Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0150/24.8BEFUN
Data do Acordão:10/02/2024
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:GUSTAVO LOPES COURINHA
Descritores:NULIDADE
SUSPENSÃO DE EFICÁCIA
REENVIO PREJUDICIAL
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P32694
Nº do Documento:SA2202410020150/24
Recorrente:AT- RAM
Recorrido 1:A..., SOCIEDADE UNIPESSOAL LDA (ZONA FRANCA DA MADEIRA)
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo


I – RELATÓRIO

I.1 Alegações
A FAZENDA PÚBLICA vem recorrer da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, a qual julgou procedente a reclamação judicial interposta pela A..., Sociedade Unipessoal, Lda (ZFM) com os demais sinais dos autos, deduzida contra a penhora sobre o saldo de conta bancária no âmbito do processo de execução fiscal n.º ...43 e apensos, instaurado por dívida de IRC dos exercícios de 2015, 2016 e 2019, do ato de penhora n.º ...60 no valor global de € 599 290,87.
Apresenta as suas alegações de recurso, formulando as seguintes conclusões a fls. 405 do SITAF.
A) A sentença recorrida é nula por os fundamentos da decisão estarem em clara contradição com o decidido pelo Tribunal a quo, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. c), aplicável ex vi alínea e) do artigo 2.º do CPPT do Código de Processo Civil;
B) Em causa nos presentes autos está um processo de execução fiscal destinado à cobrança de dívida decorrente do processo de recuperação de auxílios de Estado concedidos a empresas a operar no âmbito institucional da Zona Franca da Madeira (ZFM), na sequência da Decisão (EU) 2022/1414, da Comissão de 4 de Dezembro de 2020, relativa a auxílios S.A. 21259 (2018/C) (ex-2018/NN), aplicado por Portugal a favor da ZFM – Regime III, publicado no Jornal Oficial da União Europeia n.º L217/49, de 28 de agosto de 2022.
C) Da conjugação do n.º 3 do artigo 16.º do Regulamento (UE) 2015/1589 do Conselho e dos artigos 1.º, 4.º e 5.º da referida decisão, o Estado Português está juridicamente vinculado a:
i) uma obrigação de recuperação efetuada imediatamente segundo as formalidades do direito interno português;
ii) que estas formalidades de direito interno permitam uma execução imediata e efectiva da Decisão de Recuperação;
iii) que a recuperação do auxílio se concretize no prazo de 8 meses (a contar da notificação da decisão);
iv) cumprir de obrigações de carácter informativo perante a Comissão, nomeadamente, quanto ao grau de execução da Decisão de Recuperação, incluindo informação pormenorizada sobre os montantes dos auxílios e dos juros já recuperados junto dos beneficiários
D) De acordo com o artigo 288.º, quarto parágrafo, do TFUE, a decisão da Comissão é obrigatória em todos os seus elementos para os destinatários que designar.
E) O Regulamento tem caráter geral e é obrigatório em todos os seus elementos e diretamente aplicável em todos os Estados-Membros.
F) A Constituição da República Portuguesa prevê que o direito da União Europeia é aplicável em Portugal nos termos definidos pelo próprio direito da União Europeia (artigo 8.º, n.º 4), o que inclui o primado do direito europeu de acordo com o que resulta da jurisprudência do TJUE.
G) À luz dos princípios do primado do Direito da União e do efeito direto, as disposições do Regulamento (UE) 2015/1589 do Conselho prevalecem sobre as disposições nacionais, sendo que, em consonância com o princípio da interpretação conforme ou compatível com o Direito da União, o intérprete e aplicador do direito nacional devem atribuir às disposições nacionais um sentido conforme ou compatível com o Direito da União.
H) Com efeito, o juiz nacional responsável, no âmbito das suas competências, por aplicar disposições de direito comunitário, tem obrigação de assegurar o pleno efeito de tais normas, decidindo, por autoridade própria, se necessário for, da não aplicação de qualquer norma de direito interno que as contrarie, ainda que tal norma seja posterior, sem que tenha de solicitar ou esperar a prévia eliminação da referida norma por via legislativa ou por qualquer outro processo constitucional.
