Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:010/24.2BALSB
Data do Acordão:06/20/2024
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:ADRIANO CUNHA
Descritores:HONRAS DO PANTEÃO NACIONAL
DIREITOS DE PERSONALIDADE
TRASLADAÇÃO DE CADÁVER
Sumário:I - Havendo divergências entre os familiares descendentes quanto a uma decisão sobre a trasladação dos restos mortais de um seu ascendente, haverá que considerar-se a vontade da maioria daqueles, conforme resulta da melhor interpretação do estabelecido no artigo 3º nº 1 d) e e) do DL nº 411/98, de 30/12 (“Regime jurídico da remoção, transporte, inumação, exumação, trasladação e cremação de cadáveres …”).
II - A concessão de honras do Panteão Nacional que impliquem a exumação e trasladação dos restos mortais dos cidadãos distinguidos é uma decisão política que, todavia, devido ao princípio da dignidade da pessoa humana, não dispensa uma autorização ou não oposição da parte de quem se encontra legitimado para proteger e fazer respeitar o corpo desses cidadãos após a respetiva morte no âmbito de relações jurídicas disciplinadas pelo direito administrativo.
III - São neste caso inaplicáveis as normas enformadas pela teleologia específica do direito sucessório, como é o caso do artigo 2091º do Código Civil, pois, além de o cadáver ou as ossadas não integrarem a herança, as categorias de pessoas com legitimidade para requerer a prática dos atos regulados no Decreto-Lei n.º 411/98 são determinadas na base de um critério de proximidade em relação à pessoa falecida e da presunção nela fundada de que estarão em melhores condições para determinar a vontade real ou presumível de tal pessoa em relação ao destino a dar aos seus restos mortais.
XII - Existindo uma maioria de pessoas legitimadas nos termos do artigo 3º nº 1 do Decreto-Lei nº 411/98, de que não fazem parte os Autores, a expressão da vontade destes quanto à exumação e posterior trasladação não é essencial para a autorização de tais atos, razão por que a sua não audição nessas circunstâncias também não consubstancia uma violação do conteúdo essencial do direito fundamental de defesa da memória do falecido quanto ao destino por este intencionado relativamente aos seus restos mortais (cfr. a alínea d) do artigo do nº 2 do artigo 161º do Código do Procedimento Administrativo).
Nº Convencional:JSTA000P32383
Nº do Documento:SA120240620010/24
Recorrente:AA (E OUTROS)
Recorrido 1:ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I. Relatório

1. Os Autores

AA,
BB
CC
DD,
EE e
FF,

Vieram propor contra a “ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA”
A presente ação administrativa de impugnação do ato contido no nº 2 da “Resolução da Assembleia da República” nº 55/2021, aprovada em 15 de janeiro de 2021, que determinou a trasladação dos restos mortais do Escritor GG para o Panteão Nacional (cfr. p.i. a fls. 10 e segs. SITAF).

Pedem, a final, que a ação seja julgada procedente e, em consequência:

«1. Ser declarada a nulidade do ato contido no nº 2 da Resolução da Assembleia da República nº 55/2021, aprovada em 15 de Janeiro de 2021, que determina a trasladação dos restos mortais de GG para o Panteão Nacional;
e, cumulativamente, ao abrigo do artigo 37º, nº 1, alínea h) e 95º, nº 5, “a contrário”, ambos do CPTA,

2. Ser determinado à Assembleia da República que promova as diligências necessárias à execução das honras de Panteão Nacional concedidas a GG, sob a forma legalmente prevista alínea b) do nº 2 do artigo 2º da Lei nº 28/2000, de 29 de Novembro, através da aposição, nesse local, de placa alusiva à sua vida e à sua obra».

2. Devidamente citada, a Ré “AR” veio apresentar contestação por impugnação (cfr. fls. 275 e segs. SITAF), refutando a nulidade imputada pelos Autores à “Resolução”, pedindo, a final, que a ação seja julgada improcedente.

3. O Ministério Público veio, a fls. 447 e segs. SITAF, pronunciar-se, ao abrigo do art. 85º do CPTA, no sentido de que «a presente ação deve ser julgada totalmente improcedente».

