Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo | |
Processo: | 0451/13.0BELRS |
Data do Acordão: | 12/17/2019 |
Tribunal: | 2 SECÇÃO |
Relator: | FRANCISCO ROTHES |
Descritores: | CONTRA-ORDENAÇÃO PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO |
Sumário: | I - A unidade do sistema jurídico, que constitui o mais importante dos três factores hermenêuticos a que se refere o n.º 1 do art. 9.º do Código Civil e que decorre do princípio da coerência valorativa ou axiológica da ordem jurídica, não permite descortinar razão para que o regime da prescrição das contra-ordenações tributárias seja subtraído à regra geral consagrada no n.º 3 do art. 121.º do CP e no n.º 3 do art. 28.º do RGCO. II - A regra do n.º 3 do art. 28.º do RGCO aplica-se ao procedimento contra-ordenacional tributário directamente, por força do n.º 3 do art. 33.º do RGIT, ou, pelo menos, subsidiariamente, ex vi da alínea b) do art. 3.º do RGIT. |
Nº Convencional: | JSTA000P25354 |
Nº do Documento: | SA2201912170451/13 |
Data de Entrada: | 09/30/2019 |
Recorrente: | AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA |
Recorrido 1: | A....., LDA |
Votação: | UNANIMIDADE |
Aditamento: | |
Texto Integral: | Recurso jurisdicional da decisão proferida no processo de contra-ordenação com o n.º 451/13.0BELRS
1. RELATÓRIO 1.1 O Representante da Fazenda Pública junto do Tribunal Tributário de Lisboa recorre para o Supremo Tribunal Administrativo da decisão por que a Juíza daquele Tribunal, julgando procedente o recurso judicial da decisão administrativa de aplicação da coima em processo de contra-ordenação tributária deduzido pela sociedade acima identificada (adiante Arguida ou Recorrida), determinou o arquivamento dos autos com fundamento em prescrição do procedimento contra-ordenacional. 1.2 Com o requerimento de interposição do recurso, o Recorrente apresentou as respectivas alegações, que resumiu em conclusões do seguinte teor: «A. A questão que nos propomos discutir contende com a aplicação a título subsidiário do limite prescricional previsto art. 28.º, n.º 3, do RGCO ao RGIT por via da alínea b), do seu art. 3.º para efeitos do procedimento contra-ordenacional, admissibilidade sobre a qual, sublinhe-se, temos fundadas reservas sobre a sua admissibilidade legal. B. Analisada a sentença e demais acórdãos relativamente ao recurso à aplicação subsidiária do n.º 3 do art. 28.º, RGCO a sensação que fica, com todo o respeito por opinião diversa, é que basta a mera remissão imediata e automática para a alínea b), do art. 3.º do RGIT sem que a sua admissibilidade tenha sido escrutinada, como deveria (pelo menos não se mostra expresso), ponderando os vários elementos da interpretação, eventuais princípios do direito penal e processo penal que norteiam os regime das infracções tributárias; os eventuais motivos de prevenção geral ou especial que de algum modo pudessem suportar a posição sufragada (que não encontrámos), e bem assim, sem que tenha sido identificado um bem/interesse público suficientemente forte que sustentasse a limitação quase até à sua erosão dos efeitos desejados pelo legislador do RGIT quando enunciou todo um conjunto factos interruptivos e suspensivos do procedimento contra-ordenacional. C. Na perspectiva histórica e sistemática da interpretação jurídica tendo esta norma como instrumento é possível afirmar que nunca houve por parte do legislador do RGIT a vontade em tutelar eventuais bens ou interesses para efeitos contra-ordenacionais porquanto tendo o Regime Geral da Contra-Ordenações sido aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/1982 de 27 de Outubro, entrando em vigor em momento anterior ao próprio Regime Geral das Infracções Tributárias que se viu aprovado pela Lei n.