Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0431/21.2BEVIS
Data do Acordão:10/02/2024
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:JOSÉ GOMES CORREIA
Descritores:IRC
DERRAMA
NATUREZA
TRIBUTAÇÃO
SOCIEDADE COMERCIAL
PERSONALIDADE JURÍDICA
INCONSTITUCIONALIDADE
TAXA
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Sumário:I - A Derrama Estadual apresenta-se como um “imposto acessório” e não um “simples imposto dependente”, devido mesmo que o imposto principal, do qual depende, não o seja, pois que, como decorre do respectivo regime jurídico, a Derrama Estadual incide sobre parte do lucro tributável do imposto principal.
II - Como resulta desde logo das normas específicas da incidência subjectiva da tributação consagradas nos artigos 15 a 18º da Lei Geral tributária, soçobra a tese da Recorrente segundo a qual na sociedade, mero intermediário da carga fiscal, mera ficção jurídica, a medição de rendimento para efeitos de aplicação a si de taxas progressivas, quando esse rendimento a outros pertence, e em fracções ou divisões desiguais que nada têm que ver com o conjunto do lucro sujeito à progressividade trazida pela derrama estadual pois que, juridicamente, uma sociedade não possui nenhuma capacidade contributiva uma vez que os lucros lhe não pertencem, sendo que nenhum direito tem a deles se apropriar não passando a sociedade de uma ficção jurídica, uma mera ferramenta jurídica.
III - É que, o sujeito passivo é a pessoa singular ou colectiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte directo, substituto ou responsável (nº 3 do artigo 18º da LGT), consistindo a personalidade tributária na susceptibilidade de ser sujeito de relações jurídicas tributárias (art. 15.º da Lei Geral Tributária).
IV - Assim, têm personalidade tributária as pessoas singulares e colectivas que possuem personalidade jurídica nos termos do disposto nos artigos 66.º e 158.º do Código Civil e, ainda, nos termos do artigo 5.º do Código das Sociedades Comerciais e, por força do disposto no nº 2 do art. 16º da LGT, salvo disposição legal em contrário, tem capacidade tributária quem tiver personalidade tributária.
V - Por esse prisma, tendo em conta os contornos do caso em análise, ao fazer incidir a derrama estadual sobre o lucro tributável das empresas, estão sujeitas à mesma taxa de derrama estadual, contando que tenham o mesmo lucro, pelo que não é configurável nessa situação a ofensa o princípio da igualdade e da capacidade contributiva.
VI - Isso mesmo emerge da jurisprudência do Tribunal Constitucional segundo a qual tributar o lucro real das empresas significa atingir a matéria colectável auferida pelo sujeito passivo, pelo que a tributação do lucro real é, também, uma decorrência necessária do princípio da capacidade contributiva pelo que se trata de um princípio cuja principal concretização é afastar a tributação das empresas pelo seu lucro normal, isto é, tributar o rendimento que estas poderiam ter obtido em condições normais de exploração, independentemente, pois, das condições concretas em que desenvolveram a sua atividade, sendo, por isso, a tributação pelo lucro real um princípio que admite “desvios”, entenda-se, é compatível com alguma “normalização” no apuramento da matéria colectável.
VII - Por esse prisma, a progressividade encontra-se apenas prevista para o imposto sobre o rendimento pessoal, como um objectivo destacado da diminuição da desigualdade económica entre os cidadãos (artigo 104.º, n.º 1, da CRP), mas daí não resulta que esteja constitucionalmente vedado a um imposto incidente sobre as empresas um carácter progressivo, o que só por si não é susceptível de violar o princípio da igualdade, da capacidade contributiva ou da tributação segundo o rendimento real, não ocorrendo as arbitrariedades e inconstitucionalidade invocadas pela Recorrente por se tributar com taxas progressivas as ficções que são as sociedades comerciais.
VIII - Não ocorre a invocada inconstitucionalidade em razão do prolongamento injustificado da Derrama Estadual a período posterior à cessação dos motivos que estiveram subjacentes à sua criação pela Lei nº 12-A/2010, de 30.06, porquanto, em 2018, ainda se colocavam constrangimentos de política fiscal, determinados pela necessidade de consolidação orçamental, centrada na diminuição da despesa e no aumento da receita, e de redução dos níveis de endividamento público, assim se justificando que a Lei do Orçamento do Estado para 2018, não só não tenha abolido a Derrama Estadual, como tenha ainda procedido um agravamento fiscal, ao aumentar a taxa aplicável ao último escalão, que passou de 7% para 9%.
IX - Por assim ser, é manifesto que para o legislador pontificaram razões de política fiscal suficientes para legitimar manutenção da Derrama Estadual, o que afasta a violação do princípio da igualdade na vertente de proibição do arbítrio e, pela sua específica configuração, não afronta os princípios da capacidade contributiva, da protecção da confiança, da segurança jurídica.
Nº Convencional:JSTA000P32702
Nº do Documento:SA2202410020431/21
Recorrente:GRUPO A..., S.A.
Recorrido 1:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo


1. – Relatório

Vem interposto recurso jurisdicional por GRUPO A..., SGPS, SA., melhor sinalizada nos autos, visando a revogação da sentença de 23-10-2023, do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, que julgou improcedente a impugnação que intentara contra o despacho de indeferimento de reclamação graciosa (RG), a qual foi apresentada contra a autoliquidação de IRC do exercício de 2017, na parte relativa à derrama estadual, no montante de € 3 083 380,87.

Inconformado, o GRUPO A..., SGPS, SA. apresentou alegações que rematou com o seguinte quadro conclusivo:

1. Reforma da condenação em custas
A) Requer-se, antes do mais, a reforma da condenação em custas nos termos do artigo 616.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Civil, no sentido da dispensa do remanescente da taxa de justiça nos termos do artigo 6.º, n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais (dispensa que havia aliás sido já pedida pela AT, e pela A... quer na sua PI quer nas suas alegações em 1.ª Instância, o que a sentença recorrida ignorou), atenta a lisura das partes na condução processual, designadamente da parte vencida na primeira instância, atento o nível de complexidade da causa, que se reconduziu a uma questão de ilegalidade e inconstitucionalidade da derrama estadual, atenta a desproporção entre esta complexidade e o elevado montante da taxa de justiça remanescente que resultará do seu apuramento em função do valor, de € 3.083.380,87, da causa, e bem assim atenta também a inconstitucionalidade já afirmada pelo Tribunal Constitucional de se fixarem custas unicamente em função do valor da causa e sem os limites co-naturais ao princípio da proporcionalidade.
2. Delimitação da questão e dos argumentos das partes, e a decisão do Tribunal a quo
B) Em nenhum momento a recorrente defendeu que a derrama estadual era inconstitucional por incidir, como incide, sobre os lucros individuais de sociedades integrantes de grupos fiscais, por oposição a uma incidência sobre o lucro do grupo.
C)Nem tão-pouco está aqui em causa, acrescenta-se, o facto de a derrama estadual, incidente sobre os lucros tributáveis individuais, não permitir também que os próprios prejuízos fiscais da sociedade em causa de exercícios anteriores sejam abatidos ao lucro do exercício antes de se aplicarem as taxas da derrama estadual.
D) Sinteticamente, em primeiro lugar o que a ora recorrente afirma e sustenta é que a derrama estadual e a progressividade que esta introduz na tributação em IRC, como tributação que este é sobre a ficção jurídica que são as sociedades (mais sobre isto infra), é inconstitucional pelos resultados arbitrários e violadores do princípio da igualdade que desencadeia esta tributação progressiva sobre a ficção jurídica sociedade.
E) E mais sustenta que o prolongamento injustificado da aplicação da derrama estadual a período posterior à cessação dos motivos que estiveram subjacentes à sua criação pela Lei n.º 12- A/2010, de 30 de Junho, isto é, a norma de tributação do artigo 87.º-A, n.ºs 1 e 2, do CIRC, enquanto aplicável ao exercício fiscal de 2017, é por si só inconstitucional também por violação do princípio da protecção da confiança, da segurança jurídica, e da proibição de arbítrio
F) A tudo isto a decisão recorrida responde que não.
3. Em particular a arbitrariedade e inconstitucionalidade de se tributar com taxas progressivas em sede de rendimento as ficções que são as sociedades comerciais
G) O princípio da igualdade, entendido como tratar o desigual desigualmente, exige tributação proporcional: quem ganha mais paga proporcionalmente e em termos absolutos uma fatia maior com a taxa proporcional, quem ganha menos paga menos, e quem ganha o mesmo paga o mesmo.
H) A tributação progressiva é uma exigência adicional ao princípio da igualdade, que convoca opções ideológicas, mas que nem por isso ficam isentas da proibição de arbitrariedade, com respeito a arbítrios geradores eles próprios de desigualdades no âmbito da concretização dessa opção ideológica.
I) O racional para essa opção de tributar mais do que proporcionalmente assenta em hipóteses Página 31 de 38 genéricas, mas plausíveis: há efeitos sistémicos ou de rede poderosos proporcionados pela vida em sociedade, e o maior ou menor aproveitamento destes ganhos de sistema resulta em considerável medida da sorte ou do acaso (local ou família onde se nasceu, escola que se frequentou, amigos e amigas que se fizeram e não fizeram, etc.).
J) Donde que se justifique (invocando-se a plausibilidade daquela hipótese) tributar mais do que proporcionalmente os rendimentos para financiamento da vida em comunidade/sociedade, de modo a captar efeitos de rede de cuja existência também dependem aqueles rendimentos, tributação adicional esta que será como que uma tributação da presumida sorte ou acaso presumivelmente na base também dos rendimentos (por oposição aos outros factores dos rendimentos, o esforço, força de vontade, trabalho e mérito individuais).
K) Como tudo isto é plausível, mas não mensurável, nem certo e definido, e como tudo o que é demais é moléstia, o equilíbrio está em não levar a progressividade ao ponto de ser percepcionada como confisco (e desincentivo) do esforço individual, com as consequentes perdas para todos: para a justiça individual (insubstituível por uma dita justiça colectiva, que mais não será, sem aquela, senão palavra oca e vã), para os desincentivados pela ablação patrimonial que a percepcionem como excessiva, e para a sociedade que perde os mais esforçados ou nem sequer os vê nascer (em casos de regimes de colectivização mais pronunciada).
L) Agora, pergunta-se, que sentido faz aplicar a progressividade às sociedades comerciais, a uma ficção jurídica? E que resultados, arbitrários ou coerentes e racionalmente compreensíveis, gera tal aplicação de progressividade à ficção sociedade comercial?
M) É indisputável que a sociedade comercial, qualquer que ela seja, é uma ficção de pessoa.
N) A sociedade não é uma pessoa real e, justamente por causa deste facto incontornável, não é titular dos lucros/rendimentos.
O) O lucro dito da sociedade é uma ficção, é na realidade fáctica, económica e jurídica, lucro dos sócios e na disponibilidade dos sócios (desde logo, conforme previsto no n.º 1 do artigo 21.º do Código das Sociedades Comerciais) e não lucro na disponibilidade da sociedade, sócios que dele farão, como qualquer titular de um direito, o que decidirem fazer com ele, dentro dos limites da lei
P) É lucro com respeito ao qual a sociedade, ficção jurídica, não tem o direito de fazer ou tomar como seu, como se fosse um ser real a quem pudesse ser imputado um direito jurídicoeconómico ao lucro, objecto de protecção, como qualquer direito, contra a interferência ou tentativa de apropriação por parte de terceiros. Nenhum destes direitos sobre o lucro a ficção sociedade tem, por isso mesmo, por ser uma ficção.
Q) E em consequência, não é a sociedade quem sofre o ónus da tributação, pela razão simples, mas poderosa, de que o lucro sujeito à tributação não lhe pertence. A sociedade é apenas o intermediário, ou plataforma simplificadora, da tributação de um lucro que jurídica e economicamente pertence, e está na inteira disponibilidade, de terceiros (os accionistas). Pela negativa, a capacidade contributiva das sociedades é também ela uma ficção, uma ficção útil que permite antecipar e concentrar a tributação, mas uma ficção. Mas essa ficção não a transforma no que não é nem nunca será: o sujeito a quem se possa perguntar pelo seu rendimento/lucro (capacidade contributiva), em contraste com o rendimento (capacidade contributiva) dos demais, para lhe aplicar taxas diferenciadas (progressivas) em razão desse contraste.
R) De facto, e juridicamente, a sociedade nenhuma capacidade contributiva possui ou deixa de possuir (a questão não se chega a pôr): os lucros não lhe pertencem, nenhum direito tem a deles apropriar-se (e isso é uma consequência de ser uma ficção jurídica, uma ferramenta jurídica), antes são pertença e estão na disponibilidade dos accionistas responsáveis pela reunião de capitais e de vontades por trás da plataforma jurídica que é a sociedade.
S) A sociedade, tal como o devedor do rendimento a quem se impõe que faça retenção na fonte, não pode pois ser mais do que alguém que se coloca a entregar imposto em substituição do titular de capacidade contributiva. A esse alguém substituto do titular da capacidade contributiva só se pode exigir que entregue imposto a uma taxa linear ou, caso se queira complicar (v.g. categoria A do IRS), a taxas diferenciadas em função da capacidade contributiva dos reais titulares do rendimento.
T) Ora, a derrama estadual aplica taxas diferenciadas ao lucro apurado por referência à reunião de capitais que é a sociedade, pessoalizando por conseguinte (progressividade da taxa de tributação), como se esta fosse o titular da capacidade contributiva, por oposição a mero ponto focal, interposto entre a realidade económica da criação de riqueza e os titulares reais da mesma (os titulares do direito ao lucro apurado ao nível do ponto focal que é a sociedade).
U) Isto é um contra-senso gerador de arbitrariedade na distribuição dos encargos fiscais, incompatível com o princípio da igualdade: tanto é atingido pela tributação progressiva, agravada, o titular de participação qualificada com um volume individual apreciável de quotaparte no rendimento apurado na sociedade,
V) como são atingidos e sofrem, em razão desta imposição de progressividade ao nível do intermediário que é a sociedade, os milhares de titulares com pequenos e médios rendimentos que dividem entre si o lucro da sociedade através da alocação de acções às suas reformas via PPR ou participação por outra via num fundo de pensões (que detém acções da sociedade), ou que detêm directamente modesto lote de acções (pequeno accionista), conforme se ilustrou em concreto supra.
W) Donde a conclusão de que a norma que prevê taxas adicionais de tributação em função do maior volume de rendimento (lucro) apurado na sociedade, constante dos n.ºs 1 e 2 do artigo 87.º-A do CIRC,
X) é inconstitucional por violação dos artigos 2.º (Estado de direito, que proíbe o tratamento arbitrário), 13.º (princípio da igualdade) e 103.º, n.º 1 (repartição justa dos rendimentos e da riqueza) da Constituição da República Portuguesa.
Y) A inconstitucionalidade da norma gera a sua invalidade, que por sua vez gera a sua anulação, donde a ilegalidade, por ausência de norma que a sustente, da liquidação de imposto, designadamente a aqui em causa, assente no artigo 87.º-A do CIRC (derrama estadual).
Z) A sentença recorrida argumenta com a legitimidade constitucional de políticas fiscais redistributivas que reponham o que chama de igualdade material.
AA) Ora, isso não é posto em causa pela invocada inconstitucionalidade. O ponto decisivo é aqui outro: não é por referência à sociedade, mera ficção jurídica, que se consegue concretizar a igualdade a que supostamente se dirige a progressividade na tributação.
BB) Pela razão simples de que não sendo a sociedade o titular do lucro (que pertence jurídica e economicamente ao sócio/membro), nem tão-pouco e consequentemente sendo titular de real capacidade contributiva, a sua tributação progressiva para nenhum igualdade material contribuirá, pelo contrário, contribuirá para aleatoriedade e arbitrariedade da tributação no que respeita ao princípio da igualdade, como se mostrou e exemplificou supra.
CC) Também não se disputa a invocação da sentença recorrida de que pelo simples facto de a Página 34 de 38 Constituição ser silente a respeito da progressividade no IRC (ao contrário da progressividade no IRS, que prevê), daí não resulta que a progressividade é proibida no IRC.
DD) Mas, em primeiro lugar há-de convir-se que é sintomático, e muito significativo, a Constituição não prever taxas progressivas para o IRC, e apenas as prever para o “imposto sobre o rendimento pessoal” (artigo 104.º, n.º 1 da Constituição).
EE) Não é por acaso esta ausência de previsão de progressividade na tributação das sociedades.
FF) É porque ela não faz sentido, gera consequências arbitrárias na esfera do verdadeiro, único e real contribuinte (a sociedade é mera intermediária, nenhuma carga fiscal efectivamente suporta, não é dela o resultado da sua actividade, ela é apenas uma ficção útil), a pessoa humana, que tanto pode ser um pensionista com rendimentos médios que suporta efetivamente a taxa progressiva da sociedade que concentra muita actividade e capitais (logo desencadeia derrama estadual), como uma pessoa com rendimentos altos que nenhuma progressividade suporta nos rendimentos em última análise seus da actividade da pequena ou média empresa de que é sócio de referência.
GG) E é por isto, por esta arbitrariedade de resultados junto das capacidades contributivas reais, que a derrama estadual é inconstitucional, não por não haver expressa exclusão de progressividade na Constituição com respeito à tributação das sociedades.
HH) Avança ainda a sentença recorrida com o argumento de que faz sentido exigir maior esforço via inclusive progressividade, a empresas com mais elevado rendimento.
II) A isto se responde em primeiro lugar que a taxa proporcional já exige maior esforço, o problema está no passo adicional seguinte da progressividade.
JJ) Em segundo lugar, o ponto é que (como se expôs supra) não faz sentido colocar na sociedade, mero intermediário da carga fiscal, mera ficção jurídica, a medição de rendimento para efeitos de aplicação a si de taxas progressivas, quando esse rendimento a outros pertence, e em fracções ou divisões desiguais que nada têm que ver com o conjunto do lucro sujeito à progressividade trazida pela derrama estadual.
KK) E acresce a este ponto que se acabou de recordar (e que é o mais importante), ser incorrecto dizer-se que a derrama estadual, porque só se aplica a lucros a partir de uma certa dimensão, teria por objecto (e justificação) tributar o lucro das empresas mais rentáveis, logo com maior capacidade contributiva.
LL) Economistas ilustres da nossa praça têm desmascarado esta falácia de que “lucros mais volumosos da sociedade/empresa = a maior capacidade contributiva”, chamando a atenção para o erro crasso desta proposição: não se pode comparar volume de lucros sem chamar à colação o volume de capitais que lhe subjaz.
MM) Uma empresa que pela sua dimensão tenha lucros ditos muito elevados, é também uma empresa que terá muitos mais capitais e, por conseguinte, um lucro por unidade de capital absolutamente normal, e muitas vezes pior do que o de empresas mais pequenas, e em regra terá também mais accionistas, os beneficiários reais e legais dos lucros, pelo que terá um lucro por accionista absolutamente normal, e muitas vezes pior do que o de empresas mais pequenas.
NN) E, repete-se, na perspectiva que a ora recorrente discute nestes autos, a instituição de progressividade em razão do volume dos lucros de uma sociedade é gerador de resultados arbitrários, sobretudo por aquela razão supra desenvolvida: a empresa não é um ser humano (é uma ficção), não disfruta dos lucros, os lucros antes são, e são de jure, um direito legal dos accionistas (e não da empresa), um direito legal dos titulares do capital (de quem aportou capital à ficção de pessoa que é a sociedade).
OO) Aplicar progressividade ao nível da empresa como se esta fosse o ser humano, e singular (ignorando-se a pluralidade de accionistas de que se compõe a sociedade), na titularidade legal (e que disfrutará) dos lucros gerados pela actividade empresarial, é uma ficção, que ao alhear-se do real contribuinte e titular dos lucros, produz toda a sorte de resultados arbitrários (e contrários ao objectivo da progressividade), em violação do princípio da igualdade.
4. Em particular a inconstitucionalidade do prolongamento no tempo da derrama estadual
PP) A finalizar, é de bom senso reconhecer que em tempos de aflição, em que não haja tempo para pensar, percebe-se que se abram excepções, e se permita temporariamente aquilo (v.g., progressividade) que normalmente não deve ser praticado com respeito, v.g., às sociedades comerciais/empresas (nem a Constituição o previu para estas, em contraste com o que prevê para a tributação do rendimento pessoal).
QQ) Mas a este propósito é de recordar que é facto incontroverso, público e notório que o Programa de Assistência Económica e Financeira que envolveu Portugal, o FMI e a União Europeia, decorreu entre Maio de 2011 e Junho de 2014, terminando nesta última data.
RR) Sendo que, no ano de 2017, a União Europeia encerrou o procedimento relativo ao défice excessivo de Portugal, por reconhecer que o défice de Portugal tinha diminuído para um valor inferior a 3% do PIB, não subsistindo dúvidas de que em 2018, em vésperas de uma consolidação orçamental que gerou um superavit (em 2019), a justificação de emergência para a Derrama Estadual, tinha, pura e simplesmente, desaparecido.
SS) Ora, um imposto que conflitua com o princípio da igualdade na vertente da proibição de arbítrio, e que se prolonga no tempo para além da sua própria justificação, uma emergência financeira, é, por definição, um imposto injusto e injustificado.
TT) Pelo que, do exposto, resulta que o prolongamento injustificado da aplicação da derrama estadual a período posterior à cessação dos motivos que estiveram subjacentes à sua criação pela Lei n.º 12-A/2010, de 30 de Junho, isto é, a norma de tributação do artigo 87.º-A, n.ºs 1 e 2, do CIRC, enquanto aplicável ao exercício fiscal de 2018,
UU) é por si só inconstitucional também por violação do princípio da protecção da confiança, da segurança jurídica, e da proibição de arbítrio, corolários do princípio do Estado de Direito Democrático, consagrado no artigo 2.º da CRP, e bem assim por violação do princípio da proporcionalidade e da propriedade privada.
VV) Respondendo a este propósito à sentença recorrida, é inegável que há muito que fazer, ainda hoje em 2023 com muito défice real não reportado financeiramente (degradação generalizada dos serviços públicos), mas é inegável também que Portugal não está em aflição desde pelo menos 2016/17,
WW) pelo que a continuidade da progressividade da tributação das sociedades introduzida em 2010 pela derrama estadual, não pode encontrar mais justificação no estado de necessidade.
XX) Quanto à receita produzida pela derrama estadual, se imprescindível ainda, há e houve entretanto mais que tempo para a substituir por uma tributação sem resultados arbitrários na distribuição da carga fiscal pelos reais contribuintes.
NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO APLICÁVEIS, SEMPRE COM O DOUTO SUPRIMENTO DE VOSSAS EXCELÊNCIAS, DEVERÁ O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE, E, CONSEQUENTEMENTE, SER ANULADA A SENTENÇA RECORRIDA E JULGADA PROCEDENTE A IMPUGNAÇÃO JUDICIAL, E EM CONSEQUÊNCIA SER ANULADO QUER O ACTO DE INDEFERIMENTO DA RECLAMAÇÃO GRACIOSA, QUER O ACTO DE AUTOLIQUIDAÇÃO DE IRC DO EXERCÍCIO DE 2017, NA PARTE REFERENTE À DERRAMA ESTADUAL, POR APURAMENTO INDEVIDO DESTE IMPOSTO NO MONTANTE DE € 3.083.380,87, ATENTA A MANIFESTA ILEGALIDADE DA AUTOLIQUIDAÇÃO NESTA PARTE, COM TODAS AS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS, DESIGNADAMENTE A CONDENAÇÃO DA AUTORIDADE TRIBUTÁRIA A REEMBOLSAR À IMPUGNANTE O MONTANTE DE € 3.083.380,87, ACRESCIDO DE JUROS INDEMNIZATÓRIOS À TAXA LEGAL CONTADOS DESDE 1 DE OUTUBRO DE 2018 ATÉ INTEGRAL REEMBOLSO
EM QUALQUER CASO, DEVERÁ SER ALTERADA A DECISÃO DA SENTENÇA RECORRIDA RELATIVAMENTE ÀS CUSTAS NA 1.ª INSTÂNCIA, NO SENTIDO DA DISPENSA DO REMANESCENTE DA TAXA DE JUSTIÇA.
E, EM VIRTUDE DO VALOR DA CAUSA SE MANTER NA PRESENTE INSTÂNCIA DE RECURSO SUPERIOR A € 275.000,00, DESDE JÁ SE REQUER A VOSSAS EXCELÊNCIAS QUE, NOS TERMOS DO Nº 7 DO ARTIGO 6.º DO REGULAMENTO DAS CUSTAS PROCESSUAIS, DETERMINEM TAMBÉM NA PRESENTE INSTÂNCIA DE RECURSO, A DISPENSA DE PAGAMENTO DO REMANESCENTE DE TAXA DE JUSTIÇA AÍ REFERENCIADO, ATENTA A LISURA DAS PARTES NA CONDUÇÃO PROCESSUAL, ATENTO O NÍVEL DE COMPLEXIDADE DA CAUSA, QUE SE RECONDUZ A UMA QUESTÃO DE ILEGALIDADE E INCONSTITUCIONALIDADE DA DERRAMA ESTADUAL, ATENTA A DESPROPORÇÃO ENTRE ESTA COMPLEXIDADE E O ELEVADO MONTANTE DA TAXA DE JUSTIÇA REMANESCENTE QUE RESULTARÁ DO SEU APURAMENTO EM FUNÇÃO DO VALOR, DE € 3.083.380,87, DA CAUSA, E BEM ASSIM ATENTA TAMBÉM A INCONSTITUCIONALIDADE JÁ AFIRMADA PELO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL DE SE FIXAREM CUSTAS UNICAMENTE EM FUNÇÃO DO VALOR DA CAUSA E SEM OS LIMITES CO-NATURAIS AO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Neste Supremo Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, notificado nos termos do art. 146.º, n.º 1, do CPTA, pronunciou-se no sentido de dever negar-se provimento ao presente recurso, sendo de manter a Sentença Recorrida na Ordem Jurídica, no parecer que se segue por transcrição da parte que se reputa relevante:

OBJETO

Vem o presente recurso interposto da douta Sentença, datada de 23.10.2023, do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, a qual julgou improcedente a Impugnação deduzida contra a autoliquidação de IRC do exercício de 2017, na parte relativa à Derrama Estadual.

Não foram apresentadas contra-alegações de recurso.

MOTIVAÇÃO

Em sede de Motivação, a Recorrente vem apresentar as seguintes conclusões:

(…)

Conclui assim a Recorrente impetrando a procedência do presente recurso, a anulação da Sentença recorrida e, bem assim, do ato de autoliquidação de IRC do exercício de 2017 na parte referente à Derrama Estadual, devendo, em consequência, haver lugar ao reembolso da quantia paga.

Mais solicita a Recorrente a dispensa do remanescente da taxa de justiça nos termos do disposto no nº 7 do art. 6º do RCP, invocando a lisura das partes na condução processual e o nível de complexidade da causa.

DO MÉRITO

A Recorrente vem sustentar que a Derrama Estadual e a progressividade que esta introduz na tributação em IRC, como tributação que este é sobre a ficção jurídica que são as sociedades, é inconstitucional pelos resultados arbitrários e violadores do princípio da igualdade que desencadeia esta tributação progressiva sobre a ficção jurídica sociedade.

Alega ainda a Recorrente o prolongamento injustificado da aplicação da Derrama Estadual a período posterior à cessação dos motivos que estiveram subjacentes à sua criação pela Lei n.º 12-A/2010, de 30 de Junho.

Defende a Recorrente que a norma de tributação do artigo 87.º-A, n.ºs 1 e 2, do CIRC, enquanto aplicável ao exercício fiscal de 2017, é por si só inconstitucional por violação do princípio da proteção da confiança, da segurança jurídica, e da proibição de arbítrio

Portanto, em primeiro lugar, a Recorrente vem alegar a arbitrariedade e inconstitucionalidade de se tributar com taxas progressivas as ficções que são as sociedades comerciais.

Para a Recorrente, juridicamente, uma sociedade não possui nenhuma capacidade contributiva uma vez que os lucros lhe não pertencem, sendo que nenhum direito tem a deles se apropriar.

Segundo a Recorrente, tais lucros são pertença e estão na disponibilidade dos acionistas responsáveis pela reunião de capitais e de vontades por trás da plataforma jurídica que é a sociedade.

Conclui a Recorrente que «a norma que prevê taxas adicionais de tributação em função do maior volume de rendimento (lucro) apurado na sociedade, constante dos n.ºs 1 e 2 do artigo 87.º-A do CIRC, é inconstitucional por violação dos artigos 2.º (Estado de direito, que proíbe o tratamento arbitrário), 13.º (princípio da igualdade) e 103.º, n.º 1 (repartição justa dos rendimentos e da riqueza) da Constituição da República Portuguesa.»

Explica a Recorrente que «não faz sentido colocar na sociedade, mero intermediário da carga fiscal, mera ficção jurídica, a medição de rendimento para efeitos de aplicação a si de taxas progressivas, quando esse rendimento a outros pertence, e em fracções ou divisões desiguais que nada têm que ver com o conjunto do lucro.»

