Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0261/22.4BEFUN
Data do Acordão:06/05/2024
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:JOSÉ GOMES CORREIA
Descritores:IMPOSTO ESPECIAL DE CONSUMO
IMPOSTO ESPECIAL SOBRE O CONSUMO DE BEBIDAS ALCOÓLICAS
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
REMISSÃO
DOCUMENTO
Sumário:I - Na sentença, o juiz discriminará a matéria provada da não provada, fundamentando as suas decisões.
II - A mera remissão para um documento tem apenas o alcance de dar como provada a existência desse documento, um meio de prova, e não o de dar como provada a existência de factos que com base neles se possam considerar provados.
III - Numa situação destas a insuficiência da decisão sobre a matéria de facto inviabiliza a decisão jurídica do pleito, impondo-se a anulação da decisão recorrida, e a consequente remessa dos autos ao tribunal "a quo", nos termos do artº 682º, nº 3 do Código de Processo Civil, a fim de que este proceda ao necessário julgamento da matéria de facto.
Nº Convencional:JSTA000P32334
Nº do Documento:SA2202406050261/22
Recorrente:A..., SOCIEDADE UNIPESSOAL, LDª.
Recorrido 1:AT-RAM
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo


1. – Relatório

Vem interposto recurso jurisdicional pela A..., SOCIEDADE UNIPESSOAL, LDA., com os sinais dos autos, visando a revogação da sentença de 06-11-2023, do Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, que julgou improcedente a impugnação que intentara contra o despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa nº 0070202204000021, relativa às liquidações de IABA dos períodos de Setembro a Dezembro de 2021, no montante global de € 705.391,10.

Irresignada, nas suas alegações, formulou a recorrente A..., SOCIEDADE UNIPESSOAL, LDA., as seguintes conclusões:

A) O Recurso apresentado pela Recorrente tem por objeto a douta Sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal em 6 de novembro de 2023 no Processo n.º 261/22.4BEFUN, a qual julgou improcedente a Impugnação Judicial apresentada pela Recorrente contra os atos de liquidação do IABA relativas aos períodos tributários compreendidos entre setembro e dezembro de 2021 conjunta mente com a decisão de indeferimento proferida pela Administração Tributária que os manteve na ordem jurídica e com todas as consequências legais, designadamente a restituição do IABA indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos previstos no artigo 43.º da Lei Geral Tributária;
B) A Recorrente considera que estas liquidações são ilegais e devem ser removidas da ordem jurídica na parte em que se referem ao IABA, por não identificarem o autor do ato nos termos impostos pelo artigo 155.º, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo e por carecerem da fundamentação mínima imposta pelos artigos 268.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa e pelo artigo 77.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária;
C) Por estas razões, no dia 3 de fevereiro de 2022, a Recorrente apresentou uma reclamação graciosa dos atos de liquidação acima descritos, solicitando à Administração Tributária a respetiva anulação, com todas as consequências legais, designadamente o reembolso do IABA indevidamente pago, reclamação esta que foi indeferida, o que levou a Recorrente a deduzir a Impugnação Judicial autuada com o n.º 261/22.4BEFUN;
D) Na douta Sentença aqui recorrida, o Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal deu razão à Administração Tributária porque considerou que (i) o autor estava devidamente identificado e (ii) que não há falta de fundamentação;
E) Não obstante, a Recorrente entende que a Sentença recorrida padece de erro de julgamento no que respeita à avaliação da validade dos atos contestados e deve, por isso, ser revogada e substituída por uma decisão que dê provimento ao pedido formulado na petição inicial;
F) O Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal referiu na Sentença recorrida: "Nos termos do artigo 14.º, do mesmo Decreto: "a estrutura e competência territorial dos serviços desconcentrados da AT são definidas por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças." E neste seguimento, refere o artigo 37.º, n.º 1, al. c) da Portaria n.º 320-A/2011, de 30 de dezembro que é competência das Alfândegas: "Assegurar a liquidação e cobrança dos direitos aduaneiros, dos impostos especiais de consumo e demais imposições a cobrar pelas alfândegas". Compulsados os DUC enviados à sociedade impugnante, os quais são acompanhados pelas e-DIC, verifica-se que estes identificam cabalmente qual o autor, quem pratica o ato, de acordo com o já mencionado artigo 37.º, n.º 1, al. c), da Portaria n.º 320-A/2011, de 30 de dezembro, i.e., Alfândega do Funchal.")
G) Ora, nos termos do disposto no artigo 155.º, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo, os atos administrativos (entre os quais se incluem, naturalmente, os atos de liquidação de tributos) só se consideram praticados no momento em que "seja emitida uma decisão que identifique o autor e indique o destinatário, se for o caso, e o objeto a que se refere o seu conteúdo")
H) Ora, os atos de liquidação de IABA impugnados (i) não identificam o autor que praticou aqueles atos (limitam-se a fazer referência à Autoridade Tributária e Aduaneira, sem indicar qual foi o órgão decisor que praticou os atos); e (77) não indicam de forma clara qual é o seu objeto (o valor liquidado é um montante global que inclui o IABA e um outro tributo totalmente distinto, a Ecotaxa da Região Autónoma da Madeira);
I) Nestes termos, e atento o disposto no referido artigo 155.º do Código do Procedimento Administrativo, os atos de liquidação impugnados são inexistentes, por não conterem dois dos elementos essenciais que os deviam constituir para que se considerassem praticados - o autor do ato e o respetivo objeto;
J) A Recorrente sublinha que a identificação do organismo ou serviço processador da liquidação não é a identificação do autor do ato - o autor do ato é o órgão decisor que, nos termos previstos no artigo 20.º do Código do Procedimento Administrativo, é titular do poder de praticar o ato. Não é, pois, minimamente suficiente que os atos refiram a Autoridade Tributária e Aduaneira ou a Alfândega do Funchal para que cumpram o requisito legal da indicação do seu autor:
K) Em conclusão, é inequívoco que os atos de liquidação impugnados são inexistentes, por falta de indicação de uma parte dos seus elementos essenciais;
L) Não colhe, assim, a argumentação referida na Sentença ora recorrida;
M) Sem prejuízo do exposto, a Recorrente nota que, mesmo que não fossem inexistentes, nos termos acima sufragados, os atos aqui em apreço sempre seriam anuláveis por manifesta falta de fundamentação;
N) Quando analisou este tema, o Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal referiu na Sentença recorrida: "Ora, in casu, da conjugação do teor das DIC apresentadas pela Impugnante, com os DUC emitidos pela Autoridade Tributária e Aduaneira com base nas DIC apresentadas, resulta que o iter cognoscitivo percorrido pela Autoridade Tributária e Aduaneira está ao alcance da Impugnante. (...) E, considerando que foi a Impugnante que submeteu as DIC, que os DUC foram emitidos pela Autoridade Tributária e Aduaneira com base no declarado pela Impugnante nas DIC, e que destas e daqueles consta como se atinge o valor de imposto, isto é a aplicação da taxa ã matéria coletável, o período a que respeitam, a identificação de cada produto, as quantidades de produto, a taxa aplicável, o valor a pagar e a data limite de pagamento, não há como não concluir que a Impugnante viu assegurada a sua garantia de direito à fundamentação do ato"',
O) A este propósito, a Recorrente recorda que, de acordo com o disposto no artigo 268.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, "Os atos administrativos estão sujeitos a notificação aos interessados, na forma prevista na lei, e carecem de fundamentação expressa e acessível quando afetem direitos ou interesses legalmente protegidos.";