Liminarmente, expressou o entendimento de que deveriam ser também demandados, como contrainteressados, sob pena de ilegitimidade passiva (arts. 10º nº 2, “in fine” e 57º do CPTA), os 13 descendentes do Escritor que, contrariamente aos 6 descendentes Autores, apoiam a trasladação determinada pela Resolução da “AR”, «por terem um interesse contraposto ao dos AA.».

4. Foi oportunamente proferido despacho saneador (cfr. fls. 472 e segs. SITAF), onde se reconheceu a competência deste tribunal (STA) em razão da autora do ato impugnado (“AR”), se consideraram verificados os pressupostos processuais relativos às partes, bem como a inexistência de nulidades processuais.

Relativamente à pronúncia do Mº Pº, na parte referente à alegada ilegitimidade passiva pela não demanda, como contrainteressados, dos 13 descendentes apoiantes da trasladação, começou aí por se dizer que o nº 2 do art. 85º do CPTA, ao prever a possibilidade de uma pronúncia do Mº Pº sobre o mérito da causa, não permite que esta pronúncia extravase desta matéria, designadamente suscitando exceções dilatórias como a ilegitimidade passiva.

Não obstante, por ser de conhecimento oficioso o pressuposto da legitimidade processual, e por poder, a falta de demanda de contrainteressados, ser geradora de nulidade processual e fundamento de revisão de sentença, passou-se, ali, a conhecer da questão suscitada.

Conclui-se, porém, que não se estava perante uma situação de ilegitimidade passiva já que os 13 descendentes do Escritor que apoiam a trasladação não devem ser considerados “contrainteressados”, como ali se explicou, por, em suma, não serem titulares de uma posição jurídico-subjetiva de vantagem relativamente à outorga de honras de Panteão ao Escritor, seu ascendente, pois que a normação jurídica que prevê a atribuição de tal honra por deliberação da “AR” não se destina nem tem por escopo ou resultado conceder direitos ou proteger especificamente interesses dos descendentes do homenageado, não sendo para tanto suficientes meros interesses de facto.

Mais se considerou constarem já dos autos todos os factos e elementos relevantes para o conhecimento do mérito da ação, através das posições assumidas pelas partes nos seus articulados e da documentação junta aos autos com tais articulados.

Declarou-se, decorrentemente, não haver lugar à realização de audiência final, nem à produção de alegações finais.

Foi fixado à causa o valor de 30.000,01€.

5. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir em Conferência.


II. Das questões a decidir

6. Cumpre apreciar e decidir se o ato impugnado sofre do vício de ilegalidade, que os Autores lhe assacam, designadamente de nulidade, na determinação de execução das honras concedidas ao Escritor GG, seu ascendente, na modalidade de trasladação dos seus restos mortais para o Panteão Nacional,
i) Por via de alegada ofensa ao “direito do homenageado a jazer em paz junto dos seus, na sua terra de ..., direito que, à luz dos artigos 70º e 71º do Código Civil (CC), lhes cabe legitimamente defender e tutelar” (cfr. artigo 10º da p.i.);
ii) Por alegada ofensa do requisito da unanimidade dos descendentes, resultante quer do art. 2091º do Código Civil (em articulação com o art. 2025º nº 1 do mesmo), quer do DL nº 411/98, de 30/12 (cfr. artigos 51º e segs. da p.i.); e
iii) Finalmente, por alegada ofensa ao direito dos Autores a serem auscultados e por alegada omissão do procedimento legalmente devido em ordem a obter-se a autorização unânime dos descendentes para a deliberada trasladação (cfr. artigos 65º e 66º da p.i.).


III. Fundamentação

III.A. Fundamentação de facto

7. Considera-se provada, com relevância para a decisão da causa, a seguinte matéria de facto (por acordo das partes, e ainda pelo teor dos documentos abaixo referidos):

a) Em 15/1/2021, a “Assembleia da República” aprovou a “Resolução da Assembleia da República nº 55/2021”, com o sumário “Concessão de honras de Panteão Nacional a GG”, que viria a ser publicada no Diário da República, 1ª Série, de 5/2/2021, com o seguinte teor:

