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Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0164/23.5BCLSB
Data do Acordão:09/12/2024
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:PEDRO MACHETE
Descritores:LEI DE AMNISTIA
INFRACÇÃO DISCIPLINAR
ILÍCITO PENAL ADMINISTRATIVO
INTERPRETAÇÃO DA LEI
IDADE
AMNISTIA
PERDÃO
PENA DISCIPLINAR
Sumário:I - O advérbio “igualmente” no corpo do n.º 2 do artigo 2.º da Lei da Amnistia - alteração introduzida em sede de apreciação na especialidade da proposta de lei inicial - significa, não apenas um alargamento da clemência a outros ilícitos que não o criminal, como também a consagração de um regime próprio desse alargamento, em especial no tocante ao âmbito subjetivo: não apenas os ilícitos praticados “por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto”, mas os ilícitos disciplinares, incluindo os disciplinares militares, que, respeitando a delimitação material positiva e negativa prevista nos artigos em que tal clemência é densificada – designadamente no artigo 6.º - independentemente da idade da pessoa que os tenha praticado.
II - Conforme resulta dos trabalhos preparatórios da Lei da Amnistia, a simultânea alteração do artigo 1.º (objeto) reforça este entendimento, passando a salientar-se apenas o caráter comemorativo ou festivo das medidas de clemência em causa.
III - O artigo 7.º, n.º 1, da Lei da Amnistia vem consagrar ‘limites substantivos’ diretos à aplicação das medidas de clemência referentes a ilícitos penais – a amnistia e o perdão – e, indiretamente, por via da delimitação negativa operada no artigo 6.º em relação a infrações disciplinares que constituam simultaneamente ilícitos penais, também à amnistia de infrações disciplinares e infrações disciplinares militares.
IV - A amnistia reporta-se a infrações (aos factos), excluindo a punição das mesmas como crimes, desde que praticadas até um determinado momento e sem prejuízo de os tipos penais correspondentes continuarem a valer para o futuro (a mesma apaga retroativamente a punibilidade criminal dos factos típicos, continuando os tipos penais a valer, por inteiro, para o futuro (trata-se por isso, de um pressuposto negativo da punição, e não um modo de extinção da infração); já o perdão (genérico) opera sobre a pena aplicada pela prática de crimes.
V - Uma vez que, nos termos do artigo 128.º do Código Penal, a amnistia (própria) extingue o procedimento criminal e, no caso de ter havido condenação definitiva, faz cessar a execução da pena (amnistia imprópria), existe uma articulação entre amnistia imprópria e perdão (que ganha relevo na ressalva contida no artigo 3.º, n.º 1, da Lei da Amnistia): em caso de possível aplicação cumulativa, a primeira consome o segundo.
VI - E, na verdade, visando o artigo 7.º, n.º 1, da Lei da Amnistia constituir uma exceção à aplicação daqueles dois tipos de medidas de clemência penal (a amnistia, sem distinguir a própria da imprópria, e o perdão de penas – cfr. o respetivo n.º 3), a expressão “condenados” prevista nos n.ºs 1 e 2 do citado artigo 7.º tem de ser interpretada no sentido de abranger também os sujeitos responsáveis ou autores dos crimes e contraordenações enunciados nesses preceitos – ou seja, aqueles que beneficiam de amnistia própria – e não exclusivamente as pessoas condenadas por sentença transitada em julgado (beneficiárias de uma amnistia imprópria ou de um perdão genérico).
VII - Com efeito, são essas as medidas referidas no corpo dos n.ºs 1 e 3 do artigo 7.º (o “perdão e a amnistia previstos na presente lei” ou o “perdão e [a] amnistia previstos nos números anteriores”) e, outrossim, no corpo do n.º 2 do mesmo preceito (“as medidas previstas na presente lei”) e só desse modo se consegue impedir que os sujeitos responsáveis pela criminalidade muito grave possam beneficiar das medidas de clemência previstas na Lei da Amnistia e assegurar a intencionada prevenção do alarme social, finalidades que desde o início também estiveram no centro das preocupações do legislador.
Nº Convencional:JSTA00071867
Nº do Documento:SA1202409120164/23
Recorrente:AA
Recorrido 1:FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL
Votação:UNANIMIDADE
Legislação Nacional:LEI 38-A/2023 ART2 ART6 ART7
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I. Relatório

1. Nos presentes autos de recurso de revista vindos do Tribunal Central Administrativo Sul (“TCAS”), vem AA recorrer do acórdão daquele tribunal, datado de 11.04.2024, revogatório do Despacho n.º ..., decisão proferida em 18.10.2023 pelo Tribunal Arbitral do Desporto (“TAD”), que julgou amnistiadas as infrações disciplinares por que aquele fora punido por deliberação do Conselho de Disciplina da FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL (“FPF”), posteriormente confirmada por acórdão do TAD 10.07.2023, e que, em consequência, não admitiu o recurso de apelação interposto deste último aresto.

2. Com efeito, o aqui recorrente intentou no TAD contra a FPF, ora recorrida, ação administrativa de impugnação da citada deliberação do Conselho de Disciplina, que, pela prática de cinco infrações disciplinares, previstas e punidas pelo artigo 125.º, n.º 1, em conjugação com o artigo 183.º, n.º 1, ambos do Regulamento Disciplinar da FPF (“RDFPF”), o puniu com uma pena de suspensão pelo período de 35 meses e com uma multa no montante de 50 UC's (€ 5 100,00). Pelo mencionado acórdão do TAD, de 10.07.2023, foi a ação julgada improcedente.
O então demandante apelou para o TCAS, mas o TAD, em sede de admissão do recurso, através do mencionado Despacho n.º ..., com um voto de vencido, declarou amnistiadas as infrações pelas quais aquele havia sido punido e, em consequência, não admitiu o recurso por «a decisão impugnada ter deixado de lhe ser desfavorável».
Deste Despacho n.º ..., interpôs a então demandada, aqui recorrida, recurso para o TCAS, ao qual, por acórdão de 11.04/2024, foi concedido provimento, revogando-se tal Despacho e ordenando-se a remessa dos autos ao TAD para aí se verificar da admissibilidade do recurso interposto do acórdão arbitral de 10.07.2023.
É daquele acórdão do TCAS que vem interposto o presente recurso de revista.

3. O recorrente rematou as suas alegações com as seguintes conclusões:
«[…]
3. Como é sabido, a amnistia possui, em geral, uma natureza mista, no sentido em que tem, por um lado, significado jurídico-substantivo ao nível da doutrina da consequência da infração, configurando-se como um pressuposto negativo da punição, e, por outro, possui um específico cunho processual, que a faz surgir, no âmbito do direito procedimental, como um verdadeiro pressuposto processual, ora como obstáculo ao procedimento jurisdicional, ora como obstáculo à execução da sanção.
4. A amnistia de infrações disciplinares é objeto de tratamento autónomo no diploma aqui em apreço, no qual se prevê um regime próprio de exceção à sua aplicação. Isto é, no artigo 6.º da Lei n.º 38-A/2023, o legislador não só estatuiu a amnistia das infrações disciplinares e infrações disciplinares militares, como estabeleceu, logo ali, os casos em que a mesma não se aplica: como se referiu, os casos em que as 3infrações constituem simultaneamente ilícitos penais não amnistiados e os casos em que a sanção aplicável é superior às de suspensão ou prisão disciplinar.
5. “A amnistia extingue o procedimento disciplinar e no caso de já ter havido condenação, mesmo que definitiva na ordem jurídica desportiva ou transitada em julgado, faz cessar a execução tanto da sanção principal como das sanções acessórias” (n.º 1), sendo que, neste último caso, «A aplicação da amnistia a condenações proferidas por decisão definitiva na ordem jurídica desportiva ou transitada em julgado será feita por decisão da Secção Disciplinar em procedimento próprio” (n.º 4).
6. Quanto ao argumento do Tribunal a quo, nas exclusões de aplicação previstas no apontado artigo 7°, a lei em causa é extremamente clara ao dizer que no âmbito dos crimes contra as pessoas não beneficiam os condenados: por outras palavras, só não beneficiam da amnistia ou perdão “OS CONDENADOS” por determinados crimes, nos quais, realmente, se poderiam vir a incluir, em termos abstratos, as atuações pelas quais o Demandante foi condenado disciplinarmente.
7. Não existiu qualquer condenação, como o processo crime que foi instaurado ao Recorrente foi arquivado, factualidade mais do que conhecida no âmbito dos presentes autos.
8. Pelo que, acreditamos que o Tribunal a quo tenha sido astutamente levado a erro na apreciação do recurso da [FPF]. Não foi “condenado”, nem sequer existiu [sic] indícios para que o procedimento criminal avançasse para a acusação – “Arquivado por falta de indícios” – processo 17../22...., que correu termos [n]o DIAP ... – pelo que essa causa de exclusão não nos parece vingar no caso concreto.
9. Assim, pelas razões expostas, entendemos que, mostrando-se verificados todos os pressupostos materiais e temporais de aplicação do referido regime de amnistia, a infração pela qual a mesma foi condenada se encontra amnistiada, extinguindo-se, consequentemente, a sua responsabilidade disciplinar, e, por essa via, deve [o] presente Tribunal revogar a decisão do Tribunal a quo.
10. No caso vertente, está em causa a aplicação de sanções disciplinares não superiores a suspensão.
11. A infração em causa não constitui simultaneamente ilícito penal não amnistiado pela sobredita lei.
12. Por outro lado, a infração disciplinar foi praticada em data anterior a 19/06/202[3], pelo que se encontra abrangida pelo âmbito temporal da Lei da Amnistia, cf. o respetivo artigo 2.º, n.º 1.
13. Como tal, a infração disciplinar encontra-se amnistiada, de acordo com o previsto nos artigos 2.º, n.º 1, e 6.º da Lei.».

