Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0109/24.5BALSB
Data do Acordão:08/07/2024
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:CLÁUDIO RAMOS MONTEIRO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P32555
Nº do Documento:SA1202408070109/24
Recorrente:AA
Recorrido 1:CONSELHO SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO



I. Relatório


1. AA - identificada nos autos - requereu a este Supremo Tribunal Administrativo, nos termos dos artigos 104.° ss. do CPTA, a intimação do CONSELHO SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO (CSMP) a «no prazo máximo de 10 dias, e com as legais consequências cominatórias em caso de incumprimento, permiti e a realizar todas as prestações de facto necessárias e adequadas à efetiva consulta pela Requerente/Interessada do processo administrativo, na íntegra: o PD ...2/24 ou, sem conceder, à emissão de certidão da decisão de arquivamento proferida».
O Processo Disciplinar n.° ...2/24 a que se refere o pedido é um processo disciplinar que foi movido contra uma ..., Dra. BB, pela prática das infrações disciplinares de violação dos deveres de urbanidade, correção e lealdade, por ter escrito um artigo de opinião no ... no dia ..., crítico da hierarquia do Ministério Público, e que, entretanto, foi arquivado por deliberação da Secção Disciplinar do CSMP, de ... de 2024.
No seu Requerimento Inicial alega a Requerente, em síntese, que «o CSMP está a dar um tratamento diferenciado discriminatório a AA relativamente à ... BB, sem qualquer fundamento legal para o efeito e que se traduz na violação dos princípios da igualdade e da imparcialidade quanto à primeira e ainda a violação dos seus direitos fundamentais de acesso aos tribunais e à liberdade de expressão».
Considera, por isso, que «tem um interesse direto e pessoal à informação procedimental constante do processo disciplinar movido contra a Sra. Dra. BB ou o direito de acesso aos arquivos e registos administrativos pois tal é essencial para permitir o efetivo uso de garantias, por violação, por parte do CSMP, do dever de imparcialidade e igualdade relativamente à ora A».

2. O CSMP respondeu ao pedido, pugnando pela sua improcedência, com fundamento em que o processo disciplinar que foi movido à ... BB, embora tenha sido arquivado, ainda não está findo, pelo que o mesmo, nos termos do número 1 do artigo 248.° do Estatuto do Ministério Público (EMP), «é de natureza confidencial».
Mais alega que, ainda que aquele processo se encontrasse findo, «a requerente igualmente não demonstrou ser titular de um interesse direto, pessoal e legítimo para consulta desse processo disciplinar».

3. Sem vistos, dada a natureza urgente do processo, nos termos da alínea d) do n.° 1 e dos números 2, 3 e 4 do artigo 36.° do CPTA.

II. Matéria de facto

4. Dão-se como provados os seguintes factos:

1. A Requerente é ... do Ministério Público no DIAP ..., Comarca ....

2. A Requerente é arguida no Processo Disciplinar n.° ...6/23, onde foi condenada por Acórdão da Secção Disciplinar do CSMP, de ... de 2023, a uma pena única de suspensão do exercício de funções por 200 dias, pela prática de seis infrações disciplinares de violação do dever de correção e de urbanidade, por ter apresentado queixa contra a Exma. Sra. ... e outros membros do Conselho Superior do Ministério Público, pela prática dos crimes de abuso de poder e de denegação de justiça (doc. n. 1 apresentado com o R.I.).

3. A condenação da Requerente foi confirmada por deliberação do Plenário do CSMP, de 10 de abril de 2024 (doc. n. 3 apresentado com o R.I.).

4. A Requerente impugnou judicialmente a deliberação de 10 de abril de 2024, com fundamento na sua nulidade, o que constitui o Processo n.° 100/24.1BALSB, que corre termos neste Supremo Tribunal Administrativo.

5. Em 19 de maio de 2024, a Requerente solicitou ao CSMP, por email, «a consulta do processo disciplinar que o CSMP moveu à Exma. Sra. ... Dra. BB pois tal consulta é essencial para a requerente arguida no PD ...6/23 se defender contenciosamente por eventual violação pelo CSMP, entre outros, do princípio da igualdade, da imparcialidade e da proporcionalidade» (doc. n.° 6 apresentado com o R.I).

6. O processo disciplinar instaurado à ... BB teve como causa um artigo de opinião publicado no jornal … no dia … de 2023 (por acordo).

7. O processo disciplinar instaurado contra a ... BB, que constituiu o Processo Disciplinar n.° ...2/24, foi arquivado por deliberação da Secção Disciplinar do CSMP, de ... de 2024.

