:

(A) Não ocorreu violação do n.º 1 do artigo 121.º do CPTA, ao ser antecipada a decisão da causa principal, na medida em que o Tribunal a quo justificou com a urgência do caso, inerente à persistência de efeitos danosos do acto punitivo, que elencou, a necessidade de, estando presentes os demais requisitos (presença que o Recorrente não nega verificar-se) antecipar o julgamento da causa principal;

(B) Sendo, aliás, evidente, pela forma palmar e ostensiva como foi sucessivamente sendo violada a lei e os direitos fundamentais dos arguidos, que a Recorrente contava com uma decisão da causa principal à la longue, quando um julgamento tardio já não pudesse evitar aos efeitos nefastos da violação da lei;

(C) O Tribunal a quo recenseou factos ocorridos antes e durante os acontecimentos do dia 11 de Março de 2023 – inclusivamente a missão abortada do NRP ..., dois meses antes, estando o mesmo num estado não tão danificado como no dia em causa, e o envolvimento do CMG NN, Comandante da Marítima, por via do cargo que ocupava, nos mesmos (envolvimento, aliás, reconhecido na fundamentação do acto recorrido, pelo próprio Almirante CEMA…), para concluir que, podendo o mesmo depor como testemunha não poderia ser – como foi – instrutor nos presentes autos;

(D) Juízo de falta de imparcialidade que se densificou pela actuação do mesmo – que o Tribunal a quo, apontou e censurou – ao constituir-se como autor material de actos de violação do direito de audiência e defesa dos arguidos, de entre os quais o Recorrido;

(E) Não merecendo o desvalor da nulidade, decorrente da aplicação das normas do CPP por via da expressa remissão, do RDM censura;

(F) E também não merece censura o julgamento que, entendendo estar o instrutor impedido de o ser, fulminou com a nulidade do seus actos sequentes designadamente o de inquirição dos arguidos;

(G) Neste caso, sem os informar de que tinham o direito a constitui advogado e a não responder a questões referentes aos factos que lhes eram imputados, o que o aludido instrutor, alias, reconheceu não ter ocorrido (folhas 885 do pa junto aos autos de PC;

(H) Também não merece censura o acórdão a quo quando determinou a ilegalidade do acto pelo qual o instrutor indeferiu o depoimento testemunhal do VALM PP, Comandante Naval, que tinha sido requerido a fim de depor, genericamente sobre as condições do NRP ... e, também, sobre a missão que consentiu fosse abortada dois meses antes, com o fundamento em ser a “entidade decisora”;

(I) Tampouco merece censura o acórdão a quo na parte em que apreciou a recusa da tomada do depoimento testemunhal no CMG NN, porquanto, tendo assinalado – e bem – o seu envolvimento pessoal nos factos relevantes, mercê das funções que desempenhava, estava, em abstracto, em condições de sobre os mesmos depor, pelo que a recusa do seu depoimento teria de ser fundamentada tendo em vista a sindicância dos eu bem fundado, o que não sucedeu;

(J) Tampouco merece censura o acórdão impugnado quando apontou a ilegalidade do acto que, contrariando a lei, doutrina e jurisprudência velha de décadas, após a apresentação da defesa carreou documentos para os autos sem dessa junção notificar a mesma e, depois, valorando-a contra os arguidos;

(K) Anotando, certeiramente que, o documento que foi junto sem que os arguidos disso fossem notificados e, depois, foi valorado contra eles, foi a nota de assentamentos do comandante do NRP ... “…apensa para contradizer o alegado sobre a sua inexperiência, demonstrando o que sempre se declarou acerca da sua idoneidade para exercer aquelas funções, não contendendo, assim, com as ilicitudes de que foram acusados e punidos os requerentes... - tais diligências visam, objetiva e assumidamente, contrariar o alegado pela defesa”, pelo que se impunha que fosse submetido ao contraditório;

(L) Está aqui em causa a interpretação e aplicação, na máxima extensão que as normas em causa permitem, dos artigos 32.º, n.º 10, 269.º, n.º 3, da CRP, 6.º, 2, 3 e 7 da CEDH, 11.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem (recebida como direito constitucional material português, pelo artigo 16.º, n.º 2, da CRP) e 14.º e 15.º do PIDCP, sendo que as normas em causa, na interpretação proposta pela Marinha consubstanciam a respectiva inconstitucionalidade material o que desde já se argui para todos os efeitos;

Terminam pedindo que “o acórdão impugnado, na parte em que o é”, seja confirmado.

6. Os Requerentes, AA, BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ e KK vieram interpor recurso subordinado, apresentando alegações com as seguintes conclusões:

(A) O Tribunal a quo equivocou-se quando confundiu o vício de violação do direito de audiência e defesa, consubstanciado no facto de nunca, nem na acusação, nem no relatório final, nem em peça ou momento algum do processo, nenhum dos órgãos nele intervenientes, seja o instrutor, seja o decisor, ter sido facultado aos arguidos a discussão da sanção potencialmente aplicável, com o vício que também arguiram, consubstanciado na violação das regras do concurso de penas, que respondem ao princípio geral de direito sancionatório, acolhido no artigo 44.º, nº 1, do RDM, segundo o qual só pode ser aplicada uma pena disciplinar “por cada infracção ou pelas infracções acumuladas que devam ser apreciadas num só processo”;

(B) Os arguidos nunca foram notificados nem pelo instrutor, nem pelo decisor, da sanção potencialmente a aplicar-lhes, a fim de a discutirem e poderem influenciar a decisão final, sendo certo que o RDM até prevê no elenco das sanções a aplicar, a prisão disciplinar;

(C) Tal não sucedeu na acusação, nem os arguidos foram notiticados do relatório final, nem de qualquer acto posterior a este mas anterior à decisão disciplinar, apenas vindo a ter conhecimento da sanção quando a mesma já lhes tinha sido concretamente aplicada, com a notificação do acto punitivo;

(D) O direito de defesa compreende o direito ao contraditório, o qual, “…significa muito mais do que um jogo de ataque e defesa ao longo do qual o processo se desenvolve, sendo entendido como garantia do direito de influenciar a decisão, mediante a possibilidade de participação efetiva de ambas as partes em todos os elementos em que o litígio se manifesta - o plano da alegação de facto, o plano da prova e o plano do direito - que em qualquer fase do processo surjam como potencialmente relevantes para a decisão.”;

(E) Neste sentido decidiu o Tribunal Constitucional no seu acórdão n.º 516/03, de 28-10-2003 (Cons. PAULO MOTA PINTO) e o Supremo Tribunal Administrativo no seu acórdão de 17-12-2003, Rec. n.º 01717/03 (Cons. JORGE DE SOUSA);

(F) O direito de audiência e defesa, constituindo um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias, goza da aplicação directa (artigos 17.º e 18.º da CRP), o que significa que se aplica na omissão da lei ordinária e, se necessário, contra a lei ordinária;

(G) Porém, na leitura do acórdão a quo este direito fundamental, com tal configuração, já não lograria aplicação directa, permitindo-se, no âmbito disciplinar a prolacção de decisões disciplinares surpresa;

(H) Leitura que representa uma limitação ao direito de audiência e defesa que não tem qualquer apoio nem Constituição da República, nem na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, nem sequer no RDM;

(I) Acrescendo que, ainda que se pudesse aceitar que se lesse o RDM no sentido de “deixar ao critério da entidade decisora a escolha da pena”, isso não significa que essa escolha se possa fazer-se sem o arguido a possa previamente discuti-la – que é o que aqui está em causa;

(J) De onde, seja na acusação, seja após o relatório final – mas sempre antes da prolacção da decisão disciplinar – tem o arguido o direito a discutir a sanção que se pretende aplicar-lhe, sob pena de violação do seu direito de audiência e defesa;

(K) Pelo que, ao não invalidar o acto punitivo com este fundamento, violou o acórdão impugnado os artigos 32.º, n.º 10 e 269.º, n.º 3, da CRP, directamente aplicáveis (artigos 17.º e 18.º da CRP) e o princípio do processo equitativo - que supõe o contraditório pleno - vertido no artigo 6.º da CEDH, e, bem assim, o artigo 98.º, n.º 1, do RDM, se e quando interpretado no sentido de excluir a referência à sanção aplicável;

(L) O acórdão a quo, violou o artigo 103.º, n.º 2 do RDM, por incorrecta aplicação, porquanto:

(1) Pretendia-se que o Vice Almirante QQ, na reserva ou reforma depusesse sobre o que consta dos artigos 103.º. 115.º a 117.º, 120.º a 153.º, 155.º, 156.º, 157.º, 162.º, 164.º a 182.º, do articulado de defesa, “sem prejuízo de outros, a indicar consoante a junção de documentos”;

(2) Pretendia-se que o Capitão de Mar e Guerra RR, na reserva ou reforma, assessor e perito do Tribunal Marítimo, depusesse sobre a matéria vertida nos artigos 102.º, 103.º, 115.º a 117.º, 120.º a 152.º, 155.º a 157.º, 162.º, 164.º a 183.º do articulado de defesa, “sem prejuízo de outros, a indicar consoante a junção de documentos”;

(3) Pretendia-se que o Primeiro Tenente SS, depusesse para prova da matéria vertida no artigo 110.º, do articulado de defesa, “sem prejuízo de outros, a indicar consoante a junção de documentos”;

(4) Pretendia-se que o Primeiro Tenente TT, depusesse para prova da matéria vertida nos artigos 109.º, 206.º a 210.º do articulado de defesa, “sem prejuízo de outros, a indicar consoante a junção de documentos”;

(5) Inquirição que foi indeferida com fundamento em “não presenciaram os factos referidos na acusação (…) conforme exigido pelo artigo 128.º do Código do Processo Penal, tendo sido indicados para a manifestação de meras convicções pessoais aduzidas pela defesa como factos supérfluos e impertinentes, não sendo admissível à luz do n.º 2 do artigo 130.º do mesmo Código”;

(6) O artigo 128.º do CPP determina que as testemunhas são inquiridas relativamente a factos de que “tenham conhecimento directo” – não de factos que tenham presenciado – já que o “conhecimento directo” não pressupõe unicamente que a testemunha tenha estado no dia, hora e local onde tenham ocorrido determinada situação e a tenha visualmente observado;

(7) Acresce que, saber se as testemunhas – aquelas precisamente ali indicadas - têm ou não conhecimento directo dos factos supõe que isso lhes seja perguntado, o que só pode ocorrer no início da inquirição, e só então, se a testemunha referir não ter conhecimento directo dos factos, se pode agir em conformidade;

(8) Acresce que o PT SS, iria ser inquirido ao artigo 110.º do articulado defesa, a saber: “Aliás, já em 02-01-2016 o então comandante do NRP ..., Primeiro Tenente SS, considerara, face ao estado do mar e do navio, não haver condições para este ir cumprir uma missão, essa sim de socorro e salvamento, relativamente a um veleiro que se encontrava em dificuldades 60 milhas a norte do Porto Santo, sem que ninguém da hierarquia da Marinha se tivesse então arrogado invocar a narrativa da “Bounty”…”

(9) Sendo o PT SS, o Comandante do NRP ... naquela data, saber se o ali narrado sucedeu ou não, não é confundível nem com a expressão de “convicções pessoais”, nem estaríamos perante alguém que não tivesse “presenciado” aqueles factos;

(10) Pelo que apenas o PT SS poderia “na primeira pessoa”, depor sobre os factos ali alegados, porque se alegou que os mesmos decorreram com a sua intervenção;

(11) E quanto ao Primeiro Tenente TT, pretendia-se que depusesse quanto aos artigos 109.º e 206.ºa 210.º da defesa, que se reproduzem: (Artigo 109.) “Escassos 3 meses antes, no final de 2022, o NRP ... com os dois motores operacionais - o que não acontecia em 11-03-2023 - teve uma avaria que obrigou ao cancelamento da missão (cancelamento então decidido então sem qualquer dúvida ou objecção, muito menos ameaça de procedimento disciplinar, pelo então Comandante do navio PT TT) quando estava no Porto Santo, e sendo que essa missão também consistia em acompanhar um navio russo… (Artigos 206.º a 210.º)”Até 13-02-2023, o NRP ... foi comandado pelo PT TT”; “ Em 18-12-2022, encontrando-se em Porto Santo, foi recebida ordem para efectuar o acompanhamento de um navio russo missão, todavia abortada, conforme supra se referiu (artigo 109.º desta peça)”; “Nessas circunstâncias de tempo e de lugar, o NRP ... tinha as deficiências indicadas nos artigos 185.º, 187º e 189.º desta peça”; ”Em face das deficiências apontadas - que, como abaixo de detalhará, eram menos graves do que as existentes em 11-03-2023 - o seu Comandante PT TT, verificou estar em perigo a segurança do navio e da tripulação e abortou a missão”; “Situação que foi adequadamente reportada à hierarquia da Armada que a tal o autorizou”;

(12) É absolutamente claro que o PT TT, foi indicado a depor a factos do seu conhecimento pessoal por si presenciados e protagonizados, pelo que o seu depoimento não poderia ter sido indeferido, como foi;

(13) Foi, pois, violado o direito de audiência de defesa consagrado no artigo 269.º, n.º 3, da CRP, e, bem assim, o artigo 103.º, n.º 2, do RDM, impedindo-se os Autores aqui Recorrentes, de fazerem prova de factos fundamentais para a sua defesa, preceitos que o acórdão a quo, ao decidir como decidiu, também violou;

(14) O Primeiro Sargento UU, foi indicado “para prova da matéria vertida nos artigos 111.º a 113.º, 188.º, 191.º a 193.º, 201.º, 213.º, 218.º a 222.º, 225.º a 249.º, sem prejuízo de outros, a indicar consoante a junção de documentos” – folhas 632 do pa junto aos autos de PC;

(15) Tendo o seu depoimento sido indeferido “por incumprimento do disposto no n.º 2 do art. 102.º do RDM, concretamente, por falta de indicação dos factos concretos a que a testemunha deverá responder, tendo apenas, sido efectuada correspondência, com a matéria vertida em diversos articulados” – folhas 707 do pa junto aos autos de PC;

(16) Quanto à indicação da falta de indicação dos factos concretos é absolutamente manifesto que, atenta a indicação da matéria constante dos artigos da defesa citados, tal justificação não tinha qualquer cabimento;

(17) O Primeiro Sargento UU, fazia parte da tripulação do NRP ... e esteve presente quando dos acontecimentos ocorridos – folhas 78 do pa junto aos autos de PC – sendo, por isso, testemunha “presencial” dos mesmos e tendo sido sendo arrolada, designadamente para depor sobre os factos corridos (artigos 225.º a 249.º do articulado de defesa), tendo, porém, o seu depoimento sido indeferido;

(18) É absolutamente manifesto que os artigos em apreço incluem um conjunto de factos relevantíssimo para a defesa dos Autores aqui Recorrentes, quer no que diz respeito ao que ocorreu antes dos acontecimentos (avarias graves, saídas abortadas), quer ao que sucedeu imediatamente antes dos mesmos (inundações), quer quanto ao que sucedeu durante os acontecimentos (comportamento dos oficiais, designadamente do Comandante e da Oficial imediato, bem como à forma como as coisas se passaram), bem como ao que se passou depois (apagamento de provas nos dias posteriores);

(19) O indeferimento da tomada de depoimento desta testemunha violou o direito de audiência e defesa dos Autores aqui Recorrentes – cf. artigos 269.º, n.º 3, da CRP e 103.º, n.º 2 do RDM - constituindo nulidade insuprível, nos termos do artigo 78.º, n.º 1, alínea c) do RDM, tendo também o Tribunal a quo violado tais preceitos, ao entender como entendeu;

(20) A prova de reconstituição dos “factos ocorridos na noite de 11/03/23”, isto é, do que sucedeu a bordo do NRP ..., atracado que estava – e permaneceu – no cais do Funchal, permitia, com precisão, determinar quem estava onde, e quando, e quem fez o quê, onde e quando;

(21) Teria apenas de ser efectuada a bordo do NRP ..., não importando se o mesmo estivesse atracado no cais do Funchal ou no Arsenal do Alfeite, já que o necessário era apenas ter o navio e um cais;

(22) O despacho de indeferimento não identifica porque concretos factos se trataria de uma diligencia “dilatória e impertinente”;

(23) E o argumento das condições meteorológicas existentes é irrelevante, dado que, como acima se disse, tudo teria de ser feito no NRP ..., independentemente do local onde o mesmo estivesse atracado;

(24) Nem se alcança em que factos concretos se escora o Instrutor para sustentar o “impacto negativo da reconstituição, altamente prejudicial e nefasta para a actividade operacional e missão da Marinha”, sendo, em todo o caso, que esse critério não está previsto no n.º 2 do artigo 103.º do RDM como critério de indeferimento de produção de prova;

(25) Tampouco os “encargos económico-financeiros para o Estado” - que nem sequer se diz quais seriam - integra o artigo 103.º, n.º 2, do RDM;

(26) Foi, assim, violado – também pelo Tribunal a quo - o direito de audiência e defesa – artigos 269.º, n.º 3, da CRP e, bem assim, o artigo 103.º, n.º 2 do RDM – o que constitui nulidade insuprível, nos termos do artigo 78.º, n.º 1, alínea c) do RDM;

(27) E quanto à prova pericial, foi considerada uma “diligência dilatória a realização da perícia ao estado actual do navio, tendo-se efectuado inspecção ao navio e produzido relatórios pelo serviço competente da Marinha” – folhas 708 do pa junto aos autos de PC;

(28) Quanto à fiabilidade do documento produzido pelo referido “serviço competente da Marinha”, tinham já os Autores aqui Recorrentes apontado a parcialidade do mesmo (artigos 102.º a 107.º da defesa – folhas 552 a 557 do pa junto aos autos de PC) – sendo de referir que a sua nula credibilidade determinou que, no âmbito do inquérito crime n.º 43/23...., que corre no DIAP ... (... Secção) contra os Autores por participação da Marinha e por estes factos, o Ministério Público tenha solicitado aos Autores aqui Recorrentes a apresentação de quesitos para realizar a peritagem ora em causa;

(29) De onde, foi, uma vez mais violado – também pelo Tribunal a quo - o direito de audiência e defesa, ocorrendo, uma vez mais, nulidade insuprível, nos termos do artigo 78.º, n.º 1, alínea c) do RDM;

(M) O artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, proclama o princípio do processo equitativo do qual deduz o direito à audiência pública, norma que vincula o Estado Português e se sobrepõe a normas de direito interno com a mesma eventualmente desconformes – artigo 8.º da CRP - constituindo um elemento vinculante do tipo do acto punitivo;

(N) É jurisprudência constante do TEDH-TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS HUMANOS – que é obrigatória para o Estado Português e suas instituições, civis ou militares - que a exigência de tal audiência também se coloca nos processos disciplinares que apliquem sanções que venham a afectar direitos ou obrigações de carácter civil ou que pretendam aplicar sanções que pela sua natureza, severidade ou gravidade devam ser consideradas de natureza penal, o que é o caso, porquanto não só eram potencialmente aplicáveis sanções que poderiam ir até à prisão (disciplinar) por um período de até 30 dias (artigo 31.º, n.º 1, do RDM), como sanções de reforma compulsiva e separação do serviço;