4. A recorrida contra-alegou, sintetizando a sua posição nas seguintes conclusões:
«[…] 
7. O Recorrente não coloca – nem colocou no recurso que apresentou da decisão do TAD – em causa a matéria de facto dada como provada, reconhecendo que as mensagens em crise nos autos foram pelo Recorrente escritas e enviadas às jogadoras [em] questão, dando-se como assente a factualidade dada como provada;
8. Em causa nos presentes autos estão comportamentos do Recorrente que foi sancionado em virtude de por diversas comunicações mantidas com as suas jogadoras, seduzi-las e ultrapassar a mera ligação profissional e desportiva entre treinador e jogadoras, o que deixou as jogadoras nervosas, desconfortáveis, tristes, sentindo-se humilhadas e constrangidas na sua liberdade e na sua dignidade pessoal, além de impotentes para contrariar aquelas condutas, tendo em conta a posição de superioridade hierárquica assumida pelo treinador principal relativamente às suas jogadoras", e bem assim, "ao insistir, reiteradamente, em questões e temáticas que colocavam uma tónica mais pessoal e íntima nas conversas e interações mantidas com as suas jogadoras, mesmo quando as jogadoras demonstravam não se sentir confortáveis ou à-vontade com tais questões, o agente da prática das aludidas infrações evidenciou um tom algo persecutório, limitativo e castrador da liberdade pessoal daquelas jogadoras e, em última análise, da sua dignidade – procurando [c]onstrangê-las a adotar o comportamento que ele pretendia e que se traduziria numa aproximação mais íntima e afetiva;
9. A matéria dos presentes autos assume especial relevância no que diz respeito aos mais elementares direitos constitucionalmente consagrados, designadamente os princípios da dignidade humana – artigo 1.º da CRP – da igualdade – artigo 13.º da CRP – da proteção de qualquer forma de discriminação – artigo 26.º da CRP – e da prevenção de fenómenos de violência no desporto – artigo 79.º da CRP.
10. No plano desportivo, o legislador ordinário elegeu a ética desportiva como princípio basilar da construção do sistema legal, no âmbito do qual a prevenção da violência assume lugar de destaque – LBAFD, havendo que registar o disposto no artigo 12.º, n.ºs 1 e 2 do RDFPF,
11. As manifestações de discriminação como as em crise nos presentes autos integram as "patologias" com que o Desporto se tem deparado e que urge erradicar de forma preventiva e de forma repressiva, quando necessário, como é o caso dos presentes autos; Prosseguindo,
12. Da redação do artigo 2.° da Lei da Amnistia, não podem resultar dúvidas de que foi intenção do legislador restringir aos "jovens" com 16 a 30 anos, os efeitos da referida Lei;
13. Tal enquadramento é aliás conferido pela Exposição de Motivos da referida Lei, onde se afirma expressamente que […];
14. O próprio título da iniciativa legislativa não permite equívocos: "Estabelece perdão de penas e amnistia de infrações praticadas por jovens";
15. A redação inicial da Proposta de Lei 97/XV/1 previa, sem margem para dúvidas, que o âmbito de aplicação da Lei, abrangendo ilícitos penais, contraordenacionais e disciplinares, se aplicava a pessoas singulares entre o 16 e 30 anos, para infrações praticadas até às 00h de dia 19 de julho de 2023;
16. Pese embora a redação final do diploma tenha sido distinta da inicialmente prevista, tal não impede que a melhor interpretação da norma seja a de que apenas serão amnistiadas as infrações disciplinares praticadas até às 00:00 horas de dia 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto;
17. Enquanto o n.º 1 do artigo 2.° refere os ilícitos penais e limita subjetivamente o âmbito de aplicação da Lei, restringindo a pessoas singulares entre os 16 e os 30 anos de idade à prática do facto, o n.º 2, nada dispondo sobre tal âmbito subjetivo, visa, apenas alargar o âmbito de infrações a que a Lei se pode aplicar: contraordenacionais e também infrações disciplinares;
18. Esta é a única interpretação conforme ao espírito legislativo e à própria razão de ser da aprovação desta Lei da Amnistia em específico;
19. Em concreto, o perdão e a amnistia de penas devem ser sempre vistos e aplicados com um enquadramento de exceção, ademais quando determinada por razões de clemência religiosa; 
[…]
23. Mas se tal elemento interpretativo não se considerar suficiente, apesar de ser conferido por quem pensou e redigiu as normas aqui em crise, refira-se que as mais diversas entidades que se pronunciaram sobre a referida Lei, alinham em interpretação idêntica, talvez “à boleia” das pistas interpretativas que o legislador forneceu;
24. No âmbito dos trabalhos parlamentares, o Conselho Superior do Ministério Público, o Conselho Superior de Magistratura, a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias e a Ordem dos Advogados, emitiram Pareceres cuja interpretação contraria a interpretação do Tribunal a quo, como resulta das presentes alegações e aqui [s]e dá por reproduzido;
25. Da análise comparativa com outros diplomas emanados pelo Estado Português por ocasião de visitas papais – a saber a Lei n° 17/82 de 2 de julho e a Lei n° 29/99, de 12 de maio – é possível concluir que o critério subjetivo da idade foi já usado, o que o Tribunal a quo faz com acerto;
26. Tal exercício interpretativo de uma Lei que se “pretende” aplicar deve ser levado a cabo pelo julgador do caso concreto, como sucede no Acórdão recorrido.
27. À data da prática dos factos, o Recorrente, nascido em ../../1982, conforme decorre do processo disciplinar junto aos autos, tinha 38 anos, pelo que, não pode beneficiar do regime previsto nesta Lei n.° 38-A/2023; 
28. A vingar o entendimento do Recorrente, verificar-se-ia, por exemplo e como refere o Tribunal a quo, “nos termos da al. l) do n.º 1 do art.º 7.º da referida Lei, não beneficiassem da amnistia “Os autores das contraordenações praticadas sob influência de álcool ou de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo”, mas que no âmbito dos crimes contra a vida em sociedade (al. d) do n.º 1 do art.º 7.º), entre os quais se encontram os crimes de condução de veículo em estado de embriaguez (ii) se exigisse a condenação (transitada em julgado)” o que careceria totalmente de sentido;
29. Ademais, tendo o Recorrente 38 anos à data da prática dos factos, e sendo os mesmos subsumíveis à prática de crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual, previstos nos artigos 163.º a 176.º-B do Código Penal, sempre se afastaria, como bem se afastou, a aplicação da Lei da Amnistia;
Sem prescindir,
30. Entende o Recorrente que o Tribunal a quo erra ao não aplicar a Amnistia, fazendo uma interpretação extensiva da letra da lei, designadamente no que à interpretação da palavra “condenado” que consta da redação do artigo 7.º da Lei da Amnistia, entendendo o Recorrente que a delimitação subjetiva que consta daquele normativo não se aplica a infrações disciplinares, mas apenas às infrações penais;
Vejamos,
31. O mencionado diploma – Lei da Amnistia – abrange quer os ilícitos penais, quer as sanções acessórias relativas a contraordenações e as sanções relativas a infrações disciplinares e infrações disciplinares militares;
32. No que toca às infrações disciplinares, para poderem estar abrangidas pela amnistia, não podem constituir, em simultâneo, ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável seja superior a suspensão ou prisão disciplinar – cfr. alínea a) do n.° 2 do artigo 2.º e artigo 6.º, ambos da Lei n.º 38-A/2023;
33. No elenco previsto no artigo 7.º, n.º 1 da Lei n.° 38-A/2023, constam os crimes “contra a liberdade e a autodeterminação sexual, previstos nos artigos 163.º a 176.º-B do Código Penal”;
34. Não resulta da Lei que as exclusões do artigo 7.º só operam, se tiver havido condenação penal pelos crimes previstos naquele artigo, porquanto, o que o artigo 6.° prevê é que “são amnistiadas as infrações disciplinares (...) que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei”, não fazendo qualquer referência à condenação em processo criminal;
35. Os ilícitos criminais não amnistiados pela presente Lei são os constantes no artigo 7.º e ali constam os crimes "contra a liberdade e a autodeterminação sexual, previstos nos artigos 163.° a 176.°-B do Código Penal", onde perfeitamente se subsumem os factos provados, conforme o próprio Tribunal a quo admite;
36. Se o legislador pretendesse afastar a Amnistia por via do disposto no artigo 6.° da Lei da Amnistia, apenas nos casos em que se verificasse uma condenação penal, tê-lo-ia previsto naquela norma em concreto e não o fez, porque não pretendeu fazê-lo;
37. Não é possível concluir da letra da Lei, que o agente de um facto que foi condenado em infração disciplinar, só não beneficiará da amnistia, se pelos mesmos factos tiver sido condenado em processo criminal e se o crime em concreto estiver no rol dos que constam no artigo 7.º da Lei da Amnistia, não se verificando o primeiro dos pressupostos na previsão legal;
[…]
40. Da análise comparativa com outros diplomas emanados pelo Estado Português por ocasião de visitas papais - a saber a Lei n° 29/99, de 12 de maio - é possível concluir que se verificou a opção de não amnistiar infrações disciplinares, cujos factos que estiveram na base de tal condenação, pudessem constituir simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pelas referidas leis, independente de condenação penal;
41. O que prevê o artigo 7.º da Lei da Amnistia é que não beneficiam do perdão e da amnistia os condenados pelos crimes ali previstos, porquanto como é evidente, apenas os condenados podem ser perdoados;
42. Não existe qualquer remissão legal que nos permita concluir que só não haverá amnistia de infrações disciplinares no caso de condenação pelos crimes previstos no artigo 7.º;
43. Em caso de se verificar uma infração disciplinar, desde que os factos em crise se possam subsumir nos crimes previstos no artigo 7.º, não se verifica qualquer amnistia, não se aplicando a Lei da Amnistia;
44. Essa é a única interpretação coincidente com a letra do artigo 6.º: “São amnistiadas as infrações disciplinares (...) que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei (...)”;
45. Apela-se aqui a uma categoria objetiva de ilícitos penais (os excluídos pelo artigo 4.° e os elencados no artigo 7.°) e não ao sujeito que os praticou (condenado ou não por tais crimes);
46. A opção do legislador foi a de “deixar de fora” do perdão e amnistia os factos praticados que possam subsumir-se na prática daqueles ilícitos penais excluídos pelo artigo 4.º e dos crimes previstos no artigo 7.º;
47. A vingar a interpretação do Recorrente, é possível um sujeito já condenado nos tribunais criminais por factos praticados exatamente nos mesmos moldes e no mesmo momento, não ver a infração disciplinar correspondente ser amnistiada, mas o Recorrente sim, em virtude de um mero acaso incontrolável por qualquer dos intervenientes, isto é, a existência de uma condenação, o que seria claramente violador do princípio da igualdade;
[…]
51. Como bem se sustenta no Acórdão recorrido, “tendo, no art. 7° n.° 1, al. a) da Lei n.° 38- A/2023, de 2 de agosto, o Legislador usado a palavra ‘condenado’ a letra da Lei terá de ser interpretada de forma textual, sistemática, racional e hodierna, tal significando que onde se lê: ‘condenado’ tal deverá ser entendido como ‘sujeito’ (não sendo, por isso, necessário que exista condenação com trânsito em julgado, mas a possibilidade de existir condenação)”
52. A vingar a tese do Recorrente, o resultado prático seria um desencorajar das vítimas de crimes “contra a liberdade e a autodeterminação sexual, previstos nos artigos 163.° a 176.°-B do Código Penal” de denunciarem quem os pratica, como sucedeu, recorde-se, no caso concreto dos presentes autos, o que resultaria em terreno fértil para que este tipo de comportamentos se tornasse ainda mais sistémico e transversal, o que a Sociedade e os Tribunais devem procurar evitar;
53. Em suma, não se verificando qualquer violação do disposto nos artigos 6.º e 7.º da Lei n.º 38.º-A/2023, andou bem o Tribunal a quo ao considerar não ser de aplicar a Lei da Amnistia no caso dos autos, devendo manter-se na íntegra.».

