Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo | |
Processo: | 0345/17.0BEFUN |
Data do Acordão: | 07/13/2023 |
Tribunal: | 2 SECÇÃO |
Relator: | NUNO BASTOS |
Descritores: | IRC REVOGAÇÃO REGIME ESPECIAL DE TRIBUTAÇÃO SOCIEDADE GESTORA DE PARTICIPAÇÕES SOCIAIS EFEITOS INCONSTITUCIONALIDADE |
Sumário: | Não viola a Constituição da República Portuguesa a interpretação do artigo 210.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, no sentido de que a revogação do regime previsto no n.º 2 do artigo 32.º do EBF não importa o direito à recuperação, no período imediatamente posterior, dos encargos financeiros aludidos nesta norma, suportados anteriormente e até então não deduzidos. |
Nº Convencional: | JSTA000P31243 |
Nº do Documento: | SA2202307130345/17 |
Data de Entrada: | 10/06/2022 |
Recorrente: | A..., S.G.P.S., S.A. |
Recorrido 1: | AT-RAM |
Votação: | UNANIMIDADE |
Aditamento: | |
Texto Integral: | Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
1. A..., SGPS, S.A., pessoa coletiva n.º ..., com sede no Largo ..., no ... recorreu da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal que julgou improcedente a impugnação judicial da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...90, referente ao ato de autoliquidação de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC) relativo ao exercício de 2014, efetuada na declaração de rendimentos modelo 22 apresentada para aquele ano sob o registo n.º ...5. Com a interposição do recurso apresentou alegações, que rematou com as seguintes conclusões: «(...)
A. O presente recurso vem interposto da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, no processo de impugnação judicial n.º 345/17.0BEFUN, no âmbito do qual se encontrava em discussão a legalidade da decisão de indeferimento proferida pela Autoridade Tributária e Assuntos Fiscais da Região Autónoma da Madeira, sobre a reclamação graciosa apresentada pelo ora Recorrente contra a autoliquidação do exercício de 2014; B. Em causa estava a não consideração por parte da Autoridade Tributária e Aduaneira dos encargos financeiros incorridos com a aquisição de partes de capital, que não foram deduzidos nos termos do artigo 32.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF); C. O presente recurso é dirigido ao STA, por se tratar de um recurso assente exclusivamente em matéria de direito, por considerar a Recorrente que o Tribunal a quo deu como assente toda a factualidade levada aos autos pelas partes, ao referir que “compulsados os autos, analisados os articulados e atenta a prova documental constante dos mesmos, não existem quaisquer factos com relevância para a decisão, atento o objeto do litígio, que devam julgar-se como não provados”, e compreendeu a situação de facto apresentada pelas partes. D. No entender do Tribunal a quo, os factos enunciados encontram-se comprovados pelos documentos discriminados que não foram impugnados pelas partes nem há indícios que ponham em causa a sua genuinidade e foram tidos em consideração por haverem sido articulados pelas partes ou por deles serem instrumentais. E. O Tribunal a quo decidiu pela total improcedência da impugnação judicial, rejeitando a verificação de todas as ilegalidades e inconstitucionalidades, suscitadas pelo Impugnante, ora Recorrente; F. O presente recurso incidirá sobre o erro de julgamento do Direito do Tribunal a quo, na interpretação e aplicação da lei à factualidade trazida aos autos, nomeadamente no que respeita à questão do direito que deve ser conferido ao ora Recorrente, ao abrigo dos princípios da legalidade e da justiça, após a revogação do regime legal que impedia a dedução dos encargos, a que o ora Recorrente de boa fé aderiu, a possibilidade de deduzir imediatamente após essa revogação os encargos financeiros que não contribuíram para o apuramento do rendimento tributável do Recorrente; G. No entender do ora Recorrente, a posição vertida na douta sentença ora recorrente viola de forma manifesta a Constituição da República Portuguesa (CRP), pelo que o presente recurso tem como objetivo que este Supremo Tribunal Administrativo proceda a uma melhor aplicação do direito; Senão vejamos H. A sentença recorrida viola o disposto no artigo 32.º do EBF, no art.º 51.º -C do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC), no art.º 11.º, nº 2 e 12.º n.º 3 da Lei Geral Tributária (LGT), bem como nos art.ºs 2.º e 102.º, n.º 4 e 266.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), pelo que deverá ser anulada e substituída por outra que determine a anulação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa e do ato de autoliquidação de IRC, com todas as consequências legais; I. A questão da dedutibilidade dos encargos fiscais suportados pelo Recorrente (SGPS) no ano subsequente à revogação do regime previsto no art.