Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo | |
| Processo: | 061/24.7BALSB |
| Data do Acordão: | 10/17/2024 |
| Tribunal: | PLENO DA SECÇÃO DO CT |
| Relator: | FERNANDA ESTEVES |
| Descritores: | UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA PRESSUPOSTOS |
| Sumário: | O recurso para uniformização de jurisprudência pressupõe a existência de duas decisões (diversas) sobre a mesma questão de direito. |
| Nº Convencional: | JSTA000P32751 |
| Nº do Documento: | SAP20241017061/24 |
| Recorrente: | A..., LDA. |
| Recorrido 1: | AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA |
| Votação: | UNANIMIDADE |
| Aditamento: | |
| Texto Integral: | Acordam no Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
1. Relatório A..., LDA. vem, ao abrigo do disposto no artigo 152.º, n.º 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) e do artigo 25.º, n.º2 do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/1, interpor recurso para o Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, da decisão arbitral proferida em 5 de Março de 2024, no processo n.º 382/2023-T, por alegada oposição com o acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 10 de Março de 2016, tirado no processo n.º 00101/2002.TFPRT.2.1. Alegou, tendo concluído da seguinte forma: 1.ª- A douta decisão arbitral recorrida, de 05.03.2024, e o acórdão fundamento do Tribunal Central Administrativo Norte, de 10.03.2016, Proc. 00101/2002.TFPRT.21, publicado in www.dgsi.pt, decidiram contraditoriamente sobre mesma a questão fundamental de direito; - V. Supra n.ºs 1 a 2; 2.ª - No caso vertente é manifesto que a Autoridade Tributária e Aduaneira deveria ter procedido ao reconhecimento da isenção de IRC no ano de 2017, com a consequente anulação das liquidações, considerando que o princípio da tutela da confiança visa salvaguardar os sujeitos passivos contra actuações injustificadamente imprevisíveis da Autoridade Tributária e Aduaneira. - V. Supra n.ºs 3 a 4. Não foram apresentadas contra - alegações. O Exmo. Procurador Geral Adjunto junto deste Tribunal emitiu parecer, concluindo que “porque não há sequer pluralidade de decisões (apenas há decisão na DAR), nem identidade das circunstâncias de facto a considerar (apenas há fixação dos factos na DAR), quanto à “atuação geradora de confiança”, e falham assim esses dois pressupostos, de verificação necessária, de admissibilidade do presente recurso, o Ministério Público é de parecer que seja proferido douto acórdão que não admitia o presente recurso por oposição entre a decisão arbitral recorrida e o acórdão-fundamento (RJAT, art. 25.º, n.º 2, arts. 152.º, n.º 2, do CPTA, e 284.º, n.º 2, do CPPT).” Cumpre decidir. 2. Fundamentação 2.1. Matéria de Facto 2.1.1. A decisão arbitral recorrida deu como provados os seguintes factos: a) A Requerente dedica-se à atividade de ensino particular mediante exploração de dois estabelecimentos de que é titular, o Externato B... e o Externato C... . b) O Externato B... funciona ao abrigo do Alvará n.º ..., emitido em 25.10.1968, pela então Inspecção-Geral do Ensino Particular, do Ministério da Educação, que o autoriza a ministrar cursos de ensino não superior. c) O Externato C... funciona ao abrigo da Autorização Definitiva n.º ..., concedida por despacho de 25.06.1986, que o autoriza a ministrar cursos de 1.º Ciclo e Jardim de Infância. d) Desde a sua fundação no ano de 1967, a Requerente tem beneficiado de uma situação factual de não tributação em sede de IRC. e) Ao tempo, no Portal das Finanças correspondente à página referente a “Outros dados de atividade” da Requerente, no campo relativo ao “regime de tributação em IRC” constava a seguinte descrição “Isenção temporária desde 01.01.1989”. f) Nas declarações Modelo 22 e outras que a Requerente foi apresentando, desde o ano de 1967, sempre foi invocada a referida isenção de IRC, sem qualquer reação por parte da administração. g) A AT reconheceu, a favor da Requerente, isenções fiscais em sede de IMT com base no seu enquadramento como pessoa coletiva com estatuto de utilidade pública. h) Em 29.10.2022, a Requerente alterou dados relativos ao seu cadastro fiscal, em razão em razão da modificação da sua estrutura societária, sem que, também então, tenha sido questionado o facto de estar isenta de IRC. i) Em 7 de Fevereiro de 2002, a Direção Regional de Lisboa do Ministério da Educação havia emitido um documento afirmando que o Externato B...