5. O recurso de revista foi admitido por acórdão de 20.06.2024, proferido nos termos do artigo 150.º, n.º 6, do CPTA, tendo a formação de apreciação preliminar fundamentado a sua decisão, nos termos seguintes:
«O aludido “Despacho n.º ...”, proferido com um voto de vencido, para julgar amnistiadas as infrações disciplinares pelas quais o Demandante havia sido punido considerou que a aplicação do art.° 6.°, da Lei n.° 38-A/2023, de 2/8, não estava limitada a pessoas de determinada idade e que ao caso não era aplicável a exclusão prevista no art.° 7.°, n.° 1, alínea a), subalínea v), por não constar que ele tivesse sido condenado por qualquer crime contra a liberdade e autodeterminação sexual tipificados nos art°s. 163.° a 176.°-B, do Código Penal.
O acórdão recorrido, por sua vez, entendeu que o Demandante não podia beneficiar da amnistia por, à data da prática dos factos, ter mais de 30 anos de idade e por as infracções disciplinares pelas quais foi punido serem passíveis de integrarem um ilícito criminal que, atento à sua idade, não estava amnistiado,
O Demandante […] imputa ao acórdão recorrido erro de julgamento, com o fundamento que, quanto às infrações disciplinares, a amnistia tem carácter puramente objetivo, sem limitações de âmbito subjetivo, como as referentes à idade e que, não tendo sofrido qualquer condenação em processo crime não lhe era aplicável a causa de exclusão prevista no citado art.º 7.º, n.º 1, al. a), sub. v).
Estão em causa nos autos as questões de saber se a amnistia das infrações disciplinares decretada pela Lei n.º 38-A/2023 se restringe às que são praticadas por pessoas com idade entre os 16 e os 30 anos e se, constituindo tais infrações simultaneamente ilícitos penais não amnistiados, só não beneficiará os que tenham sido efetivamente condenados pela prática destes crimes.
A posição dissonante que foi adotada pelas instâncias, [é] demonstrativa das dificuldades interpretativas da Lei n.º 38-A/2023, num domínio onde é premente a existência de certeza jurídica e a necessidade de assegurar um entendimento uniforme dos tribunais da jurisdição administrativa que inúmeras vezes serão chamados a decidir questões idênticas, justificam a admissão da revista.».