º 32.º n.º 2 do EBF, salvo o devido respeito, não foi bem apreendida pelo Tribunal a quo e a interpretação dada pelo Tribunal, do regime consagrado no art.º 51.º C do CIRC é violadora dos mais elementares princípios constitucionais; J. Ou seja, o entendimento do Tribunal a quo, ao interpretar – e aplicar – que a revogação do art.º 32.º do EBF e a criação do regime de participation exemption (art.º 51.º C do CIRC) no sentido de que a mesma não admite a dedução dos encargos financeiros por parte do ora Recorrente, além de violar os normativos acima mencionados, faz uma interpretação manifestamente atentatória dos princípios constitucionais da legalidade, da justiça e da segurança jurídica, bem como do princípio da tributação pelo lucro real, como veremos adiante. K. Desde logo se diga que neste aspeto, acompanhamos o voto de vencido, no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, da Veneranda Juíza Conselheira Anabela Ferreira Alves Russo, no âmbito do Processo n.º 097/19.0BALSB, datado de 20 de outubro de 2021, nomeadamente no seguinte excerto: “revogado in totum o regime especial que impedia de forma excepcional e condicionada a dedução dos encargos suportados com a aquisição de participações sociais até à alienação das mais-valias com o compromisso legal de não tributação dessas mais-valias nos termos preconizados nesse regime especial, deve ser reconhecido, ao abrigo do regime geral e dos princípios da legalidade e da justiça, ao sujeito passivo obrigado a esse regime ou a que ele de boa-fé aderiu, o direito a deduzir imediatamente após essa revogação os encargos financeiros que não contribuíram para o apuramento do rendimento tributável da Recorrente. Ou seja, deve ser reconhecido à Recorrente, o direito a que os referidos encargos financeiros sejam relevados, enquanto variação patrimonial negativa, na determinação do lucro tributável do ano para que concorreram.” – disponível em www.dgsi.pt; L. A não dedução dos encargos financeiros consistia na contrapartida encontrada pelo legislador ao benefício fiscal concedido às SGPS, relativo à não tributação das mais-valias e menos-valias apuradas por estas com a alienação de partes de capital; M. Pelo que cessando de forma permanente a possibilidade de usufruir dessa não tributação nos resultados apurados por estas sociedades com a alienação de partes de capital, ao abrigo do regime de tributação das SGPS, terá de ser reposta a igualdade tributária entre as SGPS e as demais sociedades; N. A revogação do regime com efeitos a 31 de dezembro de 2013 não estabeleceu qualquer norma de direito transitório. Nem o legislador, sob a forma de lei ou sob qualquer outra forma legal, veio disciplinar os efeitos dessa revogação no que diz respeito às participações sociais já adquiridas, cujos encargos associados às SGPS haviam visto como fiscalmente não relevado. Não há nenhuma sucessão de regimes. O que se passou foi, efetivamente, uma revogação de um regime especial sem a estipulação de qualquer norma de direito transitório; O. Em suma, revogado o regime especial que impedia de forma excecional e condicionada a dedução dos encargos suportados com a aquisição de participações sociais até à alienação das mais valias, deve ser reconhecido, ao abrigo dos princípios constitucionais da legalidade e da justiça, o direito do Recorrente de deduzir imediatamente os encargos financeiros que não contribuíram para o apuramento do rendimento coletável. Ou seja, os encargos financeiros deveriam ser relevados enquanto variação patrimonial negativa na determinação do lucro tributável, considerando até a boa-fé do Recorrente que aderiu ao referido regime; P. Atenta a revogação do regime nos termos em que foi feita, o Estado auto responsabilizou-se a extrair da revogação as consequências “normais” da nossa ordem jurídica, ou seja, a de colocar o contribuinte na situação em que ele estaria se a indedutibilidade não lhe tivesse sido imposta, tanto mais que a ela aderiu de boa-fé; Q. A materialização da revogação do referido regime deverá conceder aos encargos financeiros não dedutíveis, ao abrigo do regime de tributação das SGPS, o tratamento que lhes seria dado no pressuposto do afastamento deste mesmo regime, em consequência da não verificação dos pressupostos que lhe eram inerentes; R. O ora Recorrente, veio solicitar a dedução ao lucro tributável apurado no período de tributação de 2014 (que, no caso concreto, se veio a