(II) Em segundo lugar, a Recorrente vem alegar o prolongamento injustificado da aplicação da Derrama Estadual a período posterior à cessação dos motivos que estiveram subjacentes à sua criação pela Lei n.º 12- A/2010, de 30 de Junho.

Defende a Recorrente que a norma de tributação do artigo 87.º-A, n.ºs 1 e 2, do CIRC, enquanto aplicável ao exercício fiscal de 2017, é por si só inconstitucional também por violação do princípio da protecção da confiança, da segurança jurídica, e da proibição de arbítrio.

Diz a Recorrente que a criação da Derrama Estadual justificou-se no período que decorreu entre maio de 2011 e Junho de 2014 quando esteve em curso o Programa de Assistência Económica e Financeira que envolveu Portugal, o FMI e a União Europeia.

Para a Recorrente a criação deste “adicional” ficou a dever-se à necessidade de um incremento de receitas por parte do Estado Português num período de crise económica. Tratava-se assim de uma situação perspetivada num tempo determinado, justificada por uma conjuntura económica e financeira de excepcional instabilidade, não se justificando, para a Recorrente, a continuação da sua vigência após a reconhecida recuperação económica do país.

São, portanto, estas duas ordens de razão que constituem as alegações da Recorrente.

Salvo o devido respeito por diversa posição, entendemos não caber aqui razão à Recorrente.

Embora o normativo do artigo 87.º-A/1 do CIRC fale em taxa adicional, o mais adequado seria falar em adicionamento, uma vez que, em rigor, os adicionais pressupõem a incidência sobre a coleta dos impostos principais, enquanto que os adicionamentos a pressupõem sobre a respetiva matéria coletável/lucro tributável, como sucede com a Derrama Estadual.

Ou seja, a Derrama Estadual parece configurar um novo imposto e não uma mera taxa adicional ao IRC (Neste sentido Decisão Arbitral 143/2012-T, de 30/04/2013 e Acórdão do Tribunal Constitucional 430/2016, de 13/07/2016, disponíveis nos sítios da Internet www.caad.pt e www.tribunalconstitucional.pt).

Assim, a Derrama Estadual, salvo melhor juízo, configura um imposto acessório e não um mero imposto dependente, devido mesmo que o imposto principal, do qual depende, não o seja, pois que, como decorre do respetivo regime jurídico, a Derrama Estadual incide sobre parte do lucro tributável do imposto principal.

A nosso ver e salvo melhor, tal tributo pode ser da responsabilidade das sociedades enquanto pessoas coletivas de direito privado.

Com efeito é reconhecida a personalidade jurídica às pessoas coletivas, ou seja, entidades ou organizações humanas, privadas ou públicas, criadas por decisão tomada, direta ou indiretamente, por pessoas individuais, que visam a prossecução de fins próprios ou institucionalizados, dispondo para o efeito de capacidade de exercício, sendo titulares de direitos ou de garantias institucionais e sujeitando-se ao cumprimento de obrigações.

As pessoas coletivas privadas organizam-se sob a forma de fundações, associações e sociedades (art.º 157.º do CC).

Afigura-se-nos assim não ter razão a Recorrente ao referir «… o ponto é que (…) não faz sentido colocar na sociedade, mero intermediário da carga fiscal, mera ficção jurídica, a medição de rendimento para efeitos de aplicação a si de taxas progressivas, quando esse rendimento a outros pertence, e em fracções ou divisões desiguais que nada têm que ver com o conjunto do lucro sujeito à progressividade trazida pela derrama estadual.»

Para a Recorrente, «juridicamente, uma sociedade não possui nenhuma capacidade contributiva uma vez que os lucros lhe não pertencem, sendo que nenhum direito tem a deles se apropriar.»

Como referimos supra, para a Recorrente, a sociedade é uma ficção jurídica, uma mera ferramenta jurídica.

Mas, a nosso ver e salvo melhor, não é assim.

Lei Geral Tributária

Artigo 18.º

Sujeitos

«1 - O sujeito activo da relação tributária é a entidade de direito público titular do direito de exigir o cumprimento das obrigações tributárias, quer directamente quer através de representante.

2 - Quando o sujeito activo da relação tributária não for o Estado, todos os documentos emitidos pela administração tributária mencionarão a denominação do sujeito activo.

3 - O sujeito passivo é a pessoa singular ou colectiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte directo, substituto ou responsável. (sublinhado nosso).

(…)»

Nos termos do disposto no art. 15.º da Lei Geral Tributária «a personalidade tributária consiste na susceptibilidade de ser sujeito de relações jurídicas tributárias». Em face desta definição, é possível termos uma primeira delimitação: têm personalidade tributária as pessoas singulares e coletivas que possuem personalidade jurídica nos termos do disposto nos artigos 66.º e 158.º do Código Civil e, ainda, nos termos do artigo 5.º do Código das Sociedades Comerciais.

E como disposto no nº 2 do art. 16º da LGT, «Salvo disposição legal em contrário, tem capacidade tributária quem tiver personalidade tributária».

Acresce que, como bem se refere na Sentença sob escrutínio, a progressividade encontra-se apenas prevista para o imposto sobre o rendimento pessoal, como um objetivo destacado da diminuição da desigualdade económica entre os cidadãos (artigo 104.º, n.º 1, da CRP), mas daí não resulta que esteja constitucionalmente vedado a um imposto incidente sobre as empresas um carácter progressivo, o que só por si não é suscetível de violar o princípio da igualdade, da capacidade contributiva ou da tributação segundo o rendimento real.

No que concerne à questão relativa à invocada inconstitucionalidade em razão do prolongamento injustificado da Derrama Estadual a período posterior à cessação dos motivos que estiveram subjacentes à sua criação pela Lei nº 12-A/2010, de 30.06., temos a dizer que tal prolongamento não se nos afigura inconstitucional.

Com efeito, louvando-nos aqui na douta Sentença recorrida, embora o Relatório do Orçamento do Estado para 2018 tenha dado indicação de um progresso da economia portuguesa, mediante o registo, em 2017, do aumento do crescimento, sustentado pelas exportações e o investimento, e a redução da taxa de desemprego, que permitiu uma recuperação relativamente à recessão de 2011 a 2013, o documento não deixa de assinalar a necessidade de implementação das reformas para continuar a superar os bloqueios estruturais que caracterizam a economia nacional, em parte determinados pela anterior crise económica e financeira.

Em 2018, ainda se colocavam constrangimentos de política fiscal determinados pela necessidade de consolidação orçamental, centrada na diminuição da despesa e no aumento da receita, e de redução dos níveis de endividamento público.

Assim se compreende que a Lei do Orçamento do Estado para 2018, não só não tenha abolido a Derrama Estadual, como tenha ainda procedido um agravamento fiscal, ao aumentar a taxa aplicável ao último escalão, que passou de 7% para 9%.

A nosso ver e salvo melhor, o legislador entendeu haver razões de política fiscal suficientes para legitimar manutenção da Derrama Estadual, o que afasta a violação do princípio da igualdade na vertente de proibição do arbítrio e, pela sua específica configuração, não afronta o princípio da capacidade contributiva.

No respeitante à questão da dispensa do pagamento do remanescente diremos que, nos termos do disposto no artigo 6.º/7 do RCP, “nas causas de valor superior a € 275.000,00, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento.”

São, designadamente, dois os pressupostos de dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça:

-A menor complexidade ou simplicidade da causa;

-A positiva atitude de cooperação das partes.

Nos termos do disposto no artigo 530.º/7 do CPC “para efeitos de condenação no pagamento de taxa de justiça, consideram-se de especial complexidade as ações e os procedimentos cautelares que:

- Contenham articulados ou alegações prolixas;

- Digam respeito a questões de elevada especialização jurídica, especificidade técnica ou importem a análise combinada de questões jurídicas de âmbito muito diverso; e

- Impliquem a audição de um elevado número de testemunhas, a análise de meios de prova extremamente complexos ou a realização de várias diligências de produção de prova morosas.

Ora, no caso dos autos, afigura-se-nos não revelar a ação uma especial complexidade nos termos enunciados, sendo certo que, a nosso ver, as partes tiveram um comportamento processual normal.

Assim sendo, o Ministério Público nada tem a opor à pretendida dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça.

CONCLUSÃO.

Pelo exposto, sempre salvaguardando mais esclarecida posição, entendemos dever negar-se provimento ao presente recurso, sendo de manter a Sentença Recorrida na Ordem Jurídica.

*

Os autos vêm à conferência corridos os vistos legais.

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2. FUNDAMENTAÇÃO:

2.1. - Dos Factos:

Na decisão recorrida foi fixado o seguinte probatório reputado relevante para a decisão:

A) A Impugnante GRUPO A..., SGPS, SA. está abrangida pelo regime especial de tributação de Sociedades (RETGS) previsto nos artigos 69º e 71º do CIRC, factualidade que resulta comprovada da conjugação dos vários elementos que dos autos constam, incluindo os articulados apresentados pelas Partes;
B) Relativamente ao exercício de 2017 apresentou, em 19-06-2018, como sociedade dominante, declaração de rendimentos Modelo 22, tendo autoliquidado, como derrama estadual, o montante de € 3 083 380,87, cfr. doc. 3 que instruiu a petição inicial;
C) E, nos dias 25-06-2019, 25-09-2020 apresentou declarações de substituição da declaração referida em B), onde manteve a autoliquidação, no referido montante, da derrama ali mencionada, vide docs. 4 e 5 da petição inicial;
D) argumentando de forma similar à que realizou nestes autos apresentou Reclamação Graciosa, que expediu via postal em 18-06-2020, cfr. doc. 7 da petição inicial;
E) A Entidade reclamada, depois de proferir projeto de decisão e esgotado o prazo do direito de audição prévia, indeferiu, em 12-07-2021 a reclamação, decisão comunicada à Reclamante através de VIA CTT expedida em 19-07-2021, vide doc. 2 da petição inicial.
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2.2.- Motivação de Direito

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, nos termos dos artigos 144º nº 2 e 146º nº 4 do CPTA e dos artigos 5º, 608º nº 2, 635º nºs 4 e 5 e 639º do CPC ex vi dos artigos 1º e 140º do CPTA e 2º., al. e) do CPPT.
No caso, em face dos termos em que foram enunciadas as conclusões de recurso pela recorrente, as questões que cumpre decidir subsumem-se a saber se a decisão vertida na sentença, a qual julgou improcedente a impugnação, padece de inconstitucionalidade em (i) primeiro lugar, por se tributar com taxas progressivas as ficções que são as sociedades comerciais, acrescendo que «a norma que prevê taxas adicionais de tributação em função do maior volume de rendimento (lucro) apurado na sociedade, constante dos n.ºs 1 e 2 do artigo 87.º-A do CIRC, é inconstitucional por violação dos artigos 2.º (Estado de direito, que proíbe o tratamento arbitrário), 13.º (princípio da igualdade) e 103.º, n.º 1 (repartição justa dos rendimentos e da riqueza) da Constituição da República Portuguesa», em (ii) segundo, o prolongamento injustificado da aplicação da Derrama Estadual a período posterior à cessação dos motivos que estiveram subjacentes à sua criação pela Lei n.º 12-A/2010, de 30 de Junho, também incorre em inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade na vertente de proibição do arbítrio, bem como o princípio da capacidade contributiva e, por último, em (iii) terceiro, a questão da dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, por estarem reunidos os pressupostos para a sua aplicação.

Aquilatemos.

(i) Da arbitrariedade e inconstitucionalidade por se tributar com taxas progressivas as ficções que são as sociedades comerciais