6. O MP emitiu parecer, nos termos do artigo 146.º, n.º 2, do CPTA, sustentando dever ser negado provimento à revista. Para o efeito, e assumindo que a questão da idade não foi colocada no presente recurso, considera que a questão a resolver é a de saber «se o termo “condenados” deverá ser interpretado como referindo-se aos “sujeitos / autores” daqueles ilícitos [referidos nas diferentes alíneas e subalíneas do artigo 7.º da Lei n.º 38-A/2023 (“Lei da Amnistia”) ] e não apenas aos indivíduos já condenados por sentença transitada em julgado, por ser essa a interpretação que melhor corresponde à vontade do legislador, com apoio na letra da lei.». E a sua conclusão, depois de analisados os trabalhos preparatórios, antecedentes jurisprudenciais dos tribunais comuns e contributos doutrinais, é a seguinte:
«[A]quilo que o legislador teve em mente foi o propósito firme de excluir das medidas de clemência os autores/sujeitos de determinados tipos de infrações (conforme termo utilizado no art. 1°), elencados no art. 7° da Lei da Amnistia, em função da gravidade das mesmas e não na dependência do facto de os seus autores/sujeitos terem ou não sido condenados. […]
No caso dos autos o Recorrente foi condenado, no processo disciplinar pela prática, anterior a 19/06/2023, de 5 infrações disciplinares previstas e sancionadas pelo art. 125° n° 1, ex vi do art. 183° n° 1, [comportamento discriminatório] ambos do Regulamento Disciplinar da Federação Portuguesa de Futebol (RDFPF), em cúmulo material, na sanção única de suspensão pelo período de 35 meses, isto é, 1050 dias e, cumulativamente, na sanção única de multa fixada em 50 UC, ou seja, € 5.100,00.
[Resulta dos artigos 2.º, n.º 2, alínea b), e 6.º da Lei n.º 38-/2023,] que, para estarem abrangidas pela amnistia, as infrações disciplinares não podem, desde logo, constituir, em simultâneo, ilícitos penais não amnistiados pela Lei n° 38-A/2023.
Ora, as infrações disciplinares pelas quais o Recorrente foi condenado são passíveis de constituir ilícitos criminais (crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual, p. e p. pelos arts. 163° a 176-B do C. Penal), ilícitos esses que […] não beneficiam da amnistia nem do perdão estabelecidos pela Lei n° 38-A/2023, de 02/08, por força da aplicação da norma contida no seu art. 7°, n° 1 al. a), [subal.] v).».


Sem vistos prévios, dada a natureza urgente do processo (artigo 36.º, n.ºs 1, alínea f), e 2, do CPTA), mas com disponibilização do projeto de acórdão aos Juízes Conselheiros adjuntos, vêm os autos à conferência para apreciar e decidir.

II. Fundamentação

A) Enquadramento factual

7. No tribunal a quo entendeu-se dar como assente a seguinte factualidade, já considerada no Despacho Arbitral n.º ...:
«”... O Colégio Arbitral desconhece, (...) a existência de qualquer processo-crime, muito menos uma condenação, que paire sobre o Demandante,
(...)
o Demandante foi condenado no processo disciplinar em causa: ‘pela prática de 5 (cinco) infrações disciplinares previstas e sancionadas pelo art. 125.°, n.° 1, ex vi art. 183.°, n.° 1, ambos do RDFPF, sendo-lhe aplicada: (i) pela prática, por uma vez, da infração disciplinar prevista e sancionada pelo art. 125.°, n.°1, do RDFPF, a sanção de suspensão pelo período de 9 (nove) meses, isto é, 270 (duzentos e setenta dias) dias, e, cumulativamente, a sanção de multa fixada em 10 UC, ou seja, € 1.020,00 (mil e vinte euros); (ii) e, por cada uma das demais 4 (quatro) infrações disciplinares previstas e sancionada pelo artigo 125.°, n.° 1, do RDFPF, por si praticadas e por que vem condenado, a sanção de suspensão pelo período de 6 (seis) meses e meio, ou seja, de 195 (cento e noventa e cinco) dias, e, cumulativamente, a sanção de multa fixada em 10 UC, ou seja, €1.020,00 (mil e vinte euros). Pelo que, em cúmulo material, condena-se o arguido AA na sanção única de suspensão pelo período de 35 (trinta e cinco) meses, isto é, 1050 (mil e cinquenta) dias, e, cumulativamente, na sanção única de multa fixada em 50 UC, ou seja, € 5.100,00 (cinco mil e cem euros);
Condenação essa mantida pelo acórdão deste Tribunal Arbitral (de 2023-07-10).
As infrações foram praticadas antes de 19 de junho de 2023 (...)
A pena aplicada em cúmulo material no processo disciplinar foi de suspensão, ou seja, não foi aplicável pena superior a suspensão (...).
(...) não sendo este também reincidente, de acordo com o seu cadastro disciplinar constante nos autos disciplinares e que o Tribunal Arbitral verificou...”.».

Refira-se que as cinco infrações disciplinares em causa, sancionadas pelo artigo 125.º, n.º 1, do RDFPF respeitam todas a «comportamentos repetidos» do aqui recorrente em relação a atletas de que era treinador – e em relação às quais tinha, portanto, uma posição de superioridade – que, no acórdão do TAD de 10.07.2023, são objetivamente «descritos como “assédio”, mas também discriminatório relativamente às jogadoras que se foram opondo aos seus insistentes contactos e mensagens e que, em relação às jogadoras, fez uso da sua qualidade de treinador e do seu ascendente como superior hierárquico das atletas para as constranger, humilhando-as e ofendendo-as» (cfr. o n.º 2 do sumário do citado acórdão do TAD).
Este aspeto é importante para compreender as questões jurídicas suscitadas no presente recurso – como, de resto resulta das alegações e das contra-alegações – e tem um afloramento expresso no voto de vencido aposto ao Despacho n.º ...:
«[Q]uando os factos que levaram à aplicação da sanção disciplinar sejam passíveis de integrar um ilícito criminal não amnistiado não pode esse ilícito disciplinar estar abrangido pela amnistia.
Ora, no elenco do artigo 7.°, n.° 1, da Lei n.° 38-A/2023, que enumera os ilícitos penais não amnistiados, constam os crimes “contra a liberdade e a autodeterminação sexual, previstos nos artigos 163.° a 176.°-B do Código Penal”.
Os factos em causa no presente processo, considerados provados por este Tribunal Arbitral na decisão, são passíveis de constituir ilícitos penais enquadráveis em crimes previstos nos artigos 163.º a 176.°-B do Código Penal.».

B) De direito

8. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações (artigos 144º, n.º 2, do CPTA e 608º, n.º 2, 635.º, nºs 4 e 5, e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPC ex vi artigo 140º, n.º 3, do CPTA).
No caso vertente, estão em causa os seguintes erros de julgamento imputados pelo recorrente ao acórdão recorrido: (i) a exigência como condição necessária da amnistia de infrações disciplinares de uma determinada idade mínima no momento da prática da infração – entre os 16 e os 30 anos –, no caso das infrações disciplinares a amnistiar constituírem simultaneamente ilícitos penais (conclusões 4, 10 e 11); e (ii) a consideração de que a infração disciplinar praticada pelo aqui recorrente constituiu simultaneamente um ilícito penal não amnistiado pela Lei da Amnistia, nos termos do respetivo artigo 6.º, em virtude de se encontrar abrangida pela exceção prevista no artigo 7.º, n.º 1, alínea a), subalínea v), do mesmo diploma (não beneficiam da amnistia, no âmbito dos crimes contra as pessoas, «os condenados por … [c]rimes contra a liberdade e autodeterminação sexual previstos nos artigos 163.º a 176.º-B do Código Penal» – cfr. as conclusões 6 a 8 e 11).
Se quanto a esta segunda questão, as conclusões das alegações de recurso são claras, no sentido de a mesma integrar o objeto do recurso, relativamente à primeira, tal já não sucede e o Ministério Público sustenta, inclusivamente, que o segmento decisório correspondente não foi posto em causa pelo recorrente no presente recurso de revista (cfr. supra o n.º 6). Justificam-se, por isso, algumas considerações adicionais a este respeito.

9. Tendo em conta o teor dos artigos 2.º (sanções e infrações abrangidas pela Lei n.º 38-A/2023) e 6.º (amnistia de infrações disciplinares e infrações disciplinares militares), o tribunal a quo começa por afirmar:
«[D]ir-se-ia que a Lei 38-A/2023, de 2 de agosto, no que às infrações disciplinares respeita - diversamente do que se passa quanto aos ilícitos penais -, não fazendo expressa referência a qualquer limite de idade do infrator, não consagra, por isso, qualquer limitação em razão da idade, e sendo conhecido o brocardo "ubi lex non distinguir nec nos distinguere debemus" (onde a lei não distingue, não cabe ao intérprete distinguir), impor-se-ia, à primeira vista, afirmar que a conclusão a retirar seria a de que a referida Lei não consagra qualquer limitação em razão da idade do infrator.».