verificar negativo e, portanto, prejuízo fiscal) do montante de € 16.097.708,62, correspondente a encargos financeiros imputáveis a partes de capital detidas a 1 de janeiro de 2014 que, em consequência da revogação do regime de tributação das SGPS, não poderão beneficiar do regime que determinou a sua desconsideração fiscal em períodos anteriores; S. Em suma e acompanhando uma mais vez o voto de vencido da Veneranda Conselheira Anabela Ferreira Alves e Russo: “ … ao recusar a sua prestação pela revogação, nos termos em que o fez, o Estado se auto responsabilizou ou auto vinculou a extrair dessa revogação as consequências que nos são facultadas pelo ordenamento jurídico geral: colocar o contribuinte na situação em que ele estaria se a indedutibilidade não lhe tivesse sido imposta (ou a ela não tivesse aderido de boa fé). Ao revogar, nos termos em que o fez, o regime consagrado no art.º 32.º do EBF, o Estado legislador comprometeu em definitivo a aplicação do benefício a que se comprometera a conceder.” T. Sendo certo que, conforme resulta igualmente do voto de vencido: “Donde, não tendo o legislador na Lei que revogou o regime dado resposta expressa a questão, a mesma só podia resultar do conjunto de normas que no próprio EBF disciplinam esta matéria ou do artigo 12.º, n.º 3 da LGT, que determina que a lei nova apenas se aplica aos factos posteriores a sua entrada em vigor (note-se que a «norma contida no n.º 2 do artigo 31.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, no que se refere aos "encargos financeiros", constitui norma de incidência, na medida em que contribui para o apuramento do rendimento tributável da recorrente, versando variação patrimonial negativa que deixa de concorrer para a fixação do lucro tributável (... ) E, como se diz no Acórdão n.º 620/99, "a fixação da matéria coletável constitui um momento central da determinação do montante do imposto, pois influencia decisivamente o apuramento do respetivo quantum (interferindo, consequentemente, nas garantias do contribuinte). Nessa medida, consubstancia um elemento estruturante da obrigação tributária, integrando, desse modo, o núcleo fundamental do conjunto de matérias cobertas pelas normas constitucionais de âmbito fiscal". Dai decorre a sujeição de regra que influa na fixação da matéria coletável, como inegavelmente acontece com a normação alojada no n.º 2, do artigo 31.º, do EBF, ao princípio da retroatividade da lei fiscal» - acórdão do Tribunal Constitucional já citado de 9 de Janeiro de 2014)”; U. As caraterísticas peculiares dos benefícios fiscais e do seu modo de funcionamento – condicional, temporário, dinâmico e bilateral – motivam uma proteção mais intensa à confiança depositada na manutenção do benefício. De facto, se o benefício é concedido para estimular comportamentos futuros, mediante certas condições e por prazo certo, é evidente que o contribuinte que atua satisfazendo tais condições tem a esperança de vir alcançar o benefício que determinou a sua atuação; V. Conforme resulta da nossa jurisprudência: “A atividade prévia desempenhada pelo contribuinte para o gozo do benefício fiscal assume, assim, particular relevância na proteção da confiança. Para aproveitar o benefício “oferecido” pelo Estado, o contribuinte realiza antecipadamente investimentos que implicam custos financeiros, e dos quais espera ter retorno. Naturalmente que os contribuintes visam a racionalidade da gestão da sua atividade económica através da minimização dos custos comerciais, industriais, financeiros e fiscais. A sua escolha dependerá dos cálculos do capital a investir e da rentabilidade esperada dos investimentos projetados. Ora, a motivação dessa escolha não pode deixar de levar em consideração o contexto normativo tributário em que os investimentos vão ser realizados” – cfr. Acórdão proferido no Proc.º n.º 309/2018, disponível em www.tribunalconstitucional.pt; W. Em suma, no âmbito dos benefícios fiscais, os contribuintes necessitam de prever qual é o Direito que se vai aplicar à sua conduta e os seus efeitos. Assim, o Direito tem de ser estável no tempo ou, pelo menos, garantir a sua estabilidade quanto a certas condutas. Vai-se mais além da proibição da não retroatividade e do próprio respeito pelos direitos adquiridos. Exige-se que o Direito Fiscal não se altere mais rapidamente do que se alteram as condutas humanas, não podendo ser alterado no decurso de condutas humanas que contavam com a sua estabilidade; X. O princípio da conformidade dos atos do Estado com a Constituição é mais amplo que o princípio da constitucionalidade das leis. Como corolário lógico do princípio da constitucionalidade e do princípio da legalidade deve registar-se o dever da administração revogar os atos ilegais que eventualmente tenha praticado – cfr. J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 4.