«A Assembleia da República resolve, nos termos do n.º 5 do artigo 166.º da Constituição e do n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 28/2000, de 29 de novembro:
1 - Conceder honras de Panteão Nacional aos restos mortais de GG, em reconhecimento e homenagem pela obra literária ímpar e determinante na história da literatura portuguesa.
2 - Constituir um grupo de trabalho composto por representantes de cada grupo parlamentar com a incumbência de determinar a data e de definir e orientar o programa de trasladação, em articulação com as demais entidades públicas envolvidas, bem como um representante da Fundação GG»
(cfr. doc. 1 junto com a “Contestação”, a fls. 305 SITAF)

b) A mencionada “Resolução” teve origem no Projeto de Resolução nº 800/XIV/2ª (“Concessão de honras de Panteão Nacional a GG”), assinado e apresentado por vários Deputados em 14/12/2020, no qual expressaram que o Projeto foi considerado «na senda do repto lançado pela Fundação GG».
(cfr. doc. 4 junto com a “Oposição”, a fls. 162 e segs. SITAF do apenso processo cautelar nº 147/23.5BALSB).

c) Dando execução ao determinado no nº 2 da referida “Resolução”, o Presidente da Assembleia da República, por Despacho nº 31/XV, de 2/6/2022, constituiu um Grupo de Trabalho, «composto por um representante de cada grupo parlamentar, com a incumbência de determinar a data e de definir e orientar o programa de panteonização de GG, em articulação com as demais entidades públicas envolvidas e com um representante da Fundação GG» (cfr. doc. 2 junto com a “Contestação”, a fls. 306/307 SITAF).

d) O Escritor GG faleceu em ... no ano de 1900, tendo o seu corpo sido trasladado para Portugal onde teve um funeral com honras de Estado. Foi, então, sepultado no jazigo da família da mulher (jazigo dos ...) no Cemitério ..., em Lisboa. Em 1989, por iniciativa da família, foi o seu corpo trasladado para o Cemitério ..., concelho ..., onde se encontra.
(acordo)

e) Todos os filhos e netos do Escritor GG são hoje falecidos, encontrando-se vivos, como seus descendentes mais próximos, somente bisnetos (em número de 22 - entre estes, os 6 Autores).
(acordo)

f) Parte destes bisnetos, em número de 13, são favoráveis à homenagem ao Escritor, tal como aprovada na “Resolução da AR” nº 55/2021, incluindo, pois, a trasladação para o Panteão Nacional dos seus restos mortais.
(acordo)

g) Outros bisnetos, em número de 6 (os ora Autores), opõem-se à trasladação dos restos mortais do Escritor para o Panteão Nacional, pugnando pela sua manutenção no Cemitério ..., sem prejuízo de concordarem com uma homenagem ao Escritor na modalidade de afixação, no Panteão, de uma lápide alusiva à sua vida e obra, como também legalmente previsto.
(acordo)

h) Aos restantes 3 bisnetos não é conhecida posição pessoal sobre a questão.
(acordo)

i) Todos estes 22 bisnetos vivos descendem de um mesmo filho do Escritor (o filho HH), sendo filhos de cinco filhos deste (netos do Escritor).
Assim:
- II (neto, falecido) – 4 filhos vivos (bisnetos) contra
a trasladação (os 1º, 3º, 5º e 6º Autores);
- JJ (neta, falecida) – 3 filhos vivos (bisnetos) 2 contra a trasladação
(os 2º e 4º Autores) + 1 (abstenção);
- KK (neto, falecido) – 6 filhos vivos (bisnetos): 1 supostamente contra a trasladação, residente no ... (o 7º aderente, indicado pelos Autores) + 4 a favor da trasladação + 1 (abstenção);
- LL (neta, falecida) – 1 filho vivo (bisneto) a favor da trasladação;
- MM (neta, falecida) – 8 filhos vivos (bisnetos) a favor da trasladação.
(acordo)

j) Em 1988, quando o corpo do Escritor ainda se encontrava sepultado em Lisboa, colocou-se a hipótese de trasladação para o Panteão Nacional, mas a ideia foi abandonada em face da então oposição de três netos e da viúva de um quarto neto.
(acordo)


III.B. Fundamentação de direito

8. Os Autores – 6 dos 22 descendentes (bisnetos) do Escritor GG - repetem, na presente ação, os vícios que já apontaram ao mesmo ato no âmbito do processo cautelar apenso (nº 147/23.5BALSB), em que pediram, sem sucesso, o decretamento provisório e a própria suspensão da deliberação contida na “Resolução da Assembleia da República” nº 55/2021 de trasladação para o Panteão Nacional dos restos mortais do Escritor.