Porém, logo a seguir, dando relevância ao artigo 1.º da mesma Lei (com a epígrafe “Objeto”) –, nomeadamente à realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude – a occasio legis da Lei da Amnistia –, em articulação com os seus artigos 2.º, n.º 2, alínea b), e 6.º, o mesmo tribunal conclui que nem sempre será assim, como o caso sub iudice ilustraria:
«Isto porque, como resulta dos autos, o recorrido [– aqui recorrente –] (nascido em ../../1982), tinha 38 (trinta e oito) anos, à data da prática das infrações disciplinares que, no caso, constituíam simultaneamente ilícitos penais, mas ilícitos penais que não seriam suscetíveis de ser amnistiados, exatamente, porque à data em que o recorrido praticou tais factos ilícitos já tinha mais de 30 (trinta) anos: cfr. art. 1°, art. 2° n.° al. b) e art. 6° todos da referida Lei 38-A/2023, de 2 de agosto. […]
Assim, interpretando a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto em conformidade com as regras da interpretação da Lei, concluímos que as infrações disciplinares não dependem de qualquer limite em razão da idade do infrator para poderem ser declaradas amnistiadas, desde que, com tal circunstância não consubstanciem ilícitos penais que sejam suscetíveis de ser simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela Lei da Amnistia de 2023 em razão da idade (recorde-se: entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto): cfr. art. 1°, art. 2° e art. 6° todos da referida Lei 38-A/2023, de 2 de agosto; art. 9° n° 1 do Código Civil - CC, Vol. I. anotado por Antunes Varela e Pires de Lima.
Ou seja, quando os factos que levaram à aplicação da sanção disciplinar sejam passíveis de integrar um ilícito criminal não amnistiado não pode esse ilícito disciplinar ser abrangido pela amnistia, como desacertadamente concluiu o despacho arbitral n.° … ora recorrido: […].».

Deste modo, por via do apelo ao pretexto invocado para a aprovação da Lei da Amnistia – a realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude –, o tribunal a quo acaba por retirar uma parte da autonomia ao regime consagrado na mesma lei para a amnistia de infrações disciplinares – e que se mostra claramente indiciada pelo advérbio de modo “igualmente” utilizado no corpo do n.º 2 do artigo 2.º – tal como decorre dos seus artigos 2.º, n.º 2, alínea b), e 6.º: a lei em causa só não abrange aquelas infrações quando estas constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados ou sejam puníveis com uma sanção superior à suspensão (ou prisão disciplinar). Nessa medida, as aludidas conclusões 4, 10 e 11 das alegações do recorrente podem ser lidas no sentido de impugnarem o citado entendimento do acórdão recorrido. Tal é reforçado pela seguinte afirmação contida no corpo daquelas alegações:
«Das citadas normas [– dos artigos 2.º, n.º 2, alínea b), e 6.º, da Lei da Amnistia –] decorre, consequentemente, que considerar-se-ão amnistiadas as infrações disciplinares que reúnam os seguintes pressupostos cumulativos:
a) Respeitem a factos ocorridos em data anterior a 19/06/2023;
b) Não constituam concomitantemente ilícitos penais ou, em caso afirmativo, estejam tais ilícitos abrangidos pela Lei n.° 38-A/2023;
c) Sejam puníveis com sanção de suspensão ou com sanção de natureza igual ou inferior.
Nas mesmas não se inclui, pois, qualquer delimitação subjetiva de agentes abrangidos pelo regime de amnistia, afigurando-se que o mesmo, na parte relativa às infrações disciplinares, apresenta um caráter puramente objetivo, sem limitações de âmbito subjetivo (o que apenas acontece no que respeita às infrações penais).
Neste sentido, o regime em apreço mostra-se aplicável […] contanto unicamente que estejam em causa sanções relativas a infrações disciplinares que cumpram quer o critério temporal previsto no artigo 2.°, n.° 2, alínea b), quer o critério de gravidade expresso no artigo 6.° da referida lei, como claramente sucede no caso em apreço.» (itálicos acrescentados).

O acórdão que admitiu a revista considerou igualmente esta leitura (em rigor, até parece ir mais longe, uma vez que não limita a indagação às “infrações disciplinares que constituam simultaneamente ilícitos penais”): uma das questões em causa na presente revista é a de «saber se a amnistia das infrações disciplinares decretada pela Lei n.º 38-A/2023 se restringe às que são praticadas por pessoas com idade entre os 16 e os 30 anos» (cfr. supra o n.º 5).
Finalmente, a entender-se de outro modo, nomeadamente como preconizado pelo Ministério Público, o presente recurso seria inútil e nem sequer deveria ter sido admitido. Com efeito, o acórdão recorrido assenta em dois fundamentos alternativos e a limitação do objeto do recurso a um deles impediria, mesmo em caso de procedência das razões invocadas pelo recorrente, que a decisão do tribunal ad quem modificasse o essencial do decidido pela instância recorrida, ou seja, a não aplicação da Lei da Amnistia ao recorrente. A ser assim, faltaria a este último interesse em agir, não devendo conhecer-se do mérito do recurso.
Considera-se, assim, que o recorrente também quis impugnar o entendimento do tribunal a quo de que a amnistia de infrações disciplinares que constituam simultaneamente ilícitos penais pressupõe que o infrator, no momento da prática do facto, tivesse entre 16 e 30 anos (cfr. as conclusões 4, ao e 11 das alegações de recurso).

10. A questão da idade dos beneficiários das medidas de clemência objeto da Lei da Amnistia foi central e muito controvertida desde a apresentação da proposta de lei correspondente (Proposta de Lei n.º 97/XV/1.ª).
Esta última visava estabelecer um perdão de penas e uma amnistia de infrações praticadas apenas por jovens, delimitando o seu âmbito de aplicação subjetivo em conformidade:
«Estão abrangidas pela presente lei as infrações praticadas até às 00:00 horas de dia 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto.» (cfr. o respetivo artigo 2.º).

Ou seja, amnistiadas, nos termos do artigo 4.º da mesma proposta, eram apenas as infrações – contraordenações, infrações disciplinares e ilícitos disciplinares militares e as infrações penais – cometidas por jovens, tal como definidos no artigo 2.º, no período temporal fixado nesse preceito. E a justificação desta escolha resultava da Exposição de motivos do diploma:
«Uma vez que a JMJ [– a Jornada Mundial da Juventude –] abarca jovens até aos 30 anos, propõe-se um regime de perdão de penas e de amnistia que tenha como principais protagonistas os jovens. Especificamente, jovens a partir da maioridade penal, e até perfazerem 30 anos, idade limite das JMJ. Assim, […] porque o âmbito da JMJ é circunscrito, justifica-se moldar as medidas de clemência a adotar à realidade humana a que a mesma se destina».

Este fundamento foi, depois, desenvolvido e reforçado no discurso da Ministra da Justiça de apresentação da proposta de lei na Assembleia da República (v. DAR, 1.ª série, n.º 149, de 5.07.2023, pp. 36-38). Mas logo, nessa altura, o mesmo confrontou-se com dúvidas quanto à respetiva admissibilidade constitucional – entretanto já esclarecidas pelo Ac. TC n.º 471/2024 – e a crítica expressa à sua aplicação, por exemplo, às contraordenações (foi o caso da Iniciativa Liberal; cfr. DAR, cit., p. 41).
Não é assim de admirar que, em sede de apreciação na especialidade, tenham sido apresentadas propostas de alteração dos artigos referentes ao objeto (artigo 1.º: «A presente lei estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações praticadas por jovens») e ao âmbito (artigo 2.º: «Estão abrangidas pela presente lei as infrações praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto») da iniciativa legislativa em análise. Procurou-se, designadamente, distinguir o âmbito de aplicação subjetivo das medidas de clemência em matéria criminal (perdão de penas e amnistia de infrações criminais) do das medidas de clemência referentes às contraordenações e aos ilícitos disciplinares (cfr. os trabalhos preparatórios a partir da hiperligação https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=173095, em especial, as propostas de alteração apresentadas pelos Grupos Parlamentares do PS e do PSD).
O texto final que veio a ser aprovado e que consta hoje da Lei n.º 38-A/2023 reflete as alterações propostas pelo PS em 17.07.2023 (cfr. DAR, 2.ª série-A, n.º 262, 18.07.2023, pp. 196-197):

«Artigo 1.º
Objeto
A presente lei estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude.