(O) Forçoso se torna, pois, concluir que os actos punitivos trazidos à sindicância do Tribunal a quo, são também nulos por violação do direito – que foi igualmente denegado aos arguidos, aqui Recorrentes – à audiência pública por eles oportunamente requerida, e logo indeferida;

(P) Ao assim não entender, violou o Tribunal a quo, os artigos 20.º da CRP e 6.º da CEDH e, bem assim, o artigo 161.º, n.º 2, alínea d), do CPA;

(Q) O artigo 39.º do RDM consagra os elementos vinculantes que, “segundo juízos de proporcionalidade”, devem ser atendidos e estar presentes na decisão punitiva, aos quais por força da aplicação conjunta do artigo 10.º do RDM e do artigo 71.º do Código Penal, se junta - porquanto veio a ser aplicada pena de suspensão, com efeitos na remuneração dos Recorrentes - o elemento “condições pessoais do agente a sua situação económica”;

(R) Não foram apurados nem apreciados factos nem relativamente à “personalidade do infractor”, nem relativamente aos “resultados perturbadores da disciplina” – alíneas d) e g) do artigo 39.º do RDM relativamente a qualquer dos aqui 11 Recorrentes;

(S) Tampouco se vislumbra que tivessem sido apurados e apreciados factos relativos às “condições pessoais do agente e a sua situação económica” dos Recorrentes, sendo certo que dessa ponderação dependia a aplicação da sanção, em concreto;

(T) Porquanto só assim se lograria aplicar a medida adequada tendo em conta a finalidade da prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitiam indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente;

(U) Pelo que, entendendo como entendeu, violou o acórdão a quo violou os artigos 39.º do RDM e 71.º do Código Penal (aplicável por remissão do artigo 10.º do RDM);

(V) O acórdão a quo violou, também, as regras do concurso na medida em que decidiu como se o artigo 44.º não existisse afirmando, ademais, contra legem, que o concurso (logo o artigo 44.º do RDM) não se aplicava em direito disciplinar militar;

(W) Para aplicação da pena única, impõe-se previamente determinar as penas aplicáveis a cada uma das infracções acumuladas, como decorre do n.º 3 do artigo 44.º do RDM, que, ao determinar que a sanção única tenha como limite mínimo a sanção determinada para a infracção que, de entre as infracções acumuladas, for considerada mais grave, o determina;

(X) O que, como resulta do relatório final – folhas 864 a 916 do pa (documento n.º 4) junto aos autos de PC – manifestamente não sucedeu;

(Y) Na verdade, como de forma análoga se pode observar em qualquer sentença criminal que aplique as regras de cúmulo, é preciso determinar a sanção a aplicar a cada infracção (sendo que para tal é absolutamente indiferente que a lei faça corresponder uma determinada sanção à violação de um dever ou não…), para, depois, infracção a infracção, se verificar qual a pena concretamente aplicada a cada uma, sendo que a pena concreta mais grave seria o limite mínimo a considerar;

(Z) Acresce que, por aplicação do disposto no artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal (artigo 10.º do RDM), preceito necessariamente a considerar, por se tratar de uma regra de cúmulo, a consideração dos “factos”, isto é, da “imagem global das infracções” e, bem assim, a “personalidade do arguido” constituem elementos vinculantes a considerar;

(AA) Desta forma, o acórdão a quo violou por desaplicação, o artigo 44.º do RDM e o artigo 77.º do Código Penal (aplicável por remissão do artigo 10º do RDM);

(BB) A aplicação da sanção de suspensão foi feita de forma cega, ignorando o princípio constitucional da garantia do mínimo de subsistência;

(CC) O artigo 47.º alínea c) do RDM determina que a pena de suspensão implica a perda da totalidade dos suplementos e dos subsídios e a ablação de 2/3 do vencimento;

(DD) Trata-se de um corte “cego” que não atende ao mínimo de existência condigna que se faz defluir do princípio da dignidade da pessoa humana, garantido pelo artigo 1.º da CRP;

(EE) Na verdade, a norma vertida na alínea c) do artigo 47.º do RDM, não deixa “…qualquer abertura ou margem para ponderação do reflexo que poderá ter nas condições de vida” dos Autores aqui Recorrentes tendo em vista a salvaguarda do mínimo de existência condigna;

(FF) E, por isso mesmo, não forem recenseados nem provados quaisquer factos que permitissem que se ponderasse os efeitos da mesma nas condições de vida dos Autores, de forma a salvaguardar o mínimo de existência condigna que a CRP lhes garante;

(GG) O que, segundo jurisprudência firmada pelo TRIBUNAL CONSTITUCIONAL no seu acórdão n.º 392/2020, de 13-07-2020 (Cons. JOANA FERNANDES DA COSTA), viola o direito a um mínimo de existência condigna, extraível dos artigos 1.º e 63.º, n.º 3, da Constituição, em conjugação com o princípio da proporcionalidade, ínsito no princípio do Estado de direito democrático consagrado no respetivo

(HH) Pelo que, ao assim decidir, aplicou o Tribunal a quo o artigo 47.º, n.º 1, alínea c) do RDM, em contravenção com o aludido direito a um mínimo de existência digna, não o desaplicando, atenta a desconformidade com CRP, como deveria;

(II) Está aqui em causa a interpretação e aplicação, na máxima extensão que as normas em causa permitem, dos artigos 32.º, n.º 10, 269.º, n.º 3, da CRP, 6.º, 2, 3 e 7 da CEDH, 11.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem (recebida como direito constitucional material português, pelo artigo 16.º, n.º 2, da CRP) e 14.º e 15.º do PIDCP, sendo que as normas em causa, na interpretação proposta pela Marinha e sufragadas pelo acórdão a quo no âmbito aqui impugnado consubstanciam a respectiva inconstitucionalidade material o que desde já se argui para todos os efeitos;

Termina pedindo que o presente recurso subordinado seja julgado procedente, “sendo o acórdão recorrido, na parte em que o é, revogado e substituído por outro que declare procedentes os vícios aqui alegados, invalidando-se os actos punitivos também pela ocorrência dos mesmos.”

7. A Entidade Requerida, notificada do recurso subordinado interposto, apresentou contra-alegações formulando as seguintes conclusões:

A. Por douto Acórdão de 19.12.2024, o Venerando Tribunal Central Administrativo Sul (TCA Sul) decidiu, nos presentes autos cautelares, antecipar o juízo da causa principal (processo n.º 122/24.2BCLSB).

B. O presente processo continuou, como tal, a tramitar como processo urgente, designadamente, «(…) no caso de eventual recurso, com efeito meramente devolutivo», conforme vertido no douto Acórdão recorrido.

C. O prazo de interposição de recurso permaneceu, por isso, encurtado, i.e., de 15 (quinze) dias, constituindo entendimento da jurisprudência [ex vi, por todos, Acórdão do colendo Supremo Tribunal Administrativo (STA) de 11.07.2019 – Proc. n.º 0788/18.2BELRA-A-A] que, pese embora tenha ocorrido o julgamento antecipado da questão de fundo – e sobre a decisão de antecipação do juízo sobre a causa principal já se pronunciou oportunamente a Entidade Requerida, mormente nos artigos 9.º a 72.º do recurso interposto nos presentes autos, com a fundamentação que aí se advoga, que aqui se reitera e para a qual se remete para os devidos efeitos –, a decisão não deixou de ser proferida no processo cautelar que mantém a sua natureza urgente.

D. Daí que, salvo melhor e douto entendimento na matéria, bem andou a Entidade Requerida ao interpor o seu recurso jurisdicional nos presentes autos cautelares, pois foi nestes, de facto, que foi proferida a decisão.

E. Pelo que decai o alegado nos artigos 1.º a 4.º do recurso subordinado interposto pelos Autores, ora Recorrentes.

F. Pelo mesmo douto Acórdão foram, também, julgados procedentes os seguintes vícios alegados pelos Recorrentes: (i) direito a conhecer e contraditar a sanção aplicável; (ii) direito à produção de prova; (iii) direito a um julgamento disciplinar público; (iv) critérios vinculantes do ato punitivo e das regras de concurso de penas.

G. O que motivou os Recorrentes à interposição do presente recurso subordinado referente à parte em que decaíram.

H. Os fundamentos do recurso interposto não merecem, contudo, qualquer provimento.

I. No concernente à alegada violação do invocado direito a conhecer e contraditar a sanção aplicável, ficou amplamente demonstrado nos autos que não se encontra aqui em causa um ilícito disciplinar comum, ao qual é aplicável o regime disciplinar que rege, a título de exemplo, a atividade dos funcionários públicos, como o é a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LGTFP), do mesmo modo que não estão também aqui em causa disposições análogas ao regime disciplinar dos Magistrados Judiciais.

J. Pois, tratando-se de um ilícito disciplinar cometido no seio militar, vigora um regime disciplinar especial, o qual é regulado por legislação própria [in casu, o Regulamento de Disciplina Militar (RDM)] e que não contende com os demais regulamentos disciplinares existentes no nosso ordenamento jurídico.

K. Ao contrário do que sucede no RDM, a LGTFP prevê, por exemplo, nos artigos 184.º a 188.º a individualização ou discriminação disciplinares, por referência dos factos aos deveres funcionais violados e às penas aplicáveis, prevendo a correspondência de cada uma das penas aplicáveis ao tipo de infrações disciplinares, identificando mesmo, situações de facto concretas em que cada pena se mostra aplicável.

L. Porém, no n.º 1 do artigo 30.º do RDM, o legislador optou deliberadamente por deixar ao critério da entidade decisora (e não ao oficial instrutor) o domínio de escolha sobre a pena a aplicar, não existindo assim uma correspondência entre infração e pena e entre um facto que consubstancie uma violação concreta de um dever e a sua sanção.

M. Neste âmbito, o douto Acórdão do Venerando TCA Norte, proferido no Proc. 00691/10.4BECBR, de 22.11.2012, validou a ausência de individualização ou discriminação por correspondência de cada uma das penas disciplinares à específica violação de determinados deveres no regime disciplinar militar, recorrendo, para tal, ao douto Acórdão do colendo STA, Proc. n.º 058/10, de 23.09.2019, no qual se estabeleceu que «o legislador entendeu essa sistematização mais adequada à especial natureza e conformação da disciplina militar, decorrente da identidade e génese da própria instituição militar, assente em específicos padrões de subordinação hierárquica, de cumprimento do dever e de espírito de missão, como pilar indispensável ao cumprimento integral da missão que lhe é constitucionalmente atribuída, de defesa da independência nacional, da unidade do Estado e da integridade do território.» (aqui sublinhado).

N. Do mesmo modo, sufraga-se o douto entendimento manifestado pelo Venerando TCA Sul, ao plasmar no Acórdão recorrido que «(…) por se tratar de um ilícito disciplinar cometido no seio militar, o legislador expressamente optou por não ser o instrutor do PD a propor a pena a aplicar, mas sim a entidade decisora a escolher (em função da sua competência e dos dados concretos de cada PD) a pena a aplicar (…)» e que «Não existindo assim uma correspondência entre infração e pena e entre um facto que consubstancie uma violação concreta de um dever e sua sanção, ou seja, não tendo o princípio da tipicidade das penas a mesma intensidade em sede de direito disciplinar militar do que tem em sede de direito criminal (…).» (aqui sublinhado).

O. Acresce ainda que o preceituado nos artigos 32.º n.º 10, 269.º n.º 3 e 17.º e 18.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) sobre o direito de audiência e de defesa, traduzem-se em normas próprias do direito penal, que somente de modo bastante restrito podem ser estendidas para o regime disciplinar.

P. Como tal, por ter seguido as orientações da jurisprudência e o preceituado no regime disciplinar aplicável, o oficial instrutor do processo disciplinar no relatório final exarado limitou-se, e bem, a dar conta que os arguidos ficariam sujeitos a uma das penas disciplinares previstas no n.º 1 do artigo 30.º do RDM, incumbindo, depois, à autoridade decisora, em sede de despacho punitivo, fixar e graduar a respetiva pena a aplicar, nos termos e segundo as regras previstas nos artigos 39.º, 44.º e 106.º do RDM.

Q. Pelo que bem andou o Venerando TCA Sul no segmento decisório a páginas 208 a 211 do seu douto Acórdão ao confirmar que o ato posto em crise não padece do vício de violação de lei, o que faz decair todo o alegado pelos Recorrentes a respeito desta matéria.

R. Na mesma bitola, encontram-se votadas ao insucesso todas as restantes alegações dos Recorrentes que entroncam no vício de violação de lei, designadamente, sobre a alegada violação do direito à produção de prova, do direito a um julgamento disciplinar público, dos critérios vinculantes do ato punitivo e das regras de concurso de penas, desde logo porque, grosso modo, baseiam-se em normas próprias do direito penal que não são transponíveis para a jurisdição disciplinar militar.

S. Impera desde logo clarificar que, de acordo com o poder-dever de seleção do oficial instrutor, este pode, ao abrigo das disposições regulamentares disciplinares aplicáveis, em despacho fundamentado, recusar a produção de prova que se mostre impertinente e dilatória no caso concreto, nos termos dos artigos 94.º e 103.º do RDM.

T. Depois, devidamente examinado o despacho que apreciou o requerimento de defesa e as provas adicionais aí requeridas, bem se fez constar que o instrutor não se encontra obrigado a aceitar todas e quaisquer diligências suscitadas, nem a conduzir a fase instrutória de acordo com os ditames definidos pelos arguidos.

U. E o instrutor também clarificou, no respeitante à distribuição do ónus da prova, que os arguidos bem que podiam ter suscitado a realização destas diligências probatórias na pendência da instrução, antes de deduzida a acusação, cf. n.º 4 do artigo 94.º do RDM, mas que optaram deliberadamente por não o fazer.

V. Até porque, como o instrutor bem salientou – e devidamente fundamentou – no processo disciplinar (para o qual se remete, por questões de economia processual), muitas das diligências e meios de prova requeridos em sede de defesa, afiguravam-se impertinentes e manifestamente dilatórias, e, como tal, suscetíveis de serem recusadas, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 103.º do RDM, o que se justificou por forma a não entorpecer nem a ferir a efetividade do processo disciplinar.

W. Sendo que tais diligências probatórias – nomeadamente, a prova testemunhal – não possuíam qualquer relevância para o apuramento dos ilícitos disciplinares imputados aos arguidos, com particular enfoque para o ato de desobediência que foi cometido, que como se demonstrou, ante a amplitude assumida, foi muito nefasto para a disciplina militar – a qual é inegociável –, e comprometeu, irremediavelmente, a missão atribuída ao NRP ....

X. Idêntico raciocínio e linha orientadora se aplica, aliás, à restante prova requerida, como o pedido de reconstituição dos factos ocorridos no dia 11.03.2023 no NRP ... com a presença de toda a guarnição, incluindo os arguidos, e submetidos às condições meteorológicas existentes à data (cf. havia sido inicialmente requerido pelos Recorrentes).

Y. É que tal reconstituição, além de impertinente e dilatória, afigurava-se objetivamente inexequível, não só pela impossibilidade de se garantir o exato estado operacional do navio à data dos factos, como a questão das condições meteorológicas e da missão que lhe fora atribuída, neste caso, por ser impossível posicionar o navio russo no local e nas coordenadas em que se encontrava.

Z. Quanto à recusa do pedido de prova pericial, concretizado pela inclusão de um perito designado pela defesa para inspecionar o navio, este deveu-se, essencialmente, ao facto de já ter sido efetuada uma inspeção técnica ordenada pela Superintendência do Material (Direção de Navios), do qual emergiu o devido relatório, traduzindo-se numa produção antecipada de prova, cf. artigo 419.º do CPP, subsidiariamente aplicável ao caso em apreço, justificada com o receio de vir a tornar-se difícil, senão impossível, a sua realização a posteriori e nas mesmas condições.

AA. Sobre a decisão do instrutor de indeferir algumas das diligências de prova requeridas pelos Recorrentes, o Venerando TCA Sul entendeu no seu douto Acórdão de 16.10.2024 (referente ao Proc. n.º 291/24.1BEALM), que essa prorrogativa foi corretamente exercida, porquanto decorre do disposto no n.º 5 do artigo 94.º do RDM, afigurando-se patente que tais diligências requeridas pelos ora Recorrentes se afiguravam impertinentes, dilatórias e inúteis para a descoberta da verdade material.

BB. Nesse douto aresto, considerou o Venerando TCA Sul que «Em sede de procedimento disciplinar, no âmbito dos seus poderes de direção, o respetivo instrutor pode recusar a audição de testemunhas, ou a realização de outras diligências de prova, requeridas pelo arguido, se tal lhe afigurar desnecessário ou dilatório. Nesta matéria o instrutor goza de alguma discricionariedade, cumprindo-lhe apenas, para o efeito, fundamentar aquela mesma decisão. Nesse mesmo sentido, prescreve o artigo 94.°, n.º 5, do Regulamento de Disciplina Militar (RDM), aprovado pela Lei Orgânica n.º 2/2009, de 22/07, que – "o instrutor deve indeferir em despacho fundamentado a realização das diligências referidas no número anterior quando as julgue desnecessárias, inúteis, impertinentes ou dilatórias". Como da matéria fáctica indiciariamente assente resulta, no caso, está justificada e fundamentada a decisão da não realização pelo oficial instrutor de algumas diligências indicada pelos Requerentes, sendo de salientar que ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 118.º do CPTA não é admissível em processo cautelar a prova pericial. Assim a perícia requerida ao NRP ... foi legalmente rejeitada pelo oficial instrutor. Ou seja, no caso, é evidente que não ocorreu qualquer violação dos direitos de defesa dos Requerentes. Nessa mesma medida, na situação sub judice não ocorre uma manifesta ilegalidade do ato impugnado por esta razão. Ao contrário, esta alegação será até manifestamente improcedente.» (aqui sublinhados).

CC. Quanto à alegada violação do direito a um julgamento disciplinar público, importa o preceituado no artigo 6.º da CEDH refere-se, exclusivamente, ao foro penal, o qual não se confunde, até pela gravidade das condutas e sanções aí tipificadas, com o regime disciplinar, seja ele comum ou especial, como sucede no âmbito militar.

DD. E, no atual elenco do RDM, não existe qualquer previsão legal que admita a possibilidade de formação de um tribunal para aferir do cometimento de infrações disciplinares militares, afigurando-se por isso, e para este efeito, totalmente irrelevantes, por totalmente inaplicáveis, os diversos acórdãos e decisões jurisprudenciais que os Recorrentes invocam nos autos sobre a matéria, porquanto, referem-se sempre a situações típicas da jurisdição penal.