Efetivamente, depois do pedido de decretamento provisório da providência cautelar ter sido indeferido por sentença de 25/9/2023, a requerida providência cautelar foi indeferida por Acórdão da Secção de Contencioso Administrativo deste STA de 19/10/2023, confirmado por Acórdão do Pleno da mesma Secção de 25/1/2024.

Não obstante tratar-se, ali, de um processo cautelar, com decisão adstrita a uma “summario cognitio”, e, aqui, da ação principal, não deixa de relevar que, ao ter-se decidido, em sede cautelar, pelo indeferimento com fundamento na não verificação de “fumus boni iuris”, já ali se apreciaram todos os vícios que ora, de novo, são aqui alegados pelos Autores, e que essa apreciação foi efetuada não só pela Secção como também, seguidamente, pelo Pleno da Secção.

i) Da alegada ofensa ao “direito do homenageado a jazer em paz junto dos seus, na sua terra de ..., direito que, à luz dos artigos 70º e 71º do Código Civil (CC) lhes cabe [aos 6 Autores] legitimamente defender e tutelar” (cfr. artigo 10º da p.i.).

9. Os Autores começam por brandir a defesa de direitos de personalidade de pessoa falecida, ao afirmar moverem-se na tutela de tais direitos do seu bisavô, alegadamente ofendidos pela trasladação prevista na Resolução da “AR” - arts. 71º nºs 1 e 2 do C. Civil.

Como visto, os Autores assentam a sua alegação de invalidade (na modalidade de nulidade) do ato impugnado em suposta «ofensa do conteúdo essencial de um direito fundamental», que identificam, por sua vez, num «desrespeito inaceitável à vontade do homenageado, que aos seus familiares mais próximos compete tutelar».

Mas torna-se evidente que esta argumentação dos Autores não colhe, sendo utilizada para, meramente, sustentar uma invalidade de grau máximo (“nulidade”), artificial e abusivamente inserida na previsão da invocada alínea d) do nº 2 do art. 161º do CPA (“atos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental”).

Tal está completamente fora de causa quando, como os próprios Autores admitem, na falta de uma vontade expressa do falecido, apenas se estaria a contrariar – se fosse o caso - uma sua, eventual, vontade “induzida” ou “intuída”.

Ou quando a maioria dos bisnetos (familiares/descendentes mais próximos) não consideram a trasladação – com que expressamente concordam – uma “ofensa” aos direitos de personalidade do homenageado e, muito menos, uma “ofensa do conteúdo essencial” de tais direitos.

Assim, não se vê que o ato impugnado, ainda que pudesse ter-se como inválido por outra causa (desrespeito pela vontade da maioria dos familiares/descendentes, designadamente), possa considerar-se como “nulo” ao abrigo desta argumentação, que se tem por improcedente, quanto à suposta “ofensa do conteúdo essencial de um direito fundamental”, apenas sentida por uma minoria dos bisnetos, em razão de eventual divergência com uma suposta vontade, meramente induzida ou intuída, do homenageado (de difícil reconhecimento, como os próprios Autores expressamente admitem – cfr. artigo 13º da p.i.).

Como, aliás, a este propósito, julgou o Pleno da Secção de Contencioso Administrativo deste STA no seu referido Acórdão de 25/1/2024 proferido no apenso cautelar (147/23):
«(…) No caso dos presentes autos, está em causa uma homenagem oficial (pública) a um cidadão particular falecido que importa a trasladação dos seus restos mortais – e não uma ofensa ilícita a bens da sua personalidade –, pelo que as relações entre a entidade que promove a homenagem e os familiares e herdeiros do homenageado revestem natureza jurídico-pública (v. infra). Acresce que o próprio regime legal da trasladação, aqui tomado como referência em virtude do destino dos restos mortais implicado na mencionada homenagem pressupor um ato dessa natureza, também é de direito público (v. infra). Deste modo, o artigo 71.º do Código Civil não é aplicável “in casu” (…)».