Artigo 2.º
Âmbito
1 - Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º.
2 - Estão igualmente abrangidas pela presente lei as:
a) Sanções acessórias relativas a contraordenações praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 5.º;
b) Sanções relativas a infrações disciplinares e infrações disciplinares militares praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 6.º.» (em itálico, as alterações em relação ao texto da Proposta de Lei n.º 97/XV/1.ª).
É deste modo inequívoca a vontade do legislador de autonomizar o âmbito de aplicação subjetivo das medidas de clemência previstas para cada tipo de ilícito abrangido pela Lei n.º 38-A/2023. O advérbio “igualmente” no corpo do n.º 2 do seu artigo 2.º significa, deste modo, não apenas um alargamento da clemência a outros ilícitos, como também a consagração de um regime próprio desse alargamento, em especial no tocante ao âmbito subjetivo: não apenas os ilícitos praticados “por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto”, mas os ilícitos disciplinares, incluindo os disciplinares militares, que, respeitando a delimitação material positiva e negativa prevista nos artigos em que tal clemência é densificada – designadamente no artigo 6.º–independentemente de quem os tenha praticado ser uma pessoa naquelas condições. Isto mesmo foi expressamente salientado aquando da votação final global do novo texto: «o texto final global que vamos votar traz-nos três alterações face à proposta de lei do Governo. [O] âmbito da lei é modificado e deixa de abranger apenas as infrações cometidas por pessoas que, à data dos factos, tivessem entre 16 e 30 anos, para passar a abranger, para além das sanções penais relativas aos ilícitos por estas praticados, as sanções acessórias relativas a contraordenações e as sanções relativas às infrações disciplinares e infrações disciplinares militares.» (itálicos acrescentados; v. intervenção da BB in DAR, 1.ª série, n.º 153, de 20.07.2023, p. 112; no sentido da exclusão do critério da idade relativamente às infrações disciplinares, v. também Pedro Brito, “Notas práticas referentes à Lei n.º 38-A/20023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude” in Julgar Online, agosto de 2023, pp. 5-6).
A simultânea alteração do artigo 1.º (objeto) reforça este entendimento, passando a salientar-se apenas o caráter comemorativo ou festivo das medidas de clemência em causa.
E, no mesmo sentido, concorre o entendimento comum de que, enquanto providências de exceção, as leis de amnistia devem interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, não devendo estabelecer-se por via hermenêutica distinções que o legislador não tenha consagrado expressamente (cfr., entre muitos outros, o Ac. TRL, de 24.01.2024, P. 778/23.3T8PDL-A.L1-, com abundantes referências jurisprudenciais).

11. A esta luz compreende-se que a exclusão da amnistia de infrações disciplinares que constituam simultaneamente ilícitos penais apenas em função do critério etário previsto no artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, tal como realizada no acórdão recorrido, corresponde a um erro de julgamento que não pode manter-se.
Recorde-se que, segundo o tribunal a quo,
«[I]nterpretando a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto em conformidade com as regras da interpretação da Lei, concluímos que as infrações disciplinares não dependem de qualquer limite em razão da idade do infrator para poderem ser declaradas amnistiadas, desde que, com tal circunstância não consubstanciem ilícitos penais que sejam suscetíveis de ser simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela Lei da Amnistia de 2023 em razão da idade (recorde-se: entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto) […].
Ou seja, quando os factos que levaram à aplicação da sanção disciplinar sejam passíveis de integrar um ilícito criminal não amnistiado não pode esse ilícito disciplinar ser abrangido pela amnistia […].».

A circularidade deste raciocínio resulta evidente e deve-se à circunstância de não se atentar que a remissão contida no artigo 2.º, n.º 2, alínea b), da Lei da Amnistia para o respetivo artigo 6.º já exclui a possibilidade de considerar a restrição etária prevista no n.º 1 do mesmo artigo 2.º. De outro modo, a limitação da exclusão da amnistia por razões conexas com a idade do infrator apenas às infrações penais – objetivo ativamente prosseguido pelas diversas alterações propostas em relação ao texto originário da Proposta de Lei n.º 97/XV/1.ª – ficaria comprometida e veria o seu âmbito de aplicação alargado às infrações disciplinares. Mas, como analisado no número anterior, não foi essa a intenção do legislador; este, ao autonomizar o âmbito de aplicação subjetivo da amnistia das sanções acessórias relativas a contraordenações e aos ilícitos disciplinares, e remeter a densificação dos respetivos regimes para os artigos 5.º e 6.º, visou, justamente, tais sanções acessórias e os referidos ilícitos disciplinares, sem prejuízo de outras limitações, nomeadamente as relacionadas com critérios objetivos de gravidade, sejam amnistiados com independência de qualquer critério etário. Por outras palavras, os artigos 5.º e 6.º da Lei da Amnistia só podem ser lidos em função do âmbito definido, respetivamente, nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 2.º; e não, também, do n.º 1 do mesmo preceito.
Ora, a interpretação do artigo 6.º da Lei n.º 38-A/2023 realizada no acórdão recorrido, pressupõe a respetiva articulação com o n.º 1 do artigo 2.º do mesmo diploma, ignorando, desse modo, a separação de âmbitos subjetivos e a autonomização de regimes dos diferentes ilícitos introduzida pelo n.º 2 daquele artigo. Concretizando no que se refere às infrações disciplinares: estão igualmente abrangidas pela Lei da Amnistia as infrações disciplinares praticadas no âmbito temporal legalmente definido, independentemente de o infrator ser uma pessoa que tenha entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto.
Procedem, por isso, as conclusões 4, 10 e 11 das alegações do recorrente e, consequentemente, verifica-se o erro de julgamento imputado ao acórdão recorrido (cfr. supra o n.º 8).
Refira-se, por último, que a jurisprudência do TCAS tem sido consistente no sentido de considerar não existir uma restrição respeitante à idade para a aplicação da amnistia decretada pela Lei n.º 38-A/2023 relativamente às infrações disciplinares (v., a título de exemplo, os Acs. TCAS, de 11.04.2024, P. 20/24.0BCLSB; de 6.06.2024, P. 437/22.4BELRA; e de 6.06.2024, P. 3049/22.9BELSB).

12. No que se refere à questão objeto das conclusões 6 a 8 e 11 das alegações do recorrente – saber se as infrações disciplinares por que foi punido o aqui recorrente constituem simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela Lei da Amnistia, nos termos do respetivo artigo 6.º, em virtude de se encontrarem abrangidas pela exceção prevista no artigo 7.º, n.º 1, alínea a), subalínea v), do mesmo diploma – o tribunal a quo entendeu, com base na interpretação do citado artigo 7.º, n.º 1, feita pelos tribunais comuns, nomeadamente no Ac. TRC, de 24.01.2024, P. 477/22.3GAPMS.C1 (não obstante no artigo 7.º n.º 1 da Lei n.º 38-A/2023 o legislador ter usado o vocábulo “condenado”, a letra da lei terá de ser interpretada de forma coerente com o processo legislativo, com o elemento histórico e com a unidade do sistema jurídico – cfr. o ponto I do respetivo sumário), o seguinte:
«Com relevo para o caso concreto é, exatamente, neste art. 7º n.º 1, al. a), v) da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto que se encontram, elencados os crimes cujos factos imputados ao recorrido são suscetíveis de consubstanciar crimes contra a liberdade sexual e contra a autodeterminação sexual das jovens atletas que o recorrido treinava, previstos nos art. 163.º a art. 176.°-B todos do CP, a saber: coação sexual; violação; abuso sexual; fraude sexual; procriação artificial não consentida; lenocínio; importunação sexual; atos sexuais com adolescentes; recurso à prostituição de menores; lenocínio de menores; pornografia de menores, aliciamento de menores para fins sexuais e organização de viagens para fins de turismo sexual com menores: cfr. art. 7° n.° 1, al. a), v) da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto.
Com efeito, tendo, no art. 7° n.° 1, al. a) da Lei n.° 38-A/2023, de 2 de agosto, o Legislador usado a palavra “condenado” a letra da Lei terá de ser interpretada de forma textual, sistemática, racional e hodierna, tal significando que onde se lê: “condenado” tal deverá ser entendido como “sujeito” (não sendo, por isso, necessário que exista condenação com trânsito em julgado, mas a possibilidade de existir condenação) […]
Donde, desacertadamente, concluiu ainda o despacho arbitral n.º ... recorrido quando, literalmente, entendeu que ao recorrido não era aplicável o disposto no art. 7° n.° 1, al. a), v) da Lei da Amnistia por não resultar dos autos que este tivesse sido condenado pelos crimes previstos nos citados art.163.º a art. 176.°-B do CP […].».