EE. No concernente à alegada violação dos critérios vinculantes do ato punitivo, o artigo 10.º do RDM prevê a possibilidade de se aplicar, a título subsidiário, «com as devidas adaptações e pela ordem seguinte, os princípios gerais do direito penal, a legislação processual penal e o Código do Procedimento Administrativo».

FF. E como a própria redação da norma elucida, a aplicação do estatuído em outras instâncias ou regimes jurídicos, deve limitar-se, apenas, ao que não se encontrar expressamente previsto no RDM, e com as devidas adaptações.

GG. No caso do regime disciplinar militar, os critérios orientadores do órgão decisor para efeitos de fixação da pena e da respetiva graduação, encontram-se consagrados no artigo 39.º do RDM, sendo esses a aplicar e não outros.

HH. Naturalmente que, caso o entenda necessário para o caso vertente, o órgão competente para a decisão, pode socorrer-se de normas previstas no direito subsidiário, para firmar a sua convicção sobre os factos.

II. Porém, tal não determina, claro está, que a falta de ponderação do que se encontra determinado no artigo 71.º do CP, acerca das condições pessoais e financeiras do agente, inquine o ato suspendendo de invalidade.

JJ. Ressalvando-se, uma vez mais, que essa norma do CP destina-se ao foro criminal, sendo incomparável o dano e os prejuízos para a vida pessoal e financeira dos arguidos, quando em cotejo com as sanções previstas no RDM.

KK. Até porque no direito criminal as penas e sanções acessórias acarretam um custo pecuniário significativo para o arguido, ao passo que no RDM, a pena de suspensão de serviço, implica uma dedução de parte do vencimento do militar, assim se percecionando as diferenças entre os institutos.

LL. Aliás, também na acusação deduzida sobre os ora Recorrentes, o oficial instrutor não deixou de fazer referência aos critérios do artigo 39.º do RDM, sendo que estes, na defesa apresentada, não suscitaram qualquer invalidade a este respeito, optando, essencialmente, por focalizar a tese argumentativa no estado operacional do navio.

MM. Quanto à graduação da pena, e como bem salienta o douto Acórdão do TCA Sul, Proc. n.º 52/22.2BCLSB, ao se pronunciar sobre uma pena disciplinar militar, a «Entidade Administrativa detém um amplo grau de discricionariedade na avaliação da prova e na aferição da medida da pena, pelo que o Tribunal só deverá e poderá intervir caso verifique um qualquer erro grosseiro».

NN. Nesse mesmo Acórdão rememorou-se ainda ser «uniforme a jurisprudência do STA a propósito da insusceptibilidade do tribunal interferir na medida da pena aplicada» (ex vi Acórdão do Pleno do STA de 29/03/2007, proc. 412/05 e os Acórdãos, também do STA, de 07/02/2002, proc. 48.149 e de 12/03/2015, proc. 0245/14), pelo que resulta ser inequívoco que, em sentido oposto ao defendido pelos Recorrentes, predomina jurisprudência consolidada no sentido que os Tribunais não podem sindicar a graduação da pena, salvo a ocorrência de algum erro grosseiro ou palmar, o que aqui já se demonstrou, com clareza, inexistir.

OO. Ainda sobre a insindicabilidade da decisão disciplinar o Acórdão do TCA Sul, Proc. n.º 08946/12, de 07.03.2013 (Benjamin Correia) – «XVII- Ao exercer os seus poderes disciplinares na determinação da medida da pena e da culpa, a hierarquia militar goza de margem de liberdade, judicialmente insindicável, a não ser que a decisão enferme erro manifesto, palmar ou grosseiro.».

PP. Resulta, por isso, evidente que o ato punitivo não infringiu o artigo 39.º do RDM, donde se demonstra que se procedeu a uma cuidada escalpelização, sob um juízo de proporcionalidade, mas sem descurar a margem de discricionariedade que a lei confere ao autor do ato, e que não merece qualquer reparo.

QQ. Quanto à questão das regras do concurso dispõe o n.º 1 do artigo 44.º do RDM, que «não pode aplicar-se mais de uma pena disciplinar por cada infração ou pelas infrações acumuladas que sejam apreciadas num só processo», determinando o n.º 3 que «Quando um militar tiver praticado várias infrações disciplinares, a sanção única a aplicar tem como limite mínimo a sanção determinada para a infração que for considerada mais grave».

RR. Face ao teor desse preceito legal, não se percebe em que medida pode o mesmo aprouver à situação dos Recorrentes, pois o preceituado no n.º 3 do artigo 44.º serve até para fixar um limite mínimo, e não o inverso, para efeitos da graduação da respetiva pena disciplinar.

SS. Partindo desse pressuposto, ponderar-se a sua aplicabilidade em toda a sua extensão, sempre esbarraria no facto do legislador castrense, no artigo 30.º do RDM, ter decidido não individualizar nem discriminar as sanções a aplicar perante cada um dos deveres militares violados.

TT. Portanto, quando o n.º 3 do artigo 44.º do RDM se refere a uma «sanção determinada» para a infração mais grave, e sendo ela, no caso vertente, a pena de suspensão de serviço, sempre seria despiciendo expor qual seria, na ótica do órgão decisor, a pena a aplicar se o nível de gravidade dessas infrações fosse inferior, o que faz decair, assim, por completo, a possibilidade de se operar um cúmulo jurídico no regime disciplinar militar, como é próprio do direito criminal, por razões de inutilidade e incompatibilidade com o artigo 30.º do RDM.

UU. Consideram ainda os Recorrentes que a aplicação da sanção de suspensão de serviço foi feita de forma cega, ignorando o princípio constitucional da garantia do mínimo de subsistência. Mas não se pode acompanhar a tese dos Recorrentes quando pugnam que o órgão decisor deveria ter em consideração a situação financeira e enquadramento familiar dos arguidos, para fixar a graduação da pena: i) por um lado, porque esse aspeto não consta do rol de critérios ínsitos no artigo 39.º do RDM, sobre a escolha e medida de pena; ii) e, por outro, porque o legislador castrense, quando fixou em 90 (noventa) dias a graduação máxima da pena de suspensão de serviço, e bem assim, a perda de 2/3 (dois terços) da remuneração e dos seus suplementos, cf. artigos 34.º e 47.º do RDM, já teve em conta a necessidade de salvaguardar um mínimo de subsistência.

VV. Neste contexto, atenta a gravida das infrações cometidas e as penas aplicadas, a perda de parte do vencimento dos Recorrentes, decorrente dos respetivos dias de suspensão de serviço – variando a respetiva graduação, consoante os casos, entre 10 (dez) e 45 (quarenta e cinco) dias – não atenta contra o princípio constitucional do valor mínimo da subsistência, na medida em que se considera que sempre ficarão salvaguardadas as necessidades elementares do agregado familiar.

WW. Ademais, mesmo admitindo eventuais constrangimentos de ordem financeira – que são, urge salientar, meramente temporários – decorrentes das sanções aplicadas, não é verosímil que os mesmos possam ter colocado os Recorrentes numa situação de insustentabilidade financeira.

XX. Por fim, importa, salientar que o órgão recorrido, ao exercer os poderes disciplinares, gozou, na determinação da medida da pena, de margem de liberdade judicialmente insindicável, a não ser que a decisão enfermasse de erro manifesto, palmar ou grosseiro, o que não sucedeu no caso vertente, conforme ficou amplamente demonstrado.

YY. Fica, assim, demonstrada a manifesta improcedência dos vícios invocados pelos Recorrentes.

8. Por despacho proferido pela Exma. Juíza Desembargadora Relatora, em 1.03.2025, os recursos jurisdicionais - independente e subordinado - foram admitidos e ordenada a subida dos autos a este Supremo Tribunal Administrativo.

9. O Ministério Público junto deste Supremo Tribunal, notificado nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 146.º, n.º 1 e 147.º, n.º 2, ambos do CPTA, não se pronunciou.

10. Com dispensa de vistos, cumpre apreciar e decidir.



II. QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR:

11. Constitui objeto do presente recurso de apelação, delimitado pelas conclusões das respetivas alegações de recurso, apreciar se o acórdão do TCA Sul recorrido, incorreu em:

11.1. Quanto ao recurso independente:

a) Erro de julgamento de direito por ter considerado que, no caso dos autos, se encontravam reunidos os pressupostos para a aplicação do mecanismo processual previsto no art. 121.º do CPTA, antecipando o juízo sobre a causa principal;

b) Erro de julgamento de direito ao considerar que os atos de instrução e subsequentes, como a acusação e o relatório final do processo disciplinar, consubstanciam atos praticados por oficial instrutor impedido no caso concreto e, por isso, tais atos são inválidos, por desrespeitarem o disposto no art. 91.º, n.º 1 do RDM, inquinando, por essa via, o ato sindicado, na exata medida em que manteve, em sede de recurso hierárquico, aqueles mesmos atos, violando o disposto nos arts. 5.º, n.º 3 do CPC, ex vi do art. 1.º do CPTA, arts. 78.º e 91.º, n.º 1 e n.º 2, do RDM, arts. 39.º, n.º 1 e n.º 2, 41.º, n.º 3, e 47.º, todos do CPP ex vi do art. 10.º do RDM.

c) Erro de julgamento de direito ao considerar que foram violados os direitos de audiência e defesa dos arguidos por não constar das atas de tomada de declarações que os mesmos tenham sido informados, pelo oficial instrutor, dos direitos e deveres que lhes assistiam, nomeadamente do direito de constituição de defensor e direito ao silêncio e, ainda, por ter sido dispensada a inquirição de testemunhas arroladas, não tendo sido justificada a desnecessidade da sua inquirição;

d) Erro de julgamento de direito por considerar que não foi observado o contraditório após a realização de diligências complementares de prova executadas depois de apresentada a defesa à acusação, verificando-se a falta de audiência dos arguidos sobre matéria da acusação e, nessa medida, violando as suas garantias de defesa, o que constitui nulidade insanável.

11.2. Quanto ao recurso subordinado:

a) Erro de julgamento por não ter declarado inválido o ato punitivo com fundamento na violação do direito de audiência e defesa dos arguidos, ao não terem sido ouvidos antes da prolação da decisão disciplinar, facultando-lhes a possibilidade de discutir a pena que se pretendia aplicar-lhes, violando o disposto nos art.s 32.º, n.º 10 e 269.º, n.º 3 da CRP, diretamente aplicáveis (art.s 17.º e 18.º da CRP), e o princípio do processo equitativo, que supõe o contraditório pleno;

b) Erro de julgamento por incorreta aplicação dos arts. 269.º, n.º 3 da CRP e 103.º, n.º 2 do RDM, ao terem sido indeferidas inquirições de testemunhas, sem fundamento legal, designadamente as identificadas na conclusão L) das alegações de recurso, restringindo o direito de defesa dos arguidos, o que constitui nulidade insuprível (art. 78.º, n.º 1, alínea c) do RDM);

c) Erro de julgamento por o acórdão recorrido ter violado, também, as regras do concurso de infrações na medida em que decidiu como se o artigo 44.º não existisse afirmando, ademais, contra legem, que o concurso (logo o artigo 44.º do RDM) não se aplicava em direito disciplinar militar;

d) Erro de julgamento por violação dos art.s 39.º do RDM e 71.º do Código Penal (aplicável por remissão do art. 10.º do RDM), por na decisão punitiva não terem sido atendidos elementos vinculantes que, segundo juízos de proporcionalidade, deveriam ter sido considerados, e ainda por errada aplicação do art. 47.º, alínea c) do RDM, preterindo a salvaguarda do direito a um mínimo de existência condigna, previsto nos arts. 1.º e 63.º, n.º 3 da CRP, em conjugação com o princípio da proporcionalidade, ínsito no princípio do Estado de Direito Democrático;

e) Erro de julgamento por violação dos art.s 20.º da CRP e 6.º da CEDH e, bem assim, do art. 161.º, n.º 2, alínea d) do CPA, por não ter julgado nulos os atos punitivos trazidos à sindicância do tribunal por violação do direito à audiência pública, oportunamente requerida pelos arguidos.



III. FUNDAMENTAÇÃO

III.i. DE FACTO

12. O acórdão recorrido, em face dos elementos juntos aos autos, do PA, da prova por admissão e das regras de experiência comum, deu como assente a seguinte factualidade:

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III.ii. DE DIREITO

III.ii.i. DO RECURSO INDEPENDENTE:

A) DA ANTECIPAÇÃO DO JUÍZO SOBRE A CAUSA PRINCIPAL

13. Começa a Marinha Portuguesa por recorrer do acórdão do TCA Sul, na parte em que neste se antecipou o juízo sobre o mérito da causa, procedendo à convolação da decisão cautelar na decisão principal, e se julgou ato sancionatório impugnado nulo.

14. Comecemos então por apreciar se o TCA Sul errou ao ter considerado que, no caso dos autos, se encontravam reunidos os pressupostos para a aplicação do mecanismo processual previsto no art. 121.º do CPTA, antecipando o juízo sobre a causa principal.

15. A decisão de antecipação do juízo sobre a causa principal, para além de pressupor a existência do processo principal já intentado e a reunião de todos os elementos necessários para o efeito, tem sempre de fundamentar-se num (ou em ambos) dos dois requisitos alternativos legalmente impostos: ou na simplicidade do caso ou na urgência na sua resolução definitiva (cfr. o ac. deste STA de 12.09.2024, proc. n.º 2004/21.0BELSB). Nos termos do atual n.º 1 do art. 121.º do CPTA, são requisitos substantivos que permitem justificar uma decisão de antecipação do juízo sobre a causa principal: 1) “a simplicidade do caso” ou, alternativamente, 2) “a urgência na sua resolução definitiva”.

16. No caso dos autos, a decisão de antecipar o juízo sobre a causa principal assentou na urgência (e não na simplicidade), como prevê o n.º 1 do art. 121.º do CPTA, do que diverge a Recorrente. Como consta do acórdão recorrido:

Compulsados os presentes autos cautelares, bem como os autos principais apensos e ouvidas as partes, mostram-se juntos aos autos (quer com as peças processuais, quer no respetivo processo administrativo — PA instrutor) todos os elementos necessários à antecipação do juízo sobre a causa principal: cfr. matéria assente infra e art. 121° e do art. 7°-A ambos do CPTA.

Mais, acresce que, verificando-se ainda, como se verifica, a urgência na resolução definitiva do litígio (consubstanciada, nomeadamente, ante a amplitude do ato de desobediência militar cometido, sua dimensão mediática e sensível — vide v.g. fls. 1588 a 1696, sobretudo fls. 1638, da numeração aposta no canto superior direito do PA - e, por outro lado, perante as implicações concretas para a carreira de cada um dos requerentes, v.g. para efeitos de transferências; tempo de serviço efetivo; perda de suplementos, subsídios e de 2/3 do vencimento auferido à data da suspensão; promoções; nota de assentamentos nos respetivos registos disciplinares dos militares requerentes, etc), tal circunstância demanda também a convolação da presente providência cautelar no processo principal havendo, em consequência, preterição do conhecimento da providência cautelar requerida: neste sentido vide MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, "Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos", 2017, 4ª edição, Almedina, anotação ao art.° 121, de fls. 988 a fls. 995.

Pelo que, ao abrigo do art. 121.º e do art. 7º-A ambos do CPTA, na redação que conferida pelo DL n° 214-G/2015, de 2 de outubro, determinar-se-á a antecipação do juízo da causa principal que tramita sob a ação administrativa a que os presentes autos cautelares se encontram apensos, a conhecer agora na presente providência cautelar, que passa assim a tramitar como meio processual de tutela final urgente.

17. Alega a Recorrente que o que a decisão recorrida qualifica como situação de urgência na resolução definitiva do caso, tem a ver com a característica típica das providências cautelares, decorrente da sua própria natureza, que é a sua provisoriedade. Não se justificando, portanto, a convolação processual operada.

18. A propósito da decisão de antecipação do juízo sobre a causa principal pronunciou-se recentemente este Supremo no acórdão de 12.09.2024, no proc. n.º 2004/21.0BELSB (já suprarreferido), nos seguintes termos:

“Como se julgou no Acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Administrativo deste STA, de 26/2/2015 (proc. 01164/14), mantendo plena atualidade não obstante a revisão de 2015:

«Não se justifica o uso desse mecanismo quando não está em causa uma situação geradora de graves danos para o recorrente e quando a providência cautelar, apesar da sua natureza provisória, se mostra apta a evitar uma situação irreversível».

E como explicita Fernanda Maçãs (“O contencioso cautelar”, in “Comentários à Revisão do ETAF e do CPTA”, AAFDL, 2017, págs. 982/983:

«(…) Numa apreciação sumária, destaca-se que o legislador é menos exigente quanto ao requisito material, ao deixar cair a expressão “manifesta”, bastando-se com a mera invocação de uma situação de “urgência” (ainda que destituída de caráter manifesto).

(…) Sem prejuízo da bondade das razões de economia e celeridade invocadas, como se trata da substituição de um juízo cautelar por um juízo definitivo do caso, afigura-se que o tribunal deve continuar a fazer uso prudente destes pressupostos.

O sistemático e pródigo recurso à figura da convolação de um processo cautelar em processo principal e urgente (sumário) corre o risco de gerar o fenómeno de aceleração abusiva do ato de julgar, mediante sobreposição da celeridade sobre a justiça material».

(…)

Como diz Dora Lucas Neto (“Notas sobre a antecipação do juízo sobre a causa principal: um comentário ao artigo 121º do CPTA”, in “Revista do Direito Público e Regulação, Coimbra, nº 1, maio/2009):

«(…) se, por um lado, o requerente da tutela cautelar tem um interesse óbvio em ver estabilizada a sua situação, não menos óbvio é o interesse e a urgência do requerido (e contrainteressados) na resolução definitiva do litígio. (…) Acresce que “(…) o interesse público fica claramente beneficiado se as ilegalidades ocorridas durante o procedimento forem corrigidas atempadamente (Ana Gouveia Martins, “A tutela cautelar no contencioso administrativo, Coimbra Ed., 2005, pg. 284. Cfr. também, pg. 539)».

(…)

Por outro lado, é de afastar uma interpretação da atual redação do art. 121º do CPTA, no seguimento da revisão de 2015, que veja nesta uma mera intenção de agilização processual – como decorre, em parte, da decisão da 1ª instância e como defende a Recorrente/Requerente nas suas alegações – “(…) S. O que certamente motivou o legislador a promover estas “benfeitorias” ao preceito, não foi o ensejo de uma manutenção do “status quo” quanto ao nível de exigência e rigor, que reduziam a utilização do preceito a situações quase “in extremis”. A lógica da reforma foi, segundo cremos, a oposta, qual fosse a de habilitar a magistratura com um meio ágil e expedito de resolver situações cautelares de forma definitiva».

Contrariando esta visão, referem Aroso de Almeida/Carlos Cadilha (in “Comentário ao CPTA”, Almedina, 5ª edição, 2022, pág. 1037):

«(…) a revisão de 2015 não liberalizou a utilização do instituto, rejeitando a solução de fazer depender a convolação apenas, como alguns preconizavam, do requisito de terem sido trazidos ao processo todos os elementos necessários para o efeito».