Em suma, é aqui inaplicável o regime de tutela de direitos de personalidade de pessoa falecida previsto nos arts. 70º e 71º do C. Civil, a que os Autores apelam, por não estar em questão uma “ofensa ilícita à personalidade de pessoa falecida”, não sendo caso, em consequência, de necessidade de lançar mão de providências tutelares ao abrigo dos nºs 2 daqueles arts. 70º e 71º.

Não se deixa, porém, de notar que, ainda que os Autores tivessem razão – que não têm - quanto ao cabimento e necessidade, aqui, de tutela de direitos de personalidade, sempre haveria, então, de atender-se à posição maioritária dos familiares/descendentes, como ensina António Menezes Cordeiro, in “Tratado de Direito Civil, IV (Pessoas), 3.ª Edição revista e atualizada, Coimbra, Almedina, 2011, p. 172, II, p. 528:
«Na base dos princípios gerais e das regras que afloram nos artigos 71.º/2 e 496.º/2, e no remanescente, com apelo ao artigo 10.º/3, do Código Civil, propomos o seguinte quadro:
- quando a legitimidade para praticar atos relativamente ao cadáver seja deferida a uma pluralidade de herdeiros, a decisão prevalecente será a maioritária, com recurso ao tribunal na hipótese do artigo 1407.º/1;
- cabendo ela a qualquer familiar e não havendo acordo, prevalece, sucessivamente: a opção dos filhos ou outros descendentes; a dos pais ou outros ascendentes; a dos irmãos; a dos filhos que os representem; dentro de cada categoria, a regra será a da vontade maioritária».

ii) Da alegada ofensa do requisito da unanimidade dos descendentes, resultante quer do art. 2091º do Código Civil (em articulação com o art. 2025º nº 1 do mesmo), quer do DL nº 411/98, de 30/12 (cfr. artigos 51º e segs. da p.i.)

10. Os Autores, estando em minoria na oposição à trasladação, contestam a adoção da regra da maioria, insistindo na necessidade de unanimidade, invocando a favor desta sua posição o disposto no art. 2091º do Código Civil, que determina que «os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros».

Entendemos, porém, que esta norma não tem aplicação na questão aqui em discussão visto que se trata de norma prevista em matéria de “administração da herança” do “de cujus” (cfr. epígrafe do Capítulo que se inicia com o art. 2079º do C. Civil, onde se inclui a dita norma), sendo certo que não só não é a “herança” do Escritor, ou a respetiva administração, que está em causa nos presentes autos, como também os Autores (tal como os restantes bisnetos) não são, em rigor, “herdeiros”, mas sim “familiares/descendentes” daquele.

Efetivamente, a noção formal de “herdeiro” afere-se, no Código Civil, por reporte ao momento da abertura da sucessão do “de cujus”, reconduzindo-se, pois, às pessoas chamadas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e à devolução dos bens que a esta pertenciam – como se retira dos arts. 2024º, 2031º e 2032º do C. Civil.

Como julgou o Pleno da Secção no referido Acórdão de 25/1/2024, no processo cautelar apenso:

«(…) São neste caso inaplicáveis as normas enformadas pela teleologia específica do direito sucessório, como é o caso do artigo 2091.º do Código Civil, pois, além do cadáver ou as ossadas não integrarem a herança, as categorias de pessoas com legitimidade para requerer a prática dos atos regulados no Decreto-Lei n.º 411/98 são determinadas na base de um critério de proximidade em relação à pessoa falecida e da presunção nela fundada de que estarão em melhores condições para determinar a vontade real ou presumível de tal pessoa em relação ao destino a dar aos seus restos mortais».

Temos, sim, por aplicável ao caso o disposto no art. 3º nº 1 d) do DL n.º 411/98, de 30/12, na redação a este dada pelo DL nº 138/2000, de 13/7, na interpretação constante da Recomendação nº 3/A/2003 do Provedor de Justiça, abaixo citada, que erige como relevante a vontade da maioria dos herdeiros ou dos familiares/descendentes mais próximos do falecido.

11. Ora, resulta dos autos que todos os filhos e netos do Escritor são hoje falecidos, encontrando-se vivos somente bisnetos seus (entre estes, os 6 Autores).