“goza das prerrogativas das pessoas coletivas de utilidade pública”. j) A realização da ação inspetiva que deu origem à liquidação impugnada, classificada de interna, decorreu depois de ter sido efetuada uma inspeção externa aos exercícios de 2013 a 2016, na qual se verificou que o SP, tendo enquadrado os rendimentos no regime de isenção definitiva, não reunia os requisitos para que possa estar enquadrado no artigo 10º do CIRC. k) A Requerente reclamou graciosamente da liquidação que ora impugna, a qual foi indeferida. l) A Requerente procedeu ao pagamento da quantia liquidada. 2.1.2. O acórdão fundamento deu como provados os seguintes factos: A) A impugnante foi constituída como instituição particular de solidariedade social (IPSS), conforme publicação no Diário da República, III série, n.° 256, de 5 de Novembro de 2002 [fls. 77 do processo administrativo (P.A.) apenso aos autos]; B) A impugnante não tem fins lucrativos, vive dos donativos dos associados, bem como das comparticipações dos utentes a quem presta serviços no âmbito social e ainda de subsídios dos organismos adiante indicados em G), destinando-se as receitas a fazer face às despesas de funcionamento na luta contra a exclusão social - v. declaração do Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social, de 9 de Outubro de 2001, a fls. 112 dos autos, os estatutos da impugnante a fls. 189 a 206 dos autos e os depoimentos das testemunhas B…, assistente social e Coordenadora na impugnante desde Junho de 2004, P…, Presidente da Câmara Municipal de…, uma das entidades que estiveram presentes na fundação da impugnante e F…, técnica oficial de contas (TOC) da impugnante; C) Tendo construído o Centro Comunitário de…, comparticipado em 60% pelo PIDAC e financiado pelo Montepio Geral mediante um empréstimo no montante de esc. 40 000 000$00 (v. fls. 101 a 111 e depoimentos de P…, Presidente da Câmara Municipal de…, uma das entidades que estiveram presentes na fundação da impugnante, e de F…, TOC da impugnante); D) Pelo ofício n.° 119268, de 27 de Dezembro de 1994, que se dá por reproduzido, a Segurança Social comunicou à impugnante que esta não reunia as condições para adquirir o estatuto de IPSS (fls. 77 do P.A.; cfr. no mesmo sentido a declaração passada pelo Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social do Porto em 9 de Outubro de 2001, junta a fls. 112 dos autos); E) E que para o conseguir a impugnante podia “optar por alterar/rectificar o acto de constituição, por forma a que os sócios fundadores sejam unicamente entidades particulares para o que será de celebrar nova escritura pública para este efeito” (último § do ofício n.° 119268 cit.); F) Entretanto, o Centro Distrital de Solidariedade e Segurança Social do Porto emitiu, em 9 de Outubro de 2001, declaração atestando que “a instituição [ora impugnante] tem as suas actividades licenciadas através dos alvarás n.º 177 e 233, pelo que é considerada de utilidade social, nos termos do n.° 2 do artigo 6.° do Decreto Lei 133-A/97, de 30 de Maio” (fls. 112 dos autos); G) Apesar de não ser considerada IPSS, a impugnante recebeu acordos de cooperação e verbas do PIDAC como se o fosse, bem como subsídios de organismos públicos, tais como o Centro Regional de Segurança Social, com os acordos dos Centros de Convívio, A.T.L., Jardins de Infância, Programa de Luta Contra a Pobreza, Centro de Emprego das “Univas, cursos de formação”, fundos comunitários, quando do Integrar (fls. 72 a 86 e depoimentos das testemunhas B…, assistente social e Coordenadora na impugnante desde Junho de 2004, P…, Presidente da Câmara Municipal de…, uma das entidades que estiveram presentes na fundação da impugnante e F…, técnica oficial de contas (TOC) da impugnante); H) Aquando da entrega da declaração de início de actividade na Repartição de Finanças de Paços de Ferreira, acompanhada dos estatutos e Diário da República, foi explicado ao funcionário receptor em exercício o que a impugnante ia fazer, a actividade que exercia, o seu objecto social e de onde vinham as verbas que iria receber (depoimento de F…, TOC da impugnante que entregou pessoalmente a declaração de início de actividade, e C…, escriturário no Gabinete de Contabilidade F…, que faz o tratamento contabilístico da impugnante); I) Foram os serviços fiscais quem fez o enquadramento da impugnante no regime normal trimestral do IVA (depoimento de F…, TOC da impugnante que entregou pessoalmente a declaração de início de actividade); J) Depois da entrega da declaração de início de actividade, a impugnante passou a receber as declarações de IVA (depoimento de F…, TOC da impugnante que entregou pessoalmente a declaração de início de