I) Da jurisprudência do TJUE decorre que a aplicação de toda e qualquer norma de direito nacional que colida com os princípios da celeridade e eficácia previstos no n.º 3 do artigo 16.º do Regulamento (UE) 2015/1589, de 13 de julho de 2015, deve ser afastada, veja-se neste sentido o Acórdão de 5/10/2006, Comissão/França («Scott»), C232/05, ECLI:EU:C:2006:651, o Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção), de 18 de julho de 2007, no processo c-119/05 e o Acórdão STA de 2005.10.06, proferido no processo n.º 02037/02.
J) No caso dos autos, as normas de direito interno que prevêem a suspensão do processo de execução fiscal, mediante a prestação de garantia ou de isenção (ou dispensa) da mesma, são incompatíveis com o direito da União Europeia, designadamente, com a decisão da Comissão Europeia - Decisão (UE) 2022/1414, de 04/12/de 2020 - e com o Regulamento (UE) 2015/1589 do Conselho.
K) Por maioria de razão, também ao indeferimento do pedido de dispensa de prestação de garantia não pode ser atribuído o efeito jurídico que a sentença recorrida lhe atribuiu – de suspensão da execução fiscal até estar esgotado o prazo para a reclamação judicial.
L) Assim acontece porque estaríamos sempre a criar um diferimento ou dilação na recuperação do auxílio de estado ilegal, uma vez que, pelo menos, entre a apresentação do pedido do contribuinte para prestação de garantia e o decorrer do prazo para reclamar judicialmente do seu indeferimento, a diligência de penhora teria que aguardar, o que não é compatível com o direito da União, conforme supra exposto.
M) A decisão do Meritíssimo Tribunal a quo que decidiu anular a penhora reclamada viola o Direito da União Europeia, designadamente os princípios do primado e do efeito direto do Direito da União, ao desrespeitar os princípios da celeridade e eficácia previstos no n.º 3 do artigo 16.º do Regulamento (UE) 2015/1589, de 13 de julho de 2015 e incumprir com o devedor do órgão jurisdicional nacional de afastar a aplicação de qualquer norma do direito interno que obstaculize a recuperação dos auxílios de Estado em causa.
N) A interpretação contrária, isto é, de que as normas internas do direito português que prevêem a suspensão da execução, mediante dispensa ou prestação de garantia e pagamento a prestações (169.º, 170.º, 196.º 199.º do CPPT e 52.º da LGT), bem como até que se encontre esgotado o prazo de reclamação judicial após o indeferimento destes pedido, aplicam-se a processos de execução fiscal para cobrança de dívidas de auxílios de estado (cuja recuperação foi ordenada pela Decisão (UE) 2022/1414 da Comissão Europeia. de 4 de Dezembro de 2020), é inconstitucional por violação do artigo 8.º n.º 4 da CRP, uma vez que viola o princípio do primado na medida em que, conforme se referiu supra, essa interpretação colide com os princípios da celeridade e eficácia, segundo o entendimento do TJUE nesta matéria.
O) Estão em causa nos presentes autos, atos de instituições da União Europeia (o art.º 16.º, n.º 3 do Regulamento (UE) 2015/1589 do Conselho, a Comunicação da Comissão relativa à recuperação de auxílios estatais ilegais e incompatíveis (2019/C 247/01) e a Decisão (UE) 2022/1414 da Comissão, de 4 de Dezembro de 2020) pelo que é fundamental saber qual é, segundo o TJUE, a interpretação que dos mesmos deve ser adotada, mais concretamente se os mesmos impedem ou não a aplicação de disposições de direito interno que prevejam a suspensão da execução fiscal quando esta seja destinada à cobrança de dívidas decorrentes da recuperação de auxílios de Estado (em cumprimento da Decisão (UE) 2022/1414 da Comissão, de 4 de Dezembro de 2020), no caso do legislador nacional não ter criado um regime próprio para a recuperação dos auxílios de Estado considerados ilegais, devendo, por isso, ser-lhe remetida esta questão mediante a formulação de um pedido de reenvio prejudicial, o qual é obrigatório, por estar em causa, neste recurso, uma decisão de última instância, insuscetível de recurso ordinário.