ª edição, pág. 246; Y. Haverá, assim, que proceder a um justo balanceamento entre a proteção das expectativas dos cidadãos decorrente do princípio do Estado de Direito democrático e a liberdade constitutiva e conformadora do legislador, também ele democraticamente legitimado, legislador ao qual, inequivocamente, há que reconhecer a licitude (senão mesmo o dever) de tentar adequar as soluções jurídicas às realidades existentes, consagrando as mais acertadas e razoáveis, o que in casu, salvo o devido respeito, não terá sido o caso; Z. A interpretação dada pelo Tribunal a quo, da revogação do regime previsto no n.º 2 do art.º 32.º do EBF e das regras de isenção consagradas no art.º 51.-C do CIRC é manifestamente violadora de diversos princípios constitucionais; AA. A revogação total e unilateral de um regime especial, nos termos em que foi feito, não pode deixar de ser devidamente sindicado. Na verdade, a indedutibilidade dos encargos financeiros estava umbilicalmente dependente da verificação de uma condição futura: a alienação das participações sociais; BB. A revogação do regime com efeitos a 31 de dezembro de 2013, não estabeleceu qualquer norma de direito transitório. Nem o legislador, sob a forma de lei ou sob qualquer outra forma legal, veio disciplinar os efeitos dessa revogação no que diz respeito às participações sociais já adquiridas, cujos encargos associados as SGPS haviam visto como fiscalmente não relevados. Como é evidente, a ora Recorrente cumpriu “o pacto do regime” não deduzindo os encargos financeiros. E não ingressou, nem vai ingressar, no futuro, na sua esfera jurídica, o benefício que lhe foi reconhecido pelo mesmo regime; CC. Em suma, revogado o regime especial que impedia de forma excecional e condicionada a dedução dos encargos suportados com a aquisição de participações sociais até à alienação das mais valias, deve ser reconhecido, ao abrigo dos princípios da legalidade e da justiça, o direito do Recorrente de deduzir imediatamente os encargos financeiros que não contribuíram para o apuramento do rendimento coletável. Ou seja, os encargos financeiros deveriam ser relevados enquanto variação patrimonial negativa na determinação do lucro tributável, considerando até a boa-fé do Recorrente que aderiu ao referido regime; DD. Nesta conformidade, conforme resulta do voto de vencido, acima mencionado, se o regime por ter sido revogado e a Circular, por ter deixado de produzir efeitos, não servem para sustentar a dedutibilidade, também, pelas mesmas razões, não podem servir para sustentar a indedutibilidade. De facto, citando o voto de vencido: “… não existindo norma transitória e produzindo o novo regime apenas efeitos para os factos ocorridos após 1.1.2014, qual o fundamento legal que suporta a afirmação de que a não dedutibilidade dos encargos suportados com as aquisições em causa será afastada caso se venha no futuro a verificar que a situação não preenche as condições de isenção das mais-valias que eventualmente venha a gerar? …. Não o logramos encontrar. Nem sequer no novo regime instituído encontra suporte … já que a regra neste e para os encargos financeiros suportados a partir da sua entrada em vigor (1-1-2014) com a aquisição de participações sociais é a regra da dedutibilidade eventualmente cumulada com a isenção de tributação de mais-valias”; EE. Acresce ainda que, atenta a revogação do regime nos termos em que foi feita, o Estado auto responsabilizou-se a extrair da revogação as consequências “normais” da nossa ordem jurídica, ou seja, a de colocar o contribuinte na situação em que ele estaria se a indedutibilidade não lhe tivesse sido imposta, tanto mais que a ela aderiu de boa-fé; FF. Através do princípio da boa-fé pretende-se uma medida de confiabilidade, de esperança, de confiança vinculativa da atuação administrativa; GG. O princípio do Estado de Direito concretiza-se através de elementos retirados de outros princípios, designadamente, o da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos. Este princípio encontra-se expressamente consagrado no artigo 2º da CRP e deve ser tido como um princípio politicamente conformado que explicita as valorações fundamentadas do legislador constituinte; HH. O princípio da legalidade aponta para um princípio de âmbito mais abrangente: o princípio da juridicidade da administração pois todo o direito – todas as regras e princípios vigentes na ordem jurídico constitucional portuguesa – serve de fundamento e é pressuposto da atividade da Administração – cfr. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Edição Revista, pág. 799; II. O princípio da justiça – aponta para a necessidade de a Administração pautar a sua atividade por certos critérios materiais ou de valor, constitucionalmente plasmados, como, por exemplo, o princípio da dignidade da pessoa humana … da efetividade dos direitos fundamentais … sem esquecer o princípio da igualdade e da proporcionalidade. A observância destes princípios materiais de justiça permitirá à Administração a obtenção de uma “solução justa” relativamente aos problemas concretos que lhe cabe decidir - cfr. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, obra citada, pág. 802; JJ. Sendo certo que deve ser respeitado um princípio pelas “boas práticas” na elaboração das normas jurídicas, e de acordo com um princípio de determinabilidade das normas jurídicas, as mesmas devem proporcionar um conhecimento preciso aos destinatários, um critério claro de decisão à Administração e um parâmetro de controlo aos Tribunais; KK. Afigura-se seguro afirmar que os sujeitos passivos sob a forma de SGPS tinham a legítima expetativa de usufruir do regime de tributação que lhes foi atribuído, e devido a essa mesma expetativa de aplicação do regime procederam, anualmente, à desconsideração dos encargos financeiros, de acordo com o método estipulado pela Circular n.º 7/2004; LL. Neste contexto, explica CASALTA NABAIS que “[o] princípio da segurança jurídica, ínsito na ideia do Estado de direito democrático constante do art. 2.º da Constituição, impõe-se fundamentalmente ao legislador, limitando este em dois sentidos: 1) na edição de normas retroativas (desfavoráveis), e 2) na livre revogabilidade e alterabilidade das leis fiscais (favoráveis)” (sublinhado do Recorrente) – cfr. JOSÉ CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, Almedina, 2.ª edição, 2005, pág. 144; MM. Neste sentido, deverá ser controlada a conformidade constitucional dos normativos acima mencionados, por forma que seja analisado se era importante a criação de uma disposição transitória e se o art.º 51.º C-do CIRC regulou de forma justa, adequada e proporcionada os problemas resultantes da conexão de efeitos jurídicos da lei nova e pressupostos; NN. A materialização da revogação do referido regime deverá conceder aos encargos financeiros não dedutíveis ao abrigo do regime de tributação das SGPS o tratamento que lhes seria dado, no pressuposto do afastamento deste mesmo regime, em consequência da não verificação dos pressupostos que lhe eram inerentes. Pelo que, deverá ser reconhecida a dedutibilidade fiscal de tais encargos no período de tributação de 2014; OO. Como é sabido, a tutela constitucional da confiança emana do princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2.º da Constituição. De acordo com Gomes Canotilho e Vital Moreira, o princípio do Estado de direito “mais do que constitutivo de preceitos jurídicos, é sobretudo conglobador e integrador de um amplo conjunto de regras e princípios dispersos pelo texto constitucional, que densificam a ideia de sujeição do poder a princípios e regras jurídicas, garantindo aos cidadãos liberdade, igualdade e segurança” (cfr. obra citada, pág. 205). Acrescentam ainda estes autores que “não está à partida excluída a possibilidade de colher dele normas que não tenham expressão direta em qualquer dispositivo constitucional, desde que elas se apresentem como consequência imediata e irrecusável daquilo que constitui o cerne do Estado de direito democrático, a saber, a proteção dos cidadãos contra a prepotência, o arbítrio e a injustiça (especialmente por parte do Estado)” (cit., pág. 206); PP. No caso em apreço estão verificados os pressupostos para a proteção da confiança: a existência de uma situação de confiança, a dignidade da proteção da confiança e a ponderação dos interesses em causa; QQ. “O controlo judicial baseado na proteção da confiança tem afinidades importantes, do ponto de vista metódico, com o que diz respeito às leis restritivas de direitos fundamentais. Os três primeiros testes – situação de confiança, legitimidade da confiança e investimento na confiança – consubstanciam as condições necessárias e suficientes da afirmação de um interesse que, por ser digno de tutela constitucional, é relativamente resistente ao legislador. O quarto e último teste consubstancia um juízo de proporcionalidade, nos termos do qual se exige:(i) a graduação da lesão da confiança, em termos análogos aos da determinação da intensidade de uma