8. Em 10 de julho de 2024, por despacho do Exmo. Sr. Vice PGR, foi recusado à Requerente a consulta do Processo Disciplinar n.° ...2/24, como fundamento em que o mesmo ainda não constitui caso decidido (doc. n.° 6 apresentado com o R.I).

9. O presente processo de Intimação foi proposto em 26 de julho de 2024 - cfr. fls. 1 ss. SITAF.

III. Matéria de Direito

9. São duas as questões jurídicas que este Supremo Tribunal tem conhecer para decidir o pedido de consulta Processo Disciplinar n.° ...2/24, formulado nos presentes autos.

- a questão de saber se o Processo Disciplinar n.° ...2/24 se deve ou não considerar findo, para o efeito de saber se continua ou não abrangido pelo regime de confidencialidade estabelecido no número 1 do artigo 248.° do EMP;
- a questão de saber se, independentemente de o mesmo já se encontrar findo, a Requerente é titular de um interesse direto, pessoal e legítimo na sua consulta.
Vejamos.

10. A Requerente não é parte no processo disciplinar que pretende consultar, pelo que o seu pedido se rege, primordialmente, pelo disposto na Lei n.° 26/2016, de 22 de agosto, que estabelece o regime de acesso à informação administrativa e ambiental e de reutilização dos documentos administrativos, pois trata-se de acesso a informação não procedimental.
Nos termos do parágrafo iv da alínea a) do número 1 do artigo 3.° da referida lei, considera-se documento administrativo «qualquer conteúdo, ou parte desse conteúdo, que esteja na posse ou seja detida em nome dos órgãos e entidades referidas no artigo seguinte, seja o suporte de informação sob forma escrita, visual, sonora, eletrónica ou outra forma material, neles se incluindo, designadamente, aqueles relativos a (...) Gestão de recursos humanos, nomeadamente os dos procedimentos de recrutamento, avaliação, exercício do poder disciplinar e quaisquer modificações das respetivas relações jurídicas».
A regra, portanto, é a de que o conteúdo dos documentos administrativos relativos ao exercício do poder disciplinar é livremente acessível.

11. A mesma Lei n.° 26/2016 ressalva, contudo, na alínea b) do número 4 do seu artigo 1.°, que o acesso a documentos administrativos em matéria disciplinar, entre outros, pode ser objeto de legislação especial, o que sucede no caso dos autos.
Com efeito, dispõe o n.° 1 do artigo 248.° do Estatuto do Ministério Público (EMP) que, sem prejuízo da realização de uma audiência pública, «o procedimento disciplinar é de natureza confidencial até à decisão final».
Alega o Requerido que o Processo Disciplinar n.° ...2/24 ainda não foi decidido, porque apesar de ter sido arquivado por deliberação do CSMP, de ... de 2024, aquela deliberação pode ser objeto de reclamação ou impugnação judicial, não constituindo, ainda, a decisão final do processo, que não se pode, por isso, qualificar como «caso decidido».
Mas não tem razão.

12. O arquivamento constitui a decisão final do procedimento disciplinar, constituindo, por isso, causa de extinção do mesmo, nos termos do artigo 93.° do Código do Procedimento Administrativo.

É certo que a referida decisão ainda pode ser objeto de impugnação administrativa ou judicial, mas ainda assim a mesma produz imediatamente os seus efeitos, nos termos do número 1 do artigo 155.° do mesmo código.
O «caso decidido» administrativo, sendo operativo para efeitos da admissibilidade daquelas impugnações, e da consolidação de eventuais vícios da decisão, não tem, no entanto, o mesmo alcance que o «caso julgado» judicial, não tendo, nomeadamente, uma relevância direta na caracterização da definitividade do ato.
Daí que não se possa afirmar que o referido Processo Disciplinar n.° ...2/24 ainda não tenha sido objeto de decisão final.
E é, aliás, apenas isso que exige a disposição legal citada, i.e., que o processo tenha sido decidido, e não que a sua decisão seja definitiva, ou inimpugnável.

13. Acresce, além do mais, que sendo o acesso aos documentos administrativos em matéria disciplinar a regra, e a sua confidencialidade a exceção, o disposto no n.° 1 do artigo 248.° do EMP não pode deixar de ser interpretado restritivamente, no sentido mais favorável ao acesso à informação administrativa, em conformidade com o número 2 do artigo 268.° da Constituição da República.
Prova de que a confidencialidade do processo disciplinar é a exceção é que a mesma não se comunica ao processo judicial em que se discuta a legalidade do respetivo ato punitivo, que segue o mesmo regime de acesso a que se encontra sujeita a consulta dos autos nas demais ações administrativas impugnatórias.
Significa isto, nomeadamente, que ainda que a deliberação do CSMP venha a ser impugnada, o respetivo processo deixa de ser confidencial.