E, perante a proposta, abandonada, de fazer depender a convolação exclusivamente de terem sido trazidos ao processo todos os elementos necessários para o efeito, criticou Dora Lucas Neto (“A urgência no Anteprojeto de revisão do CPTA sob o prisma do novo contencioso dos procedimentos de massa”, in “O Anteprojeto de revisão do CPTA em debate”, AAFDL, 2014, pág146):

«A recondução da aplicabilidade deste mecanismo a um único pressuposto de natureza adjetiva terá [teria] como consequência direta o incremento, desmesurado e injustificado, de pedidos de decretamento de providências cautelares, instruídas exaustivamente com todos os elementos de prova, visando apenas uma decisão “antecipada” da ação principal já instaurada».

No mesmo sentido, Vieira de Andrade, (in “A justiça administrativa”, Almedina, 16ª ed., 2017, págs. 147 e segs.):

«(…) Desde logo, tem de existir processo principal já intentado e tem de se comprovar que foram trazidos ao processo cautelar todos os elementos necessários para decidir a causa principal – um condicionalismo que justificaria, só por si, a decisão imediata, por razões de celeridade, mas que teria o inconveniente de estimular as partes a sobrecarregarem sistematicamente os processos cautelares com as alegações de facto e de direito necessárias à decisão de fundo (acentuar-se-iam outros inconvenientes da antecipação, como, por exemplo, os que resultam da ultrapassagem de outros processo principais intentados antes).

Por isso exige-se ainda que a simplicidade do caso ou a urgência justifiquem a resolução definitiva, pela ineficiência ou insuficiência da medida cautelar provisória.

(…) Em qualquer caso, deve haver uma interpretação exigente dos pressupostos legais e uma grande prudência por parte do tribunal, que só excecionalmente deve decidir-se pela substituição do juízo cautelar por um juízo de mérito, nos casos de grande simplicidade ou nos de urgência, quando os interesses envolvidos sejam de grande relevo (…)».

19. Tendo isto presente, entende-se que o TCA Sul fez um uso ponderado da faculdade prevista no art. 121.º, antecipando o juízo da causa principal validamente.

20. Com efeito, como contra-alegado pelo aqui Recorrido, não só se manteria o assento da condenação no respetivo processo individual para todos os efeitos legais, permitindo, ao que aqui releva, avaliação disciplinar concomitante, transferências ou a ultrapassagem por outros militares com menor antiguidade (o que na hierarquia militar assume constrangimentos relevantes), como o caso em si considerado, como assinalado pelo TCA Sul tem contornos particulares derivados de se estar perante um “ato de desobediência militar cometido, sua dimensão mediática e sensível”. Nessa perspetiva, a estabilização da situação jurídica de referência aconselha a antecipação do julgamento da causa principal.

21. Na verdade, já Mário Aroso de Almeida assinalava por referência à anterior redação da norma – que era ainda mais exigente na sua formulação ao qualificar a urgência como “manifesta” – que a natureza das questões colocadas e a gravidade dos interesses em presença eram condições determinantes para esta convolação processual, para além, claro está, de terem sido carreados para o processo todos os elementos necessários para o efeito (cfr. O novo regime do processo os tribunais administrativos, 4.ª ed. revista, p. 314).

22. Ora, não se discute que o processo dispõe já de todos os elementos para a decisão de fundo da causa, como dúvida não existe acerca das questões colocadas e da gravidade dos interesses em presença. Interesses esses que vão muito para além dos interesses pessoais e profissionais dos militares em causa e que contendem com os valores essenciais da condição militar, em particular, da hierarquia – estrutura de comando e obediência - e da disciplina – cumprimento dos normativos e das ordens.

23. Neste ponto, continuando a citar o mesmo Autor, agora já por referência ao atual art. 121.º do CPTA: “se, em situações deste tipo, forem graves os interesses envolvidos - por não haver outro caminho do que provocar custos desproporcionados com a adoção da providência ou causar graves danos ao requerente com a recusa da mesma -, faz sentido que, se isso for possível, se procure evitar a produção de quaisquer danos através da antecipação da decisão do processo principal” (cfr. Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos e Fiscais, 5.ª ed., 2021, p. 1039).

24. Assim, acompanha-se o entendimento do TCA Sul quando concluiu pela antecipação do juízo da causa principal, com o que improcede o recurso nesta parte.

B) DO IMPEDIMENTO DO OFICIAL INSTRUTOR

25. Continuando, sustenta a Recorrente a existência de erro de julgamento de direito ao ter o TCA Sul considerado que os atos de instrução, a acusação e o relatório final do processo disciplinar, consubstanciavam atos praticados por oficial instrutor impedido no caso concreto e, por isso, tais atos eram inválidos, por desrespeitarem o disposto no art. 91.º, n.º 1 do RDM e inquinando o ato sindicado, na exata medida em que, em sede de recurso hierárquico, aqueles mesmos atos foram mantidos, violando o disposto nos art.s 5.º, n.º 3 do CPC, art.s 78.º e 91.º, n.º 1 e n.º 2, do RDM, art.s 39.º, n.º 1 e n.º 2, 41.º, n.º 3, e 47.º, todos do CPP ex vi do art. 10.º do RDM.

26. Neste capítulo o acórdão recorrido assentou no seguinte discurso fundamentador, o qual, pela sua clareza e assertividade, se transcreve:

“(…) revertendo à apreciação do primeiro vício de violação de lei (do disposto art. 91° do RDM) suscitado, resulta dos factos assentes, repete-se, que no domingo, 2023-03- 11, entre as 21:13 e as 23:00 horas, foram registadas diversas comunicações (v.g. informações e ordens) entre a cadeia de comando (recorde-se: entre o comandante do navio 1 TEN VV; o Comandante da Zona Marítima da Madeira — CZMM CMG NN e o COMANDANTE NAVAL - COMNAV VALM PP): cfr. alíneas 1 a 57, sobretudo alíneas 7 a 20; alíneas 27 a 38 supra.

Ora, nos termos e para os efeitos do ad. 91° n.° 1 do RDM, com a epigrafe: Escusa e suspeição do instrutor: "Sem prejuízo do disposto na lei quanto aos impedimentos, o instrutor deve pedir à entidade que o nomeou a dispensa de funções no processo quando ocorra circunstância pela qual possa razoavelmente suspeitar-se da sua isenção ou imparcialidade e, designadamente:.. . ": sublinhado e negrito nossos. Acrescenta o n.° 2 do mesmo preceito legal: ".... Com os mesmos fundamentos o arguido poderá opor suspeição ao instrutor.’

Já o art. 10º do RDM estipula: ".... Em tudo o que não estiver previsto no presente Regulamento são subsidiariamente aplicáveis, com as devidas adaptações e pela ordem seguinte, os princípios gerais do direito penal, a legislação processual penal e o Código do Procedimento Administrativo...” sublinhado e negrito nossos.

E sobre impedimentos, dispõe o art. 39° do Código de Processo Penal — CPP, nos seguintes termos: "1 - Nenhum juiz pode exercer a sua função num processo penal: (...) d) Quando, no processo, tiver sido ouvido ou dever sê-lo como testemunha. 2 - Se o juiz tiver sido oferecido como testemunha, declara, sob compromisso de honra, por despacho nos autos, se tem conhecimento de factos que possam influir na decisão da causa. Em caso afirmativo verifica-se o impedimento; em caso negativo deixa de ser testemunha... ": sublinhado e negrito nossos.

No mesmo sentido, em matéria de impedimentos, dispõe ainda o Código do Procedimento Administrativo - CPA, na exata medida em que, excluindo "... as intervenções que se traduzam em atos de mero expediente (...) os titulares dos órgãos da Administração Pública (...) não podem intervir em procedimento administrativo (...) d) quando tenha intervindo (...) ou hajam dado parecer sobre questão a resolver (...) f) quando se trate de recurso de decisão proferida por si ou com a sua intervenção... ": cfr. art. 69.º a art. 72.° do CPA ex vi art. 10.º do RDM.

Sendo que: ". . .quando se verifique causa de impedimento em relação a qualquer titular de órgão ou agente da Administração Pública, deve o mesmo comunicar desde logo o facto ao respetivo superior hierárquico ou (...) 4 - Compete ao superior hierárquico ou ao presidente do órgão colegial conhecer da existência do impedimento e declará-lo, ouvindo, se considerar necessário, o titular do Órgão ou agente... ": cfr. art. 69º a art. 72º do CPA ex vi art. 10° do RDM. Devendo o "... titular do órgão ou agente ou outra qualquer entidade no exercício de poderes públicos (...) suspender a sua atividade no procedimento, logo que façam a comunicação (...), até à decisão do incidente, salvo determinação em contrário de quem tenha o poder de proceder à respetiva substituição... ", depois: "... declarado o impedimento, é o impedido imediatamente substituído no procedimento pelo respetivo suplente, salvo se houver avocação pelo órgão competente para o efeito... ": cfr. art. 69.º a art. 72.º do CPA ex vi art. 10º do RDM.

Aqui chegados, a factualidade assente evidencia que a identificada cadeia de comando detinha conhecimento pessoal e funcional (exatamente por via das funções exercidas e dos postos ocupados) sobre a missão atribuída de interseção e acompanhamento de um navio russo ao largo da Ilha de Porto Santo e, simultaneamente, dos eventos relativos ao ato de desobediência levado a cabo pelos 13 arguidos, 11 dos quais ora requerentes, que decorreram nesse domingo, 2023-03-11, entre as 21:13 e as 23:00 horas, referentes à sobredita missão: cfr. alíneas 1 a 57, sobretudos alínea 7 a 20; alínea 27 a 38 supra.

Destarte dos elementos carreados para os autos resulta, pois, que a referida cadeia de comando teve envolvimento pessoal e funcional nos factos, pela simples e evidente razão de que entre estes 3 concretos e identificados oficiais, e não outros, foram registadas comunicações e transmitidas ordens e diretrizes anteriores e contemporâneas aos acontecimentos que deram lugar à instauração deste PD em concreto: cfr. alíneas 1 a 57, sobretudo alíneas 7 a 20; alíneas 27 a 38 supra.

(…)

O que significa que, tendo sido, como vieram a ser, o CZMM CMG NN, nomeado oficial instrutor do PD e o COMNAV VALM PP o oficial que mandou instaurar o PD, nomeou o oficial instrutor e foi ainda o oficial decisor do PD do qual foi, como sobredito, participante e comandante do NRP ..., 1TEN VV, resulta dos autos evidente terem sido os identificados oficiais seus interlocutores à data dos factos significativos para o procedimento disciplinar militar em apreço, sendo que, por isso, com toda a probabilidade, ambos tiveram conhecimento contemporâneo de factos que podiam influir na decisão do PD: cfr. alíneas 1 a 57 supra.

Circunstâncias que para a decisão do caso concreto assumem particular importância, porque abrangem apenas e tão só os supra identificados e concretos elementos da cadeia de comando e não quaisquer outros oficiais que, não tendo tido qualquer conexão com a cadeia de eventos daquele domingo, tivessem então sido: o oficial nomeado instrutor deste PD em concreto; ou o oficial com poderes para decidir a instauração deste PD; ou a nomeação do oficial instrutor deste PD e/ou a decisão deste PD: cfr. alíneas 1 a 57, sobretudo alíneas 7 a 20; alínea 27 a 38 supra; cfr. art. 5° n.° 3 do CPC ex vi art. 1º do CPTA; art. 91° n.° 1 e n.° 2 do RDM; art. 39° n.° 1 e n.° 2 do CPP ex vi art. 10° do RDM.

Vale isto por dizer que dos autos resulta claramente que estes identificados e concretos elementos da cadeia de comando tiveram envolvimento pessoal e funcional (ou seja, tiveram imediato e direto conhecimento dos factos) nos eventos ocorridos no domingo, 2023-03-11, entre as 21:13 e as 23:00 horas, referentes à sobredita missão, pelo que emerge cristalino que tal os habilita a serem chamados — aliás, como foram -, a depor como testemunhas: cfr. alíneas 1 a 57, sobretudo alíneas 7 a 20; alíneas 27 a 38 supra; art. 91° n.° 1 e n.° 2 do RDM; art. 39° n.° 1 e n.° 2 do CPP ex vi art. 10° do RDM.

(…)

Quanto ao oficial instrutor:

Antes da questão da suspeição, o art. 91° n.° 1 do RDM chama expressamente à colação o disposto na lei quanto aos impedimentos, o que significa que não pode ser nomeado oficial instrutor quem possa ser ou deva ser ouvido como testemunha: cfr. alíneas 1 a 57, sobretudo alíneas 7 a 20; alíneas 27 a 38 supra; art. 5° n.° 3 do CPC ex vi art. 1° do CPTA; art. 91° n.° 1 e n.° 2 do RDM; art. 39° n.° 1 e n.° 2 do CPP ex vi art. 10° do RDM.

Ponto é que tendo sido, como foi, nomeado instrutor do PD, oficial que, em tese, se encontrava habilitado a depor como testemunha (face à sua participação nos eventos e/ou conhecimento dos mesmos, ainda que por via do normal exercício das suas funções de CZMM) podia, e devia, ter feito uso do disposto no art. 91° n.° 1 do RDM primeira parte e art. 390 n.° 1 aI. d) e n.° 2 do CPP ex vi art. 10° do RDM: cfr. alíneas 1 a 57.

Ou seja, uma vez nomeado instrutor do PD em concreto, o CZMM CMG NN podia ter adotado uma de duas vias: i) ter-se declarado impedido no PD; ou podia no PD ii) ter declarado não ter conhecimento dos factos que podiam influir na decisão da causa: cfr. alíneas 1 a 57; art. 91° n.° 1 do RDM primeira parte e art. 39° n.° 1 al. d) e n.° 2 do CPP ex vi art. 10° do RDM.

Não o tendo feito, todos os atos de instrução e subsequentes, como a acusação e o relatório final do PD em apreço, consubstanciam atos praticados por oficial impedido no caso concreto, e, por isso, tais atos, por não cumprirem o disposto no art. 91º n.° 1 do RDM, são inválidos, e, bem assim, o é também o ato sindicado, na exata medida em que manteve, em sede de recurso hierárquico, tais atos ilegais: cfr. alíneas 1 a 57, sobretudo alíneas 7 a 20; alínea 27 a 38 supra; cfr. art. 5° n.° 3 do CPC ex vi art. 1° do CPTA; art. 91° n.° 1 e n.° 2 do RDM; art. 39° n.° 1 e n.° 2; art. 41º n.° 3; art. 47º todos do CPP ex vi art. 10º do RDM e art. 78° do RDM.

Mais acresce que, nomeado oficial instrutor deste PD em concreto o supra aludido CZMM não só não fez, como sobredito, tempestivo uso do disposto no art. 91º n.° 1 do RDM primeira parte (e art. 39º n.° 1 al. d) e n.° 2 do CPP ex vi art. 10º do RDM), como reiterou tal conduta quando foram suscitados os incidentes de suspeição e, bem assim, quando foram, por si, apreciados e decididos os requerimentos de prova testemunhal apresentados por banda dos requerentes (em que além do mais, o arrolava como testemunha): cfr. alíneas 1 a 57 supra; cfr. art. 5° n.° 3 do CPC ex vi art. 1º do CPTA; art. 91º n.° 1 e n.° 2 do RDM; art. 39° n.° 1 e n.° 2; art. 41º n.° 3; art. 47° todos do CPP ex vi art. 10° do RDM e art. 78° do RDM.

Ainda no mesmo sentido alinham as supramencionadas normas do CPA, dado apresentarem a mesma lógica, assim: existindo circunstância que possa habilitar alguém a encontrar-se impedido, ainda que em razão de mero expediente, deve comunicar e suspender a sua atividade no procedimento, até à decisão do incidente, sendo então substituído em caso de verificação do impedimento, o que, como se viu, não sucedeu no caso sub judice: cfr. alíneas 1 a 57 supra; art. 69° a art. 72° do CPA ex vi art. 10º do RDM.

Donde, também por esta via, a instrução, a acusação, o relatório final consubstanciam atos praticados por oficial impedido no caso concreto, e, por isso, tais atos, por desrespeitarem o disposto no art. 91º n.° 1 do RDM, são inválidos, e, bem assim, o é também o ato sindicado, na exata medida em que manteve, em sede de recurso hierárquico, tais atos ilegais: cfr. alíneas 1 a 57 supra; art. 69° a art. 72º do CPA ex vi art. 10° do RDM.

(…)

E tanto assim é que, como se viu, os identificados oficiais integrantes da cadeia de comando podiam (repete-se: e, no caso concreto, foram) ter sido arrolados como testemunhas, encontrando-se, por isso, o oficial que determinou a instauração do PD; nomeou o instrutor e decidiu o PD sujeito às regras estabelecidas no art. 64° a 68°; art. 103° n.° 1 e n.° 2 e art. 96° n.° 2 todos do RDM e o nomeado oficial instrutor concretamente impedido neste PD de assumir tais funções instrutórias: cfr. alíneas 1 a 57, sobretudo alíneas 7 a 20; alíneas 27 a 38 supra; cfr. art. 5° n.° 3 do CPC ex vi art. 1° do CPTA; art. 91° n.° 1 e n.° 2 do RDM; art. 39° n.° 1 e n.° 2 do CPP ex vi art. 10º do RDM.

Acresce que, tal asserção não é infirmada pelas decisões judiciais em sentido contrário que foram, entretanto, prolatadas, na exata medida em que, por um lado, as mesmas não condicionam este Tribunal e, por outro, foram proferidas numa fase embrionária do PD (no sentido em que anteriores à apresentação da defesa, da apresentação do relatório final e da decisão disciplinar — referimo-nos ao processo de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias, que correu termos no TAC de Lisboa sob o n.° 2213/23.8BELSB) e em processo cautelar, que neste Tribunal superior correu termos também para decisão em 1.ª instância, sob o n.° 291/24.1BEALM, mas no qual não foi feito uso da antecipação do juízo sobre a causa principal (ou seja, em que não foi conhecido o mérito sem ser de forma indiciária ou perfunctória como sucede no caso dos presentes autos): cfr. alíneas 1 a 57, sobretudo a alíneas 32 a 34; alíneas 38, 39, 41 e 43 supra; vide art. 412° n.° 2 do CPC ex vi art. 1º e art. 7°-A ambos do CPTA.

(…)

Recapitulando o que expusemos temos que, por um lado, o RDM expressamente prevê a aplicação à prova testemunhal do disposto na legislação processual e processual penal e, por outro lado, em tudo o que não estiver previsto referido diploma são subsidiariamente aplicáveis, pela ordem seguinte, os princípios gerais do direito penal, a legislação processual penal e só depois o CPA: cfr. alíneas 1 a 57; art. 96º n.° 2 e art. 10° ambos do RDM.