Na conclusão 6 das suas alegações, o recorrente contrapõe: «[q]uanto ao argumento do Tribunal a quo, nas exclusões de aplicação previstas no apontado artigo 7°, a lei em causa é extremamente clara ao dizer que no âmbito dos crimes contra as pessoas […] só não beneficiam da amnistia ou perdão “OS CONDENADOS” por determinados crimes, nos quais, realmente, se poderiam vir a incluir, em termos abstratos, as atuações pelas quais o Demandante [– aqui recorrente –] foi condenado disciplinarmente.».
Será assim?

13. O artigo 7.º, n.º 1, da Lei da Amnistia vem consagrar «limites substantivos» diretos â aplicação das medidas de clemência referentes a ilícitos penais – a amnistia e o perdão – e, indiretamente, por via da delimitação negativa operada no artigo 6.º em relação a infrações disciplinares que constituam simultaneamente ilícitos penais, também à amnistia de infrações disciplinares e infrações disciplinares militares. Como referiu a Ministra da Justiça na apresentação da Proposta de Lei n.º 97/XV/1.ª,
«A presente proposta de lei define também limites substantivos à sua aplicação. De forma a evitar o alarme social – e tomando como base a natureza e gravidade de determinados crimes, o bem jurídico que tutelam e as qualidades especiais da vítima ou do agente –, elenca-se, por isso, um conjunto de crimes que não poderá beneficiar destas medidas, como homicídio, infanticídio, violência doméstica, maus-tratos, ofensa à integridade física grave e qualificada, mutilação genital feminina, casamento forçado, sequestro, crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, roubo em residências ou na via pública cometidos com arma de fogo ou arma branca, extorsão, discriminação e incitamento ao ódio e à violência, incêndio, condução perigosa de veículo rodoviário, condução de veículo em estado de embriaguez ou sob influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, tráfico de influência, evasão, branqueamento, corrupção, cibercriminalidade, tráfico de droga e outras atividades ilícitas, precursores e associações criminosas nesse contexto, ou os crimes praticados contra os membros das forças de segurança, das forças armadas e funcionários.
Nesta lista de exclusões, seguiu-se a bitola já utilizada em amnistias e perdões anteriores, mas foi-se mais além, ampliando o elenco das exclusões.» (itálico acrescentado; v. DAR, 1.ª série, n.º 149, cit., p. 37; durante o procedimento legislativo, o elenco de crimes excecionados da aplicação da lei foi alargado – cfr. DAR, 1.ª série, n.º 153, cit., p. 112).

A amnistia reporta-se a infrações (aos factos praticados), excluindo a punição das mesmas como crimes, desde que praticadas até um determinado momento e sem prejuízo de os tipos penais correspondentes continuarem a valer para o futuro. Como referido no Ac. TC 488/2008, a amnistia «atua em função dos crimes, deixando os atos praticados até ao momento histórico-jurídico considerado de poderem ser enquadrados nos tipos legais amnistiados. A amnistia apaga retroativamente a punibilidade criminal dos factos típicos, continuando os tipos penais a valerem, por inteiro, para o futuro». Daí compreender-se a amnistia como um pressuposto negativo da punição, e não como um modo de extinção da infração.
Já o perdão (genérico) opera sobre a pena aplicada pela prática de crimes.
Perspetivados ambos os institutos a partir dos respetivos efeitos, estatui o artigo 127.º, n.º 1, do Código Penal que os mesmos extinguem a responsabilidade criminal. O artigo 128.º do mesmo diploma concretiza:
«2 - A amnistia extingue o procedimento criminal [– amnistia própria –] e, no caso de ter havido condenação [– amnistia própria –], faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos como da medida de segurança.
3 - O perdão genérico extingue a pena, no todo ou em parte.».

Daí a existência de uma articulação entre a amnistia e o perdão de penas, que adquire expressão na ressalva inicial do artigo 3.º, n.º 1, referente ao perdão de penas, da Lei n.º 38-A/2023 («sem prejuízo do disposto no artigo 4.º [– amnistia de infrações penais –]»):
«[R]elativamente a uma mesma infração penal pela qual tenha sido aplicada uma pena, quando concorram amnistia e perdão, a questão da aplicação do perdão acaba por não se colocar, pois a aplicação da amnistia é operação prioritária que vai deixar aquele sem objeto. Na verdade, a amnistia prefere sempre à aplicação do perdão, sendo esse precisamente o sentido da ressalva do preceito em análise.
Deste modo, mesmo após uma condenação, caso o crime pelo qual o agente foi condenado se encontre amnistiado, deve aquele crime ser declarado amnistiado. Para além disso, caso aquela decisão ainda não tenha transitado em julgado, deve ser também declarado extinto o procedimento criminal. No caso de aquela decisão já ter transitado em julgado, deve ainda ser declarada cessada a execução da respetiva pena aplicada, ainda que esta fosse também abrangida pelo perdão.» (assim, v. Pedro Brito, “Notas práticas…” cit., p. 7).

14. Ora, conforme mencionado, o artigo 7.º, nomeadamente o seu n.º 1, da Lei da Amnistia visa constituir uma exceção à aplicação de ambos os tipos de medidas de clemência penal: a amnistia, sem distinguir a própria da imprópria, e o perdão de penas. A interpretação literal do termo “condenados” tende a restringir a aplicação do preceito à amnistia imprópria e ao perdão de penas, contrariando a sua teleologia fundamental: estabelecer em função da gravidade do crime um limite material ao perdão e à amnistia previstos na Lei n.º 38-A/2023, prevenindo desse modo o alarme social (cfr. o enunciado do n.º 1 do seu artigo 7.º e os trabalhos preparatórios).
Acompanha-se, por isso, e nesta parte, o Ministério Público no seu parecer:
«[O] termo condenados utilizado pelo legislador no art. 7° terá que ser interpretado como referindo-se a todos aqueles (autores/sujeitos) que praticaram factos suscetíveis de integrar as infrações aí elencadas.
Não se trata aqui de uma interpretação extensiva, no sentido de afirmar-se que o legislador disse menos do que queria, cientes que estamos do carácter excecional das leis de amnistia e de perdão (nos termos do art. 11º do C. Civ. “As normas excecionais não comportam aplicação analógica, mas admitem interpretação extensiva.”), mas de uma interpretação declarativa em que “não se faz mais do que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo” (cfr. ac. de Fixação de Jurisprudência do STJ n° 2/2023, Processo n.º 132/15.0TXEVR-F.E1-A.S1, DR, 1ª série, de 1/02).
Ou seja, nos termos em que ensinam Pires de Lima e Antunes Varela (anotação ao art.° 9° do Cód. Civil, in "Código Civil Anotado, Vol. I, 4a edição, Coimbra Editora, pág. 58 e 59) e ainda Pedro Pais de Vasconcelos (Última Lição - A Natureza das Coisas, FDL - 13 de Maio de 2016, págs. 11 a 17, versão on line: https://static1.squarespace.com/static/563487a1e4b01aa792817ed1/t/575565603c44d8fceeb6942c/1 465214306544ZUltima_Licao_A_Natureza_das_Coisas3.pdf, consultada em 17/07/2024) o sentido da norma não pode deixar de atender ao texto da lei, mas importa relacioná-lo directa ou indiretamente com outras regras e atentar na sua razão de ser, na sua finalidade e nas circunstâncias em que foi elaborada, sem perder de vista a unidade do sistema jurídico (cfr. ac. Relação de Lisboa de 07/05/2024, P. 848/21.2PBLRS.L1-5).
E aqui mostra-se necessário atender aos trabalhos preparatórios da Lei n° 38-A/2023, de 2/08 (nomeadamente a exposição de motivos da Proposta de Lei n.° 97/XV/1ª, in DAR II série A n.° 245, 2023.06.19), dos quais ressaltam desde logo as preocupações do legislador em, por um lado, excluir da aplicação da amnistia a criminalidade muito grave e, de outra banda que, no uso dos vocábulos a incluir no art. 7°, se falasse de “sujeitos” (dos ilícitos).»