medida restritiva; (ii) a determinação das razões de interesse público (ou quaisquer outras com relevância constitucional) que legitimam a opção do legislador; e (iii) a ponderação dos sacrifícios e benefícios da medida, com vista a ajuizar da razoabilidade da frustração das expectativas dos destinatários. Vale a pena sublinhar que os testes são cumulativos e implicam um ónus de demonstração: numa democracia constitucional, não se presume que as alterações legislativas ofendem a segurança jurídica dos destinatários, nem é legítimo decidir a dúvida a esse respeito contra a constitucionalidade das leis. Pelo contrário, legislador goza de uma prerrogativa de auto-revisibilidade baseada na alternância política e no devir da realidade, de modo que, «não há [...] um direito à não-frustração de expectativas jurídicas ou à manutenção do regime em relação a relações jurídicas duradoiras ou relativamente a factos complexos já parcialmente realizados. Assim o impõe o respeito pelo princípio democrático – Cfr. neste sentido, Acórdãos n.ºs 115/2021, 751/2020, 477/2020, 293/2017, 195/2017, 330/96 e 287/90, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt; RR. «A proteção da confiança é uma norma com natureza principiológica que deflui de um dos elementos materiais justificadores e imanentes do Estado de Direito: a segurança jurídica dedutível do artigo 2.º da CRP. Enquanto associado e mediatizado pela segurança jurídica, o princípio da proteção da confiança prende-se com a dimensão subjetiva da segurança – o da proteção da confiança dos particulares na estabilidade, continuidade, permanência e regularidade das situações e relações jurídicas vigentes. Sustentado no princípio do “Estado de direito democrático”, o seu conteúdo tem sido construído pela jurisprudência, em avaliações e ponderações que têm em conta as circunstâncias do caso concreto» - cfr. Acórdão n.º 862/2013, disponível em www.tribunalconstitucional.pt; SS. O n.º 2, do art.º 104.º da CRP prevê que “[a] tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real”; TT. Neste contexto, afirma SALDANHA SANCHES que o princípio da tributação pelo rendimento real “(…) é uma aplicação do princípio da capacidade contributiva às empresas”, decorrendo este, por sua vez, do princípio da igualdade previsto no art.º 13.º da CRP – cfr. J. L. SADANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, Coimbra Editora, 3.ª edição, 2007, pág. 231; UU. No caso concreto do regime fiscal das SGPS, a aplicação deste princípio encontra reflexo no facto de os encargos financeiros serem acrescidos no pressuposto de as mais-valias ou menos-valias fiscais não virem a ser consideradas para efeitos da formação do lucro tributável; VV. Na mesma linha de raciocínio, refere LUÍS GRAÇA MOURA que “(…) o legislador terá visado a atribuição de um benefício – exclusão total de tributação das mais-valias – que, contudo, fosse ‘contrabalançado pela não concorrência de certos encargos financeiros suportados’, criando um ambiente de ‘neutralidade’ entre os eventuais ganhos com determinados ativos (…) e o passivo necessário à criação das condições para a obtenção de tais ganhos, isto é, o passivo relacionado com a aquisição de tais participações” – cfr. LUÍS GRAÇA MOURA, A “Nova” Tributação do Rendimento das SGPS: Reflexões acerca da Tributação de Mais-valias no Quadro do Princípio da Segurança Jurídica, in Separata Revista Jurídica 10, Universidade Portucalense – Infante D. Henrique, n.º 10, 2003, pág. 122; WW. Desta forma, o regime consagrado no n.º 2 do art.º 32.º do EBF fazia prevalecer o princípio da tributação das empresas pelo seu rendimento real, contrabalançando os rendimentos ou gastos excluídos de tributação – resultantes da realização de mais-valias ou menos-valias fiscais – com a desconsideração para efeitos fiscais dos gastos suportados que poderiam ser diretamente associados à sua realização, ou seja, à contração de financiamentos para a aquisição de partes de capital e respetivos encargos financeiros associados; XX. Torna-se então claro que a tributação do rendimento real das SGPS apenas será assegurada se, perante a impossibilidade de excluir de tributação as mais-valias (e menos-valias) realizadas com a transmissão de partes de capital, ao abrigo do regime de tributação das SGPS, por revogação do mesmo, se garantir a dedução dos encargos financeiros imputáveis a estas partes de capital; YY. Por outras palavras, resulta claro dos factos apresentados que apenas com a dedução integral em 2014 dos encargos financeiros não deduzidos anteriormente, por serem imputáveis a partes de capital ainda na titularidade das