actividade); K) Tendo sempre recebido reembolsos trimestrais de IVA, com pedidos de garantias bancárias por parte dos serviços fiscais, as quais foram entregues e posteriormente canceladas (fls. 34 a 71 dos autos e depoimentos de B…, assistente social e Coordenadora na impugnante desde Junho de 2004, M…, funcionário administrativo na impugnante desde finais de 1998, que recebe declarações de IVA desde essa altura, e F…, TOC da impugnante); L) Nos relatórios de aprovação de contas e orçamentos que eram enviados à Segurança Social estava sempre considerado o IVA recebido e o que se previa receber documentos de fls. 72 a 86 dos autos e depoimento de F…, TOC da impugnante); M) A impugnante foi notificada pelos serviços do IVA para pagar o montante de esc. 67 289 042$00, correspondente a IVA dos anos de 1996 a 2001 e respectivos juros compensatórios a que se referem as notas de liquidação de fls. 7 a 33, cujo teor se dá por reproduzido; N) Tendo as liquidações de IVA e respectivos juros compensatórios referentes ao ano de 1996 ocorrido em 13 de Novembro de 2001 (fls. 93 e 94) e as correspondentes notificações em 11 de Dezembro de 2001 (fls. 95 a 99 do P.A.).” 2.2. O direito 2.2.1.O presente recurso para uniformização de jurisprudência, interposto ao abrigo do artigo 25.º do RJAT, tem como fundamento a oposição entre a decisão arbitral recorrida e o indicado acórdão fundamento do TCA Norte “quanto à mesma questão fundamental de direito”. De acordo com o n.º 2 do invocado artigo 25.º, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão deduzida que ponha termo ao processo arbitral é susceptível de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, com outra decisão arbitral ou com acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo ou pelo Supremo Tribunal Administrativo. E, por força do disposto no n.º 3 do mesmo preceito legal, ao recurso é aplicável com as necessárias adaptações, o regime do recurso para uniformização de jurisprudência previsto no artigo 152.º do CPTA. Um dos requisitos de admissão deste recurso, cujo objectivo é resolver a existência de um conflito de jurisprudência, é, portanto, a existência de uma contradição sobre a mesma questão fundamental de direito entre o invocado acórdão do TCA Norte e a decisão arbitral impugnada. Quanto à “mesma questão fundamental de direito”, é jurisprudência consolidada do Pleno desta Secção que: (i) a identidade da questão de direito sobre que recaíram as decisões em confronto pressupõe uma situação de facto substancialmente idêntica; (ii) não tenha havido alteração substancial na regulamentação jurídica; (iii) que a oposição decorra de decisões expressas, não bastando a simples oposição entre razões ou argumentos enformadores das decisões finais ou a invocação de decisões implícitas ou a pronúncia implícita ou consideração colateral tecida no âmbito da apreciação de questão distinta. 2.2.2.Pretende a Recorrente que as duas decisões “decidiram de forma oposta a mesma questão fundamental de direito - o princípio da tutela da confiança visa salvaguardar os sujeitos passivos contra actuações injustificadamente imprevisíveis da Autoridade Tributária e Aduaneira - uma vez que a Autoridade Tributária e Aduaneira praticou atos suscetíveis de gerar legítima confiança da Recorrente na existência do direito à isenção em sede de IRC”. Embora, como resulta da leitura da minuta de recurso, não venha indicada de forma precisa e concretizada, como deveria, quer a questão fundamental de direito quer a alegada oposição entre as duas decisões em confronto, é manifesto que, no caso em apreço, não se verificam os pressupostos do recurso para uniformização de jurisprudência. Na decisão arbitral recorrida foi julgado improcedente o pedido de anulação da liquidação de IRC - emitida na sequência de uma acção de inspecção externa aos exercícios de 2013 a 2016, na qual a Administração Tributária considerou que o sujeito passivo, tendo enquadrado os rendimentos no regime de isenção definitiva, não reunia os requisitos para ser enquadrado no artigo 10.º do CIRC -, tendo aí sido considerado, além do mais, que a liquidação impugnada não violava o princípio da confiança. Com efeito, vindo alegado pelo sujeito passivo que a liquidação impugnada violava o princípio da confiança, porquanto sempre realizou o apuramento do rendimento tributável, em sede de lucros, tendo por base o benefício associado às prerrogativas das pessoas colectivas, o tribunal arbitral julgou improcedente tal vício, por considerar, para além do mais, que a Administração Tributária não praticou um qualquer acto susceptível de gerar legítima confiança da Requerente na existência do direito à isenção. No acórdão fundamento estava em causa a sentença que julgou procedente a impugnação judicial deduzida contra liquidação adicional de IVA e juros compensatórios, tendo sido enunciado como questão a decidir a de “saber se a sentença incorreu em erro de julgamento, por ter considerado que a Administração Fiscal violou o dever de recíproca colaboração previsto no artigo 48.