º 15/2001 de 5 de Junho (quase 20 anos depois) sabendo, como sabia, da existência dessa norma, entendeu, ainda assim, não a transpor para o próprio regime das infracções tributárias que criou de raiz. D. Dir-se-á mais. Se, à semelhança do direito penal e do direito processual penal, o fim do direito contra-ordenacional e do seu procedimento visa a protecção de certos bens jurídicos e a contra-ordenação é o instrumento de realização dessa tutela, há que estabelecer uma correlação entre a contra-ordenação e a necessidade de prevenir a prática de futuros ilícitos de mera ordenação social, impondo-se que sejam ponderadas razões de prevenção geral e especial. E. Diferentemente da prevenção especial que centra a sua atenção sobretudo na decisão (coima), na sua medida; nos seus efeitos, de que são seus corolários, nomeadamente, os regimes de dispensa e atenuação especial da coima, a suspensão provisória do processo, etc. … – o prazo de prescrição do procedimento contra-ordenacional e a sua relação com o catálogo de factos suspensivos e interruptivos contendem objectivamente com a efectiva tutela contra-ordenacional dos bens que se visam proteger constituindo manifestações da própria prevenção geral. F. A prossecução da tutela contra-ordenacional está subordinada ao princípio da legalidade e tem um fim último e imediato: o apuramento da responsabilidade contra-ordenacional decorrente da prática de um ilícito de mera ordenação social que não pode ser menosprezado nem colocado em crise. G. É imperioso concluir que o recurso a este tipo de normas deve ser realizado de forma muito restrita pois que invariavelmente condicionam a efectivação da responsabilidade contra-ordenacional colocando em causa os efeitos desejados pelo legislador quando introduziu outros institutos como sejam a interrupção e a suspensão da prescrição, in casu, do procedimento contra-ordenacional H. A própria justificação dada pelo tribunal de primeira instância quando afirma e entende que: “O objectivo da norma é estabelecer um prazo máximo findo o qual o procedimento contra-ordenacional já não pode ter lugar, apesar da ocorrência de eventos interruptivos” – revela um lapso intelectual clamoroso e, até, anacrónico, assente na ideia de que não obstante a componente ética que os caracteriza os preceitos normativos podem ter como única finalidade a mera limitação do efeito produzido por outra ou outras normas jurídicas. I. Com efeito, não é a norma subsidiária (ou seja, a que supostamente está lá apenas para suprir uma lacuna) quem define ou determina o alcance do próprio regime legal. Por outro lado, do ponto de vista da interpretação jurídica, é legalmente insustentável no direito sancionatório reconhecer que há normas vigentes sem carga ético-normativa, sem princípios, bens jurídicos ou interesses que devam ser tutelados. J. Sublinhe-se, aliás, que as normas previstas no art. 33.º e 69.º do RGIT visam também elas interesses e bens juridicamente tutelados. Pode-se até chegar à conclusão que aplicação de uma norma restringe ou amplia (por hipótese) o efeito de outra ou outras normas, mas não podemos afirmar que foi esse o objectivo. Quanto muito o que podemos é defender que há um princípio ou um interesse que se sobrepondo a outros normativamente tutelados limita os efeitos jurídicos destes últimos. K. Doutro modo a conclusão formulada pelo tribunal a quo levar-nos-ia a pensar, ao arrepio do art. 9.º, n.º 3, do Código Civil que, na fixação do sentido e alcance da lei, afinal, o legislador do RGIT não consagrou a solução mais acertada nem soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. L. Nunca perdendo de vista o desejo não manifestado pelo legislador de transpor para o RGIT a norma extraída do n.º 3, do art. 28.º, RGCO, transposição que necessariamente se exigiria perante as prioritárias razões de efectiva tutela contra-ordenacional, impunha-se, por outro lado, que a mesma superasse no plano ontológico a própria justiça material que fundamenta a fixação de um determinado prazo de prescrição do procedimento contra-ordenacional e o elenco dos plurais e necessários factos suspensivos e interruptivos do procedimento contra-ordenacional. M. Inexistindo por vontade do legislador nenhum interesse/bem jurídico/princípio que se sobreponha às razões que estão por detrás da instituição de um prazo prescricional do procedimento contra-ordenacional nem dos factos juridicamente relevantes para efeitos de suspensão ou interrupção desse prazo, o lapso intelectual que apontámos ao tribunal a quo afigura-se-nos como compreensível, pois que também ele, como nós, não logrou identificar nenhum valor jurídico que justificasse os demais princípios ou razões que norteiam os arts. 33.º e 69.º, ambos do RGIT, limitando-se a “ver” naquela norma um meio para limitar o efeito jurídico de normas que inclusivamente se mostram sistematicamente inseridas no próprio regime das infracções tributárias. N. Existindo razões que justifiquem a necessidade dessa limitação, tal só será possível mediante opção legislativa, por aditamento ao próprio art. 33.