E conclui-se que os 6 bisnetos Autores (ainda que aditando um 7º bisneto, residente no ..., por eles indicado como posicionando-se contra a trasladação), representam uma minoria dos bisnetos, já que outros 13 bisnetos são, pelo contrário, favoráveis à trasladação dos restos mortais do Escritor para o Panteão (tal como confirmaram ao Parlamento em 18/7/2023 – cfr. Doc. 6 junto com a Contestação da “AR”).

Assim (cfr. supra, facto provado i):

5 filhos do filho HH (único dos 4 filhos do Escritor com descendentes vivos):

- II (neto, falecido) – 4 filhos vivos (bisnetos) contra a trasladação (os 1º, 3º, 5º e 6º Autores);

- JJ (neta, falecida) – 3 filhos vivos (bisnetos) 2 contra a trasladação (os 2º e 4º Requerentes) + 1 (abstenção);

- KK (neto, falecido) – 6 filhos vivos (bisnetos): 1 supostamente contra a trasladação, residente n ...(o 7º
aderente, indicado pelos Autores) + 4 a favor da trasladação + 1 (abstenção);

- LL (neta, falecida) – 1 filho vivo (bisneto) a favor da trasladação;

- MM (neta, falecida) – 8 filhos vivos (bisnetos) a favor da trasladação.

Assim sendo, os Autores não representam a vontade da maioria dos descendentes vivos (bisnetos) do Escritor.

Estamos, pelo contrário, perante uma larga maioria de descendentes (bisnetos) aderentes - praticamente, o dobro dos Autores -, ainda que contabilizemos, como contrário à trasladação, o bisneto residente no ..., fazendo fé nas declarações dos Autores nesse sentido. Aliás, cumpriria aos Autores comprovar a necessária maioria, como decorre da lei (cfr. sentido da Recomendação abaixo citada do Provedor de Justiça), o que manifestamente não fazem.

12. Desde logo, pode até problematizar-se, em abstrato, até que ponto – em termos de distanciamento familiar – têm direito sobre a disponibilidade dos restos mortais os descendentes de um homenageado, num dado momento já distante do seu falecimento.

E a dúvida será pertinente quando, como no presente caso, os descendentes Autores nasceram (entre 1944 e 1953 – cfr. certidões de nascimento juntas com a p.i., a fls. 35 a 52 SITAF), já cerca de meio século após o falecimento do Escritor, que, obviamente, não conheceram nem com o mesmo conviveram.

Mas ainda que se lhes reconheça tal direito (sustentado na qualidade de familiares, prevista no DL nº 411/98, de 30/12), este direito deve ser exercido e considerado de acordo com a opinião e vontade da maioria dos descendentes mais próximos, sendo impensável exigir-se uma unanimidade, como defendem os Autores, que se traduziria num direito de veto de, acaso, apenas um deles. Tanto mais quanto o número de descendentes tenderá a aumentar geometricamente a cada nova geração.

Assim, a ter-se como relevante, como defendem os Autores, a posição dos familiares quanto à disponibilidade dos restos mortais do Escritor, tal posição não pode deixar de ser aferida senão “por maioria”. Neste sentido, veja-se, quanto à interpretação das invocadas normas do DL nº 411/98, de 30 /12, o entendimento e recomendação do Provedor de Justiça, com que se concorda (Recomendação nº 3/A/2003, de 26/3/2003, Proc.º: R-5815/01):
«(…) 14. Relativamente ao conceito de legítimo interessado, fundamental para a aplicação da solução legal acima defendida, determina o artigo 3.º, n.º 1, alínea d) do Decreto-Lei n.º 411/98, de 30 de Dezembro, na redação a este dada pelo Decreto-Lei n.º 138/2000, de 13 de Julho, estar habilitado a requerer a prática do ato de trasladação, no caso de sucessão legítima ou legitimária, qualquer herdeiro.
15. Aplicando-se esta regra “qua tale”, deparar-nos-íamos com uma solução jurídica e materialmente inaceitável, na medida em que a mesma possibilitaria alimentar eventuais conflitos pessoais entre os diversos herdeiros, numa clara e censurável instrumentalização dos restos mortais alvo de disputa, contrariando os princípios da certeza e segurança que devem presidir à prática de qualquer ato jurídico, assim como o respeito à memória das pessoas já falecidas e, em última instância, do interesse público presente em atos desta natureza.
16. Resulta assim do exposto que a solução a acolher nesta matéria será aquela, nos termos da qual, dentro de cada classe de interessados legítimos em causa, deverá observar-se a regra da maioria, de resto explicitamente consagrada no artigo 29.º do Modelo de Regulamento dos Cemitérios Paroquiais, parte integrante do diploma de 1968.
17. Ora, na situação trazida ao conhecimento deste Órgão de Estado, a Senhora D. XXX parece contar com a concordância de um outro herdeiro, num universo de três, garantindo-se assim a maioria necessária para requerer a prática do ato fúnebre em causa, pelo que também relativamente a este aspeto não se levantam quaisquer dúvidas sobre a oportunidade e legalidade do ato de deferimento da pretensão oportunamente formulada (…)».