SGPS, se garante o restabelecimento da igualdade entre as várias sociedades detentoras de partes de capital, quer se tratem de SGPS ou não, e que, a partir do período de tributação iniciado após 1 de janeiro de 2014, passaram a contar com um novo e distinto regime de tributação (ou de não tributação) das mais-valias e menos-valias apuradas com a alienação de partes de capital; ZZ. Uma solução contrária a este entendimento implicaria onerar e penalizar de um modo tremendo as SGPS que ao longo dos anos haviam desconsiderado os encargos financeiros no pressuposto de virem a beneficiar de um regime fiscal mais favorável, o que, por revogação do mesmo, não se irá concretizar; AAA. Temos, assim, de concluir, que a sentença recorrida, ao manter os atos impugnados, viola o direito constitucional português, pelo que deverá ser anulada e substituída por uma decisão que proceda a uma boa aplicação do direito, assim se fazendo justiça; BBB. Por fim, requer a dispensa do pagamento do remanescente, tendo em conta que nesta fase de recurso, como na primeira instância, estão preenchidos os pressupostos legais que permitem ao Tribunal conferir essa dispensa.
Pediu fosse julgado procedente, por provado, o presente recurso e fosse anulada a decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, com as demais consequências legais. A Recorrida apresentou contra-alegações, onde reiterou, na íntegra, a posição exarada na douta sentença recorrida e pugnou pela improcedência do recurso. O tribunal recorrido proferiu despacho de admissão do recurso, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo. Remetidos os autos a este tribunal, foram os mesmos com vista ao Ministério Público. O Ex.mo Sr. Procurador-Geral Adjunto lavrou douto parecer, tendo concluído no sentido de que deve ser negado provimento ao recurso. Com dispensa dos vistos legais, cumpre decidir, dando por reproduzidos os termos da decisão da matéria de facto na instância recorrida, ao abrigo do disposto no artigo 663.º, n.º 6, do Código de Processo Civil, aplicável a coberto do artigo 679.º do mesmo Código. *** 2. Vem o presente recurso interposto de uma sentença que confirmou a decisão administrativa que, na essência, indeferiu a pretensão de uma sociedade gestora de participações sociais a que fossem deduzidos ao seu lucro tributável individual do período de 2014 os encargos financeiros imputáveis a partes de capital que apurou nos períodos de 2014 a 2013 e que não deduziu nos períodos respetivos por força do regime fiscal aplicável às mais-valias e menos-valias realizadas por SGPS’s e que vigorou até ao período de tributação de 2013, inclusive. A Recorrente não se conforma com o assim decidido por entender que a sentença recorrida viola um conjunto de normas infraconstitucionais [«o disposto no artigo 32.º do EBF, no art.º 51.º-C do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC), no art.º11.º, n.º 2 e 12.º n.º 3 da Lei Geral Tributária» - numero 14 das doutas alegações de recurso] e os princípios constitucionais da legalidade e da justiça (números 58 a 81 das doutas alegações de recurso), da segurança jurídica (números 82 a 108) e da tributação pelo rendimento real (números 109 a 126). No entanto, apesar de elencar as normas infraconstitucionais que considera violadas, a Recorrente acabou por nunca explicar concretamente porque é que entende que a sentença incorreu na sua violação nem indicar o sentido em que tais normativos deveriam ser interpretados ou aplicados. Por outro lado, não resulta do voto de vencida para que remete e que parcialmente transcreve (tirado do acórdão do Pleno de 20 de outubro de 2021, no processo n.º 097/19.0BALSB) a violação e nenhuma destas normas, até porque o que ali se defende é a resolução da questão apelando às normas que disciplinam o regime geral suportado, fundamentalmente, na disciplina do artigo 23.º do Código do IRC (e que ali contrapunha ao regime especial de relevância fiscal dos encargos financeiros das pessoas coletivas constituídas sob a forma de SGPS). Acresce que apesar de referir que a sentença viola o artigo 32.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, a Recorrente reconhece adiante que esse regime já não estava em vigor no período em causa, o que sempre obstaria a que pudesse incorrer-se na sua violação nesse mesmo período. E, apesar de referir que o entendimento do Tribunal a quo a propósito do artigo 51.