Neste vector recursório a Recorrente sustenta a tese de que, juridicamente, uma sociedade não possui nenhuma capacidade contributiva uma vez que os lucros não lhe cabem, não lhe assistindo qualquer direito a deles se apropriar. Ao invés, esses lucros são pertença e estão na disponibilidade dos accionistas responsáveis pela reunião de capitais e de vontades por trás da plataforma jurídica que é a sociedade pelo que a Derrama Estadual e a progressividade que esta introduz na tributação em IRC, como tributação que este é sobre a ficção jurídica que são as sociedades, é inconstitucional pelos resultados arbitrários e violadores do princípio da igualdade que desencadeia esta tributação progressiva sobre a ficção jurídica sociedade sendo que a norma de tributação do artigo 87.º-A, n.ºs 1 e 2, do CIRC, enquanto aplicável ao exercício fiscal de 2017, é por si só inconstitucional por violação do princípio da protecção da confiança, da segurança jurídica, e da proibição de arbítrio.
Explicitando melhor a alegação dessas arbitrariedade e inconstitucionalidade de se tributar com taxas progressivas as ficções que são as sociedades comerciais, sustenta a Recorrente que, juridicamente, uma sociedade não possui nenhuma capacidade contributiva uma vez que os lucros lhe não pertencem, sendo que nenhum direito tem a deles se apropriar, sendo tais lucros pertença e estando na disponibilidade dos accionistas responsáveis pela reunião de capitais e de vontades por trás da plataforma jurídica que é a sociedade.
Em reforço argumentativo, considera ainda a Recorrente que «a norma que prevê taxas adicionais de tributação em função do maior volume de rendimento (lucro) apurado na sociedade, constante dos n.ºs 1 e 2 do artigo 87.º-A do CIRC, é inconstitucional por violação dos artigos 2.º (Estado de direito, que proíbe o tratamento arbitrário), 13.º (princípio da igualdade) e 103.º, n.º 1 (repartição justa dos rendimentos e da riqueza) da Constituição da República Portuguesa» pois «não faz sentido colocar na sociedade, mero intermediário da carga fiscal, mera ficção jurídica, a medição de rendimento para efeitos de aplicação a si de taxas progressivas, quando esse rendimento a outros pertence, e em fracções ou divisões desiguais que nada têm que ver com o conjunto do lucro.»
Em coerência com tal asserção, a recorrente extrai a conclusão de que «a norma que prevê taxas adicionais de tributação em função do maior volume de rendimento (lucro) apurado na sociedade, constante dos n.ºs 1 e 2 do artigo 87.º-A do CIRC, é inconstitucional por violação dos artigos 2.º (Estado de direito, que proíbe o tratamento arbitrário), 13.º (princípio da igualdade) e 103.º, n.º 1 (repartição justa dos rendimentos e da riqueza) da Constituição da República Portuguesa» porquanto «não faz sentido colocar na sociedade, mero intermediário da carga fiscal, mera ficção jurídica, a medição de rendimento para efeitos de aplicação a si de taxas progressivas, quando esse rendimento a outros pertence, e em fracções ou divisões desiguais que nada têm que ver com o conjunto do lucro.»
Quid juris?
Importa desde logo referir que, como bem observa o Ministério Público, conquanto o normativo do artigo 87.º-A/1 do CIRC refira “taxa adicional”, o mais correcto seria utilizar o termo “adicionamento”, já que os adicionais pressupõem a incidência sobre a colecta dos impostos principais, e os adicionamentos são incidentes sobre a respectiva matéria colectável/lucro tributável, como sucede com a Derrama Estadual.
Vale isso por dizer que a Derrama é caracterizável como um “novo imposto” e não uma “mera taxa adicional ao IRC”, entendimento que encontra amparo no Acórdão do Tribunal Constitucional 430/2016, de 13/07/2016, acessível em www.tribunalconstitucional.pt.
De notar, ainda, que a doutrina alude a impostos extraordinários para referenciar os que tenham sido criados para atender a circunstâncias extraordinárias e gerar receitas extraordinárias por períodos limitados de tempo (neste sentido, Alberto Xavier, in «Manual de Direito Fiscal I», Almedina 1981, pág. 93 e Nuno de Sá Gomes, in «Manual de Direito Fiscal», Volume I, Rei dos Livros 1999, pág. 137). Nessa linha de entendimento, será extraordinário o imposto que tiver sido instituído para vigorar durante um período limitado de tempo, servindo a excepcionalidade das circunstâncias que determinaram a sua criação para confirmar ou acentuar a característica transitória ou temporária do imposto. Ou seja, o legislador utiliza a expressão «imposto extraordinário» para designar o imposto que é limitado temporalmente, ou porque lhe é estabelecido um período de vigência limitado, ou porque é enquadrado em medidas fiscais com carácter marcadamente temporário.
Contudo, a derrama estadual estabelecida pelo artigo 87.ºA do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, foi instituída para vigorar ordinariamente, isto é, em todos os exercícios e, conforme estatuído nesse preceito legal, incide sobre parte do lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas apurado por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e por não residentes com estabelecimento estável em território português.
Note-se que existe uma enorme disparidade dentro do IRC ao nível da sua base tributável.
É assim que, após a previsão de tributação por métodos indirectos (artigos 57.º e seguintes) e de variadas “disposições comuns e diversas” (artigos 63.º e seguintes), este imposto entra no capítulo das taxas (artigos 87º e seguintes).
Neste âmbito, tornamos a reencontrar “diversos IRC’s”, vale por dizer, “várias taxas”, nenhuma menos “IRC” do que a outra:
(I) taxas que variam em função do montante da matéria colectável apurada (artigo 87.º, n.ºs 1 e 2), aplicáveis às entidades residentes que exerçam a título principal uma actividade comercial, industrial ou agrícola e, bem assim, ao lucro imputável a estabelecimento estável de não residentes;
(II) taxa aplicável ao rendimento global das entidades residentes que não exerçam a título principal uma actividade comercial, industrial ou agrícola (artigo 87.º, n.º 5, do Código do IRC);
(III) taxas várias, especificamente aplicáveis aos não residentes cujos rendimentos não sejam imputáveis a estabelecimento estável (artigo 87.º, n.ºs 4 e 6, do Código do IRC); e
(IV) taxa (ou sobretaxa) aplicável às entidades residentes que exerçam a título principal uma actividade comercial, industrial ou agrícola e, bem assim, ao lucro imputável a estabelecimento estável de não residentes, cuja matéria colectável é recortada por referência ao lucro tributável (apurado nos termos do Código do IRC) destas entidades (artigo 87.º-A do Código do IRC – “derrama estadual”).
De salientar que, quanto a saber qual a matéria colectável a que se aplica a taxa prevista no artigo 87.º-A do Código do IRC (“derrama estadual”), deve afirmar-se que toda a taxa se aplica a uma matéria colectável ou, numa formulação mais clara e simples, a matéria é colectável na medida em que seja sobre ela que incide uma taxa (de imposto) que gera uma colecta.
No ponto, o artigo 87.º-A do Código do IRC na redacção em vigor ao tempo dos factos (2017), simultaneamente fixa uma taxa e define a matéria colectável sobre a qual a mesma incidirá: esta é constituída pelo lucro tributável das entidades aí referenciadas (que constitui também base tributável de outras duas taxas de IRC), no que exceder € 1.500.000,00.
Daí resultando, na prática, que o IRC já não é hoje um imposto proporcional, mas, sim, progressivo como fica patente no quadro fixado no normativo em análise.
Ora, este lucro tributável, sobre o qual incide directamente a taxa prevista no artigo 87.º-A do Código do IRC, não é menos matéria colectável do que, por exemplo, a constituída pelo rendimento global das entidades residentes que não exerçam a título principal uma actividade comercial industrial ou agrícola (ao qual também se não deduzem prejuízos fiscais, como se viu supra), nem menos matéria colectável do que a constituída pelos rendimentos, não imputáveis a estabelecimento estável, de entidades não residentes (rendimentos estes aos quais também se não deduzem quaisquer prejuízos fiscais).
É, pois, indiscutível, que o IRC é, e sempre foi, um imposto plural (por oposição a único), não constituindo a derrama estadual, nenhuma novidade a esse respeito.
Esta, é apenas mais um aspecto da múltipla abrangência de situações que o IRC sempre patenteou e que está originariamente sintetizada nos artigos 2.º (diferenciações em razão dos sujeitos passivos), 3.º (diferentes bases do imposto), 4.º (diferente recorte territorial da base do imposto para efeitos da tributação dos sujeitos passivos não residentes) e 87.º (diferentes e variadas taxas).
No tocante à inserção sistemática do artigo 87.º-A do Código do IRC (“derrama estadual”), impõe-se a conclusão definitiva de que está inserido no capítulo das taxas, ou seja, no capítulo onde se define o último termo da equação fiscal necessário para a liquidação de imposto, sendo a pluralidade de taxas uma característica estrutural do IRC.
Ao que tudo aponta, por razões de simplificação e uma vez que esta sobretaxa não integrava o Código do IRC originariamente pois só foi introduzida em 2010, como é sabido, a que acresce o facto de ter sido estabelecida para acudir a uma emergência financeira presumidamente temporária do Estado português, destinada a ser revogada logo que a situação de emergência fosse superada, o artigo 87.º-A define à margem da sistemática de base do Código do IRC não só a taxa em si mesma, que quer ver aplicada, mas, também, a matéria colectável sobre a qual quer ver aplicada essa taxa.
Esta débil articulação com a forma como neste código se separam as diversas temáticas (designadamente a da matéria colectável e a da taxa), não desclassifica a base de incidência da taxa do artigo 87.º-A do Código do IRC da sua qualificação como matéria colectável, tanto mais que a inserção da definição da matéria colectável na própria norma que define a taxa aplicável a essa matéria colectável, só pode reforçar a sua qualificação como tal.
É que, à previsão das taxas segue-se a previsão da aplicação dessas mesmas taxas, ou seja, as operações de liquidação do IRC, ou, em coerência e como acima ficou dito, da “diversidade de IRC’s.”
Depois de prever as taxas e as matérias colectáveis a que estas se aplicam, o Código do IRC dedica-se a regular a operação de aplicação da taxa à matéria colectável e, feita esta primeira operação, as operações a que possa haver lugar referentes a acertos de conta que tenham em linha de conta o imposto antecipadamente pago (v.g. pagamentos por conta e retenções na fonte suportadas) ou respeitantes a outras deduções à colecta assim apurada (abrangendo a título de benefícios fiscais).
Tais operações têm por base a matéria colectável que conste da declaração Modelo 22, utilizada pelos contribuintes para procederem à autoliquidação do seu IRC, sobre a qual deverão aplicar a(s) taxa(s) do IRC de modo a apurar um primeiro montante que, não havendo quaisquer deduções a fazer ao mesmo (v.g., pagamentos por conta, deduções à colecta a título de benefícios fiscais, etc.), será o montante devido por força das tributações previstas no Código do IRC. Dito de outro modo: está em causa toda e qualquer matéria colectável prevista no Código do IRC, incluindo a prevista no artigo 87.º-A do Código do IRC, com respeito à qual se manda aplicar a taxa correspondente à matéria colectável aí definida.
Nesse sentido, pontifica o facto de esta tributação estar prevista no Código do IRC e fazer parte do conjunto de tributações previsto nesse Código, sendo que a Lei n.º 12-A/2010, de 30 de Junho, que a introduziu, inseriu-a no capítulo I, denominado de “medidas fiscais” e, dentro deste capítulo, na sua secção II, intitulada de “imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas”. E esta tributação é a única medida fiscal introduzida por esta lei na secção II com o referido título - isto é, a título de IRC.
Ademais, ao invés do que sucede com a derrama municipal, uma vez que esta (incluindo taxas máximas e definição da respectiva matéria colectável) está prevista em lei específica, autónoma, mais concretamente, no artigo 14.º da Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro (Lei das Finanças Locais), não fazendo parte do Código do IRC, apresenta diferenças significativas em relação às características gerais das várias tributações que constituem o IRC, mormente à questionada derrama estadual.
Desde logo, a tributação aqui em discussão utiliza conceitos ou definições usados também pelas outras tributações previstas a título de IRC, e não dispõe de uma lógica e orientação diferente no tocante ao seu modo de actuar e de se definir.
Depois, a aplicação da derrama municipal obedece a uma deliberação dos municípios que necessita de ser anualmente renovada, sendo que a sua taxa é, dentro das balizas legalmente fixadas, decidida, anualmente também, pelos municípios.
Mais acresce que a tributação aqui questionada, constante do Código do IRC, tem por sujeito activo e por sujeitos passivos exactamente as mesmas entidades a que se aplicam as outras tributações também constantes do Código do IRC, sendo esta, talvez, a maior diferença para o imposto, este sim, diferente, que é a derrama municipal: o seu sujeito activo são os municípios, e não o Estado.
Por outro lado, como já se viu, a tributação controvertida nos autos coexiste com uma multiplicidade de matérias colectáveis e de taxas que pré-existiam e que são todas igualmente “IRC”, sendo esta tributação adicional apenas e só, mais uma a adicionar a um conjunto essencialmente diverso de tributações em sede de IRC.
De salientar, ainda, que o facto de na determinação da sua matéria colectável serem irrelevantes os prejuízos fiscais apurados em exercícios anteriores, não constitui qualquer novidade ou singularidade em sede de IRC pois certas matérias colectáveis previstas no IRC compartilham consigo (tributação adicional prevista no artigo 87.º-A do Código do IRC) a propriedade da irrelevância, para a sua determinação, de prejuízos fiscais apurados em exercícios anteriores.
Por fim, reitera-se que a designada derrama estadual é tão IRC como são as outras tributações também previstas no Código do IRC, não só por identidade de razão, mas, igualmente, por referência às tributações autónomas em IRC as quais incidem sobre despesas e encargos, e não sobre o lucro, por maioria de razão.
Na verdade, com respeito à tributação adicional inserida no Código do IRC em 2010 (designada de derrama estadual), ao contrário da designada tributação autónoma está-se não só perante tributação que formalmente se insere no Código do IRC, mas, também, perante tributação que materialmente se não distingue de outras tributações constantes deste mesmo Código do IRC desde a sua concepção no ano de 1989.
E é precisamente porque se está perante IRC, formal e materialmente considerado, que todas as regras com vocação para aplicação generalizada às várias tributações contidas no Código do IRC, se aplicarão também a esta sobretaxa ou tributação adicional.
Por assim ser, esta tributação adicional não é nem mais, nem menos, IRC, do que os outros IRC’s com que coexiste, tudo convergindo no sentido da caracterização da derrama estadual como uma imposição “a título de IRC”.
Quanto à natureza jurídico-fiscal da derrama estadual como imposto autónomo, há que extrair e aplicar as ilações do estudo de José Luís Saldanha Sanches, (“A derrama, os recursos naturais e o problema da distribuição de receita entre os municípios”, Fiscalidade, n.º 38, 2009), ainda que a propósito da derrama municipal: “Não há dúvida que a nova LFL veio alterar substancialmente este quadro. À luz dos novos dados normativos, a derrama assume-se como um imposto autónomo, no sentido de dependente – leia-se, não acessório – fundando a doutrina tal convicção na circunstância de que todos os seus elementos essenciais constam da lei ou dependem da vontade dos municípios, cujo interesse é determinante na decisão quanto ao respetivo lançamento. A sua relação com o IRC cinge-se, portanto, para efeitos do seu cálculo e por razões de simplicidade, a uma base tributável comum, que não prejudica nem obsta à existência de relações jurídico-tributárias autónomas entre os dois impostos.
(…)
É certo que a derrama incide sobre o lucro tributável sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas, de onde decorre que nos casos em que não haja lugar a tributação do rendimento, também não haverá obrigação de pagamento da derrama, por falta de base de incidência. No entanto, relativamente a qualquer outra vicissitude com repercussão no IRC – v.g., invalidade da liquidação, deduções à matéria coletável e à coleta, reduções de taxa – a derrama adquiriu estatuto de imunidade, desligando-se efetivamente do imposto principal.
Depois, tendo a derrama passado a ser calculada a partir do lucro tributável – e não já a partir da coleta – há que concluir que a mesma se converteu, de uma perspetiva jurídico-financeira, num adicionamento ao IRC, perdendo a sua natureza de adicional (Sérgio Vasques, “O sistema de tributação local e a derrama”, Fiscalidade, n.º 38, 2009, p. 121; Jónatas Machado/Paulo Nogueira da Costa, “As derramas municipais e o conceito de estabelecimento estável”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J. L. Saldanha Sanches, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, p. 854).”
Por isso também se revela assertiva a formulação propugnada pelo EPGA: a Derrama Estadual apresenta-se como um “imposto acessório” e não um “simples imposto dependente”, devido mesmo que o imposto principal, do qual depende, não o seja, pois que, como decorre do respectivo regime jurídico, a Derrama Estadual incide sobre parte do lucro tributável do imposto principal.
Sobre a natureza do questionado tributo se pronunciaram no assinalado sentido, entre muitos, os Acórdãos do STA de 07/11/2018, Processo nº 01900/12.0BELRS, de 09/01/2013, Processo nº 01302/12, de 02/05/2012, Processo nº0234/12, de 13/03/2013, Processo nº 0105/13, de 05/07/2012, Processo nº 0206/12, de 05/11/2014, Processo nº 01229/13, de 22/01/2014, Processo nº 01714/13 e de 27/02/2013, Processo nº 01241/12, todos publicados em www.dgsi.pt, sendo ainda interessante apontar a Decisão Arbitral n.º 143/2012-T, de 30/04/2013, acessível no site contendo a jurisprudência do CAAD.
Sendo essa a correcta qualificação jurídica, vejamos, então, se o ajuizado tributo pode ser da responsabilidade das sociedades enquanto pessoas colectivas de direito privado.
Tradicionalmente, entende-se que a personalidade jurídica é a susceptibilidade para se ser, em abstracto, titular de direitos e deveres; é a aptidão ou idoneidade para se ser um centro de imputação de efeitos jurídicos; é a qualidade de ser sujeito de Direito, pessoa singular ou pessoa colectiva; é a qualidade jurídica de ser pessoa [C. A. Mota Pinto, A. Pinto Monteiro e P. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 5ª Edição, Gestlegal Editora, Coimbra, 2020 (2005), pág. 193; A. Menezes Cordeiro e A. Barreto Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil IV, Parte geral – Pessoas, 5ª Edição, Almedina, Coimbra, 2019, pág. 371 e 372 e em Direito das Sociedades I, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2020, págs. 262 a 281; Diogo Costa Gonçalves, Código das Sociedades Comerciais Anotado, coord. de A. Menezes Cordeiro, 5ª edição, Almedina, Coimbra, 2022, págs. 98 a 103..