Donde, subsumindo tais regras à matéria de facto dada como provada, conclui-se que o ato impugnado (que, repete-se, sustentando atos inválidos se tornou também ele inválido, concretamente, por violação do disposto no invocado art. 91° n.° 1 do RDM, primeira parte) mostra-se, indubitavelmente, cominado com o desvalor da nulidade, dado ser este o desvalor para que primeiramente remetem as normas supra enunciadas, ou seja, o art. 96° n.° 2 e art. 10° ambos do RDM, em detrimento da anulabilidade referenciada no art. 76° do CPA que, sublinhe-se, só se aplicaria ex vi art. 10º do RDM: cfr. alíneas 1 a 57; sobretudo alíneas 7 a 20; alíneas 27 a 38 supra; cfr. art. 5° n.° 3 do CPC ex vi art. 1° do CPTA; art. 91° n.° 1 e n.° 2 do RDM; art. 39° n.° 1 e n.° 2; art. 41° n.° 3; art. 47º todos do CPP ex vi art. 10º do RDM e art. 78° do RDM.

Termos em que o ato em crise padece do assacado vício de violação de lei, por desrespeito do invocado art. 91° do RDM.

27. A análise da situação substantiva em presença que é feita pelo TCA Sul é correta e reivindica a aplicação do quadro jurídico que foi efetivamente aplicado.

28. Com efeito, o envolvimento pessoal do oficial instrutor nos mesmos factos, por via das funções que desempenhava, a circunstância de poder ser chamado a depor como testemunha tornava-o ipso facto impedido de exercer as funções de instrutor, conforme os artigos 91.º, n.ºs 1 e 2 do RDM, e 39.º, n.ºs 1 e 2 do CPP ex vi art. 10.° do RDM.

29. Aliás, no recurso interposto, a Recorrente assume que “as comunicações existentes entre o comandante do navio, o CZMM e o VALM COMNAV a respeito dos acontecimentos do dia 11.03.2023 no NRP ..., derivam, na sua justa medida, da cadeia de comando hierárquica e funcional que os interliga, fruto do exercício desses cargos militares.” Ou seja, é confirmado um pré-conhecimento dos factos em causa e do circunstancialismo que os envolveu por parte do oficial que veio a ser nomeado instrutor.

30. Insiste, por outro lado, a Recorrente que a questão do impedimento deste oficial já se encontrava resolvida judicialmente, tendo o TCA Sul concluído no acórdão de 16.10.2024, referente ao proc. n.º 291/24.1BEALM, que o processo disciplinar não padecia de evidente ilegalidade, nomeadamente, referente à nomeação do instrutor. Decisão esta que veio a ser confirmada por este Supremo no acórdão de 27.02.2025, ao conhecer-se da aí alegada falta de imparcialidade do oficial instrutor nomeado e que considerou não estarem verificados os requisitos da suspeição.

31. Porém, essa decisão foi proferida noutro processo, de natureza cautelar, não formando caso julgado, nem tendo autoridade de caso julgado, no presente processo. É que uma decisão proferida em providência cautelar é, por natureza, provisória, assentando o seu julgamento na mera aparência do direito invocado pelo requerente, não se lhe podendo conceder carácter definitivo, este só alcançável na ação principal.

32. E enquanto nesse processo a questão foi qualificada enquanto incidente de suspeição, neste processo a decisão proferida assentou no pressuposto de que a instrução, a acusação e o relatório final consubstanciavam atos praticados por oficial impedido no caso concreto (sendo que o mesmo também não se declarou impedido ou sequer sujeito a um juízo de suspeição). Sendo que nos presentes autos a procedência do vício vem sustentada em factualidade dada por provada e devidamente referenciada.

33. Muito recentemente este STA discorreu sobre o princípio da imparcialidade e suas implicações no procedimento, como constante do acórdão de 11.07.2024, no proc. n.º 30/24.7BALSB, concluindo que “o ordenamento jurídico não se bastou com a consagração do princípio da imparcialidade administrativa no n.º 1, do artigo 266.º da Constituição, consagrou-o positivamente também no artigo 9.º do CPA e, em termos de assegurar a sua eficácia, previu ainda um conjunto de garantias da imparcialidade, que visam reprimir e sancionar a sua violação, segundo os artigos 69.º a 76.º do CPA, sendo estas as bases normativas da tutela do princípio da imparcialidade no procedimento administrativo”.

34. Para além de que, como provado, tendo este oficial sido arrolado como testemunha – e tendo, inclusive, decidido esses requerimentos probatórios – deveria ter acautelado a sua posição no procedimento por aplicação subsidiária do disposto no art. 39.º do CPP ex vi art. 10.º do RDM, o que manifestamente não fez.

35. Assim sendo, apresentando-se o vício de violação de lei aqui em apreciação devidamente sustentado, improcede, também nesta parte, o recurso.

C) DA VIOLAÇÃO DOS DIREITOS DE AUDIÊNCIA E DEFESA DOS ARGUIDOS

36. A Recorrente imputa ao acórdão recorrido, também, erro de julgamento de direito ao considerar que foram violados os direitos de audiência e defesa dos arguidos por não constar das atas de tomada de declarações que os mesmos tenham sido informados, pelo oficial instrutor, dos direitos e deveres que lhes assistiam, nomeadamente do direito de constituição de defensor e direito ao silêncio e, ainda, por ter sido dispensada a inquirição de testemunhas arroladas, não tendo sido justificada a desnecessidade da sua inquirição.

37. Em relação à violação dos direitos de defesa por ausência de informação aos arguidos dos seus direitos e deveres, concretamente do direito a serem assistidos por advogado e a não responderem ao que lhes era perguntado, temos que decorre do art. 93.º, n.º 4, do RDM, que o arguido não é obrigado a responder sobre os factos que lhe são imputados. Este preceito positiva em direito ordinário o direito à não incriminação que decorre dos artigos 32.º, n.º 10 e 269.º, n.º 3, da CRP.

38. No caso em apreço, nenhum dos arguidos foi informado nem de quais eram os factos pelos quais estava indiciado nem de que tinha o direito a não prestar declarações sobre os mesmos. Tal é o que resulta dos autos de inquirição, de onde não consta nem a comunicação do direito a constituir advogado, na sequência das imputações disciplinares que lhes estavam a ser feitas como do direito a não responder a quaisquer perguntas feitas sobre as mesmas sem que tal os pudesse prejudicar.

39. Como se escreve no acórdão recorrido: “resulta da factualidade assente que (com inobservância da ordem estabelecida no art. 94° do RDM, e sem que tal se mostre justificado nas respetivas atas) os arguidos, ora requerentes, foram ouvidos na qualidade de arguidos não constando, contudo, das atas de tomada de declarações que tenham sido informados, como se impunha, pelo oficial instrutor dos direitos e deveres que lhes assistiam, nomeadamente dos invocados direito à constituição de defensor e direito ao silêncio: cfr. alíneas 1 a 57, sobretudo alíneas 14 e 15 supra; art. 77.º e art. 94.º 3 ambos do RDM, art. 61º n.° 1 al. h), d) e e) do CPP ex vi art. 10º do RDM.

40. E continua o acórdão: “[t]al invalidade, na tomada do ato de declarações dos arguidos em sede de procedimento disciplinar militar, tem reflexo no próprio ato, bem como em todos os atos que dele dependem e em todos os atos que podem por ele ser afetados, como sejam todos os atos de instrução e de decisão disciplinar: cfr. alíneas 1 a 57, sobretudo alíneas 14 e 15 supra; art. 320 e art. 269° ambos da CRP; art. 77°, art. 78º e art. 94° n.° 3 ambos do RDM, art. 58° n.° 5, art. 61° n.° 1 al. h), d) e e); art. 121° a art. 122º todos do CPP ex vi art. 10° do RDM.

41. Defende a Recorrente que dos autos de declarações constam expressamente as razões pelas quais os ora Recorridos seriam inquiridos no procedimento e ainda as questões concretas a responder. Do mesmo modo que “em todas essas diligências, foram os Requerentes naturalmente elucidados sobre os direitos de que dispunham enquanto arguidos” (126.º do recurso). Porém, certo é que da matéria de facto que vem provada essa “elucidação sobre os direitos de que dispunham enquanto arguidos” não consta.

42. A Recorrente defende igualmente que na qualidade de arguidos, não foram impelidos ou de algum modo coagidos a responder às questões que lhes foram sendo colocadas, tendo cada um deles optado, de forma voluntária, livre e consciente, por prestar declarações. No entanto, a questão é outra e relaciona-se com o direito ao silêncio e ao especial dever de informação sobre a faculdade de não prestar declarações e respectivas consequências. E, como provado, este dever não se mostrou cumprido.

43. Defende, ainda, a Recorrente que ao longo das respetivas carreiras, os militares recebem formação sobre os diplomas regulamentares fundamentais das Forças Armadas, especialmente da Marinha, e da condição militar, entre eles o RDM, pelo que não colhe a alegação da suposta ignorância dos conceitos legais aí prescritos, nomeadamente do direito ao silêncio e da constituição de defensor. Salvo o devido respeito, não se alcança semelhante alegação.

44. É irrelevante que os arguidos em sede disciplinar conheçam ou não, por outra via ou de antemão, os direitos e deveres a que tem direito por serem arguidos, facto é que ao serem constituídos arguidos devem ser sempre informados dos respetivos direitos e deveres, sob pena de verificação da invalidade expressamente prevista na lei.

45. Como refere Manuel Soares, “a Constituição da República Portuguesa (CRP) não contém norma expressa de protecção do direito ao silêncio do arguido em processo penal, mas é pacífico o entendimento de que se trata de um princípio constitucional não escrito. Desde logo, porque o direito à defesa, que inclui o direito à não auto-incriminação, é um princípio de Direito Internacional que integra o direito português por via da norma de incorporação do n.º 1 do artigo 8.º da CRP. // Por outro lado, porque, por força das normas de receção das convenções internacionais vinculativas para o Estado Português, do n.º 2 do mesmo artigo 8.º e do artigo 16.º, n.º 1, as regras de protecção contra a auto-incriminação da CEDH e do PIDCP são também direito interno. // De todo o modo, parece claro que a protecção do direito à não auto--incriminação sempre haveria de decorrer das normas constitucionais que consagram o princípio do processo justo e equitativo (artigos 20.º, n.º 4, e 32.º, n.º 8), das garantias de defesa, da presunção de inocência e da estrutura acusatória do processo (artigo 32.º, n.ºs 1, 2 e 5). // No CPP de 1987, está expressamente consagrado o direito do arguido a não prestar declarações em qualquer fase do processo” (in Revista JULGAR – n.º 32 - 2017, p. 27-28).

46. Como a este propósito se escreveu no acórdão n.º 298/2019 do Tribunal Constitucional, no processo n.º 1043/17:

10. O princípio em causa implica o reconhecimento do direito ao silêncio e do direito do arguido à não autoincriminação enquanto elementos de um processo penal de estrutura acusatória.

O primeiro daqueles direitos traduz-se na faculdade reconhecida ao arguido de não se pronunciar sobre os factos que lhe são imputados, diferentemente do que sucedia nos processos regidos pelo princípio do inquisitório em que as declarações obrigatórias do arguido, maxime a confissão forçada, tendem a convertê-lo em instrumento da sua própria condenação. O direito ao silêncio tem vindo a ser reconhecido pela legislação processual penal da maioria dos ordenamentos jurídicos dos Estados de direito modernos, encontrando também consagração expressa em instrumentos jurídicos internacionais (cf. o artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e artigo 14.º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos).

Já o segundo, entendido como direito a não contribuir para a própria incriminação, impede a transformação do arguido em meio de prova por via de uma colaboração involuntária obtida com recurso a meios coercivos ou enganosos. Existe uma ligação íntima entre os dois direitos, desde logo porque, não sendo reconhecido ao arguido o direito a manter-se em silêncio, este seria obrigado a pronunciar-se e a revelar informações que poderiam contribuir para a sua condenação.

Daí a correlação do nemo tenetur com a afirmação do arguido enquanto sujeito processual e, em particular, com a sua liberdade de declaração, uma vez que é nesta última que se espelha o estatuto do arguido como autêntico sujeito processual, decidindo, por força da sua liberdade e responsabilidade, sobre se e como quer pronunciar-se sobre os factos que lhe são imputados (cf. o Acórdão n.º 304/2004). De resto, a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (“TEDH”) tem reconhecido que o direito à não autoincriminação se relaciona, em primeira linha, com o respeito pela vontade do arguido em «permanecer em silêncio», em não prestar declarações (cf., por exemplo, os Acórdãos de 17 de dezembro de 1996, Saunders c. Reino Unido, Queixa n.º 19187/91, § 69; e de 21 de dezembro de 2000, Heaney and McGuinness c. Irlanda, Queixa n.º 34720/97, § 40).

Com efeito, o núcleo essencial do nemo tenetur respeita a uma dimensão negativa da liberdade de declaração, com preponderante relevo no estatuto processual penal do arguido.

Tal liberdade, na sua dimensão positiva, implica que «tenha de se garantir ao arguido a oportunidade efetiva de se pronunciar contra os factos que lhe são imputados, em ordem a infirmar as suspeitas ou acusações que lhe são dirigidas»; já na mencionada dimensão negativa, a liberdade de declaração protege o arguido contra o exercício de poderes coercivos tendentes a obter a sua colaboração na autoincriminação, nomeadamente mediante a utilização de meios enganosos ou a coação (cf. Manuel da Costa Andrade, Sobre as proibições de prova em processo penal, Coimbra Editora, Coimbra, 1992, p. 120 e ss.). «[O] arguido não pode ser fraudulentamente induzido ou coagido a contribuir para a sua condenação, a carrear ou oferecer meios de prova contra a sua defesa»; pelo contrário, é necessário garantir que «qualquer contributo do arguido, que resulte em desfavor da sua posição, seja uma afirmação esclarecida e livre de autorresponsabilidade» (v. idem, ibidem, p. 121).

O princípio do nemo tenetur visa, pois, assegurar a autodeterminação do arguido na condução da sua defesa no processo e, nessa medida, a garantia da sua posição enquanto sujeito processual. O respetivo conteúdo material é depois assegurado mediante a imposição de deveres de esclarecimento ou de advertência e pela nulidade das provas proibidas em virtude de terem sido obtidas mediante a colaboração involuntária do arguido em consequência do uso ilegítimo de meios coercivos ou de meios enganosos.

47. Neste âmbito, o acórdão recorrido concluiu que as normas regulamentares disciplinares militares são claras ao remeterem expressamente para as normas penais e de processo penal, conferindo assim ao arguido do processo administrativo as garantias de que gozam os arguidos em processo penal (art.s 32.° e 269. ° ambos da CRP, art.s 77.°, art. 78.º e 94.º, n.º 3 do RDM, art.s 58.º, n.º 5, 61.°, n.º 1, al.s h), d) e e), 121.º e 122.º todos do CPP ex vi art. 10.° do RDM). Tendo afirmado que “tal como para os arguidos criminais, é irrelevante que os arguidos em sede disciplinar conheçam ou não, por outra via ou de antemão, os direitos e deveres a que têm direito por serem arguidos, facto é que ao serem constituídos arguidos devem ser sempre informados dos respetivos direitos e deveres, sob pena de verificação da invalidade expressamente prevista na Lei”.

48. É certo que à condição militar estão associadas restrições inerentes à função e a sujeição a um conjunto de deveres e direitos desta derivados. Tal resulta claro do art. 2.º da Lei das Bases gerais do estatuto da condição militar, aprovado pela Lei n.º 11/89, de 1 junho [“A condição militar caracteriza-se: a) Pela subordinação ao interesse nacional; b) Pela permanente disponibilidade para lutar em defesa da Pátria, se necessário com o sacrifício da própria vida; c) Pela sujeição aos riscos inerentes ao cumprimento das missões militares, bem como à formação, instrução e treino que as mesmas exigem, quer em tempo de paz, quer em tempo de guerra; d) Pela subordinação à hierarquia militar, nos termos da lei; e) Pela aplicação de um regime disciplinar próprio; f) Pela permanente disponibilidade para o serviço, ainda que com sacrifício dos interesses pessoais; g) Pela restrição, constitucionalmente prevista, do exercício de alguns direitos e liberdades; h) Pela adopção, em todas as situações, de uma conduta conforme com a ética militar, por forma a contribuir para o prestígio e valorização moral das forças armadas; i) Pela consagração de especiais direitos, compensações e regalias, designadamente nos campos da Segurança Social, assistência, remunerações, cobertura de riscos, carreiras e formação”].

49. Mas é inequívoco que de acordo com o art. 5.º da mesma lei, “em processo disciplinar são garantidos aos militares os direitos de audiência, defesa, reclamação e recurso hierárquico e contencioso, sendo sempre garantido, em caso de processo escrito, o patrocínio”. Ou seja, é incontornável que são asseguradas garantias de defesa no processo disciplinar militar.

50. Também como este Supremo já deixou estabelecido, apesar da autonomia entre direito disciplinar e o direito penal, as principais garantias de defesa deste último valem para o direito disciplinar, por força do previsto no n.º 10 do art. 32.º e n.º 3 do art. 269.º da CRP (cfr., i.a., o ac. de 26.04.2012, proc. n.º 01194). Esta matéria está, ela própria, relacionada com as formalidades associadas à inquirição do visado - na verdade, da constituição de arguido - e a sua violação assume um efeito consequencial que irradia para todo o processo disciplinar, tendo na sua génese a ausência da advertência de que aquele visado não é obrigado a responder sobre os factos que lhe são imputados.

51. Ora, os autos de declarações dos militares arguidos no processo disciplinar estão inquinados pelo assinalado facto que, assim, afeta a validade da prova obtida (art. 94.º. n.º 3, e 78.º do RDM).

52. Donde, é de sancionar positivamente a conclusão tirada pelo tribunal a quo de que tal invalidade, na tomada do ato de declarações dos arguidos em sede de procedimento disciplinar militar, tem reflexo no próprio ato, bem como em todos os atos que dele dependem e em todos os atos que podem por ele ser afetados, como sejam todos os atos de instrução e de decisão disciplinar.

53. O TCA Sul considerou, também, que o oficial instrutor, se recusou validamente o pedido de julgamento disciplinar público (audiência pública), o pedido de reconstituição dos factos e a prova pericial, já incorreu em violação de lei em relação ao indeferimento da prova testemunhal que havia sido requerida pelos arguidos, concretamente a inquirição do COMNAV VALM.

54. Entendeu-se no acórdão recorrido que:

“(…) importa ter presente que o oficial instrutor ao indeferir a inquirição do COMNAV VALM, para tanto, invocando apenas ser aquele a entidade com competência disciplinar e que irá intervir como entidade decisora, não logrou, todavia, justificar porque, no caso concreto, considerava que não era necessária a sua inquirição, para tanto bastando v.g. chamar à colação o disposto no art. 128° e art. 129° ambos do CPP ex vi art. 96° n.° 2 e art. 103° n.° 2 do RDM: cfr. alíneas 1 a 57 supra; art. 64° a 106° do RDM; art. 128° e art. 129° ambos do CPP ex vi art. 96° n.° 2 e art. 103° n.° 2 do RDM.