E como também julgou o Pleno, a este propósito, no seu aludido Acórdão:
«(…) a regra da maioria é aquela que, nos casos de pluralidade de sujeitos legitimados nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 411/98, melhor se coaduna com a teleologia desse preceito: assegurar a correspondência do ato requerido com a vontade real ou presumível da pessoa falecida em relação ao destino “post mortem” dos seus restos mortais (cfr. supra o n.º 11). Com efeito, exigir a unanimidade ou reconhecer um “direito de veto” a um qualquer herdeiro ou familiar seria suscetível de colocar nas mãos desse familiar ou herdeiro o direito de defesa da memória do falecido quanto ao destino por este intencionado relativamente aos seus restos mortais, potenciando conflitos com os demais familiares ou herdeiros legitimados e, sobretudo, pondo em causa o respeito pela memória do falecido. Ou seja, a exigência de uma atuação conjunta de todos os legitimados poderia revelar-se contrária aos fins da tutela jurídica dos restos mortais da pessoa falecida. Por outro lado, e numa perspetiva positiva, a determinação da vontade real ou presumível do falecido por uma maioria de pessoas que foram ou são próximas do mesmo oferece as garantias adequadas em termos de segurança jurídica e de experiências de vida diferenciadas aptas a perspetivar situações muito variadas.
Por ser assim, o alcance da legitimidade prevista no artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 411/98 não é apenas procedimental-instrumental; a mesma, uma vez atuada – o que se traduz na apresentação à autoridade competente de um pedido de autorização – significa substantivamente o exercício do mencionado direito de defesa da memória do falecido quanto ao destino dos seus restos mortais».

Devendo, pois, atuar a regra da maioria, não podem os 6 Autores, bisnetos, fazer vingar a sua oposição ao ato impugnado – consubstanciado na honorífica trasladação para o Panteão Nacional dos restos mortais do Escritor GG, determinada pela Assembleia da República -, em face da expressa adesão de 13 descendentes, também bisnetos.

A tal não devem obstar as anteriores conversações preparatórias, em 1988, para possível trasladação do corpo do Escritor para o Panteão, então abandonadas por oposição de netos, pois que, ainda que essa oposição tivesse sido formal e unânime – o que não resulta comprovado -, sempre seria impensável que uma posição tomada, em determinada momento e num dado contexto, por parte dos conjunturais descendentes da altura, pudesse ter o efeito de comprometer, para todo o sempre, a possibilidade de futuras, e acaso distantes, iniciativas de homenagem.

Também, a este respeito, se pronunciou o Pleno no seu Acórdão:
«(…)Tudo depende, na perspetiva aqui adotada, da interpretação ou determinação da vontade real ou presumível feita por quem tem legitimidade para tanto, não podendo excluir-se “a priori” que novas circunstâncias ou imprevistos imponham uma reponderação de decisões anteriormente adotadas».

13. Os Autores assentam, também, a sua alegação de invalidade do ato suspendendo na circunstância de não terem sido auscultados, pela Assembleia da República, quanto ao propósito da trasladação dos restos mortais do Escritor para o Panteão.

Porém, seguindo a solução legal da relevância da vontade da maioria dos atuais descendentes mais próximos, como acima se expôs, o que o Parlamento teria de ter assegurado era que essa maioria se verificava “in casu”. E tudo aponta para que assim o tenha feito, tendo-lhe sido comunicado, designadamente através da “Fundação GG”, que tal maioria se verificava – o que veio, de resto, a comprovar-se ser inteiramente verdade, e, como vimos, por larga margem.