Ora, são sujeitos de Direito, dotados, portanto, de personalidade jurídica: (I) as pessoas singulares (ou pessoas físicas) e (II) as pessoas colectivas (por vezes, também designadas “pessoas jurídicas” ou “pessoas morais”).
Tradicionalmente, ainda, entende-se que a personalidade jurídica é um conceito qualitativo ou absoluto, insusceptível, portanto, de graduação: ou se tem personalidade jurídica ou não se tem; ou se é pessoa (singular ou colectiva) ou não se é.
Todavia, hoje deve entender-se que o conceito de personalidade jurídica não deve ser absolutizado porquanto, ao lado da personalidade jurídica plena de que gozam as pessoas, singulares e colectivas, deve admitir-se a existência de uma personalidade jurídica rudimentar ou limitada (ou mera subjectividade jurídica) de que gozam certas entidades que, não obstante não terem personalidade jurídica plena, constituem verdadeiros centros autónomos de imputação de efeitos jurídicos, especialmente de direitos e deveres [vide A. Menezes Cordeiro e A. Barreto Menezes Cordeiro, Tratado…, op. cit., págs. 661 a 672 e em Direito das Sociedades I, op. cit., págs. 293 a 306; J. M. Coutinho de Abreu, Curso De Direito Comercial – Das Sociedades, Volume II, 8ª edição, Almedina, Coimbra, 2024, págs. 173 a 181; R. Pinto Duarte, Escritos sobre Direito das Sociedades, Coimbra Editora, 2008, págs. 35 a 37].
Portanto, na actualidade, a personalidade jurídica das pessoas colectivas no Direito Português, é pacificamente perspectivada como uma organização constituída por um agrupamento de pessoas ou por um complexo patrimonial, com o objectivo da prossecução de um interesse comum.
Essas entidades nomeadamente e ao que ao caso releva, têm personalidade judiciária (cfr. arts. 12.º, 13.º e 14.º do Código de Processo Civil [CPC] e personalidade tributária (arts. 15.º, 16.º, n.º 3, 18.º, n.ºs 3 e 4, 25.º, todos da Lei Geral Tributária [LGT].
Assim, são, nomeadamente, pessoas colectivas de Direito Privado, dotadas de personalidade jurídica (plena) ou personalidade colectiva:
– as sociedades, pelo menos, as sociedades comerciais e as sociedades civis sob forma comercial, a partir da data do registo definitivo do respectivo ato constitutivo;
– as associações de Direito Privado (em sentido restrito – com efeito, em sentido amplo, a expressão “associação de Direito Privado” é susceptível de abranger também as sociedades, civis ou comerciais, e ainda as associações sem personalidade jurídica. Assinale-se que para além das associações de Direito Privado existem ainda associações de Direito Público, como as associações públicas profissionais, que podem ser “Ordens” ou “Câmaras”);
– as fundações; e,
– as cooperativas (para quem considere que não são sociedades.
Cfr: art. 5.º do CSC; arts 157.º e 158.º do Código Civil; art. 17.º do Código Cooperativo.
E, em conjugação com o que atrás ficou dito, o terem as sociedades comerciais personalidade jurídica ou personalidade colectiva, significa que a sociedade comercial (e a sociedade civil sob forma comercial) é um sujeito de Direito de tipo pessoa colectiva, distinto e autónomo face ao(s) sujeito(s) do(s) respectivo(s) sócio(s), com aptidão para ser titular, em nome próprio, de direitos e deveres.
As sociedades comerciais e as sociedades civis sob forma comercial são, portanto, novos sujeitos de Direito, criados pelos respectivos sócios ou sócio único (neste último caso, se for constituída uma sociedade unipessoal, por exemplo, uma sociedade unipessoal por quotas), mas que se autonomizam face a este(s), adquirindo personalidade jurídica própria.
E, nas palavras do EPGA, é reconhecida a personalidade jurídica às pessoas colectivas, ou seja, entidades ou organizações humanas, privadas ou públicas, criadas por decisão tomada, directa ou indirectamente, por pessoas individuais, que visam a prossecução de fins próprios ou institucionalizados, dispondo para o efeito de capacidade de exercício, sendo titulares de direitos ou de garantias institucionais e sujeitando-se ao cumprimento de obrigações.
Com todo esse enquadramento jurídico-conceptual não logra acolhimento a tese da Recorrente de que «… o ponto é que (…) não faz sentido colocar na sociedade, mero intermediário da carga fiscal, mera ficção jurídica, a medição de rendimento para efeitos de aplicação a si de taxas progressivas, quando esse rendimento a outros pertence, e em fracções ou divisões desiguais que nada têm que ver com o conjunto do lucro sujeito à progressividade trazida pela derrama estadual» pois que «juridicamente, uma sociedade não possui nenhuma capacidade contributiva uma vez que os lucros lhe não pertencem, sendo que nenhum direito tem a deles se apropriar» não passando a sociedade de uma ficção jurídica, uma mera ferramenta jurídica.
Quid Juris?
No tangente à figura da desconsideração da personalidade jurídica da pessoa colectiva, permitimo-nos evocar, data venia, a brilhante fundamentação gizada no acórdão do STJ de 07-11-2017, emanado no Processo nº 919/15.4T8PNF.P1.S1, livremente acessível em:
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/a28508b33795ae3a802581d8003c8077?OpenDocument.
Assim, na esteira desse douto aresto, cita-se o doutrinado por Coutinho de Abreu, a propósito do sentido da personalidade jurídica das sociedades comerciais e a questão do interesse social, em “Do Abuso do Direito”, a pp. 102/103:
«Hoje, os autores são concordes na visão da personalidade jurídica como uma “criação do Direito”, um “expediente jurídico”, um “mecanismo técnico” ordenado a fins essencialmente práticos e limitado por esses fins».
Na verdade e como se expende no acórdão em referência, “a atribuição de personalidade jurídica à pessoa colectiva faz emergir um novo centro de relações jurídicas, autónomo em relação aos seus membros e às pessoas que actuam como seus órgãos. Trata-se de uma ficção jurídica que, no que concerne às sociedades comerciais, visa dotar a chamada iniciativa privada, enquanto manifestação do direito de propriedade, de um instrumento de propulsão da actividade económica, através da consequente separação e limitação da responsabilidade que a autonomia invoca”.
Por assim ser, o princípio da atribuição da personalidade jurídica às sociedades e da separação de patrimónios, ficção jurídica que é, não pode ser encarado, em si, como um valor absoluto e, quando estejam em causa práticas ilícitas – contrárias à ordem jurídica –, censuráveis e com prejuízo de terceiros, a personalidade colectiva não pode ter uma finalidade redutora, não pode ter a natureza de um manto ou véu de protecção dessas mesmas práticas.
«Quando a personalidade colectiva seja usada de modo ilícito ou abusivo, para prejudicar terceiros, existindo uma utilização contrária a normas ou princípios gerais, incluindo a ética dos negócios, é possível proceder ao levantamento da personalidade colectiva: é o que a doutrina designa pela desconsideração ou superação da personalidade jurídica colectiva», como defende Menezes Cordeiro, que sugere, ainda, como sub-hipótese particular, o recurso a ‘testas de ferro’ que autorizaria a procurar o real sujeito das situações criadas (In “O Levantamento da Personalidade Colectiva”, Almedina, 2000, pp. 122 e s.), ou, ainda, a da confusão de esferas jurídicas, que se verifica «quando, por inobservância de certas regras societárias ou, mesmo, por decorrências puramente objetivas, não fique clara, na prática, a separação entre o património da sociedade e o do sócio ou sócios» (In “Direito das Sociedades”, I, Parte Geral, p. 429).
O mesmo Autor escreve in “Manual de Direito Comercial”, II, volume, págs. 191/192: «O atentado a terceiros verifica-se sempre que a personalidade colectiva seja usada, de modo ilícito ou abusivo, para os prejudicar. Como resulta da própria fórmula encontrada, não basta uma ocorrência de prejuízo, causada a terceiros através da pessoa colectiva: para haver levantamento será antes necessário que se assista a uma utilização contrária a normas ou princípios gerais, incluindo a ética dos negócios…o abuso do instituto da personalidade colectiva é uma situação de abuso do direito ou de exercício inadmissível de posições jurídicas, verificada a propósito da actuação do visado, através duma pessoa colectiva. No fundo, o comportamento que suscita a penetração vai caracterizar-se por atentar contra a confiança legítima (venire contra factum proprium, suppressio ou surrectio) ou por defrontar a regra da primazia da materialidade subjacente […].».
Ainda nesse sentido, in “Tratado de Direito Civil”, I, Tomo III, p. 648, também complementa o já aludido conceito de utilização contrária a normas ou princípios gerais, incluindo a ética dos negócios, dizendo que «o abuso do instituto da personalidade colectiva é uma situação de abuso do direito ou de exercício inadmissível de posições jurídicas, verificada a propósito da actuação do visado, através duma pessoa colectiva».
Devido a comportamentos abusivos e fraudulentos, que não são substancialmente da sociedade mas dos que estão por detrás da sua autonomia (ficcionada) e a controlam (ou ao invés), a mesma pode ser utilizada desonestamente e, funcionalmente, ao arrepio do seu fim social ou com desvio da rota que o ordenamento jurídico lhe traçou, para servir de véu para encobrir uma realidade ou para mascarar uma situação. Com a liberdade que o julgador tem na concretização daquilo que é o direito, tal resultado não pode ser tolerado, por se traduzir, afinal, no desrespeito pelo princípio da autonomia e da separação que a atribuição da personalidade deveria prosseguir.
Catarina Serra [“Desdramatizando o afastamento da personalidade jurídica (e da autonomia patrimonial)”, Revista “Julgar”, nº 9, Coimbra Editora, p. 130], preconizou que «É altura de recuperar as palavra (intemporais) de FERRER CORREIA [in “Sociedades fictícias e unipessoais”, Coimbra, 1948, pág. 325)] “[s]aber quando a ideia de separação de personalidades deva ser abandonada, em homenagem aos referidos princípios [da boa fé e do abuso do direito], é problema que só caso a caso poderá resolver-se. Terá aqui um largo papel a desempenhar o prudente arbítrio do julgador, o seu humano sentido da justiça devida às coisas – o seu bom senso. Porque, na verdade, o avaliar das consequências da distinção entre personalidade social e individual é, antes de tudo, uma simples questão de bom senso”».
Em tese geral, justifica-se, nesses casos, a desconsideração, o levantamento ou a superação da personalidade jurídica da pessoa colectiva, por imposição dos ditames da boa-fé. Já Castro Mendes explicava (In “Teoria Geral do Direito Civil”, edição da AAFDL, I, 246.) que «esta atitude é o que os juristas anglo-saxónicos chamam romper o véu da pessoa colectiva» e justifica-se porque, ao contrário da pessoa singular – fim em si mesma –, a pessoa colectiva «não é mais que um instrumento de realização de interesses humanos», pelo que a sua «personificação pode ser, ou passar a ser, instrumento de abuso; e deve neste caso ponderar quais os verdadeiros interesses humanos em causa.».
Esta figura, criada originariamente pela jurisprudência, na busca da justiça, e, depois, sistematizada e aperfeiçoada com o contributo da doutrina, intervém – hoje pacificamente – para obviar aos esquemas de fraude, em casos de comprovado abuso da autonomia, pessoal e patrimonial, inerente à personalidade jurídica da sociedade para a obtenção de interesses estranhos ao fim social desta («Ao descaracterizar, para os efeitos que estão aqui em causa, as sociedades, o direito está a aproximar-se da vida tal como ela é, e, consequentemente, no caminho do seu próprio aperfeiçoamento» (Ac. do STJ de 12-05-2011, p. 280/07.0TBGVA.C1.S1- João Bernardo).).
«Quando ocorre o aproveitamento ilícito desta autonomia para obter a fuga à imputação pessoal e à responsabilidade patrimonial por parte dos sócios de sociedades comerciais» (Pais de Vasconcelos, “Teoria Geral do Direito Civil”, 2007, Almedina, 4ª ed., p. 183.), rompe-se o “véu” da pessoa colectiva, para imputar a autoria e a responsabilidade a quem é o real titular das posições jurídicas.
«A desconsideração da personalidade jurídica, também designada por levantamento da personalidade colectiva das sociedades comerciais, “disregard of legal entity”, tem, na sua base, o abuso do direito da personalidade colectiva, ou seja, o instituto deve ser usado, se e quando, a coberto do manto da personalidade colectiva, a sociedade ou sócios, dolosamente, utilizarem a autonomia societária para exercerem direitos de forma que violam os fins para que a personalidade colectiva foi atribuída em conformidade com o princípio da especialidade, assim almejando um resultado contrário a uma recta actuação.
Nos casos de deliberada confusão patrimonial, bem como naqueles em que a sociedade e a sua autonomia jurídica são usadas/abusadas, com o propósito de camuflar actos lesivos dos sócios, o levantamento da personalidade jurídica societária conduz à imputação de tais actos aos sócios por eles responsáveis.»
(…)
Segundo informa Paulo Ferreira Guedes (“Desconsideração da Personalidade Jurídica das Sociedades por Quotas Subcapitalizadas”, Faculdade de Direito da Universidade do Porto, pp 32 e s.), na Europa, a doutrina tem o seu primeiro momento numa decisão do 3º Senado do Reichsgericht (RG) de 22/6/1920, responsabilizando o sócio único de uma sociedade unipessoal, com a declaração de que «O juiz deve dar mais valor ao poder dos factos e à realidade da vida do que à construção jurídica». Essa decisão foi assim comentada por Menezes Cordeiro (O Levantamento … p 105.: «Na sua simplicidade, esta decisão é apontada como a certidão de baptismo, no Continente, do levantamento da personalidade colectiva».
Como lembra Catarina Serra no estudo citado, «Em Portugal, o afastamento da personalidade jurídica foi invocado pela primeira vez, tanto quanto se sabe, por FERRER CORREIA [na obra referenciada] (sete anos antes de FOLF SERIK ter baptizado e desenvolvido a teoria)» e, na jurisprudência, foi percursor o Ac. da RP de 13/5/1993 (CJ, 3º-199), relatado pelo então Desembargador Fernandes Magalhães.).
Escreveu Fredie Didier Jr. (Professor da Universidade Federal da Bahia, em “Aspectos processuais da desconsideração da personalidade jurídica”.):
«É forçoso admitir que, nesses casos, assim como o direito reconhece a autonomia da pessoa jurídica e a consequente limitação da responsabilidade que ela invoca, a própria ordem jurídica deve encarregar-se de cercear os possíveis abusos, restringindo, de um lado, a autonomia e, do outro, a limitação. É nesse cenário, portanto, que desponta a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, visando corrigir essa eventual falha do direito positivo. Trata-se, pois, de uma sanção à prática de um ato ilícito.
É como diz o pioneiro RUBENS REQUIÃO (“Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica (disregard doctrine)”. Revista dos Tribunais. São Paulo: RT, 1969, n. 410, p. 15):
“Se a personalidade jurídica constitui uma criação da lei, como concessão do Estado à realização de um fim, nada mais procedente do que se reconhecer no Estado, através de sua justiça, a faculdade de verificar se o direito concedido está sendo adequadamente usado. A personalidade jurídica passa a ser considerada doutrinariamente um direito relativo, permitindo ao juiz penetrar o véu da personalidade para coibir os abusos ou condenar a fraude através do seu uso.”
Ainda RUBENS REQUIÃO (ibidem, p. 14):
“O mais curioso é que a ‘disregard doctrine’ não visa a anular a personalidade jurídica, mas somente objetiva desconsiderar no caso concreto, dentro de seus limites, a pessoa jurídica, em relação às pessoas e os bens que atrás dela se escondem. É caso de declaração de ineficácia especial da personalidade jurídica para determinados efeitos, prosseguindo todavia a mesma incólume para seus outros fins legítimos”».
Por sua vez, Armando Triunfante e Luís Triunfante (Em estudo denominado “Desconsideração da Personalidade Jurídica - Sinopse Doutrinária e Jurisprudencial”, publicado na revista “Julgar” nº 9, Coimbra Editora, p. 136) sustentam a necessidade de invocar a desconsideração da personalidade colectiva (também) em dois tipos de casos:1) os de condutas em que o «cerne da questão não reside na confusão patrimonial, mas coloca-se verdadeiramente ao nível da confusão de pessoas», reflectindo tal conduta «uma acção contrária a normas ou princípios gerais e acarrete o prejuízo de terceiros»; 2) «os casos em que a comunhão de interesses não se verifica entre a sociedade e alguns dos seus sócios», hipótese em que a imputação de actos devidos em primeira linha à sociedade deva ser reconduzir-se a um terceiro estranho à sociedade».
Estes Autores esclarecem esta última afirmação, por este modo: «Estranho do ponto de vista de que não assume a qualidade de sócio. Estranho total nunca há-de ser, tendo mesmo necessariamente uma ligação próxima, pois, caso contrário, nunca estaria numa situação que conduzisse a uma situação de confusão. Terá de estar normalmente numa posição de poder controlar a gestão da sociedade cuja personalidade se vai desconsiderar». E, depois (A p. 145 do mesmo estudo.), concretizam assim o seu entendimento:
«Por outras palavras, nem sempre se mostra necessário derrogar o princípio da separação entre a pessoa colectiva e aqueles que por detrás dela actuam, para que estes possam também ser responsabilizados. Já a verdadeira desconsideração deverá ficar limitada para outras hipóteses em que a resposta anterior não é suficiente, designadamente nos casos em que a confusão seja mais intensa (ao nível da própria esfera jurídica e não envolvendo somente aspectos patrimoniais) ou quando o agente seja alguém que não um sócio. Por outro lado, serão normalmente patrimoniais e ao nível da responsabilidade os efeitos mais comuns da desconsideração. Todavia nem sempre será assim, deve ser promovida, dentro do espírito do sistema, a consequência que melhor inibir as sequelas do evento gerador da desconsideração.»
Pedro Cordeiro lembra que deve ser tido em consideração que detrás da pessoa colectiva estão homens que determinam os seus comportamentos, ao apreciar-se as consequências desses comportamentos (In “A Desconsideração da personalidade Jurídica das Sociedades Comerciais, Novas Perspectivas do Direito Comercial”, Livraria Almedina, Coimbra, 1988, p. 297.). O mesmo Autor define “homem oculto” como «aquele (ou aqueles) – pessoa(s) singular(es) ou coletiva (s) – que pode (m) formar “de per si” a vontade social, desfuncionalizando a sociedade” e salienta que o «homem oculto só se apura […] em face de cada situação concreta» (In “A Desconsideração da Personalidade Jurídica das Sociedades Comerciais” (2005, 2ª ed., Universidade Lusíada Editora), citado no Ac. do STJ de 10-01-2012 (p. 434/1999.L1.S1- Salazar Casanova). Também Meneses Cordeiro (O levantamento … p. 107), para além da já aludida hipótese sugerida quanto ao recurso a ‘testas de ferro’, comentou assim uma situação apreciada por um tribunal alemão: «A nível de decisão considerou-se que quem fundasse uma sociedade com recurso a um testa-de-ferro (“homem de palha”...) deveria responder como se fosse sócio».).