P) De facto, nos termos do disposto no artigo 155.º, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo, os atos administrativos (entre os quais se incluem, naturalmente, os atos de liquidação de tributos) só se consideram praticados no momento em que "seja emitida uma decisão que identifique o autor e indique o destinatário, se for o caso, e o objeto a que se refere o seu conteúdo”;
Q) No ordenamento tributário, estas exigências constitucionais estão refletidas no artigo 77.º da Lei Geral Tributária, que dispõe que: (i) a eficácia das decisões tributárias depende da notificação (n.º 6); e que (ii) essas decisões devem ser sempre fundamentadas "por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a[s] motivaram" (n.º 1). E no que respeita, em concreto, aos atos tributários, o referido artigo 77.º da Lei Geral Tributária determina que, muito embora possa ser "efetuada de forma sumária", a fundamentação deve "sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo" (nºs 1 e 2);
R) Se os atos tributários não contiverem todos estes elementos (ou não os contiverem de forma acessível, como impõe a Constituição), considerar-se-ão não fundamentados, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 153.º, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo, que estabelece que "Equivale à falta de fundamentação a adoção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do ato"];
S) Transpondo este quadro normativo para o presente caso, a Recorrente nota que as liquidações que lhe foram notificadas e os documentos que as refletem não fazem qualquer referência ao regime legal subjacente à aplicação do IABA;
T) Adicionalmente, estes documentos também não identificam as operações aritméticas de apuramento do IABA, limitando-se a indicar o valor global deste tributo em cada período mensal;
U) Por outro lado, aquele valor global inclui, sem qualquer decomposição, o IABA e a Ecotaxa, que é um tributo totalmente distinto lançado pela Região Autónoma da Madeira.
V) Assim, não se compreende como pode a Sentença ora recorrida referir que o facto de a Recorrente ter submetido as DICs seria suficiente para se considerar os atos aqui contestados como devidamente fundamentados;
W) Sem esta identificação individualizada, é impossível à Recorrente - como a qualquer outro destinatário (incluindo o Tribunal) - escrutinar a correção do apuramento feito pela Administração Tributária. Nestes termos, mesmo que não se considerassem inexistentes - o que não se concede - os atos de liquidação aqui em causa sempre seriam anuláveis, por manifesta falta da fundamentação mínima exigida pelo artigo 77.º da Lei Geral Tributária;
X) Se assim não fosse, não haveria justificação para a Administração Tributária alterar os DUC que passou a emitir a partir de abril de 2023: a Administração Tributária alterou a estrutura das liquidações, passando a indicar o autor dos mesmos e passando a fazer a indicação detalhada dos impostos a ser liquidados com distinção entre os vários valores e tributos - tal como a Recorrente sempre defendeu que deveria ser feito;
Y) Assim, a própria atuação da Administração Tributárias a parir de abril de 2023 - alterando os DUC de modo a passar a incluir os requisitos legais (exatamente o que a Recorrente tem defendido nas suas impugnações) - demonstra que os atos aqui impugnados são manifestamente ilegais, por violação do disposto nos artigos 155.º, n.º 2, do Código de Procedimento Administrativo e no artigo 77.º da Lei Geral Tributária, devendo ser declarados inexistentes ou, subsidiariamente, anulados;
Z) Por outro lado, a Recorrente sublinha que, tendo em conta todo o contexto acima exposto, os atos de liquidação sempre terão de ser anulados por força do artigo 100.º, n.º 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário;
AA) Recorde-se que, nos termos do referido preceito, sempre que da prova produzida resulte a fundada dúvida sobre a existência e/ou a quantificação do facto tributário, deverá o ato impugnado ser anulado;
BB) A finalizar, a Recorrente não pode deixar de sublinhar que os requisitos em causa no presente recurso (identificação do autor e fundamentação) estão consagrados na lei por razões substantivas válidas e não podem ser ignorados, nem pela Administração Tributária, nem pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal. Como demonstra a alteração de procedimento implementada pela Administração Tributária a partir de abril de 2023, a lei é clara e relativamente fácil de cumprir - o facto de não ter sido cumprida antes não pode ser ignorado ou salvaguardado pelos tribunais, cuja função é escrutinar a legalidade dos atos (e, portanto, a atuação da Administração).
CC) Em conclusão, não pode deixar de se concluir que os atos de liquidação impugnados são manifestamente ilegais, por violação do disposto nos artigos 155.º, n.º 2, do Código de Procedimento Administrativo e no artigo 77.º da Lei Geral Tributária, devendo ser declarados inexistentes ou, subsidiariamente, anulados e, em qualquer caso, removidos da ordem jurídica conjuntamente com a decisão de indeferimento proferida pela Administração Tributária e com todas as consequências legais, designadamente a restituição do IABA indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos previstos no artigo 43.º da Lei Geral Tributária, devendo a Sentença ora recorrida ser revogada.
Termos em que,
Deve o presente Recurso proceder, por provado e fundado, REVOGANDO-SE, EM CONSEQUÊNCIA, A SENTENÇA RECORRIDA, E anulando-se OS ATOS de LIQUIDAÇÃO de IABA ACIMA identificados, conjuntamente com a decisão de indeferimento que os manteve na ordem jurídica, com todas as consequências legais, designadamente o reembolso à Recorrente dos montantes de IABA indevidamente pagos, acrescidos de juros indemnizatórios, nos termos previstos no artigo 43.º da Lei Geral Tributária.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Neste Supremo Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, notificado nos termos do art. 146.º, n.º 1, do CPTA, pronunciou-se no sentido de a decisão recorrida padecer do vício de insuficiência da matéria de facto que permita proferir decisão de mérito sobre as questões suscitadas, pelo que deve ser revogada e ordenada a baixa do processo ao TAF do Funchal.