Assim, a auscultação individual dos Autores – não prevista no específico procedimento regulado na Lei nº 28/2000, de 29/11 (“Regime legal que define e regula as honras do Panteão Nacional”) – sempre seria um ato inútil visto que, ainda que manifestando a sua oposição, esta em nada relevaria, por ser uma posição minoritária, em face de uma outra posição, maioritária, já manifestada.

Mas ainda que devessem ter sido auscultados, tal omissão não seria suscetível de obstar ao aproveitamento do ato, nos termos previstos no art. 163º nº 5 c) do CPA, provado que ficou que, mesmo que tivesse sido levado a cabo tal auscultação dos Autores e estes se opusessem (como se opõem), o ato impugnado poderia, ainda assim, ser validamente praticado, em vista da clara maioria dos familiares/descendentes a favor da trasladação e a consequente clara minoria dos familiares/descendentes em oposição (os ora Autores).

Lendo, mais uma vez, o citado Acórdão do Pleno:
«(…) existindo uma pluralidade de herdeiros ou familiares legitimados para o efeito, o critério decisivo da autorização ou não oposição é o da maioria, e não o da unanimidade (cfr. supra o n.º 14). “In casu”, verifica-se a existência de uma maioria de pessoas legitimadas nos termos do artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 411/98 de que não fazem parte os seis recorrentes (cfr. as alíneas d), e) f) e g) dos factos provados). Consequentemente, a expressão da vontade destes quanto à exumação e posterior trasladação não é essencial para a autorização destes atos, razão por que a sua não audição também não consubstancia no caso concreto uma violação do conteúdo essencial do mencionado direito fundamental, nos termos e para os efeitos da alínea d) do artigo 161.º, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo.
Acresce, conforme decorre do artigo 31.º-A do Decreto-Lei n.º 411/98 e da própria Lei n.º 28/2000 (que define e regula as honras do Panteão Nacional), que não se encontra previsto legalmente um procedimento específico destinado a auscultar aqueles que se devem pronunciar em defesa da memória da pessoa homenageada (cfr. supra o n.º 12), razão por que não pode falar-se “in casu” da “preterição absoluta do procedimento legalmente previsto”, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea l) do artigo 161.º, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo.
Estas duas circunstâncias afastam a invocada nulidade do ato suspendendo».

14. Ainda que afastados, por improcedentes, todos os vícios imputados pelos 6 Autores ao ato que impugnam, não se deixa de reconhecer razão à Ré “AR” quando afirma, na sua contestação, que, em todo o caso, apenas vícios geradores de nulidade poderiam ainda ser atuantes, pois que sempre seria de considerar intempestiva, à luz do prazo de 3 meses previsto no art. 58º nº 1 b) do CPTA, a impugnação de vícios geradores de mera anulabilidade.

Na verdade, tal prazo de 3 meses, contado desde a publicação do ato impugnado em DR (5/2/2021) – não se tratando de ato que devesse ser notificado aos Autores (cfr. art. 59º nº 3 do CPTA) – esgotara-se há muito à data da propositura da presente ação impugnatória, ocorrida quase 3 anos depois.

15. Por fim, há que referir que nunca seria possível atender ao segundo pedido formulado pelos Autores - «2. Ser determinado à Assembleia da República que promova as diligências necessárias à execução das honras de Panteão Nacional concedidas a GG, sob a forma legalmente prevista alínea b) do nº 2 do artigo 2º da Lei nº 28/2000, de 29 de Novembro, através da aposição, nesse local, de placa alusiva à sua vida e à sua obra» -, pois que este tribunal administrativo sempre seria incompetente, em razão da matéria, para condenar a Ré “AR” à prática de um ato de natureza política – cfr. art. 4º nº 3 a) do ETAF.


IV. Decisão

Por tudo o exposto, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202º da Constituição da República Portuguesa, em:

- Julgar improcedente a presente ação.

Custas pelos Autores.

D.N.

Lisboa, 20 de junho de 2024 – Adriano Fraxenet de Chuquere Gonçalves da Cunha (relator) – Maria do Céu Dias Rosa das Neves – Cláudio Ramos Monteiro.