Como se sabe, não existe no nosso ordenamento jurídico positivo um preceito que tutele de modo genérico a desconsideração da personalidade jurídica (…), embora a figura não deixe de encontrar arrimo em princípios gerais positivamente consagrados, como são os da boa-fé e do abuso de direito, e também possam ser vistos como seus afloramentos concretos alguns casos tipificados de responsabilidade dos sócios, como são os previstos, p. ex., nos arts. 58º nº 1 a), 58º nº 3 e 84º do CSC ou, até, no art. 378º do CT. Embora a lei não contenha, como se disse, referência expressa à figura da desconsideração, a justificação da sua actuação, pelo menos em grande parte dos casos, emerge da exigência do princípio da boa fé (Nesse sentido, Menezes Cordeiro, “Tratado de Direito Civil”, I, Tomo III, p. 648.), cuja dimensão é aflorada, no essencial do que aqui importa, pelo art. 762º, nº 2, concatenado com o art. 334º, ambos do CC.”
Perante tão sábia e rica conceptualização acabada de examinar por apelo ao bloco fundamentador do doutíssimo acórdão supra transcrito, vejamos, então se, no caso concreto, logra provimento a tese da recorrente de que não faz sentido colocar na sociedade, mero intermediário da carga fiscal, mera ficção jurídica, a medição de rendimento para efeitos de aplicação a si de taxas progressivas, quando esse rendimento a outros pertence, e em fracções ou divisões desiguais que nada têm que ver com o conjunto do lucro sujeito à progressividade trazida pela derrama estadual» pois que «juridicamente, uma sociedade não possui nenhuma capacidade contributiva uma vez que os lucros lhe não pertencem, sendo que nenhum direito tem a deles se apropriar» não passando a sociedade de uma ficção jurídica, uma mera ferramenta jurídica.
Antecipe-se que não assiste razão à recorrente como resulta desde logo das normas específicas da incidência subjectiva da tributação consagradas nos artigos 15 a 18º da Lei Geral tributária.
Assim, sob a epígrafe “Sujeitos” estatui o Artigo 18.º do referido compêndio legal que:
«1 - O sujeito activo da relação tributária é a entidade de direito público titular do direito de exigir o cumprimento das obrigações tributárias, quer directamente quer através de representante.
2 - Quando o sujeito activo da relação tributária não for o Estado, todos os documentos emitidos pela administração tributária mencionarão a denominação do sujeito activo.
3 - O sujeito passivo é a pessoa singular ou colectiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte directo, substituto ou responsável. (sublinhado nosso).
(…)»
Por seu turno, o art. 15.º da Lei Geral Tributária estabelece que «a personalidade tributária consiste na susceptibilidade de ser sujeito de relações jurídicas tributárias».
Com base nesta definição e como bem refere o EPGA, é possível operar uma primeira delimitação: têm personalidade tributária as pessoas singulares e colectivas que possuem personalidade jurídica nos termos do disposto nos artigos 66.º e 158.º do Código Civil e, ainda, nos termos do artigo 5.º do Código das Sociedades Comerciais.
E, de harmonia com o disposto no nº 2 do art. 16º da LGT, «Salvo disposição legal em contrário, tem capacidade tributária quem tiver personalidade tributária».
Da concatenação desses normativos e levando em conta as considerações de natureza doutrinal e conceptual que se expuseram retro, não se antolha em que medida volvem afectados os princípios constitucionais nos termos pretendidos pela recorrente.
E isso está demonstrado de forma cristalina no seguinte fragmento do discurso jurídico da sentença:
“(…)
O Tribunal Constitucional tem sublinhado que um dos objetivos essenciais constitucionalmente definidos do sistema fiscal, a par da satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas, é, nos termos do artigo 103.º, n.º 1, da Constituição, realizar repartição justa dos rendimentos e da riqueza.
É esta vinculação do sistema fiscal à ideia de justiça social e à diminuição da desigualdade na distribuição social dos rendimentos e da riqueza que exige que o mesmo seja progressivo. Essa exigência está expressamente consagrada no âmbito da tributação do rendimento pessoal: de acordo com o n.º 1 do artigo 104.º, o imposto sobre o rendimento pessoal visa «a diminuição das desigualdades e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar».
A progressividade fiscal requer que a relação entre o imposto pago e o nível de rendimentos seja mais do que proporcional, o que só pode alcançar-se aplicando aos contribuintes com maiores rendimentos uma taxa de imposto superior. Por outras palavras, há progressividade quando o valor do imposto aumenta em proporção superior ao incremento da matéria coletável.
Consequentemente, a Constituição exige uma progressividade com a virtualidade intrínseca de contribuir para uma diminuição da desigualdade de rendimentos (sobre todos estes aspetos, veja-se o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 187/13, n.ºs 97, 98 e 99).
A progressividade do sistema fiscal constitui também uma exigência do princípio da igualdade material. A propósito CASALTA NABAIS refere que o princípio da igualdade fiscal tem ínsita sobretudo «a ideia de generalidade ou universalidade, nos termos da qual todos os cidadãos se encontram adstritos ao cumprimento do dever de pagar impostos, e da uniformidade, a exigir que semelhante dever seja aferido por um mesmo critério - o critério da capacidade contributiva. Este implica assim igual imposto para os que dispõem de igual capacidade contributiva (igualdade horizontal) e diferente imposto (em termos qualitativos ou quantitativos) para os que dispõem de diferente capacidade contributiva na proporção desta diferença (igualdade vertical)» (Direito Fiscal, 8ª edição, Coimbra, 2009, págs. 151-152).
Ainda segundo o mesmo autor, “configurando-se o princípio geral da igualdade como uma igualdade material, o princípio da capacidade contributiva, enquanto tertium comparationis da igualdade no domínio dos impostos, não carece dum específico e directo preceito constitucional. O seu fundamento constitucional é o princípio da igualdade articulado com os demais princípios e preceitos da respectiva “constituição fiscal” e, em especial, aqueles que decorrem já dos princípios estruturantes do sistema fiscal que constam dos artigos 103º e 104º da Constituição” (ob. cit., pág. 152).
Como pressuposto e critério da tributação, o princípio da capacidade contributiva – dentro da mesma linha de entendimento - «afasta o legislador fiscal do arbítrio, obrigando-o a que na selecção e articulação dos factos tributários, se atenha a revelações da capacidade contributiva, ou seja, erija em objecto e matéria colectável de cada imposto um determinado pressuposto económico que seja manifestação dessa capacidade e esteja presente nas diversas hipóteses legais do respectivo imposto» (ob. cit., pág. 154).
O Tribunal Constitucional tem analisado também o princípio da igualdade fiscal sob o prisma da capacidade contributiva, como se pode constatar designadamente no acórdão n.º 142/2004, onde se consignou que «[o] princípio da capacidade contributiva exprime e concretiza o princípio da igualdade fiscal ou tributária na sua vertente de uniformidade – o dever de todos pagarem impostos segundo o mesmo critério – preenchendo a capacidade contributiva o critério unitário da tributação».
O reconhecimento do princípio da capacidade contributiva como critério destinado a aferir da inadmissibilidade constitucional de certa ou certas soluções adotadas pelo legislador fiscal, tem conduzido também à ideia, expressa por exemplo no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 348/97, de que a tributação conforme com o princípio da capacidade contributiva implicará «a existência e a manutenção de uma efectiva conexão entre a prestação tributária e o pressuposto económico selecionado para objeto do imposto, exigindo-se, por isso, um mínimo de coerência lógica das diversas hipóteses concretas de imposto previstas na lei com o correspondente objecto do mesmo».
Do vindo de referir resulta que o Tribunal Constitucional se vem afastando de um controlo meramente negativo da igualdade tributária, passando a adotar o princípio da capacidade contributiva como critério adequado à repartição dos impostos; mas não deixa de aceitar a proibição do arbítrio como um elemento adjuvante na verificação da validade constitucional das soluções normativas de âmbito fiscal, mormente quando estas sejam ditadas por considerações de política legislativa relacionadas com a racionalização do sistema.
Em suma, o princípio da igualdade tributária pode ser concretizado através de vertentes diversas: uma primeira, está na generalidade da lei de imposto, na sua aplicação a todos sem exceção; uma segunda, na uniformidade da lei de imposto, no tratar de modo igual os contribuintes que se encontrem em situações iguais e de modo diferente aqueles que se encontrem em situações diferentes, na medida da diferença, a aferir pela capacidade contributiva; uma última, está na proibição do arbítrio, no vedar a introdução de discriminações entre contribuintes que sejam desprovidas de fundamento racional (cfr. acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 306/2010 e n.º 695/2014).
O princípio da tributação segundo o lucro real das empresas é, por sua vez, também uma decorrência necessária do princípio da capacidade contributiva (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 162/04) e a sua principal concretização traduz-se em afastar a tributação das empresas pelo seu lucro normal, isto é, tributar o rendimento que estas poderiam ter obtido em condições normais de exploração, independentemente das condições concretas em que desenvolveram a sua atividade (XAVIER DE BASTO, “O princípio da tributação do rendimento real e a Lei Geral Tributária, Fiscalidade, n.º 5, 2001, pág. 10). Nesse sentido, a tributação segundo o lucro real pretende garantir que possa ser estabelecida uma conexão entre a matéria coletável e o imposto que se torna exigível ao contribuinte. Não se olvida que a progressividade se encontra apenas prevista para o imposto sobre o rendimento pessoal, como um objetivo destacado da diminuição da desigualdade económica entre os cidadãos (artigo 104.º, n.º 1, da CRP), mas daí não resulta que esteja constitucionalmente vedado a um imposto incidente sobre as empresas possa igualmente assumir um carácter progressivo, o que só por si não é suscetível de violar o princípio da igualdade, da capacidade contributiva ou da tributação segundo o rendimento real.
A derrama estadual, não obstante, incidir também sobre o rendimento das empresas, apenas se aplica às empresas que apresentem lucros tributáveis superiores a € 1.5000.000 (sendo o limiar mínimo, na versão originária, de € 2.0000.000) e à parte do lucro tributável superior ao estabelecido para cada um dos escalões, que se encontra atualmente fixado em € 6 000 000 e 7 500 000, quando o lucro atinja € 35 000 000, e em € 6 000 000, € 27 500 000 e € 35 000 000, quando o lucro exceda aquele valor.
(…)
Em conclusão, a progressividade do imposto e a não dedutibilidade dos prejuízos fiscais no âmbito do grupo societário não afrontam os parâmetros de constitucionalidade considerados.
A Impugnante, iniciou a sua argumentação defendendo que derrama estadual é seletiva, não incidindo de forma idêntica sobre todas as empresas, originando uma desvantagem competitiva para algumas delas, sem qualquer justificação racional, o que provoca uma distorção da concorrência e viola os princípios estruturantes do funcionamento dos mercados, e, designadamente, o princípio da igualdade, a liberdade de gestão fiscal dos particulares e a neutralidade fiscal que ao Estado cumpre garantir.
Como se deixou dito, o princípio da igualdade tributária concretiza-se através de diversas vertentes e, entre elas, na uniformidade da lei de imposto e na proibição do arbítrio. A uniformidade pressupõe o tratamento igualitário dos contribuintes que se encontrem em situações iguais e o tratamento diferenciado daqueles que se encontrem em situações diferentes e possam revelar uma maior capacidade contributiva; a proibição do arbítrio veda a introdução de discriminações entre contribuintes que sejam desprovidas de fundamento racional.
Resulta da exposição de motivos da Lei n.º 12-A/2010, a que já se fez referência, a tributação adicional em IRC mediante a aplicação de uma sobretaxa correspondente a uma derrama a empresas cujo lucro tributável a € 2 000 000 (depois, a partir de € 1 500 000) foi motivada pelo interesse geral, numa conjuntura económico-financeira excecional de instabilidade e de ataques especulativos nos mercados financeiros, e teve em vista, a par de um conjunto de outras de medidas fiscais, reforçar e a acelerar a estratégia de consolidação orçamental prevista no PEC 2010-2013.
Não se pode afirmar, por conseguinte, que a implementação da derrama estadual se mostre como uma medida arbitrária, desprovida de fundamento razoável ou de justificação objetiva e racional. Por outro lado, ao afetar as empresas com um lucro tributável muito considerável e ao estabelecer, através de sucessivas alterações legislativas, a progressividade do imposto, a lei continua a salvaguardar o princípio da capacidade contributiva, exigindo um maior esforço do ponto de vista fiscal às empresas que auferem mais elevados rendimentos e de acordo com um escalonamento diferenciado em função dos rendimentos auferidos.
É de sufragar inteiramente o entendimento delineado na sentença recorrida o qual encontra respaldo na jurisprudência firme e reiterada do Tribunal Constitucional plasmada, entre outros, nos acórdãos nºs 197/2013, de 09/04/2013, 84/03, 162/04, 601/04 e 85/10, livremente acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt) e segundo os quais:
“O princípio da capacidade contributiva exprime e concretiza o princípio da igualdade fiscal ou tributária. (…) Isto porque se o princípio da igualdade tributária pressupõe o tratamento igual de situações iguais e o tratamento desigual de situações desiguais, a capacidade contributiva é o tertium comparationis – leia-se, o critério – que há de servir de base à comparação. Neste sentido, o princípio da capacidade contributiva opera tanto como condição ou pressuposto quanto como critério ou parâmetro da tributação (…) Opera como pressuposto ou condição visto que impede que a tributação atinja uma riqueza ou um rendimento que não existe; vale como critério ou parâmetro porque determina que a exação do património dos contribuintes se faça de acordo com a sua “capacidade de gastar” (ability to pay). Ou seja, contribuintes com a mesma capacidade de gastar devem pagar os mesmos impostos (igualdade horizontal), e contribuintes com diferente capacidade de gastar devem pagar impostos diferentes (igualdade vertical). Outro dos corolários deste princípio é precisamente a tributação do rendimento líquido do contribuinte, de onde deflui uma exigência de dedução das despesas necessárias à angariação do próprio rendimento.”
Por esse prisma, tendo em conta os contornos do caso em análise, ao fazer incidir a derrama estadual sobre o lucro tributável das empresas, estão sujeitas à mesma taxa de derrama estadual, contando que tenham o mesmo lucro, pelo que não é configurável nessa situação a ofensa o princípio da igualdade e da capacidade contributiva.
Trilhando a jurisprudência do Tribunal Constitucional em que nos revemos: “Tributar o lucro real das empresas, por seu turno, significa atingir a matéria coletável auferida pelo sujeito passivo, pelo que a tributação do lucro real é, também, uma decorrência necessária do princípio da capacidade contributiva (…). Trata-se, no entanto, de um princípio cuja principal concretização é afastar a tributação das empresas pelo seu lucro normal, isto é, tributar o rendimento que estas poderiam ter obtido em condições normais de exploração, independentemente, pois, das condições concretas em que desenvolveram a sua atividade (Xavier de Basto, “O princípio da tributação do rendimento real e a Lei Geral Tributária, Fiscalidade, n.º 5, 2001, p. 10). A questão tem sido objeto de discussão na jurisprudência constitucional, a propósito dos métodos indiretos de apuramento da matéria coletável (cfr. os artigos da Lei Geral Tributária), assumindo tal jurisprudência que a tributação pelo lucro real é um princípio que admite “desvios”, entenda-se, é compatível com alguma “normalização” no apuramento da matéria coletável (…).”
Destarte, como bem se acentua na Sentença recorrida e é enfatizado pelo Ministério Público, a progressividade encontra-se apenas prevista para o imposto sobre o rendimento pessoal, como um objectivo destacado da diminuição da desigualdade económica entre os cidadãos (artigo 104.º, n.º 1, da CRP), mas daí não resulta que esteja constitucionalmente vedado a um imposto incidente sobre as empresas um carácter progressivo, o que só por si não é susceptível de violar o princípio da igualdade, da capacidade contributiva ou da tributação segundo o rendimento real.
Ademais, o princípio da igualdade é de conteúdo pluridimensional, postulando várias exigências, sendo que, no fundo, o que se pretende evitar é o arbítrio, mediante uma diferenciação de tratamento irrazoável, a que falte inequivocamente apoio material e constitucional objectivo.
Como é sabido, o princípio constitucional da igualdade perante a lei é, um princípio estruturante do Estado de Direito Democrático e do sistema constitucional global.
Trata-se, aqui, de um princípio de conteúdo pluridimensional, que postula várias exigências, designadamente, a de obrigar a um tratamento igual de situações de facto iguais e a um tratamento desigual de situações de facto desiguais, não autorizando o tratamento desigual de situações iguais e o tratamento igual de situações desiguais.
Donde que, tal princípio não pode ser entendido como um obstáculo ao estabelecimento de disciplinas diferentes, quando diversas forem as situações que o acto vise regular.
Em última análise, o que se pretende evitar é o arbítrio, mediante uma diferenciação de tratamento irrazoável, a que falte inequivocamente apoio material e constitucional objectivo, servindo o princípio da igualdade como princípio negativo de controlo dos actos praticados no uso de poderes discricionários, configurando-se como um dos seus limites internos.
O que vale por dizer que se entende que a norma do artigo 87.º-A, n.º 2 do CIRC não padece dos vícios de violação da lei fundamental que lhe são assacados pela Recorrente, pelo que não enfermam da apontada ilegalidade os actos de autoliquidação de IRC impugnados, na parte respeitante ao apuramento da Derrama Estadual.