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Os autos vêm à conferência corridos os vistos legais.
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2. FUNDAMENTAÇÃO:

2.1. - Dos Factos:

Na sentença recorrida foi fixado o seguinte probatório reputado relevante para a decisão:

A. Entre setembro e dezembro de 2021, a Impugnante submeteu as DIC (declarações de introdução no consumo) melhor identificadas nos DUC (documento único de cobrança), juntos pela Impugnante à sua p.i., DUCS esses que foram pagos pela Impugnante (cfr. documentos n.ºs 2 a 5 juntos com a p.i., as DIC´s juntas pela Entidade Impugnada a convite do Tribunal e ainda o PA., em formato eletrónico);
B. As DIC têm o seguinte formato padrão:
[IMAGEM]

(cfr. DIC´s juntas pela Entidade Impugnada em formato eletrónico);
C. Por sua vez, os DUC têm o seguinte formato padrão:
[IMAGEM]
(cfr. documentos n.ºs 2 a 5 juntos com a p.i., e ainda o PA., em formato eletrónico);
D. A Impugnante apresentou reclamação graciosa das liquidações aqui impugnadas e do respetivo indeferimento expresso veio apresentar a presente impugnação judicial (cfr. teor da p.i. e documentos n.ºs 1 e 7 juntos com esta).
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2.2.- Motivação de Direito