º do RGIT. Doutro modo, histórica, teleológica e sistematicamente não é possível afirmar que fosse desejo do legislador, ou sentisse ele essa necessidade, de cumprir esse desiderato no seio do Regime das Infracções Tributárias. O. A aplicação subsidiária do art. 28.º, n.º 3, do RGCO ao RGIT afigura-se-nos, pois, ilegal. Ao fazê-lo, o tribunal a quo incorreu em erro de julgamento violando, nomeadamente, no plano interpretativo o disposto no art. 9.º, n.º 3, do Código Civil, e, no plano sancionatório os princípios da prossecução da acção contra-ordenacional e da legalidade, desrespeitando as regras de prevenção geral tuteladas pelos arts. 33.º e 69.º, ambos do RGIT. P. Não podendo a sentença recorrida sustentar-se no fundamento jurídico que decorre da aplicação subsidiária do art. 28.º, n.º 3, do RGCO impõe-se a sua substituição por acórdão que julgando procedente o presente recurso mantenha na Ordem Jurídica a decisão administrativa de fixação da coima declarando como não prescrito o procedimento contra-ordenacional. Termos em que, concedendo-se provimento ao recurso, deve a decisão ser revogada e substituída por acórdão que julgue como não verificada a prescrição do procedimento contra-ordenacional». 1.3 O recurso foi admitido, para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo. 1.4 A Recorrida apresentou contra-alegações, com conclusões do seguinte teor: «I- A Recorrida não pode deixar de ficar estupefacta com os fundamentos e conclusões do recurso perpetrado pela Recorrente, não concordando in totum com o mesmo. II- A lei é clara e simples, refere o artigo 3.º do Regime Geral das Infracções Tributárias que: III- Pelo que não existem dúvidas que, uma vez que o Regime Geral das Infracções Tributárias nada refere quanto a suspensão e interrupção dos procedimentos contra-ordenacionais, é aplicável, quanto a tais figuras jurídicas, o Regime Geral do Ilícito de Mera Ordenação Social (RGIMOS). IV- Pelo que merece total colhimento a sentença perpetrada pelo Tribunal a quo. V- O RGIT, além de instituir um prazo geral de prescrição de cinco anos, estabelece, ainda, um prazo de prescrição especial, idêntico ao prazo de caducidade do direito a liquidação da prestação tributária para os casos em que a infracção depende dessa liquidação, como são, designadamente, os casos previstos nos artigos 114.º, 118.º e 119.º, n.º 1 do RGIT. VI- O prazo está sujeito à ocorrência de eventos suspensivos e/ou interruptivos, no entanto, e não obstante a verificação dos mesmos, a prescrição do procedimento ocorrerá sempre que desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade, à luz do artigo 28.º, n.º 3, do RGIMOS. VI- O objectivo da norma é estabelecer um prazo máximo findo o qual o procedimento contra-ordenacional já não pode ter lugar, apesar da ocorrência de eventos interruptivos, neste sentido, cfr. acórdão do TCA Sul de 04.02.2016, processo n.º 08304/14, disponível em www.dgsi.pt. VII- No caso sub judice, considere-se que a coima em apreço, punida pelo artigo 114.º do RGIT, depende da liquidação do imposto em falta, seja no tipo de ilícito, seja na graduação, termos em que é aplicável o prazo de prescrição de 4 anos, equivalente ao prazo de caducidade do direito a liquidação, conforme se encontra disposto nos artigos 33.º, n.º 2 do RGIT e 45.º, n.º 1 da LGT). VIII- A infracção ocorreu a 15 de Fevereiro de 2010. IX- Verificou-se a causa de suspensão prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 27.º-A do RGIMOS, cujo prazo máximo legal a considerar é de 6 meses, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito. X- É de concluir que o prazo de prescrição, acrescido de metade e do tempo de suspensão (correspondente a 6 anos e meio), contados desde a data de infracção, já decorreu, pelo que o procedimento contra-ordenacional se encontra prescrito nos presentes autos, desde 15 de Agosto de 2016. XI- A prescrição do procedimento extingue a eventual responsabilidade da aqui Recorrida. XII- Assim, resulta a saciedade que a sentença proferida pelo Tribunal a quo deverá manter-se in totum, com fundamento na prescrição do procedimento contra-ordenacional. XIII- O recurso apresentado pela Recorrente mais não representa do que um encapotamento ou tentativa de desviar a atenção das entidades superiores de um problema muito