O mesmo se passando relativamente ao impedimento do CZMM CMG NN, pelo que, como antes exposto, confrontado na qualidade de instrutor com o facto de ter sido arrolado como testemunha, não logrou, todavia, justificar porque, no caso concreto, considerava que não era necessária a sua inquirição, posto que ademais, dos autos resulta que, outrossim, em tese, reunia condições para testemunhar em sede disciplinar militar, razão pela qual, se impunha, repisa-se, a chamada à colação do art. 91° n.° 1 do RDM primeira parte e art. 39° n.° 1 al. d) e n.° 2 do CPP ex vi art. 10° do RDM; art. 128° e art. 129° ambos do CPP ex vi art. 96° n.° 2 e art. 103° n.° 2 do RDM.

55. Defende a Recorrente que “cumpre sublinhar que tais diligências probatórias – nomeadamente, a prova testemunhal – não possuíam qualquer relevância para o apuramento dos ilícitos disciplinares imputados aos arguidos, com particular enfoque para o ato de desobediência que foi cometido, que, como se demonstrou, ante a amplitude assumida, foi muito nefasto para a disciplina militar, a qual é indisponível e inegociável, comprometendo, irremediavelmente, a missão atribuída naquele dia ao NRP ...”.

56. Ora, o que resulta dos autos foi que o fundamento para o indeferimento da inquirição do Oficial em questão foi que o mesmo era entidade decisora e não podia ser inquirido. E em relação ao CMG NN, o mesmo reunia as condições para depor como testemunha, mercê do seu envolvimento nos factos, pelo que se impunha a indicação dos motivos concretos pelos quais se entendia não dever depor no processo disciplinar.

57. Não está em causa o postulado de que as diligências de prova impertinentes e desnecessárias devem ser indeferidas. Nos termos dos n.ºs 2 e 4 do artigo 103.º do RDM compete ao instrutor do processo de acordo com o princípio do inquisitório, exercer um poder-dever de seleção, de acordo com o seu julgamento, das diligências requeridas perante os critérios relevância, oportunidade e conveniência para o procedimento disciplinar.

58. O que o tribunal a quo considerou foi que esta diligência de prova – depoimento de testemunha – se apresentaria como essencial para a defesa dos arguidos, tendo presente todo o circunstancialismo que levou à praticada conduta que veio a ser sancionada. E isso poderia relevar, desde logo, para a valoração da ilicitude ou do grau de culpa, com consequências, pelo menos, para a determinação da medida concreta da pena disciplinar (exercício dos poderes disciplinares em sede de graduação da culpa e de determinação da medida concreta da pena).

59. Nessa medida, não se apresentando válido o fundamento para o indeferimento desta prova testemunhal, o indeferimento de tais diligências de prova afronta o direito fundamental à defesa dos arguidos, consagrado no art. 269.º, n.º 3 da CRP.

60. Razões que determinam a improcedência do recurso, de igual modo, nesta parte.

D) DA VIOLAÇÃO DOS DIREITOS DE AUDIÊNCIA E DEFESA DOS ARGUIDOS; EM ESPECIAL O DIREITO AO CONTRADITÓRIO APÓS JUNÇÃO DE DOCUMENTOS

61. Por fim, a Recorrente imputa ao acórdão recorrido erro de julgamento de direito por ter considerado que não havia sido observado o contraditório após a realização de diligências complementares de prova, executadas depois de apresentada a defesa à acusação, violando as garantias de defesa dos Recorridos, o que constituía nulidade insanável.

62. Neste ponto, afirmou-se no acórdão do TCA Sul o seguinte:

“(..) a garantia de defesa do arguido impõe a sua audiência após a realização de diligências complementares de prova realizadas depois de apresentada a defesa, ademais, quando - como resulta das palavras da entidade requerida em sede de oposição a este segmento, e que se transcrevem: "... atente-se que a nota de assentamentos do comandante do NRP ..., foi apensa para contradizer o alegado sobre a sua inexperiência, demonstrando o que sempre se declarou acerca da sua idoneidade para exercer aquelas funções, não contendendo, assim, com as ilicitudes de que foram acusados e punidos os requerentes..." - tais diligências visam, objetiva e assumidamente, contrariar o alegado pela defesa: sublinhados nossos; cfr. alíneas 1 a 57 supra; art. 103° n.° 4 do RDM; v.g. art. 82°-A n.° 2, art. 139° n.° 3, art. 165º n.° 2, art. 289º n.° 1, art. 323º al. f), art. 327°, art. 347°-A n.° 1 todos do CPP ex vi art. 10° do RDM.

Como decorre dos autos e o probatório elege, após a apresentação da defesa, o instrutor ordenou diligências complementares e, em 2023-01-19, juntou ao PD, além do mais, listas com todas as intervenções, reparações e substituições de material efetuadas, especificamente nos dias 10 a 13 de março de 2023, ao NRP ...; listas com material adquirido para o navio de 10 de março a 12 de abril de 2023; registo de posição do navio russo; louvor coletivo; nota de assentamentos do comandante do NRP ..., etc, etc, etc, não existindo, porém, nota de que aos requerentes tenha sido dada a oportunidade de exercer o contraditório sobre tais elementos de prova: cfr. alíneas 1 a 57, sobretudo alínea 35 supra; art. 103° n.° 4 do RDM; v.g. art. 82°-A n.° 2, art. 139° n.° 3, art. 165° n.° 2, art. 289° n.°1, art. 323° ai. f), art. 327°, art. 347°-A n.° 1 ex vi art. 10° do RDM.

O que consubstancia inquestionável violação do princípio do contraditório e, consequentemente, a falta de audiência do arguido sobre matéria da acusação, constituindo, por isso, nulidade insanável: cfr. alíneas 1 a 57; art. 103° n.° 4 do RDM; v.g. art. 82°-A n.° 2, art. 139° n.° 3, art. 165° n.° 2, art. 289° n. 1, art. 323° al. f), art. 327°, art. 347°-A n.° 1 ex vi art. 10° do RDM, art. 78° n.° 1 al. a) do RDM.

Donde, repete-se, acaso o ato impugnado não tivesse já cominado pelo desvalor da nulidade [recorde-se: quer por verificação de vício de violação de lei (v.g. art. 91° do RDM - quanto a impedimentos); vício de violação de lei (v.g. art. 94° n.° 3 do RDM - quanto a falta de prova de comunicação dos direitos e deveres como arguidos em sede de PD)] sempre a igual conclusão de invalidade se chegaria, agora, por via da verificação do desrespeito do falta de audiência dos requerentes sobre a matéria da acusação [v.g. art. 102° n.° 2 e ad. 103° ambos do RDM (por falta de contraditório sobre as realizadas diligências complementares de prova)]

63. Contrapõe a Recorrente que (conclusões LL. e MM.): “Relativamente ao facto de o instrutor ter apenso aos autos em 19.01.2024 um conjunto de documentos que não foram notificados à defesa, cumpre salientar estarem em causa os documentos mencionados nos pontos 9 a 11 do Termo de Juntada, i.e., a nota de assentamentos do comandante do NRP ..., o 1TEN OO, o Anexo A ao PA 15 e um Termo de responsabilidade. E essa junção de elementos documentais pelo instrutor, quando sucedeu, nada tem de ilegal nem sonega o direito de audiência e de defesa dos Requerentes. // MM. Porquanto, tal prerrogativa integra-se no preceituado no n.º 4 do artigo 103.º do RDM, que garante ao instrutor a possibilidade de, após deduzida a defesa à acusação, realizar diligências complementares que considere pertinentes para a descoberta da verdade, afigurando-se como uma decorrência do princípio do inquisitório que norteia toda a sua atuação.

64. Mais uma vez a posição da Recorrente assenta num equívoco. Não está em causa que o art. 103.º, n.º 4, do RDM faculta ao instrutor a possibilidade de realizar diligências complementares; o que nesta sede releva é a necessidade de observação do princípio do contraditório que está associado ao direito fundamental à defesa.

65. Como explicitado no acórdão de 23.02.2023 deste Supremo, no processo n.º 2884/13.3BELSB-A (acórdão proferido em sede de oposição de julgados, em que se identifica a corrente jurisprudencial do STA acerca dos direitos de defesa quando ocorram diligências complementares de prova), o arguido tem o direito de se pronunciar sobre todo e qualquer material probatório levado ao processo, havendo que facultar-lhe para o efeito prazo razoável antes da decisão punitiva.

66. O STA sempre tem entendido que: “[o] essencial do direito de defesa do arguido em processo disciplinar consubstancia-se na possibilidade de pronúncia sobre todos os elementos que relevem para a decisão, tanto no que concerne à matéria de facto como à matéria de direito, não podendo esse direito deixar de abranger, nomeadamente, a possibilidade de pronúncia sobre todos os elementos da matéria de facto desfavoráveis que sejam produzidos no processo, independentemente de eles ser ou não produzidos em diligências requeridas pelo arguido” (cfr. o ac. de 17.12.2003, proc. n.º 1717/03). Pois que, “[c]onstitui nulidade insuprível do processo disciplinar geradora de anulabilidade do acto punitivo, a falta de audiência do arguido sobre o resultado de diligências complementares ordenadas oficiosamente pelo instrutor, posteriormente à sua defesa em processo disciplinar, designadamente junção de documentos, que se revelaram em desfavor do arguido no juízo probatório” (cfr. ac. de 22.06.2010, proc. n.º 1091/08). Muito simplesmente, a violação do direito de audiência do arguido por não ter sido ouvido sobre diligências complementares ordenadas no processo disciplinar, constitui uma nulidade insuprível.

67. O Tribunal Constitucional proferiu inúmeros acórdãos que consagram a aplicação das garantias de defesa previstas no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa aos processos disciplinares, por força do seu nº 10, que estende tais garantias a “quaisquer processos sancionatórios”. Veja-se, entre muitos, o que se escreveu no Acórdão n.º 594/2020, replicado no Acórdão n.º 177/2021:

A República Portuguesa, enquanto Estado Democrático de Direito, garante a existência de um processo disciplinar justo. Sendo um instrumento para apurar e punir infrações disciplinares, o processo disciplinar apresenta relações com o Direito Processual Penal, designadamente na medida em que se encontra também necessariamente subordinado a princípios e regras que assegurem os direitos de defesa.

A Constituição assume aquela relação, no artigo 32.º, sob a epígrafe “garantias do processo penal”, ao assegurar, no n.º 10, as garantias do direito de audiência e defesa nos processos contraordenacionais e em «quaisquer processos sancionatórios». Esta norma constitucional foi introduzida pela revisão constitucional de 1989, quanto aos processos de contraordenação, e alargada, pela revisão de 1997, a quaisquer processos sancionatórios.

De acordo com Germano Marques da Silva e Henrique Salinas «O n.º 10 garante aos arguidos em quaisquer processos de natureza sancionatória os direitos de audiência e defesa. Significa ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção, contraordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas. Neste sentido, entre outros, os Acs. n.ºs 659/06, 313/07, 45/08, e 135/09, esclarecendo-se ainda, no Ac. n.º 469/97, que esta exigência vale não apenas para a fase administrativa, mas também para a fase jurisdicional do processo» (cfr. Constituição Portuguesa Anotada, Jorge Miranda e Rui Medeiros (coord.), vol. I, Universidade Católica Editora, 2017, p. 537).

Pronunciando-se sobre o sentido da garantia prevista no artigo 32.º, n.º 10, da Constituição, o Tribunal Constitucional referiu no Acórdão n.º 135/2009, do Plenário, ponto 7:

«(…) [C]omo se sustentou nos Acórdãos n.ºs 659/2006 e 313/2007, com a introdução dessa norma constitucional (efetuada, pela revisão constitucional de 1989, quanto aos processos de contraordenação, e alargada, pela revisão de 1997, a quaisquer processos sancionatórios) o que se pretendeu foi assegurar, nesses tipos de processos, os direitos de audiência e de defesa do arguido, direitos estes que, na versão originária da Constituição, apenas estavam expressamente assegurados aos arguidos em processos disciplinares no âmbito da função pública (artigo 270.º, n.º 3, correspondente ao atual artigo 269.º, n.º 3). Tal norma implica tão‑só ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção, contraordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido (direito de audição) e possa defender‑se das imputações que lhe são feitas (direito de defesa), apresentando meios de prova e requerendo a realização de diligências tendentes a apurar a verdade (cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra, 2005, p. 363). É esse o limitado alcance da norma do n.º 10 do artigo 32.º da CRP, tendo sido rejeitada, no âmbito da revisão constitucional de 1997, uma proposta no sentido de se consagrar o asseguramento ao arguido, “nos processos disciplinares e demais processos sancionatórios”, de “todas as garantias do processo criminal” (artigo 32.º‑B do Projeto de Revisão Constitucional n.º 4/VII, do PCP; cf. o correspondente debate no Diário da Assembleia da República, II Série‑RC, n.º 20, de 12 de setembro de 1996, pp. 541‑544, e I Série, n.º 95, de 17 de julho de 1997, pp. 3412 e 3466)».

No Acórdão n.º 338/2018, da 3.ª Secção, ponto 14, o Tribunal voltou a afirmar:

«No que diz respeito ao n.º 10 do artigo 32.º, referiu-se no Acórdão n.º 180/2014 que o mesmo releva “no plano adjetivo e significa ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção contraordenacional ou administrativa sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas (Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra, 2005, pág. 363, e acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 160/2004 e 161/2004)».

Em suma, e como se reconhece no artigo 32.º, n.º 10, da Constituição, os direitos de audiência – de ser efetivamente ouvido antes do decretamento da sanção –, e defesa – de apresentar a sua versão dos factos, juntar meios de prova e requerer a realização de diligências – constituem uma dimensão essencial tanto do processo criminal como dos processos de contraordenação como, finalmente, também de todos os processos sancionatórios. No caso dos processos sancionatórios disciplinares no contexto da função pública, a essencialidade dos referidos direitos de audiência e de defesa é reforçada ainda pelo artigo 269.º, n.º 3, da Constituição. O sentido útil desta «explicitação constitucional do direito de audiência e de defesa é o de se dever considerar a falta de audiência do arguido ou a omissão de formalidades essenciais à defesa como implicando a ofensa do conteúdo essencial do direito fundamental de defesa» (Cfr. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4.ª ed. revista, Coimbra Editora, 2010, p. 841).

Exigindo o n.º 10 do artigo 32.º da Constituição que o arguido nos processos sancionatórios não-penais ali referidos seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe sejam feitas, apresentando meios de prova, requerendo a realização de diligências com vista ao apuramento da verdade dos factos e alegando as suas razões, imperioso será concluir que uma norma que permita a aplicação de qualquer tipo de sanção disciplinar sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas se apresenta necessariamente como violadora da Constituição.

68. E embora não tenha tratado – pelo menos não é do nosso conhecimento - especificamente do direito ao contraditório após a produção de prova complementar no processo disciplinar, sempre o Tribunal Constitucional tem defendido que o direito ao contraditório implica que o arguido deve ser colocado em posição de conhecer e discutir todos os elementos probatórios que possam influenciar a decisão, incluindo aqueles que surjam em momento posterior à acusação inicial.

69. Como referido no Acórdão n.º 659/2006, no proc. n.º 637/06: “(…) este Tribunal também tem sublinhado que a reconhecida inexigibilidade de estrita equiparação entre processo contra-ordenacional e processo criminal é conciliável com “a necessidade de serem observados determinados princípios comuns que o legislador contra‑ordenacional será chamado a concretizar dentro de um poder de conformação mais aberto do que aquele que lhe caberá em matéria de processo penal” (Acórdãos n.º 469/97 e 278/99). No primeiro acórdão referido acrescentou‑se que “porventura, um desses princípios, comuns a todos os processos sancionatórios, que mais constrições imporá ao legislador será, desde logo, por directa imposição constitucional, o da audiência e correlativa defesa do arguido, inseridos num desenvolvimento processual em que o princípio do contraditório deverá ser mantido, como forma de complementar a estrutura acusatória, que não dispositiva, da actuação dos poderes públicos”, sublinhando que esses princípios são “imediatamente aplicáveis (…) logo na fase administrativa do processo contra‑ordenacional, por exigência do n.º 8 [hoje n.º 10] do artigo 32.º da Constituição” (…).”

70. Com efeito, quando a Jurisprudência Constitucional é chamada a pronunciar-se sobre normas relativas à disciplina militar, é colocado particular enfoque às garantias de defesa dos militares em processos sancionatórios. E neste âmbito, o princípio do contraditório, como elemento essencial do direito de defesa, é reconhecidamente aplicável no âmbito da disciplina militar e necessariamente vigora quando é produzida prova complementar (v.g., para além dos ac.s já citados, o acórdão n.º 229/2012).

71. Deste modo, é certeira a conclusão do TCA Sul quanto à falta de audiência do arguido sobre matéria da acusação, em violação do princípio do contraditório, constituindo, por isso, uma nulidade insanável. Com o que improcede este fundamento de recurso e, assim, o mesmo integralmente.

72. Como ensinam Gomes Canotilho e Vital Moreira, dos artigos 32.º, n.º 10 e 269.º, n.º 3, da CRP, o sentido útil do direito constitucional de audiência e de defesa é o de se dever considerar essa falta ou a omissão de formalidades essenciais à defesa como implicando a ofensa do conteúdo essencial do direito fundamental de defesa, daí resultando a nulidade de procedimento disciplinar (cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, p. 841).

73. Uma nota final para se deixar estabelecido que não é objeto do presente recurso a apreciação e qualificação do comportamento dos militares da Marinha descrito nos autos. Como delimitado supra, o âmbito do recurso interposto respeita exclusivamente à apreciação da validade dos atos praticados no processo disciplinar em causa, sob a égide do direito fundamental à defesa, consagrado nos art.s 32.º, n.º 10. Processo disciplinar este que não observou a disciplina jurídica aplicável, inquinando o procedimento disciplinar e o(s) ato(s) punitivo(s) consequente(s), tudo como melhor demonstrado supra (em síntese: impedimento do oficial instrutor, falta de prova de comunicação aos arguidos dos direitos e deveres que lhes assistiam em sede de processo disciplinar, inobservância das regras atinentes ao direito de audiência e defesa no que concerne a matéria constante da acusação, não tendo sido observado o contraditório quanto a diligências complementares de prova, indeferimento de prova testemunhal indicada pela defesa sem fundamento válido).

III.ii.ii. DO RECURSO SUBORDINADO:

74. Preliminarmente impõe-se referir que o recurso subordinado, previsto no art. 633.º do CPC, pode ser interposto pela parte vencida relativamente às questões em que a decisão lhe foi desfavorável e, com exceção dos casos em que o recurso principal não venha a ser julgado por vicissitudes formais (o que não é o presente caso), a apreciação do recurso subordinado é sempre obrigatória para o Tribunal de Recurso.