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, nos termos dos artigos 144º nº 2 e 146º nº 4 do CPTA e dos artigos 5º, 608º nº 2, 635º nºs 4 e 5 e 639º do CPC e 2º., al. e) do CPPT.
No caso, em face dos termos em que foram enunciadas as conclusões de recurso pela recorrente, a questão que cumpre decidir subsume-se a saber se a decisão vertida na sentença, a qual julgou improcedente a impugnação, padece de incorreta aplicação das normas legais aplicáveis, sendo as liquidações ilegais, por não identificarem o autor que praticou o acto, em violação do artigo 155.º, n.º 2, do Código de Processo Administrativo, nem o seu objeto, dado que o valor liquidado não tem qualquer decomposição do valor correspondente ao IABA e à Ecotaxa e por existir falta de fundamentação dos actos de liquidação, nos termos do artigo 153.º, n.º 2, do Código de Processo Administrativo e 77.º da Lei Geral Tributária.
Vejamos.
Conforme a resenha empreendida pelo Ministério Público, evidenciam os autos que a recorrente deduziu a presente impugnação judicial contra o despacho de indeferimento de reclamação graciosa, relativa às liquidações de “imposto sobre o álcool, as bebidas alcoólicas e as bebidas adicionadas de açúcar ou outros edulcorantes” (IABA) do período de Setembro a Dezembro de 2021, imputando ao acto os vícios de ilegalidade consistentes na não identificação do autor que praticou o ato, em violação do artigo 155.º, n.º 2, do Código de Processo Administrativo, bem como do respectivo objecto porquanto o valor liquidado não tem qualquer decomposição do valor correspondente ao IABA e à Ecotaxa e, ainda, a falta de fundamentação dos atos de liquidação, nos termos do artigo 153.º, n.º 2, do Código de Processo Administrativo e 77.º da Lei Geral Tributária.
Da análise da sentença flui que, em acolhimento da posição da AT, a impugnação judicial foi julgada improcedente com o fundamento de que a impugnante submeteu regularmente as Declarações de Introdução no Consumo (e-DIC) respeitantes aos períodos de Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro de 2021, preenchendo os correspondentes formulários electrónicos, como se comprova da enumeração das e-DIC que figuram nos Documentos Únicos de Cobrança (DUC) emitidos pela Alfândega do Funchal, sendo que cada DUC enviado ao sujeito passivo corresponde à globalização de todas as e-DIC apresentadas durante o mês anterior, conforme preceituado no artigo 10.º-A do CIEC.
No entanto, apenas consta dos pontos B. e C. do probatório a expressão de que as DIC e os DUC “têm o seguinte formato padrão” menção que, como bem denota o Ministério Público, é lacónica e não permite extrair a conclusão que resulta da sentença recorrida.
Sem embargo de no ponto A. do probatório, se ter remetido para documentos do processo, na esteira do doutrinado no acórdão deste STA de 20.01.2016, proferido no processo nº 0994/15, no tangente à prova documental, a discriminação da matéria de facto não pode limitar-se a dar como reproduzidos documentos que constem do processo, devendo, sim, indicar quais os factos que esses documentos comprovam.
Nesse sentido também se pronunciou o Acórdão do STA de 08-02-2023, prolatado no Processo nº 032/21.5BEMDL, acessível em www.dgsi.pt, também relatado pelo ora relator, em cujo discurso fundamentador se expendeu que resulta de jurisprudência consolidada que “…apesar de ao STA estar vedado conhecer de matéria de facto, não está impedido de conhecer de vícios da decisão, decorrentes da fixação da matéria de facto.
Na verdade, não pode este Supremo Tribunal conhecer do erro na apreciação da prova, uma vez que está a conhecer do recurso em terceiro grau de jurisdição, com poderes de cognição limitados à matéria de direito. Só o poderia fazer no caso de ter sido ofendida disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência de um facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (cfr., entre inúmeros, o acórdão deste Tribunal Supremo de 26-02-2014, tirado no recurso nº 0951/11 e publicado em www.dgsi.pt), importando aferir se é isso que sucede na situação sub judice.
É que a aplicação do direito pressupõe o apuramento dos factos pertinentes e resultantes do desenvolvimento adjectivo do pleito em ordem a que a decisão de facto constitua base suficiente para a decisão de direito. Mostrando-se insuficiente, nos termos anteriormente apontados, a matéria de facto apurada, sobre matéria atinente às apontadas circunstâncias e seus contornos no caso concreto que se mostra pertinente e relevante para a decisão de direito, há que determinar, oficiosamente, nos termos do nº 3 do artigo 682º do Código de Processo Civil, que o processo volte ao tribunal recorrido para suprir a insuficiência apontada, julgando-se de novo a causa, com observância do preceituado no n.º 1 do artigo 683.º do Código de Processo Civil e de harmonia com o regime jurídico acima definido.
Como enfatiza o Ministério Público junto desta instância, é certo que o douto despacho decisório recorrido, no seu probatório, remete para documentos do processo, mas, como se decidiu no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 20.01.2016, proferido no processo nº 0994/15, no que concerne à prova documental, a discriminação da matéria de facto não pode limitar-se a dar como reproduzidos documentos que constem do processo, devendo, sim, indicar quais os factos que esses documentos comprovam, isso como sobressai do sumário elaborado pelo Exmº relator e que se encontra conjuntamente com o aresto, em www.dgsi.pt do seguinte teor:
“I - Na sentença, o juiz discriminará a matéria provada da não provada, fundamentando as suas decisões.
II - A mera remissão para um documento tem apenas o alcance de dar como provada a existência desse documento, um meio de prova, e não o de dar como provada a existência de factos que com base neles se possam considerar provados.
III - Numa situação destas a insuficiência da decisão sobre a matéria de facto inviabiliza a decisão jurídica do pleito, impondo-se a anulação da decisão recorrida, e a consequente remessa dos autos ao tribunal "a quo", nos termos do artº 682º, nº 3 do Código de Processo Civil, a fim de que este proceda ao necessário julgamento da matéria de facto.”
Portanto, controvertendo-se nos autos se as liquidações que foram notificadas à recorrente e se os documentos que as reflectem não fazem qualquer referência ao regime legal subjacente à aplicação do IABA e, bem assim, que dos mesmos não é possível extrair a identificação do autor que praticou aqueles actos e existindo matéria de facto alegada pela impugnante que se revela essencial para a decisão, sendo inegável que os factos que o tribunal a quo levou ao probatório são insuficientes para a boa decisão do litígio, segundo as possíveis soluções jurídicas do mesmo, em consonância com o ponto de vista do Ministério Público, é forçoso concluir que o tribunal de 1.ª instância não fixou a factualidade necessária ao julgamento das questões jurídicas suscitadas no processo, pelo que se impõe a ampliação da matéria de facto.
E o processo só volta ao tribunal recorrido quando a decisão de facto seja ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito porque a decisão recorrida padece do vício de insuficiência da matéria de facto que permita proferir decisão de mérito sobre as questões suscitadas, pelo que deve ser revogada e ordenada a baixa do processo ao TAF do Funchal, ao abrigo do disposto no artigo 682.º, n.º 3 do CPC, aplicável ex vi artigo 2.º, alínea e) do CPPT.
Em suma: é forçoso concluir que o tribunal de 1.ª instância não fixou a factualidade necessária ao julgamento das questões jurídicas suscitadas no processo, pelo que se impõe ordenar a baixa dos autos para que aquela instância proceda à ampliação da matéria de facto nos termos e para os fins sobreditos.
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3. – Decisão:

Nestes termos, acorda-se neste Tribunal, julgando procedente o recurso, em revogar a decisão recorrida e ordenar a baixa dos autos baixa dos autos Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal para cumprimento do que ficou supra explicitado e subsequentemente seja proferida nova decisão.

Custas pela recorrida, com dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça.
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Lisboa, 5 de Junho de 2024. - José Gomes Correia (relator) - Isabel Cristina Mota Marques da Silva - Aníbal Augusto Ruivo Ferraz.