º-C do Código do IRC, a Recorrente nunca questionou que não estivessem, no caso, reunidos os requisitos ali enunciados. O que a sentença recorrida não deixou de consignar, ainda que por remissão para o referido acórdão do Pleno que ali se transcreve. Tudo ponderado, somos levados a concluir que o que está em causa não é a interpretação que o tribunal de primeira instância fez de nenhuma dessas normas, mas da norma que revogou o regime previsto no artigo 32.º, n.º 2, do Estatuto dos Benefícios Fiscais (o artigo 210.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro). Isto é, a interpretação da norma revogatória no sentido de não admitir a dedução, em 2014, dos encargos financeiros anteriormente suportados por SGPS’s com a aquisição de partes de capital ainda detidas nesse ano. A Recorrente terá entendido que seria incompreensível e atentatório dos princípios constitucionais que identifica que o legislador tivesse pretendido, com tal revogação, que não existisse a possibilidade de recuperação desses encargos financeiros. Assim, o que a Recorrente pretende verdadeiramente é que se extraia da norma revogatória um sentido que comporte a possibilidade de recuperação desses encargos financeiros em 2014. Por entender que é a única solução «constitucionalmente aceitável» (cfr. o artigo 132.º da douta petição inicial). No entanto, apesar de sustentar que esse é o único sentido interpretativo que considera compatível com o princípio da legalidade, a Recorrente volta a não especificar concretamente porque é que tal princípio constitucional foi diretamente atingido. A este propósito, a Recorrente limita-se a dizer que o princípio da legalidade significa que a Administração não pode agir livremente e que terá que pautar a sua atuação pela obediência e vinculação aos parâmetros legais [cfr. o ponto 73 das doutas alegações de recurso]. O que nos remeteria para o princípio da precedência de lei. Sucede que, não resulta dos autos (nem tal foi, tampouco, alegado) que a Administração tivesse fundamentado a sua atuação, neste particular em qualquer espaço de intervenção que não fosse a lei. E o teor da decisão impugnada revela exatamente o oposto: que a Administração fundou a sua atuação no que considera ser o regime legal aplicável no período em causa. Quanto aos demais princípios constitucionais que considera terem sido violados, não podemos deixar de referir desde já que o Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre a conformidade com a Constituição do artigo 210.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, quando interpretado no sentido de não admitir, em consequência da revogação do artigo 32.º, n.º 2, do Estatuto dos Benefícios Fiscais, a dedução dos encargos financeiros suportados pelas SGPS com a aquisição de partes de capital ao abrigo desse regime e de que ainda fossem titulares em 31 de dezembro de 2013. Fê-lo no acórdão n.º 638/2020 e que a Recorrente conhece muito bem, até porque foi transcrito parcialmente no acórdão do Pleno que, por sua vez, a sentença recorrida transcreveu. E fê-lo considerando a generalidade dos princípios que a Recorrente convoca, com maior ou menor propriedade, no presente recurso. E sem circunscrever o julgamento de constitucionalidade à conformidade com algum deles em particular. E, como se sabe, o Tribunal Constitucional tem a última palavra na interpretação das normas e dos princípios da Constituição. Assim sendo, deve concluir-se que a questão suscitada no presente de recurso já foi jurisdicionalmente apreciada e deve este tribunal de recurso limitar-se a remeter para o entendimento jurisprudencial firmado em precedente acórdão que dela se apropriou (o acórdão do Pleno citado na sentença recorrida) ao abrigo do artigo 663.º, n.º 5, do Código de Processo Civil. Ficando dispensada a junção de cópia por se encontrar publicado em redação integral e por ter já ter sido efetuada a sua transcrição. Em consequência, o recurso não merece provimento. *** 3. Conclusão Não viola a Constituição da República Portuguesa a interpretação do artigo 210.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, no sentido de que a revogação do regime previsto no n.º 2 do artigo 32.º do EBF não importa o direito à recuperação, no período imediatamente posterior, dos encargos financeiros aludidos nesta norma, suportados anteriormente e até então não deduzidos. *** 4. Decisão Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes da Secção Tributária deste Tribunal em negar provimento ao recurso. Custas pela Recorrente, com dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça ao abrigo do disposto no nº 7 do artigo 6º do Regulamento das Custas Processuais. Lisboa, 13 de julho de 2023. - Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos (relator) – Paula Fernanda Cadilhe Ribeiro – Isabel Cristina Mota Marques da Silva. |