P) Deve ser a Fazenda Pública dispensada, nos presentes autos, do pagamento do remanescente da Taxa de Justiça nos termos do artigo 6.º n.º 7 do RCP.
Q) Foram violadas pela decisão do Tribunal a quo as normas contidas no n.º 4 do artigo 288.º, quarto parágrafo, do TFUE, no n.º 3 do artigo 16.º do Regulamento (UE) 2015/1589, de 13 de julho de 2015 e no artigo 8.º n.º 4 da CRP.

I.2 – Contra-alegações
Foram proferidas contra alegações no âmbito da instância pela recorrida com o seguinte quadro conclusivo:
I. Na sequência da notificação da Sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, nos termos do qual a Reclamação de atos do órgão de execução fiscal apresentada, que correu termos sob o n.º de processo 150/24.8BEFUN, foi julgada procedente, a Autoridade Tributária e Aduaneira, por não se conformar com o teor desta decisão e por entender que a mesma está viciada de erros de julgamento de direito, apresentou Recurso junto deste Tribunal.
II. A referida Decisão foi proferida no dia 27 de junho de 2024, pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, Tribunal a quo, no âmbito do processo n.º 150/24.8BEFUN, e julgou procedente a Reclamação de atos do órgão de execução fiscal apresentada pela ora Recorrida, e, em consequência, anulou o ato de penhora determinado pela Autoridade Tributária e Assuntos Fiscais da Região Autónoma da Madeira (cfr. conteúdo decisório da Sentença proferida pelo Tribunal a quo).
III. Todavia, por não se conformar com o teor da referida Sentença, a Recorrente apresentou, nos termos do disposto no artigo 282.º e seguintes do CPPT, Recurso junto deste Supremo Tribunal Administrativo, juntando para o efeito as respetivas Alegações.
IV. Do entendimento do Tribunal a quo, constante da Sentença proferida – a qual será analisada adiante -, resultou que a atuação da aqui Recorrente violou o disposto no artigo 56.º da LGT pelo que a argumentação da Recorrida deveria proceder, anulando a penhora determinada com as devidas consequências legais.
V. Tal entendimento vai ao encontro da posição sustentada pela ora Recorrida ao longo de todo o processo, sendo, portanto, de acompanhar pelas razões que adiante melhor se circunstanciarão.
VI. Em 2015 a Comissão Europeia iniciou um procedimento formal de investigação ao regime de redução de IRC aplicável em determinadas condições às entidades registadas na Zona Franca da Madeira (“ZFM”), que culminou com a decisão da Comissão de 04/12/2020 (“Decisão”), em que aquela entidade conclui que o referido regime foi executado ilegalmente por Portugal em violação do artigo 108.º, n.º 3 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”), e é incompatível com o mercado interno.
VII. A Recorrida foi notificada, pela Autoridade Tributária, por ofício relativo aos anos de 2015, 2016 e 2019 para exercer, querendo, o seu direito de audiência prévia nos termos do artigo 60.º da LGT, que precisamente consagra o direito de participação dos sujeitos passivos na formação de decisões/atos tributários. Tal ofício respeitava, segundo a própria Autoridade Tributária, à “Recuperação dos auxílios ilegais incompatíveis concedidos ao abrigo do regime de auxílios estatais “Zona Franca da Madeira (ZFM) – Regime III” – Notificação para exercício de audição prévia – Correção de liquidações”.