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(II) Do prolongamento injustificado da aplicação da Derrama Estadual a período posterior à cessação dos motivos que estiveram subjacentes à sua criação pela Lei n.º 12- A/2010, de 30 de Junho.

Neste âmbito recursivo, sustenta a Recorrente que a norma de tributação do artigo 87.º-A, n.ºs 1 e 2, do CIRC, enquanto aplicável ao exercício fiscal de 2017, é por si só inconstitucional também por violação do princípio da protecção da confiança, da segurança jurídica, e da proibição de arbítrio.
Substanciando, explana a Recorrente que a criação da Derrama Estadual justificou-se no período que decorreu entre maio de 2011 e Junho de 2014 quando esteve em curso o Programa de Assistência Económica e Financeira que envolveu Portugal, o FMI e a União Europeia, obedecendo a criação deste “adicional” à necessidade de um incremento de receitas por parte do Estado Português num período de crise económica.
Significa, pois, que se tratava uma situação perspectivada num tempo determinado, justificada por uma conjuntura económica e financeira de excepcional instabilidade, não se justificando, para a Recorrente, a continuação da sua vigência após a reconhecida recuperação económica do país.
Enfrentando essa questão, a sentença rechaçou a verificação do identificado vício nos seguintes termos:
“(…)
Na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 175/XII, que esteve na base do diploma que procedeu à reforma do Código do IRC (Lei n.º 2/2014), propõe-se uma redução gradual da taxa de IRC para 23% em 2014, com o objetivo final de a fixar entre 17% e 19% em 2016, e simultaneamente, a eliminação da derrama municipal e da derrama estadual em 2018. O objetivo era assegurar que as taxas de tributação das empresas se tornassem competitivas em termos internacionais, em vista à atração de investimento estrangeiro.
No entanto, a Lei n.º 2/2014, embora tenha reduzido a taxa de IRC para 23%, mediante a nova redação dada ao artigo 87.º, n.º 1, do CIRC (que foi fixada em 21% com a Lei do Orçamento de Estado para 2015), manteve a derrama estadual e até produziu um agravamento fiscal através da criação de um novo escalão (superior a € 35 000 000), a que se tornou aplicável a taxa de 7%.
Neste contexto, o anúncio da eliminação da derrama a partir de 2018, inserindo-se na mesma finalidade central de aumentar a competividade da economia, não foi mais do que uma medida programática, tal como a pretendida redução da taxa de IRC entre 17% e 19% para o ano de 2016, que não teve qualquer reflexo no plano normativo, nem pode ser encarada como gerando a legítima expectativa da efetiva supressão da derrama nesse mesmo ano ou representando a violação do princípio da segurança jurídica.
E embora o Relatório do Orçamento do Estado para 2018 tenha dado indicação de um progresso da economia portuguesa, mediante o registo, em 2017, do aumento do crescimento, sustentado pelas exportações e o investimento, e a redução da taxa de desemprego, que permitiu uma recuperação relativamente à recessão de 2011 a 2013, o documento não deixa de assinalar a necessidade de implementação das reformas para continuar a superar os bloqueios estruturais que caracterizam a economia nacional, em parte determinados pela anterior crise económica e financeira.
É a todos os títulos evidente e de conhecimento geral que, em 2018, ainda se colocavam constrangimentos de política fiscal determinados pela necessidade de consolidação orçamental, centrada na diminuição da despesa e no aumento da receita, e de redução dos níveis de endividamento público.
Assim se compreende que a Lei do Orçamento do Estado para 2018, não só não tenha abolido a derrama estadual, como tenha ainda procedido um agravamento fiscal, ao aumentar a taxa aplicável ao último escalão, que passou de 7% para 9%.
Os contribuintes, sejam eles cidadãos singulares ou pessoas coletivas, pugnam, legitimamente, pela diminuição da carga fiscal, mas ao Estado, no sentido de sociedade politicamente organizada, independentemente das opções políticas que se possam defender, aqueles, uns e outros, cada vez exigem uma maior participação/apoio deste.
Não cabe ao Tribunal declarar, substituindo-se ao poder legislativo, que em 2017 cessaram as razões de contingência que tinham justificado a criação da derrama estadual, o que seria hoje desmentido pela grave situação económica e social gerada pela situação epidemiológica, a que seguiram as dificuldades originadas pela guerra na Ucrânia e, mais recentemente, entre Hamas e Israel.
A derrama estadual encontra-se legitimada por poderosas razões de política fiscal, o que afasta a violação do princípio da igualdade na vertente de proibição do arbítrio e, pela sua específica configuração, não afronta o princípio da capacidade contributiva.
Limitou-se a Impugnante a defender a ilegalidade da derrama decorrente da impossibilidade de articulação entre os nº 1 e 3 do artigo 87º-A do CIRC, mas a aludida impossibilidade apenas pode conceber-se numa leitura isolada de cada um dos números, no desconsiderar que a redação se vem mantendo, nesta parte, inalterada desde há mais de 10 anos, desconhecendo-se decisões dos Tribunais superiores e do Constitucional sobre tal “impossibilidade”. Se retirássemos do âmbito da derrama estadual os grupos de sociedades, como a Impugnante, veríamos reduzidos, seguramente, de forma fundamental, os fins que levaram à sua criação e manutenção.”
Também se acolhe de pleno a solução ditada na bem elaborada sentença e que foi sufragada pelo Ministério Público no seu douto parecer, no tocante à questão atinente à invocada inconstitucionalidade em razão do prolongamento injustificado da Derrama Estadual a período posterior à cessação dos motivos que estiveram subjacentes à sua criação pela Lei nº 12-A/2010, de 30.06, no sentido de que tal prolongamento não nos parece inconstitucional.
Efectivamente, apesar de no Relatório do Orçamento do Estado para 2018 se assinalar um progresso da economia portuguesa, mediante o registo, em 2017, do aumento do crescimento, sustentado pelas exportações e o investimento, e a redução da taxa de desemprego, que permitiu uma recuperação relativamente à recessão de 2011 a 2013, o documento não deixa de destacar a necessidade de implementação das reformas para continuar a superar os bloqueios estruturais que caracterizam a economia nacional, em parte determinados pela anterior crise económica e financeira.
Ora, como bem denota o EPGA, em 2018, ainda se colocavam constrangimentos de política fiscal, determinados pela necessidade de consolidação orçamental, centrada na diminuição da despesa e no aumento da receita, e de redução dos níveis de endividamento público, assim se justificando que a Lei do Orçamento do Estado para 2018, não só não tenha abolido a Derrama Estadual, como tenha ainda procedido um agravamento fiscal, ao aumentar a taxa aplicável ao último escalão, que passou de 7% para 9%.
Por assim ser, comungando do ponto de vista do julgador e do Ministério Público, é manifesto que para o legislador pontificaram razões de política fiscal suficientes para legitimar manutenção da Derrama Estadual, o que afasta a violação do princípio da igualdade na vertente de proibição do arbítrio e, pela sua específica configuração, não afronta os princípios da capacidade contributiva, da protecção da confiança, da segurança jurídica.
Com efeito, a proibição do arbítrio constitui um critério essencialmente negativo, com base no qual são censurados apenas os casos de flagrante e intolerável desigualdade, não podendo o juiz controlar se o legislador, num caso concreto, encontrou a solução mais adequada ao fim, mais razoável ou mais justa.
A este propósito Gomes Canotilho assinala no aludido Parecer, a fls. 3100-3101, que “o princípio da segurança jurídica, subprincípio do princípio do Estado de Direito, impõe, em nome da garantia da prossecução e do respeito pelo interesse público que, apenas possam ser consideradas legítimas as expectativas quanto aos actos do poder publico desde que fundadas em comportamentos não contrários à lei”, daí que “não existindo ilegalidade do acto de privatização, não podem os Autores pretender fundamentar a ilicitude do comportamento da Administração na violação do princípio da boa fé resultante do não cumprimento do acordo informal.
Acresce que, no caso em discussão, as condutas invocadas pelas Recorrentes como alegadamente geradoras de uma situação de confiança se situaram na “esfera política”, o que pelas próprias características aconselharia um particular cuidado ao nível da leitura das pertinentes declarações dos agentes políticos, sabido como é que a actuação do Governo se não pode desligar da prossecução do interesse público, sendo este por natureza uma realidade não estática, existindo aqui uma liberdade da Administração quanto a uma eventual necessidade de reavaliação face à evolução das circunstâncias, o que poderá, hipoteticamente, justificar uma mudança de anteriores orientações.
Acresce que um dos corolários do princípio da boa-fé consiste no princípio da protecção da confiança legítima, incorporando a boa-fé o valor ético da confiança.
Vidé, Marcelo Rebelo de Sousa e José de Melo Alexandrino, in “Constituição da República Portuguesa Comentada”, a págs. 396, Margarida Olazabal Cabral, in “O concurso público nos contratos administrativos”, a págs.92, Jesus Gonzalez Perez, in “El principio general de la buena fe en el derecho administrativo”, 2ª edição, a págs. 52, Frederico Castilho Blanco, in “La protección de confianza en el derecho administrativo,”, a págs. 77 e seguintes e Sainz Moreno, in “La buena fe en las relaciones de la Administración con los administrados”, in Revista de Administración pública”, nº 89, a págs. 314.
Numa formulação sintética, pode afirmar-se que a Administração viola a boa-fé quando falta à confiança que despertou num Particular ao actuar em desconformidade com aquilo que fazia antever o seu comportamento anterior, sendo que, enquanto princípio geral de direito, a boa-fé significa “que qualquer pessoa deve ter um comportamento correcto, leal e sem reservas, quando entra em relação com outros pessoas” – apud M. Esteves de Oliveira, Pedro Gonçalves e Pacheco Amorim, in “Código do Procedimento Administrativo”, 2ª edição, a págs. 108 -, apresentando-se como vocacionado para, designadamente, impedir o verificação de comportamentos desleais e incorrectos (obrigação de lealdade).
De outro modo, a exigência da protecção da confiança é também uma decorrência do princípio da segurança jurídica, imanente ao Estado de Direito.
Todavia, a aplicação do princípio da protecção da confiança está dependente de vários pressupostos, desde logo, o que se prende com a necessidade de se ter de estar em face de uma confiança “legítima”, o que passa, em especial, pela sua adequação ao Direito, não podendo invocar-se a violação do princípio da confiança quando este radique num acto anterior claramente ilegal, sendo tal ilegalidade perceptível por aquele que pretenda invocar em seu favor o referido princípio.
Por outro lado, para que se possa, válida e relevantemente, invocar tal princípio é necessário ainda que o interessado em causa não o pretenda alicerçar apenas na sua mera convicção psicológica antes se impondo a enunciação de sinais externos produzidos pela Administração suficientemente concludentes para um destinatário normal e onde se possa razoavelmente ancorar a invocada confiança.
Vidé, neste sentido, Jesus Gonzalez Perez, in “Comentarios a la ley de procedimiento administrativo”, a págs. 982-983.
Acresce que um outro pressuposto a atender relaciona-se com a necessidade de o Particular ter razões sérias para acreditar na validade dos actos ou condutas anteriores da Administração aos quais tenha ajustado a sua actuação.
Cfr., Ramon Parada, in “Derecho Administrativo I Parte General”, 2ª edição, a págs. 341-342.
O Tribunal Constitucional tem, também, sustentado que o princípio da confiança, ínsito na ideia de Estado de direito democrático (art. 2º da CRP) implica um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhe são juridicamente criadas, censurando as afectações inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente onerosas, com as quais não se poderia moral e razoavelmente contar.
Cfr., designadamente, os Acs nºs:- 287/90, de 30-10-90 – Proc. BMJ 400, a págs. 214;
- 302/90, de 14-11-90 – Proc. 107/89 – BMJ 401-130; 03/90, de 21-11-90 – Proc. 129/89, BMJ 401-139; - 365/91, de 7-8-91 – Proc. 368/91, DR, II Série, de 27-8-91; - 70/92, de 24-2-92 – Proc. 89/90, BMJ 414-130; - 410/95, de 28-6-95 – Proc. 248/94 – DR, II Série, de 16-11-95; - 625/98, de 3-11-98 – Proc. 816/96, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, Vol. 41º, pág. 293; - 648/98, de 15-12-98 – Proc. Proc 639/97; - 160/00, de 22-3-00 – Proc. 843/98, DR, II Série, de 10-10-00; - 109/02, de 5-3-02 – Proc. 381/01 e - 128/02, de 14-3-02 – Proc. 382/01.
Improcede, pois, o fundamento recursório sob análise.
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(III) No respeitante à questão da dispensa do pagamento do remanescente