Assim, conhecendo do mesmo:

A) DA VIOLAÇÃO DO DIREITO A CONHECER E CONTRADITAR A SANÇÃO APLICÁVEL

75. Defendem os aqui Recorrentes que o acórdão recorrido errou ao não ter declarado inválido o ato punitivo com fundamento na violação do direito de audiência e defesa dos arguidos, com fundamento em não lhes ter sido facultada a possibilidade de discutir a pena que se pretendia aplicar-lhes, violando o disposto nos art.s 32.º, n.º 10 e 269.º, n.º 3 da CRP, diretamente aplicáveis (arts. 17.º e 18.º da CRP), e o princípio do processo equitativo, que supõe o contraditório pleno.

76. Os AA. e ora Recorrentes invocaram a violação do direito de audiência e defesa, na vertente segundo a qual nunca, nem na acusação nem no relatório final nem em peça alguma do procedimento foram chamados a discutir a sanção aplicável. Neste capítulo escreveu-se no acórdão recorrido:

“(…) por se tratar de um ilícito disciplinar cometido no seio militar, o legislador expressamente optou por não ser o instrutor do PD a propor a pena a aplicar, mas sim a entidade decisora a escolher (em função da sua competência e dos dados concretos de cada PD) a pena a aplicar: cfr. alíneas 1 a 57, sobretudo alíneas 38, 39 e 41 supra; art. 30º e art. 64° n.° 2 do RDM.

Não existindo assim uma correspondência entre infração e pena e entre um facto que consubstancie uma violação concreta de um dever e sua sanção, ou seja, não tendo o princípio da tipicidade das penas a mesma intensidade em sede de direito disciplinar militar do que tem em sede de direito criminal: cfr. alíneas 1 a 57, sobretudo alíneas 38, 39 e 41 supra; e corretamente citados em sede de Oposição e, bem assim, de Contestação o Acórdão do TCAN, de 2012-11-22, proferido no Proc. 00691I10.4BECBR e os Acórdãos do STA 2006-02-22 (Rec. 219/05) e de 2004-11-11 (Rec. 957/02).

Por outro lado, e tal como bem se refere no parecer da assessoria militar, com o qual neste segmento do cúmulo jurídico se concorda e, por isso, se transcreve com inteira aplicação ao caso: "... o legislador no art. 30.º do RDM decidiu não individualizar nem discriminar as sanções a aplicar perante cada um dos deveres militares violados. Assim, a argumentação dos requerentes colide com o art. 30.º O do RDM pelo que não existindo a possibilidade de se operar o cúmulo jurídico no regime disciplinar militar, como é próprio do direito criminal, não assiste razão aos requerentes...”.

77. Tratando-se de um ilícito disciplinar cometido no seio militar, vigora um regime disciplinar especial, o qual é regulado por legislação própria (RDM) e que não contende com os demais regulamentos disciplinares existentes no nosso ordenamento. O que se justifica, entre outras razões, pela importância que a disciplina e os diversos deveres militares assumem enquanto traves-mestras da instituição castrense, e a relação profundamente hierarquizada que existe entra as diferentes categorias de militares das Forças Armadas.

78. Nessa medida, as disposições da LGTFP onde se prevê a individualização ou discriminação disciplinares, por referência dos factos aos deveres funcionais violados e às penas aplicáveis, prevendo a correspondência de cada uma das penas aplicáveis ao tipo de infrações disciplinares (artigos 184.º a 188.º - em que existem elementos descritivos do tipo), não têm correspondência com o que sucede no n.º 1 do artigo 30.º do RDM. Nesse, o legislador deixou ao critério da entidade decisora (e não ao oficial instrutor) o domínio de escolha sobre a pena a aplicar, não existindo assim uma correspondência “exata” entre infração e pena e entre um facto que consubstancie uma violação concreta de um dever e a sua sanção [“As penas aplicáveis pela prática de infracção disciplinar são, por ordem crescente de gravidade, as seguintes: a) Repreensão; b) Repreensão agravada; c) Proibição de saída; d) Suspensão de serviço; e) Prisão disciplinar”].

79. Sendo que o art. 39.º do RDM, dispõe sobre a escolha e medida das penas, do seguinte modo:Na escolha da pena a aplicar e na medida desta atender-se-á, segundo juízos de proporcionalidade: a) Ao grau da ilicitude do facto; b) Ao grau de culpa do infractor; c) À responsabilidade decorrente da categoria e posto, e à antiguidade neste, do infractor; d) À personalidade do infractor; e) À relevância disciplinar da conduta anterior e posterior do infractor; f) À natureza do serviço desempenhado pelo infractor; g) Aos resultados perturbadores na disciplina; h) Às demais circunstâncias em que a infracção tiver sido cometida, que militem contra ou a favor do infractor.”

80. Por outro lado, os tribunais administrativos já deixaram estabelecido que “o art. 30º do Regulamento de Disciplina Militar, aprovado pela Lei Orgânica n.º 2/2009, de 22.07 (aplicável à situação dos autos), não viola o princípio da tipicidade das infrações consagrado no art. 29.º, n.ºs 1 e 3 da CRP” (cfr. o ac. do TCA Norte de 22.11.2012 e jurisprudência nele citada, i.a. o ac. deste STA de 23.09.2010, proc. n.º 058/10).

81. Deste modo, transpondo para a situação concreta em análise, o regime próprio da disciplina militar comete ao oficial instrutor do processo disciplinar dar conta que os arguidos ficariam sujeitos a uma das penas disciplinares previstas no n.º 1 do artigo 30.º do RDM, incumbindo, depois, à autoridade decisora, em sede de despacho punitivo, fixar e graduar a respetiva pena a aplicar, nos termos e segundo as regras previstas nos artigos 39.º, 44.º e 106.º do RDM.

82. Significa isto, considerando o regime disciplinar especial aqui vigente, que a decisão recorrida é de manter, improcedendo este fundamento do recurso.

B) DA VIOLAÇÃO DO DIREITO À PRODUÇÃO DE PROVA (NA PARTE EM QUE HOUVE DECAIMENTO)

83. Sustentam, também, os aqui Recorrentes que se verifica erro de julgamento por incorreta aplicação dos art.s 269.º, n.º 3 da CRP e 103.º, n.º 2 do RDM, ao terem sido indeferidos inquirições de testemunhas, sem fundamento legal, restringindo o direito de defesa dos arguidos, o que constitui nulidade insuprível (art. 78.º, n.º 1, alínea c) do RDM). Em causa estão as testemunhas indicadas na conclusão L) das alegações de recurso e a matéria aí discriminada.

84. A este propósito, o que foi dito pelo tribunal a quo foi o seguinte:

De acordo com o bem invocado poder-dever de seleção do oficial instrutor, este pode ao abrigo das disposições regulamentares disciplinares aplicáveis, efetivamente, em despacho fundamentado recusar a produção de prova que se mostre impertinente e dilatória no caso concreto: cfr. alínea 1 a 57 supra; art. 94° e art. 103° ambos do RDM.

Ora, no caso em apreço, atentos os pedidos formulados em sede de defesa, e as justificações apresentadas para a recusa da produção de tais provas - designadamente, os bem invocados argumentos de impertinência, dilação, oneração e mesmo de inexequibilidade prática - o oficial instrutor recusou acertadamente: o pedido de julgamento disciplinar público (audiência pública); o pedido de reconstituição dos factos; a prova pericial e a prova testemunhal, exceção feita à prova testemunhal que de seguida se referirá: cfr. alíneas 1 a 57 supra; art. 94° e art. 103° ambos do RDM.

85. Entendeu-se, portanto, no acórdão recorrido que a prova testemunhal havia sido validamente indeferida, por remissão para as justificações para o efeito apresentadas, com exceção da requerida inquirição do COMNAV VALM PP e do CZMM CMG NN.

86. Neste conspecto a razão está do lado dos Recorrentes. Com efeito, lida a alegação recursória (p. 22 a 38 do recurso), nesta – como já o havia sido anteriormente – vêm identificadas as testemunhas, explicada a sua razão de ciência e é indicada a factualidade sobre a qual se pretendia o seu depoimento.

87. E atendendo a esses mesmos elementos, que aqui nos inibimos de reproduzir por economia do texto, mas que constam expressos da aludida conclusão L), julga-se assumir pertinência a afirmação dos Recorrentes quando dizem, para justificar a necessidade da produção da prova testemunhal requerida que “[é] absolutamente manifesto que os artigos em apreço incluem um conjunto de factos relevantíssimo para a defesa dos Autores aqui Recorrentes, quer no que diz respeito ao que ocorreu antes dos acontecimentos (avarias graves, saídas abortadas), quer ao que sucedeu imediatamente antes dos mesmos (inundações), quer quanto ao que sucedeu durante os acontecimentos (comportamento dos oficiais, designadamente do Comandante e da Oficial imediato, bem como à forma como as coisas se passaram), bem como ao que se passou depois (apagamento de provas nos dias posteriores)”.

88. A factualidade aqui em referência não é irrelevante para o processo disciplinar, nem, muito menos, para a determinação da sanção disciplinar e sua medida.

89. O mesmo é dizer que, no que se refere à prova testemunhal requerida, o despacho do instrutor, datado de 19.01.2024, incorre em violação de lei quando considera que as inquirições não seriam de atender, “por se entender as mesmas como dilatórias, impertinentes, desnecessárias” (38 dos factos assentes). Só o seriam, diremos nós, se a factualidade de base não tivesse nexo com o evento em causa ou se as testemunhas fossem inábeis para prestar o depoimento pretendido; o que não ocorre.

90. Deste modo, foi violado o direito de audiência de defesa consagrado no artigo 269.º, n.º 3, da CRP, e, bem assim, o artigo 103.º, n.º 2, do RDM, impedindo-se os Autores de fazerem prova de factos fundamentais para a sua defesa, ao indeferir-se a prova testemunhal requerida.

91. Procede, assim, o recurso nesta parte, devendo revogar-se a sentença no segmento correspondente que julgou válida a dispensa da produção de prova testemunhal, com as assinaladas exceções, ficando o ato afetado por violação de lei derivado da falta de produção da prova testemunhal oportunamente requerida.

92. Extrai-se da conclusão L) do recurso subordinado que os Recorrentes se insurgem contra o entendimento subscrito pelo tribunal a quo quanto à impertinência e/ou desnecessidade da realização de diligência de reconstituição dos factos (ponto 20 e s.) e de prova pericial ao navio (ponto 27 e s.).

93. O TCA Sul concluiu que “no caso em apreço, atentos os pedidos formulados em sede de defesa, e as justificações apresentadas para a recusa da produção de tais provas — designadamente, os bem invocados argumentos de impertinência, dilação, oneração e mesmo de inexequibilidade prática - o oficial instrutor recusou acertadamente: o pedido de julgamento disciplinar público (audiência pública); o pedido de reconstituição dos factos; a prova pericial (…).”

94. O instrutor não se encontra obrigado a aceitar todos os requerimentos probatórios na pendência da instrução. De acordo com o princípio do inquisitório, exerce um poder-dever de seleção, de acordo com o seu julgamento, das diligências requeridas perante os critérios relevância, oportunidade e conveniência para o procedimento disciplinar, conforme se extrai dos n.ºs 2 e 4 do artigo 103.º do RDM, atendendo, ainda, às diligências efetuadas e recolha de provas perpetrada pelo próprio para efeito da instrução do processo, nos termos do artigo 94.º do RDM.

95. O pedido de reconstituição dos factos ocorridos no dia 11.03.2023 no NRP ... com a presença de toda a guarnição, incluindo os arguidos, e submetidos às condições meteorológicas existentes à data, foi entendida pelo oficial instrutor como impertinente e dilatória, para além de inexequível.

96. Este meio de prova autónomo, consistente na reconstituição do facto, típico do processo penal (art. 150.° do Código de Processo Penal), consiste na reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo.

97. Ora, a pretendida reconstituição, considerando o vasto acervo documental e os depoimentos das testemunhas, para os fins do processo disciplinar, não se apresenta como imprescindível à descoberta da verdade material.

98. Os aqui Recorrentes não questionam a cronologia dos factos, não questionam que lhes foi dada uma ordem de serviço ou de comando e que a mesma foi incumprida – se legitimamente ou se ilegitimamente não cabe aqui de cuidar -, nem se questiona que a formatura ocorreu no cais e não no navio, nem sequer se pretende resolver alguma dúvida quanto ao número de agentes intervenientes, nem quanto à autoria das condutas. E não havendo dúvida relativamente a esse circunstancialismo, a reconstituição dos factos pretendida não se apresentava como necessária.

99. Nessa medida, aceita-se o juízo formulado pela ora Recorrida quando oportunamente indeferiu a sua realização por a considerar impertinente ou desnecessária.

100. No que se refere à prova pericial, sustentam os Recorrentes que a existência de um documento produzido pelo serviço competente da Marinha, na sequência de inspeção ao navio, não justifica o indeferimento da peritagem requerida no âmbito disciplinar. Alegam a falta de fiabilidade do documento produzido, apontando a sua parcialidade. Mais alegam que, precisamente, o Ministério Público solicitou aos Autores aqui Recorrentes a apresentação de quesitos para realizar a peritagem ora em causa, no âmbito do inquérito crime n.º 43/23...., que corre no DIAP ... (... Secção) contra os Autores por participação da Marinha e por estes factos.

101. Pois bem, em relação a este último argumento, para além de, como já por inúmeras vezes se aludiu, existir uma distinta natureza do processo penal e do processo disciplinar, com fins a prosseguir também distintos ao nível da sanção a aplicar, certo é que esta (novel) matéria não consta da factualidade assente e por isso não poderá ser conhecida. Ademais, a circunstância de se realizar determinada prova no processo penal e não se produzir meio de prova equivalente no processo disciplinar, mesmo estando em causa os mesmos agentes e os mesmos factos, não determina a invalidade dos atos praticados no processo disciplinar.

102. O que importa verificar é se a requerida prova pericial, tal como foi requerida, poderia, ou não, ter sido indeferida como o foi.

103. Neste capítulo alega a Recorrida que:

Quanto à recusa do pedido de prova pericial, concretizado pela inclusão de um perito designado pela defesa para inspecionar o navio, este deveu-se, essencialmente, conforme já anteriormente clarificado, ao facto de já ter sido efetuada uma inspeção técnica ordenada pela Superintendência do Material (Direção de Navios), do qual emergiu o devido relatório, traduzindo-se numa produção antecipada de prova, cf. artigo 419.º do CPP, subsidiariamente aplicável ao caso em apreço, justificada com o receio de vir a tornar-se difícil, senão impossível, a sua realização a posteriori e nas mesmas condições. // E acresce que, ao contrário do pretendido pelos Recorrentes, sempre seria inadmissível a inclusão de peritos externos à Marinha, pois, tratando-se de um ramo das Forças Armadas, e ante as missões que lhes são cometidas, isso acarretaria riscos para a segurança nacional, que sempre se impõem salvaguardar.

104. A perícia requerida, à partida, não se mostra descabida, tanto mais que em causa estava, também, as condições de navegabilidade do navio.

105. No entanto, como provado, existe documentação elaborada pelo serviço competente da Marinha – a Direção de Navios –, com relatório produzido acerca das condições em que se encontrava o navio. E em sede de contraditório é sempre possível refutar os factos e as conclusões constantes do mesmo relatório, se tal se justificar.

106. Como também foram admitidos no processo disciplinar documentos com registos das avarias, reparações e substituições de material e inoperacionalidades do navio, como resulta patente da factualidade levada ao probatório no ponto em 35 supra e aí discriminada.

107. Significa isto que, bem considerando ainda que é à autoridade pública que compete dirigir o processo disciplinar e que nesse âmbito goza de discricionariedade, não se pode concluir que foi inválida a decisão de indeferir a perícia requerida, tendo esta sido considerada uma diligência inútil e, sobretudo, dilatória.

108. Assim, quanto a estes fundamentos do recurso, improcede o mesmo.

C) DA VIOLAÇÃO DAS REGRAS DO CONCURSO DE PENAS

109. Os Recorrentes imputam erro de julgamento ao acórdão recorrido na apreciação que faz da alegada violação das regras do concurso de penas que correspondem ao princípio geral de direito sancionatório, acolhido no artigo 44.º, nº 1, do RDM, segundo o qual só pode ser aplicada uma pena disciplinar “por cada infracção ou pelas infracções acumuladas que devam ser apreciadas num só processo”.

110. Alegam que para aplicação da pena única, impõe-se previamente determinar as penas aplicáveis a cada uma das infracções acumuladas (art. 44.º, n.º 3, do RDM), sendo que, compulsado o relatório final – documento n.º 4 junto aos autos de PC - é manifesto não ter sido apurada a sanção a aplicar a cada uma das infracções a fim de se fazer o cúmulo.

111. Na verdade dispõe o art. 44.º do RDM, sob a epígrafe “singularidade das penas” que:

1 - Não pode aplicar-se mais de uma pena disciplinar por cada infracção ou pelas infracções acumuladas que sejam apreciadas num só processo.

2 - Deve observar-se o disposto no número anterior nos casos de infracções apreciadas em mais de um processo, quando apensados.

3 - Quando um militar tiver praticado várias infracções disciplinares, a sanção única a aplicar tem como limite mínimo a sanção determinada para a infracção que for considerada mais grave.

112. Resulta deste artigo que a sanção disciplinar única para infrações em concurso depende de dois pressupostos: o primeiro, que se trate de um caso de acumulação de infrações (n.º 1); o segundo, que as infrações disciplinares têm de ser apreciadas num único processo ou em processos apensos (n.º 2).

113. Trata-se do acolhimento da regra da unidade da sanção disciplinar para determinados casos de concurso de infrações, a qual pressupõe, naturalmente, a existência de pluralidade de infrações.

114. Mas será que isso significa a realização necessária de um cúmulo jurídico destinado à aplicação de sanção única, tal como este é consagrado no direito penal?

115. O Tribunal Constitucional teve já oportunidade de responder negativamente a essa pergunta no acórdão n.º 635/2015, em que, embora por reporte ao direito penitenciário, abordou os sistemas sancionatórios disciplinares em geral. E aí se destacou a distanciação para o regime do concurso de crimes que dá lugar a cúmulo jurídico de penas (artigos 77.º e ss. do CP). Nesse aresto afirmou-se que:

Em primeiro lugar, aos olhos da Constituição, não é confundível o domínio dos ilícitos e sanções criminais com outros tipos de ilícito, designadamente o disciplinar. A Lei Fundamental distingue-os, desde logo, ao nível do âmbito da competência exclusiva reservada à Assembleia da República. Esta reserva abrange a definição dos crimes, penas e respetivos pressupostos, bem como o respetivo processo, no primeiro caso (artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição), limitando-se a abranger o regime geral de punição das infrações disciplinares (artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da Constituição).