º do CPPT e o princípio da boa-fé”. E após referir que o princípio da tutela da confiança assume especial relevância, dado que visa, precisamente salvaguardar os sujeitos jurídicos contra actuações injustificadamente imprevisíveis daqueles com quem se relacionem, considerou, contudo, que “a factualidade assente não permite, com a amplitude necessária, verificar se estão reunidas as diversas circunstâncias que subjazem ao princípio da tutela da confiança, uma vez que o enquadramento da impugnante em regime do IVA sempre estaria acometido aos serviços da AT (cfr. quadro 10 da declaração de início de actividade: uso exclusivo dos serviços), pressupondo, previamente, que o declarante dê a conhecer à AT toda a actividade, conforme se exige nos restantes quadros da declaração, designadamente, no quadro 11 da declaração de início de actividade - daí a importância de apurar quem preencheu este quadro. Deste modo, não podendo sufragar-se, sem mais, o julgamento produzido em 1.ª instância, impõe-se anular, segundo o disposto no artigo 712.º, n.º 4 do Código de Processo Civil, a sentença, de molde a permitir que, no tribunal recorrido, sejam efectivadas as diligências probatórias que se mostrem adequadas e necessárias ao esclarecimento, mais completo possível, dos aspectos apontados como deficitariamente instruídos, no sentido de averiguar esses factos, levando os mesmos ao probatório. Há, pois, necessidade de ampliar a matéria de facto com vista a obter todos os elementos que suportem a decisão de direito, o que importa a anulação da decisão recorrida em conformidade com o disposto no artigo 712.º, n.º 4 do Código de Processo Civil.”. Daqui resulta, com evidência, que entre as duas decisões em confronto não ocorreu qualquer contradição quanto à mesma questão fundamental de direito. Para além de as situações de facto em causa nos dois casos serem distintas, a verdade é que, ao contrário da decisão arbitral, o acórdão fundamento não dirimiu a alegada questão fundamental de direito, porquanto considerou que a factualidade assente não lhe permitia verificar se o referido princípio da tutela da confiança tinha ou não sido violado e, em conformidade, anulou a sentença recorrida e determinou a baixa dos autos ao tribunal de 1.ª instância para a necessária ampliação da matéria de facto com vista a obter esses elementos. Ou seja, como bem refere o EPGA, no acórdão fundamento não há qualquer decisão sobre a existência ou inexistência, no caso, da violação do princípio da protecção da confiança legítima, nomeadamente quanto ao específico pressuposto da “actuação de um sujeito de direito que crie a confiança” (aliás, apenas poderia ser relevante para efeitos da alegada oposição uma decisão positiva, uma vez que a decisão arbitral recorrida proferiu uma decisão negativa, sobre a existência de tal pressuposto). Ora, a oposição de decisões sobre a mesma questão fundamental de direito pressupõe necessariamente a existência de duas decisões.
E isto basta para, sem mais, se concluir que não se encontram reunidos os pressupostos para o prosseguimento do recurso de uniformização de jurisprudência, uma vez que, no caso, inexistem duas decisões sobre a (alegada) mesma questão fundamental de direito. Em conclusão: O recurso para uniformização de jurisprudência pressupõe a existência de duas decisões (diversas) sobre a mesma questão de direito. 3. Decisão Assim, pelo exposto, acordam os juízes do Pleno da Secção de Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo em não tomar conhecimento do mérito do recurso. Custas pela Recorrente. Comunique-se ao CAAD. Lisboa, 17 de Outubro de 2024 - Fernanda de Fátima Esteves (relatora) - Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia - Isabel Cristina Mota Marques da Silva - Francisco António Pedrosa de Areal Rothes - Joaquim Manuel Charneca Condesso - Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos - Aníbal Augusto Ruivo Ferraz - Gustavo André Simões Lopes Courinha - Pedro Nuno Pinto Vergueiro - Anabela Ferreira Alves e Russo - João Sérgio Feio Antunes Ribeiro. |