A Recorrente pediu a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça com a inerente reforma da condenação em custas nos termos do artigo 616.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Civil, no sentido da dispensa do remanescente da taxa de justiça nos termos do artigo 6.º, n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais (dispensa que havia aliás sido já pedida pela AT, e pela A... quer na sua PI quer nas suas alegações em 1.ª Instância, o que a sentença recorrida ignorou), atenta a lisura das partes na condução processual, designadamente da parte vencida na primeira instância, atento o nível de complexidade da causa, que se reconduziu a uma questão de ilegalidade e inconstitucionalidade da derrama estadual, atenta a desproporção entre esta complexidade e o elevado montante da taxa de justiça remanescente que resultará do seu apuramento em função do valor, de € 3.083.380,87, da causa, e bem assim atenta também a inconstitucionalidade já afirmada pelo Tribunal Constitucional de se fixarem custas unicamente em função do valor da causa e sem os limites co-naturais ao princípio da proporcionalidade.
O Juiz do TT de Viseu (vide ponto II da sentença e despacho exarado a p. 536 do SITAF) pronunciou-se sobre esse pedido, dispensando o pagamento do remanescente da taxa de justiça.
O Ministério Público junto deste STA concorda que o valor a pagar de remanescente é superior aos serviços prestados pelo Tribunal, pecando por excessivo, desajustado e desproporcionado.
Vejamos:
Nos termos do n.º 7 do art. 6.º do RCP, «[n]as causas de valor superior a (euro) 275.000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento».
Como este Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a afirmar, a dispensa do remanescente da taxa de justiça tem natureza excepcional, pressupõe uma menor complexidade da causa e uma simplificação da tramitação processual aferida pela especificidade da situação processual e pela conduta das partes.
No que respeita à simplificação da tramitação processual, seja em razão da específica situação processual, seja pela conduta processual das partes, que se limitou ao que lhes é exigível e legalmente devido, não descortinamos motivo para a requerida dispensa
Por outro lado, também se nos afigura insustentável a defesa da menor complexidade da causa. A presente impugnação judicial, pelas questões jurídicas nela suscitadas – que se referem à aplicação da lei no tempo sob a perspectiva da aplicação da lei nova aos factos tributários de formação sucessiva – deve até considerar-se de complexidade superior à média.
É certo que a taxa de justiça, como todas as taxas, assume natureza bilateral ou correspectiva (cfr. arts. 3.º, n.º 2, e 4.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária), constituindo a contrapartida devida pela utilização do serviço público da justiça por parte do sujeito passivo.
Porém, como este Supremo Tribunal tem vindo a afirmar (Nesse sentido, a título exemplificativo e com citação de numerosa jurisprudência, o seguinte acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 8 de Outubro de 2014, proferido no processo n.º 221/12, disponível em www.dgsi.pt ), não se exige uma equivalência rigorosa entre o valor da taxa e o custo do serviço, que, as mais das vezes, nem seria viável apurar com rigor. Assim, como afirmou já o Tribunal Constitucional, o legislador dispõe de uma «larga margem de liberdade de conformação em matéria de definição do montante das taxas»; mas, como logo advertiu o mesmo Tribunal, é necessário que «a causa e justificação do tributo possa ainda encontrar-se, materialmente, no serviço recebido pelo utente, pelo que uma desproporção manifesta ou flagrante com o custo do serviço e com a sua utilidade para tal utente afecta claramente uma tal relação sinalagmática que a taxa pressupõe» (Cfr. os seguintes acórdãos do Tribunal Constitucional: n.º 227/2007, de 28 de Março de 2007, proferido no processo n.º 946/05; n.º 421/2013, de 15 de Julho de 2013, proferido no processo n.º 907/12, acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Mais tem vindo a considerar a jurisprudência constitucional que «os critérios de cálculo da taxa de justiça, integrando normação que condiciona o exercício do direito fundamental de acesso à justiça (art. 20.º da Constituição), constituem, pois, a essa luz, zona constitucionalmente sensível, sujeita, por isso, a parâmetros de conformação material que garantam um mínimo de proporcionalidade entre o valor cobrado ao cidadão que recorre ao sistema público de administração da justiça e o custo/utilidade do serviço que efectivamente lhe foi prestado (artigos 2.º e 18.º, n.º 2, da mesma Lei Fundamental), de modo a impedir a adopção de soluções de tal modo onerosas que se convertam em obstáculos práticos ao efectivo exercício de um tal direito».
Note-se, aliás, que foi para obviar à violação desses princípios constitucionais que o art. 2.º da Lei n.º 7/2012, de 13 de Fevereiro, aditou ao art. 6.º do RCP o n.º 7, que veio permitir (poder-dever) que se atenda ao referido limite máximo de € 275.000,00 e a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça nas situações também já referidas (Para maior desenvolvimento, vide o acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 9 de Julho de 2014, proferido no processo n.º 1319/13, disponível em www.dgsi.pt/).
Como nesse aresto ficou dito, «No acórdão n.º 421/2013, de 15/7/2013, processo n.º 907/2012, in DR, 2.ª série - n.º 200, de 16/10/2013, pp. 31096 a 31098, o Tribunal Constitucional havia julgado inconstitucionais, por violação do direito de acesso aos tribunais, consagrado no art. 20.º da CRP, conjugado com o princípio da proporcionalidade, decorrente dos arts. 2.º e 18.º, n.º 2, segunda parte, da CRP, as normas contidas nos arts. 6.º e 11.º, conjugadas com a tabela I-A anexa, do Regulamento das Custas Processuais, na redacção introduzida pelo DL n.º 52/2011, de 13/4, (anteriormente, portanto, à alteração introduzida pela Lei n.º 7/2012, de 13/2) quando interpretadas no sentido de que o montante da taxa de justiça é definido em função do valor da acção sem qualquer limite máximo, não se permitindo ao tribunal que reduza o montante da taxa de justiça devida no caso concreto, tendo em conta, designadamente, a complexidade do processo e o carácter manifestamente desproporcional do montante exigido a esse título.
Neste mesmo sentido se decidira já nos acs. desta Secção do STA, de 31/10/12 e de 26/4/2012, nos procs. n.ºs 0819/12 e 0768/11, respectivamente».).
É certo que o juízo de proporcionalidade entre a taxa cobrada e o valor do serviço prestado se apresenta como problemático, pois envolve a ponderação de diversas variáveis, nem todas objectivas. Mas nem por isso o tribunal se pode eximir do mesmo.
Note-se, finalmente e justificando a dispensa parcial, que a norma do citado n.º 7 do art. 6.º do RCP, referindo apenas a dispensa, deve ser interpretada no sentido de ao juiz ser lícito dispensar o pagamento, quer da totalidade, quer de uma fracção ou percentagem do remanescente da taxa de justiça devida pelo facto de o valor da causa exceder o patamar de € 275.000, consoante o resultado da ponderação das especificidades da situação, feita à luz dos princípios da proporcionalidade e da igualdade (Admitindo a dispensa parcial do pagamento do remanescente da taxa de justiça e também decidindo nesse sentido, respectivamente, os seguintes acórdãos da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 7 de Maio de 2014, proferido no processo n.º 1953/13; de 3 de Dezembro de 2014, proferido no processo n.º 1351/14; de 23 de Novembro de 2016, proferido no processo n.º 923/16, disponível em http://www.dgsi.pt ).
Assim, aplicando a referida interpretação normativa ao caso dos autos, ponderada a menor complexidade ou simplicidade da causa, a positiva atitude de cooperação das partes e considerando que nos termos do disposto no artigo 530.º/7 do CPC “para efeitos de condenação no pagamento de taxa de justiça, consideram-se de especial complexidade as ações e os procedimentos cautelares que: - Contenham articulados ou alegações prolixas; - Digam respeito a questões de elevada especialização jurídica, especificidade técnica ou importem a análise combinada de questões jurídicas de âmbito muito diverso; e - Impliquem a audição de um elevado número de testemunhas, a análise de meios de prova extremamente complexos ou a realização de várias diligências de produção de prova morosas, no caso dos autos, afigura-se-nos não revelar a acção uma especial complexidade nos termos enunciados, sendo certo que, a nosso ver, as partes tiveram um comportamento processual normal.
Termos em que se defere a pretendida dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça.
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3. Decisão

Termos em que, face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em negar provimento ao recurso, confirmando-se a sentença recorrida.


Custas pela recorrente com dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça.


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Lisboa, 02 de Outubro de 2024. - José Gomes Correia (Relator) - Aníbal Augusto Ruivo Ferraz - Joaquim Manuel Charneca Condesso.