Esta diferenciação reflete-se também na densidade constitucional dedicada a cada um dos regimes sancionatórios, sendo que apenas o ilícito criminal e as sanções de natureza criminal se encontram extensamente regulados na Constituição ao condensar, no artigo 29.º, o essencial do regime constitucional da lei criminal. Não se ignora que os princípios ali definidos para o direito criminal propriamente dito (crimes) têm sido estendidos, na parte pertinente, aos demais domínios sancionatórios, como o do ilícito disciplinar – é o caso do princípio da legalidade, da não retroatividade, da aplicação retroativa da lei mais favorável e da necessidade e proporcionalidade das sanções. Mas esta extensão não nega a diferenciação dos domínios, antes a confirma e, nessa medida, sufraga a ausência de identidade normativa entre medidas penais e medidas disciplinares”.

116. O cúmulo jurídico é uma “construção normativa, de matriz dogmática, com a finalidade de fundir numa pena única, as penas de prisão em que o mesmo agente foi condenado por ter cometido uma multiplicidade de crimes que, entre si, estão numa relação juridicamente determinada” e configura uma “opção de política criminal, o legislador português adotou, para o concurso efetivo de crimes, um sistema no qual o tribunal aplica a cada infração cometida pelo arguido a pena que, em concreto, demanda a prevenção e a culpa permite e, de seguida – ou posteriormente (quando o concurso é conhecido depois) -, fundindo as penas parcelares decretadas, sintetiza as consequências jurídicas do concurso numa pena única ou conjunta” (cfr. o ac. do STJ de 15.12.2021, proc. n.º 5402/20.3T8LRS.S1).

117. Opção do legislador que não se encontra vertida no procedimento disciplinar geral, nem no processo disciplinar militar. Aliás, no RDM o art. 44.º não prescreve, como é feito no art. 77.º, n.º 1, do CP, que “[n]a medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”. O que se consagra é que, em caso da prática de várias infracções disciplinares, a sanção única a aplicar terá como limite mínimo a sanção determinada para a infracção que for considerada mais grave (art. 44.º, n.º 3).

118. De resto, como contra-alegado, quando o n.º 3 do artigo 44.º se refere a uma sanção determinada para a infração mais grave, e sendo ela, no caso vertente, a pena de suspensão de serviço, sempre seria despiciendo expor qual seria, na ótica do órgão decisor, a pena a aplicar se o nível de gravidade dessas infrações fosse inferior.

119. Razões que determinam a improcedência do recurso, também, nesta parte.

D) DA VIOLAÇÃO DOS ELEMENTOS (DITOS) VINCULANTES DO ATO PUNITIVO E DA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA GARANTIA AO MÍNIMO DE SUBSISTÊNCIA

120. A questão da alegada violação dos elementos vinculantes do ato sancionatório vem suscitada neste recurso na conclusão (Q) e seguintes, nos seguintes termos:

“(Q) O artigo 39.º do RDM consagra os elementos vinculantes que, “segundo juízos de proporcionalidade”, devem ser atendidos e estar presentes na decisão punitiva, aos quais por força da aplicação conjunta do artigo 10.º do RDM e do artigo 71.º do Código Penal, se junta - porquanto veio a ser aplicada pena de suspensão, com efeitos na remuneração dos Recorrentes - o elemento “condições pessoais do agente a sua situação económica”;

(R) Não foram apurados nem apreciados factos nem relativamente à “personalidade do infractor”, nem relativamente aos “resultados perturbadores da disciplina” – alíneas d) e g) do artigo 39.º do RDM relativamente a qualquer dos aqui 11 Recorrentes;

(S) Tampouco se vislumbra que tivessem sido apurados e apreciados factos relativos às condições pessoais do agente e a sua situação económica” dos Recorrentes, sendo certo que dessa ponderação dependia a aplicação da sanção, em concreto;

(T) Porquanto só assim se lograria aplicar a medida adequada tendo em conta a finalidade da prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitiam indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente;

(U) Pelo que, entendendo como entendeu, violou o acórdão a quo violou os artigos 39.º do RDM e 71.º do Código Penal (aplicável por remissão do artigo 10.º do RDM)”.

121. Como se observa, está em causa a inexistência de apuramento das “condições pessoais do agente e à sua situação económica”, de factos relativos à “personalidade do infrator” e de factos relativos aos “resultados perturbadores da disciplina” (alíneas d) e g) do artigo 39.º do RDM); isto relativamente a qualquer dos aqui onze Recorrentes. O que, na sua tese, prejudica o juízo de proporcionalidade a efetuar e que é inerente à determinação e aplicação da sanção disciplinar.

122. Juízo que é associado à violação do princípio constitucional da garantia ao mínimo de subsistência, por na determinação da sanção tal princípio não ter sido sequer considerado. Alegam que “a sanção disciplinar substitutiva com a garantia a um mínimo de subsistência condigna não se encontra nem direta nem indiretamente assegurada, tendo em conta que a afetação ocorre em medida correspondente a dois terços do valor mensalmente abonado, independentemente do montante concretamente percebido.

123. Ou seja, movemo-nos já na área da determinação da medida concreta da sanção disciplinar e da avaliação dos elementos tidos em consideração que concorrem para essa mesma determinação. Isto é, a sanção disciplinar aplicada será inválida porque na determinação da sua medida concreta, não foram considerados, de todo ou em parte, para além das condições objetivas de que depende a aplicação da sanção, condições subjetivas ou pessoais do arguido que influenciam, por um lado, o seu grau de culpa e, por outro lado, a medida concreta da pena.

124. Ora, para além de não ter existido pronúncia judicial prévia acerca da proporcionalidade da sanção aplicada, a este propósito o que se disse na decisão recorrida foi o seguinte:

Aqui chegados importa ter presente que os requerentes invocam ainda: (i) a violação dos critérios vinculantes do ato punitivo (v.g. ad. 39° do RDM); (ii) a violação do princípio constitucional da garantia ao mínimo de subsistência e (iii) a irreparabilidade ou facto consumado e o não prejuízo do interesse público com a suspensão judicial da eficácia do ato suspendendo.

Ora, como antes se decidiu, ocorreu in casu a convolação da providência cautelar no processo principal havendo, em consequência, preterição do conhecimento da providência cautelar requerida: (…)

Significa isto que nesta sede incumbe apreciar somente o mérito da questão trazida pelos requerentes à ação principal, nada havendo já a apreciar quanto aos concretos requisitos do requerido decretamento da providência cautelar que no conhecimento destes vícios vem invocada, ficando tal conhecimento prejudicado pelo facto de o objeto do processo já não ser a concessão de uma tutela cautelar meramente provisória, mas verdadeiramente a apreciação do próprio mérito da ação: cfr. alíneas 1 a 57 supra; art. 121° e do art. 7°- A ambos do CPTA, na redação que conferida pelo DL n° 214-G12015, de 2 de outubro.

Donde, o conhecimento dos vícios acima enunciados mostra-se, pois, prejudicado face à decidida antecipação do juízo da causa principal: cfr. art. 121° e do art. 7°-A ambos do CPTA; vide art. 608° n.° 2 do CPC.

125. Na verdade, a decisão recorrida expressamente considerou o conhecimento destas questões como prejudicado, na sequência e em razão da convolação processual que operou.

126. Porém, nesta parte, o recurso subordinado interposto alheou-se desta pronúncia judicial, não a impugnando especificadamente, designadamente imputando-lhe eventual erro de julgamento pela conclusão tirada pelo tribunal a quo.

127. Ora, os recursos jurisdicionais são meios de impugnar as decisões judiciais. E se os Recorrentes não criticam os fundamentos em que se baseou a decisão recorrida, neste caso a decisão que considerou prejudicado o conhecimento dos apontados vícios, o recurso não pode obter provimento.

128. Assim, esta questão – que é uma questão de mérito da decisão – que se mostra objetivamente excluída das conclusões, tem de se considerar definitivamente decidida não podendo delas conhecer-se em recurso (cfr., i.a., o ac. deste STA de 17.06.2020, proc. n.º 586/15.5BELRA, e vasta jurisprudência aí recenseada).


E) DA VIOLAÇÃO DO DIREITO A UM JULGAMENTO DISCIPLINAR PÚBLICO

129. Por fim, defendem os Recorrentes que, ao contrário do entendimento tido no processo disciplinar e acolhido pelo tribunal a quo, o direito a um julgamento público é aplicável ao caso, conforme jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), e que a sua ausência constitui, também, uma causa autónoma de nulidade.

130. Concluem (conclusões N e O do recurso) que:

(N) É jurisprudência constante do TEDH-TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS HUMANOS – que é obrigatória para o Estado Português e suas instituições, civis ou militares - que a exigência de tal também se coloca nos processos disciplinares que apliquem sanções que venham a afectar direitos ou obrigações de carácter civil ou que pretendam aplicar sanções que pela sua natureza, severidade ou gravidade devam ser consideradas de natureza penal, o que é o caso, porquanto não só eram potencialmente aplicáveis sanções que poderiam ir até à prisão (disciplinar) por um período de até 30 dias (artigo 31.º, n.º 1, do RDM), como sanções de reforma compulsiva e separação do serviço;

(O) Forçoso se torna, pois, concluir que os actos punitivos trazidos à sindicância do Tribunal a quo, são também nulos por violação do direito – que foi igualmente denegado aos arguidos, aqui Recorrentes – à audiência pública por eles oportunamente requerida, e logo indeferida”.

131. O preceituado no artigo 6.º da CEDH dispõe sobre o direito a um processo equitativo e consagra que:

1. Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela. O julgamento deve ser público, mas o acesso à sala de audiências pode ser proibido à imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo, quando a bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática, quando os interesses de menores ou a protecção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou, na medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando, em circunstâncias especiais, a publicidade pudesse ser prejudicial para os interesses da justiça.

132. Este princípio encontra acolhimento na Constituição da República Portuguesa que estabelece no seu artigo 209.º que “[a[]s audiências dos tribunais são públicas, salvo quando o próprio tribunal decidir o contrário, em despacho fundamentado, para salvaguardar a dignidade das pessoas e da moral pública ou para garantir o seu normal funcionamento”. Na lei ordinária, avulta o Código de Processo Civil e o Código de Processo Penal, os quais contêm regras de efetivação e desenvolvimento do princípio da publicidade da audiência. Na verdade, se os tribunais administram a justiça em nome do povo, isso implica que o mesmo povo conheça como a justiça é aplicada.

133. De acordo com a lei adjetiva, o julgamento público impõe-se, como regra, nos processos civis e nos processos-crime. De igual modo, no processo contencioso administrativo a audiência final é publica, em decorrência da aplicação supletiva da legislação processual civil determinada, genericamente, pelo art. 1.º do CPTA e, especialmente, pelo art. 91.º, n.º 2, do mesmo diploma.

134. É verdade que o Tribunal de Estrasburgo tem alargado a aplicabilidade do princípio da audiência pública ao processo disciplinar, integrando-se no direito de defesa e a um processo equitativo, como resulta, nomeadamente, do acórdão DIENNET c. FRANCE, de 26.09.1995, citado pelos Recorrentes.

135. No entanto, o alcance do decidido pelo TEDH carece de ser interpretado, desde logo, à luz do caso concreto e das premissas fixadas no próprio acórdão. Vejamos o que foi escrito (transcrevendo-se o original):

Ensuite, lorsque le Conseil d'Etat statue en cassation sur les décisions de la section disciplinaire du conseil national de l'ordre des médecins, il ne peut passer pour un "organe judiciaire de pleine juridiction", notamment parce qu'il n'a pas le pouvoir d'apprécier la proportionnalité entre la faute et la sanction: le caractère public des audiences devant lui ne suffit donc pas à combler la lacune constatée au stade de la procédure disciplinaire (voir notamment, mutatis mutandis, l'arrêt Albert et Le Compte précité, p. 16, par. 29, et p. 19, par. 36)”.

136. Ou seja, o Tribunal concluí que o n.º 1 do artigo 6.º tinha sido violado, porque, fundamentalmente, o Conselho de Estado Francês decide em regime de “cassação” sobre as decisões administrativas (no caso do Conselho Regional da Ordem dos Médicos de l'Ille-de-France) e, deste modo, não pode ser considerado como um órgão de plena jurisdição. Pelo que não tem o poder de conhecer apreciar da proporcionalidade entre a infração e a sanção aplicada e, como dito no texto do acórdão, a audiência pública perante o Conselho de Estado não chega para suprir as lacunas a este nível existentes no processo disciplinar.

137. Ora, não é isso que sucede na lei portuguesa, onde o paradigma processual junto dos tribunais administrativos – os materialmente competentes para o efeito –, é o do contencioso de plena jurisdição (e não de mera anulação). O juiz administrativo goza de poderes de plena jurisdição, como decorre inequivocamente dos art.s 2.º, 3.º, 37.º, 50.º, 51.º, n.º 4, 64.º, 66.º e 71.º, todos do CPTA.

138. Pelo que a justificação determinante para a violação do direito à prova e, concretamente, por não ter sido assegurada no processo – em todo o processo, nas fases administrativa e judicial – uma audiência pública contraditória e com produção de prova, não é transponível, não colhe, à luz da legislação nacional.

139. Os Recorrentes citam, também, o Acórdão da “Grande Chambre”, de 6-11-2018, caso RAMOS NUNES DE CARVALHO E SÁ c. PORTUGAL (Queixas nº 55391/13, 57728/13 e 74041/13), relativo aos casos de juízes portugueses sancionados disciplinarmente pelo Conselho Superior da Magistratura. O TEDH sublinhou a natureza fundamental do direito de cada um a ver a sua causa examinada publicamente, de que o direito a uma audiência constitui um dos aspetos. Mas essa jurisprudência é para o caso presente inconsequente e refere-se em particular à ausência de audiência pública perante o Supremo Tribunal de Justiça (o foco está na garantia do processo justo e equitativo, inclusive nas instâncias de recurso).

140. O Acórdão do TEDH tem como objeto a ausência de audiência pública e caráter limitado do controle exercido pelo STJ sobre as decisões disciplinares do CSM. Como dele consta: “(δ) A motivação das decisões do Supremo Tribunal de Justiça - A secção do contencioso do S.T.J. pronunciou-se dentro dos limites da competência que lhe é definida pela legislação nacional e pela sua própria jurisprudência e fundamentou suficientemente as suas decisões, respondendo a todas as questões apresentadas em sede de recurso. No entanto, a falta de audiência em relação a elementos de facto fundamentais, e que foi justificada pela natureza limitada dos seus poderes, impediu a secção de se pronunciar sobre esses mesmos elementos. Isto porque, como também explicitado no texto do acórdão: i) “o processo foi realizado por escrito”, ii) este “não teve oportunidade de expor oralmente a sua tese sobre as questões factuais, as sanções ou quaisquer outras questões legais que entendesse pertinentes” e, iii) “apesar de estar em jogo não apenas a credibilidade da requerente mas também a de testemunhas cruciais, o CSM não ouviu quaisquer testemunhas”.

141. Sem embargo do que se vem de dizer, a possibilidade de realização de uma audiência pública no âmbito disciplinar foi acolhida pelo legislador em alguns estatutos profissionais e/ou regulamentos disciplinares. É o que sucede, por exemplo, com o Estatuto da Ordem dos Advogados e com o Regulamento Disciplinar da Ordem dos Advogados, onde a realização de audiência pública vem prevista, respetivamente, no art. 161.º (e 178.º, n.º 2) e no art. 4.º, n.º 5. Como é o que sucede na magistratura do Ministério Público, em que o magistrado arguido pode requerer a realização de audiência pública para a apresentação da defesa, conforme previsto no art. 259.º do Estatuto do Ministério Público. Como, do mesmo modo, ocorre com os juízes, encontra-se a possibilidade de realização de audiência pública prevista no art. 120.º-A do Estatuto dos Magistrados Judiciais.

142. Porém, não é o que sucede no direito sancionatório militar, em que o RDM não prevê essa faculdade. Como contra-alegado, no RDM não existe qualquer previsão legal que admita a possibilidade de formação de um órgão para presidir à audiência pública para discussão da prova no âmbito do cometimento de infrações disciplinares militares.

143. E não é o que sucede no procedimento disciplinar comum, regulado na Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, sucessivamente alterada), como decorre dos seus art.s 194.º e s., em que não se contempla a audiência pública,

144. O que, quanto a nós, decorre do art. 32.º, n.º 10 e 269.º, n.º 3, da Constituição é a salvaguarda nos processos sancionatórios de natureza disciplinar, ao que aqui releva, do direito de audição do arguido, do direito à prova e da possibilidade de contraditar a prova produzida a seu desfavor. Em suma, pretende-se garantir a audiência e os seus direitos de defesa.

145. O Tribunal Constitucional já o afirmou no Acórdão n.º 396/2021, no proc. n.º 376/21:

Na verdade, conforme se dá nota no Acórdão n.º 592/2015, as garantias de audiência e defesa, na dimensão decorrente do princípio do contraditório, «compreendem necessariamente, não apenas a possibilidade de o arguido influir na decisão sancionatória através do oferecimento de prova dos factos que alega em sua defesa, mas também de intervir ativamente na sua produção, assim como, em geral, a possibilidade de contradizer as provas que contra si sejam produzidas». E, ainda segundo o mesmo aresto:

«O direito de participação do arguido em processo sancionatório – “right to be heard, caracterizador do “due process” – não se cinge ao oferecimento de prova. Enquanto princípio intimamente conexionado com a ideia de Estado de direito democrático (artigos 2.º e 9.º, alínea b), da Constituição), como salientado nos Acórdãos n.º 1010/96, 499/2009 e 413/2011, exige que se assegure ao arguido a possibilidade de ser ouvido sobre todos os factos, sobre todas as provas e sobre todas as questões jurídicas a ponderar na decisão final, o que “também exige que, se surgirem elementos novos na fase de defesa do arguido ou na fase de decisão, seja dada ao arguido a possibilidade de sobre eles se pronunciar, contraditando-os, infirmando-os ou negando-lhes relevância ou atendibilidade, se necessário com oportunidade de produção de prova complementar” (Acórdão n.º 499/2009).».

146. Pelo motivos que vimos de expor, também aqui se não verifica a inconstitucionalidade material arguida pelos Recorrentes, por violação do art. 20.º da Constituição.

147. Razões que determinam a improcedência do recurso, também, nesta parte.



148. Anexa-se sumário, elaborado de acordo com o disposto no n.º 7 do artigo 663.º do CPC.

IV. DECISÃO

Pelo exposto, acordam em conferência os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal Administrativo em:

- Negar provimento ao recurso da Marinha Portuguesa; e

- Conceder parcial provimento ao recurso subordinado, julgando verificado o vício de violação de lei, também, quanto ao indeferimento da prova testemunhal requerida, na parte aqui impugnada, e revogando, nessa parte, o acórdão recorrido.

Custas no recurso independente pela Recorrente, que decaiu integralmente; custas no recurso subordinado por ambas as partes, fixando-se o decaimento dos Recorrentes e da Recorrida, respetivamente, em 4/5 e 1/5.

Notifique.

Lisboa, 30 de abril de 2025. - Pedro José Marchão Marques (relator) - Cláudio Ramos Monteiro - Ana Celeste Catarrilhas da Silva Evans de Carvalho.