grave, nomeadamente a inércia da Recorrente que levou à prescrição do procedimento contra-ordenacional. XIV- A tese apresentada pela Recorrente não faz qualquer sentido lógico, pois a aplicação do RGIMOS implica um acréscimo ao prazo prescricional previsto no RGIT, nomeadamente através das figuras da interrupção e da suspensão, o que no caso em concreto implicaria a prescrição do procedimento num momento até anterior ao momento em que a prescrição do procedimento efectivamente ocorreu. XV- Ou pretende a Recorrente referir que uma vez intentado o procedimento, o mesmo poderia correr ad aeternum? O que violaria os mais basilares princípios previstos na Constituição da República Portuguesa, nomeadamente o princípio da segurança jurídica e do direito à justiça. XVI- Não pode a Recorrente recorrer ao argumento de que a prescrição dos procedimentos leva a uma violação dos fins das penas. XVII- Primeiro porque a Recorrente não pode afirmar inequivocamente que prosseguimento do procedimento levaria a uma condenação da Recorrida. XIX- Segundo se a própria Recorrente tivesse tomado as devidas diligências e realizado os seus actos com maior celeridade, não teria o procedimento prescrito. XX- De onde resulta, à saciedade que embora se perceba o esforço hercúleo para justificar o injustificável, mais não resta do que se considerar como improcedente o recurso apresentado pela Recorrente por não provado e assim manter-se in totum a decisão perpetrada pelo Tribunal a quo». 1.5 Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo e dada vista ao Ministério Público, a Procuradora-Geral-Adjunta emitiu parecer no sentido de que seja negado provimento ao recurso, com a seguinte fundamentação: «[…] A douta decisão recorrida mostra-se, quanto a nós, correcta. Fez correcta análise e interpretação dos factos e correcta se mostra a sua subsunção jurídica, mostrando-se devidamente fundamentada e apoiada em pertinente jurisprudência do TCA/S que a propósito cita, não sendo passível de quaisquer censuras. 1.6 Colhidos os vistos dos Conselheiros adjuntos, cumpre apreciar e decidir. * * * 2. FUNDAMENTAÇÃO 2.1 DE FACTO A Juíza do Tribunal Tributário de Lisboa efectuou o julgamento da matéria de facto nos seguintes termos: «1. Em 13.08.2012, foi instaurado, no Serviço de Finanças de Loures 1, contra a Recorrente, o processo de contra-ordenação n.º 1520201206076661, por falta de entrega de imposto exigível conjuntamente com a respectiva declaração periódica - cfr. fls. 3 dos autos; 2. Em 17.09.2012, no âmbito do processo a que se refere a alínea antecedente, foi proferido despacho de fixação de coima, no montante de € 13.547,96, acrescido de custas, no montante de € 76,50, pela prática da infracção cominada no artigo 114.º, n.º 2 e 26.º, n.º 4 do RGIT, cujo teor, na parte com interesse para a causa, aqui se transcreve: 3. Em 18.10.2012, o presente recurso foi apresentado junto do Serviço de Finanças - cfr. fls. 18 dos autos. Nada mais foi provado com interesse para a decisão da causa». * 2.2 DE DIREITO 2.2.1 A QUESTÃO A APRECIAR E DECIDIR O Chefe do Serviço de Finanças de Loures 1 aplicou à sociedade ora Recorrente uma coima de € 13.547,96, imputando-lhe a prática de uma infracção prevista e punida pelos arts. 27.º, n.º 1, e 41.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (CIVA), 114.º, n.º 2, e 26.º, n.º 4, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), por falta de entrega da prestação tributária – IVA do 4.º trimestre de 2009, do montante de € 61.581,67 –, que deveria ter sido entregue até 15 de Fevereiro de 2010 e o foi apenas em 22 de Setembro de 2011. 2.2.2 DA APLICAÇÃO DO ART. 28.º, N.º 3, DO RGCO ÀS CONTRA-ORDENAÇÕES TRIBUTÁRIAS A prescrição do procedimento contra-ordenacional é um instituto que se encontra previsto no art. 27.º do RGCO e, relativamente às contra-ordenações tributárias, no art. 33.º do RGIT. Em síntese, significa que o decurso do tempo extingue o procedimento contra-ordenacional; o Estado, por efeito do não exercício do direito de perseguir o agente de uma contra-ordenação em tempo considerado útil, perde esse direito. * * * 3. DECISÃO Em face do exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, em negar provimento ao recurso. Sem custas (art. 66.º do RGIT e art. 94.º, n.º 3, do RGCO). * Lisboa, 17 de Dezembro de 2019. - Francisco Rothes (relator) - Neves Leitão - Nuno Bastos. |