A incoerência intrínseca da interpretação puramente literal é particularmente chocante no exemplo citado no acórdão recorrido – que consta do acórdão TRC, de 24.01.2024 (e é aprofundado em muitas outras decisões, como, por exemplo, nos acórdãos TRC, de 21.02.2024, P. 233/19.6GAPMS.C1; e de 10.04.2024, P. 316/03.4GBPMS.C1) – relativamente à comparação entre as contraordenações praticadas sob influência de álcool ou de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo – não amnistiadas (cfr. o artigo 7.º, n.º 1, alínea l) – e os crimes contra a vida em sociedade (artigo 7.º, n.º 1, alínea d), entre os quais se encontram os crimes de condução de veículo em estado de embriaguez – que só não seriam amnistiados no caso de já existir condenação transitada em julgado –, mas não se limita a essa situação concreta; vale para todas as demais situações do artigo 7.º, n.º 1, da Lei da Amnistia. Evidencia-o o acórdão TRP, de 21.02.2024, P. 34/22.4GTAVR.P1 (também citado no parecer do Ministério Público):
«[A] exclusão da amnistia identifica-se sempre com a natureza específica do crime, pouco importando a sorte da tramitação dos autos, ou seja, se o arguido já foi, ou não, julgado, premissa que confere com o regime jurídico previsto no art.128º nº2 do Cód. Penal, o qual prevê que “a amnistia extingue o procedimento criminal e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos…”.
[…] E compreende-se o porquê, pois, a razão do alvo da exclusão da amnistia, dirigindo-se a uma tipologia de crime, nunca pode depender do estado da tramitação dos autos (contrariamente ao perdão que, por essência, supõe a condenação e uma pena). Não há uma única razão que valide ou sustente excecionar e negar a amnistia de um arguido condenado, por o crime estar previsto no catálogo das exclusões da lei (com ou sem trânsito, também se poderia discutir); e no mesmo crime permitir a amnistia na situação em que o arguido apesar de responder pelo mesmo crime, ainda não foi julgado.
A distinção entre condenado e arguido não julgado, situa-se completamente à margem do regime da amnistia, e a efetividade dessa diferença conduziria a resultados anacrónicos e profundamente desiguais, dependendo das agendas dos tribunais, diferenciando, quem já foi julgado e condenado negando-se-lhe a amnistia; por contra-ponto aos Juízos locais com agendas mais morosas, com cronologias mais dilatadas, os arguidos ainda não julgados veriam o respetivo procedimento criminal extinto por amnistia, sem que se perceba a “ratio” ou teleologia dessa diferença, que afinal, é nenhuma.
A realidade é que, manifestamente, e por lapso, o legislador na nomenclatura usada e na imensa mole de situações que excecionam o perdão, não redigiu rigorosamente as exceções da amnistia muito pontualmente situadas nos delitos de condução em estado de embriaguez e nas injúrias agravadas contra as forças de autoridade, lapso este que não tem a virtualidade de derrogar nem o disposto no art.128º nº2 do Cód.Penal, e muito menos de criar um fundamento teleológico para a distinção artificial de quem está acusado da prática do delito e ainda não foi julgado, dos que já o foram, sendo condenados. É incorreto tornar um lapso do legislador numa opção sua. A interpretação jurídica tem a obrigação de detetar essas situações e operar a sua função dentro da norma. […]
Tendo bem ciente que se trata de uma lei especial/excecional, a expressão literal de “condenado” não impressiona, nem é decisiva, porque, como se referiu, no extenso elenco do catálogo de exclusões/exceções previsto no artigo 7º, todas essas exclusões se referem ao perdão e aí o sentido de “condenado” é usado em sentido próprio (exceto em parte, como se disse, no delito de condução em estado de embriaguez nº1 alínea d) ii) do art.7º, e na parte do nº2 do art.7º na parte que se refira a injúrias agravadas a forças policiais)- […]. Mas a letra da lei na expressão “condenado” sendo em parte imprópria, no que se refere ao alcance da amnistia, enferma de incorreção literal, e nestes casos, como aliás sempre, pese embora os limites impostos pelo direito penal e pelas leis excecionais à interpretação extensiva e analógica, as respetivas regras jurídicas estão sujeitas à interpretação, e é esse o dever do intérprete perante a norma. […] No caso, como o presente, a redação do legislador revela-se em parte imprópria com o regime da amnistia, que, como vimos no Código Penal, atinge e extingue o procedimento criminal, embora também extinga os efeitos da pena perante o condenado. No que tange à amnistia seria curial a expressão “prática de infração”.
No processo exegético necessariamente tem de se entender que, muito embora o nº2 do art.7º se reporte à amnistia e ao perdão, a expressão “condenado” refere-se ao perdão e bem assim à amnistia, porém, esta porque também atinge todo o procedimento (como lhe é próprio) e também o condenado, deve entender-se que, perante tal lapso, o alcance e os efeitos excludentes da amnistia no procedimento criminal não estão precludidos ou fora desta exceção legal (no fundo, é uma ressalva parcial do universo da amnistia). Tal exegese não implica restrições ou extensões do âmbito interpretativo, ou sequer sacrifica o sentido literal da lei a um sentido normativo que vá mais além ou fique aquém, sobretudo porque, não só, está de acordo com o regime penal da amnistia, como também, é no campo da letra da lei que o problema se resolve definitivamente. Concretamente, na economia do disposto no art.7º nº3 da Lei nº38-A/2023 consta que “A exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação (…) da amnistia prevista no artigo 4º relativamente a outros crimes.” (relevo nosso), significa isto que, o comando desta norma prejudica a aplicação da amnistia quanto aos crimes previstos no art.7º, tão só isso: seja o arguido condenado ou ainda não julgado.
O legislador nesse nº3 quis expressamente excluir da amnistia do art.4º o elenco de delitos previstos no art.7º nºs 1 e 2, não sendo ajustado amnistiar crimes previstos no art.7º, com a distinção de condenado ou não julgado, pois, a única distinção não prejudicada é serem outros crimes. Na redação deste nº3 do art.7º não consta que “não prejudica a amnistia pelos mesmos crimes do art.7º, desde que ainda não julgados”.» (no mesmo sentido, v., entre muitos outros, o acórdão TRC, de 7.02.2024, P. 1180/20.4T9GRD-B.C1; e o acórdão TRL, de 7.05.2024, P. 848/21.2PBLRS.L1-5).

Em suma, a expressão “condenados” prevista nos n.ºs 1 e 2 do artigo 7.º da Lei nº 38°-A/2023 tem de se interpretar no sentido de abranger também os sujeitos responsáveis ou autores dos crimes e contraordenações enunciados nesses preceitos, e não apenas as pessoas condenadas por sentença transitada em julgado, por forma a abranger quer os casos de amnistia imprópria e de perdão de penas, quer os casos de amnistia própria. Com efeito, são essas as medidas referidas no corpo dos n.ºs 1 e 3 do artigo 7.º (o «perdão e a amnistia previstos na presente lei» ou o «perdão e [a] amnistia previstos nos números anteriores») e, outrossim, no corpo do n.º 2 do mesmo preceito («as medidas previstas na presente lei»). Só desse modo se consegue impedir que os sujeitos responsáveis pela criminalidade muito grave possam beneficiar das medidas de clemência previstas na Lei da Amnistia e assegurar a intencionada prevenção do alarme social, finalidades que desde o início também estiveram no centro das preocupações do legislador.

15. Regressando ao caso sub iudice, e tendo em conta as considerações anteriores, é de acompanhar o Ministério Público nas suas conclusões.
Os factos que integram as infrações disciplinares pelas quais o ora recorrente foi punido são simultaneamente suscetíveis de configurar, em abstrato, a prática de crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual, previstos e punidos pelos artigos 163.º a 176.º-B do Código Penal. Isso mesmo é reconhecido pelo próprio nas suas alegações (cfr. a conclusão 6). Ora, tais ilícitos penais não beneficiam da amnistia nem do perdão estabelecidos pela Lei n° 38-A/2023, por força do estatuído no seu artigo 7.º, n.º 1, alínea a), subalínea v). Consequentemente, as mencionadas infrações disciplinares, que, nos termos referidos, constituem simultaneamente ilícitos penais não amnistiados por aquela lei, não podem beneficiar da amnistia nela prevista, de harmonia com o estatuído no seu artigo 6.º.
Improcedem, por isso, as conclusões 6 a 8 e 11 das alegações do recorrente.

III. Decisão

Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso e manter o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 12 de setembro de 2024. - Pedro Manuel Pena Chancerelle de Machete (relator) - Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva - Cláudio Ramos Monteiro.