14. A questão que se coloca, então, é a de saber se a Requerente é titular de um interesse direto, pessoal e legítimo na consulta do referido processo, na medida em que o mesmo possa conter documentos nominativos.
Com efeito, dispõe a alínea b) do número 5 do artigo 6.° da citada Lei n.° 26/2016 que, um terceiro que não esteja munido de uma autorização do titular dos dados, «se demonstrar fundamentadamente ser titular de um interesse direto, pessoal, legítimo e constitucionalmente protegido suficientemente relevante, após ponderação, no quadro do princípio da proporcionalidade, de todos os direitos fundamentais em presença e do princípio da administração aberta, que justifique o acesso à informação».
O Requerido alega que «é incontroverso que um processo disciplinar contém dados pessoais de terceiros», mas a validade dessa afirmação está longe de estar demonstrada.
Vejamos.

15. Foi admitido por acordo nos autos que no Processo Disciplinar n.° ...2/24 se discutiu a relevância jurídica de um artigo de opinião escrito pela respetiva arguida, a ... BB.
Com efeito, no artigo 4° da sua Oposição, o Requerido confirma «que a Senhora ... BB escreveu um artigo de opinião publicado no jornal …, no dia … 2023, que na sequência do mesmo foi-lhe instaurado pelo CSMP o Processo Disciplinar n.° ...2/24, e que o mesmo foi arquivado por deliberação da Secção Disciplinar do CSMP de ... de 2024».
Ou seja, confirma que a matéria daquele processo se circunscreve à relevância jurídica e disciplinar de um texto público - e publicado - escrito pela arguida, o que está longe de evidenciar que o mesmo contenha dados nominativos. Sendo certo que é ao Requerido que cabia fazer prova, na própria decisão administrativa, que o pedido se subsume na restrição de acesso prevista na citada alínea e número do artigo 6.°.

16. Acresce, por outro lado, que o Requerido também não logrou demonstrar que «não existe qualquer relação ou conexão entre ambos os processos disciplinares».
A relação ou conexão não se encontra na identidade dos factos praticados pelos arguidos num e noutro processo - um artigo de opinião, num caso, e uma queixa-crime no outro - mas nos critérios de interpretação e integração do conteúdo dos deveres de correção, de urbanidade e de lealdade, em questão em ambos. Em particular, no que se refere à ponderação atribuída, nesse âmbito, à alegação de que os factos foram praticados no exercício de direitos fundamentais.
Saber se, para efeitos daquela ponderação, a relevância jurídica de um artigo de opinião é a mesma que a de uma queixa-crime é matéria que não tem de ser apreciada neste processo, porque apenas releva para a procedência do argumento que a Requerente pretende fazer valer na impugnação da decisão que a puniu, relativo à violação dos princípios da igualdade e da imparcialidade, mas não para a qualificação do seu interesse no acesso ao conteúdo da respetiva informação.
E a existência desse interesse é inquestionável, na medida em que, nos termos da alínea d) do número 1 do artigo 152.° do CPA, violam o dever de fundamentação das decisões administrativas os atos que «decidam de modo diferente da prática habitualmente seguida na resolução de casos semelhantes, ou na interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou preceitos legais».
Justifica-se, pois, que a Requerente possa consultar o processo disciplinar em questão, e a fundamentação da respetiva decisão de arquivamento, nomeadamente para poder avaliar se os critérios seguidos «na interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou preceitos legais» foram equivalentes.

17. Conclui-se, assim, que não se verificam fundamentos bastantes para restringir o direito de acesso da Requerente à consulta do Processo Disciplinar n.° ...2/24, por ela requerido.

IV. Decisão

Em face do exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal Administrativo, reunidos em conferência, em julgar procedente o pedido e, em consequência, em intimar o CSMP a permitir a consulta do Processo Disciplinar n.° ...2/24 pela Requerente.
Valor tributário da causa: €2.000,00, nos termos do artigo 12.°, n.° 1, alínea b), do RCP.
Custas pelo Requerido. Notifique-se

Lisboa, 7 de agosto de 2024 (em turno). - Cláudio Ramos Monteiro (relator) - Fernanda de Fátima Esteves - João Sérgio Feio Antunes Ribeiro.