VIII. Num espírito de total cooperação com a Autoridade Tributária, a Recorrida exerceu o seu direito de audiência prévia, tendo a Autoridade Tributária manteve o sentido decisório por referência aos anos de 2015, 2016 e 2019, tendo notificado disso mesmo a Recorrida.
IX. Posteriormente, a Recorrida foi notificada da liquidação adicional de IRC praticadas por referência aos exercícios de 2015, 2016 e 2019;
X. Por não se conformar com a legalidade dos mencionados atos de liquidação, a ora Recorrida apresentou a correspondente Reclamação Graciosa contra o mesmo, encontrando-se ainda a aguardar a respetiva decisão;
XI. Por não ter efetuado o pagamento dos montantes alegadamente em dívida dentro do prazo legal concedido para o efeito – por não dispor dos meios económicos suficientes, conforme se demonstrou no pedido de dispensa de prestação de garantia apresentado -, a ora Recorrida foi citada para os processos de execução fiscal n.ºs ...43, ...24 e ...05, para cobrança coerciva das dívidas resultantes da liquidação de IRC do exercício de 2015, 2016 e 2019 (cfr. Documento n.º 3).
XII. De acordo com a posição sustentada pela Recorrente nas suas Alegações, a Sentença proferida pelo Tribunal a quo padece de um erro de julgamento de direito, na medida em que, face ao primado do Direito da União Europeia, “(…) no caso concreto, tal como a prestação de garantia em processo de execução fiscal ou a dispensa da mesma, para suspensão do processo de execução fiscal, não são admissíveis face ao imperativo de devolução do auxílio de estado ilegal de forma efetiva e imediata, por maioria de razão, também ao indeferimento do pedido de prestação de dispensa de garantia não pode ser atribuído o efeito jurídico que a sentença recorrida lhe atribuiu – de suspensão da execução fiscal até estar esgotado o prazo para a reclamação judicial”;
XIII. Em concreto, no que diz respeito ao erro de direito entende que " Não se pode atribuir um efeito jurídico suspensivo à tramitação da execução fiscal decorrente da apresentação do pedido de dispensa de prestação de garantia, se a própria prestação de garantia ou a sua dispensa não são admissíveis em face do direito da União";
XIV. Por isso concluindo que: “Mal andou, por isso, o Tribunal a quo ao decidir pela anulação do ato de penhora realizado antes do decurso do prazo para a reclamação judicial do ato de indeferimento do pedido de dispensa da prestação de garantia, incorrendo em erro de julgamento por violação do Direito da União Europeia aplicável ao caso concreto ;
XV. Em primeiro lugar, importa notar que não obstante a ora Recorrida só ter sido recentemente citada para os processos de execução fiscal acima melhor identificados – facto esse que não lhe é imputável -, já havia apresentado a respetiva Reclamação Graciosa, através da qual se encontra a contestar a sua legalidade, bem como da respetiva Oposição à Execução, através da qual se encontra a contestar a sua exigibilidade – ambas pendentes de apreciação e decisão na presente data;
XVI. Para além disso, uma vez citada para os processos de execução fiscal apresentou os respetivos pedidos de dispensa de prestação de garantia, bem como requerimentos de nulidade de citação uma vez que, conforme demonstrado nessa sede, não foram cumpridas as formalidades prescritas no artigo 190.º, n.º 2 do CPPT.
XVII. Recentemente, foi notificada das decisões de indeferimento proferidas sobre os pedidos de dispensa e sobre os requerimentos de nulidade apresentados, tendo apresentado, tempestivamente, contra essas decisões as referidas Reclamações Judiciais;
XVIII. Sucede que, sem que os prazos para apresentação das referidas Reclamações estivessem esgotados e sem que a Autoridade Tributária se tivesse pronunciado sobre o pedido de dispensa apresentado, como impõe o n.º 8 do artigo 169.º do CPPT, a Autoridade Tributária promoveu diversas diligências de penhora, sendo uma delas objeto da presente Reclamação;
XIX. De acordo com as informações obtidas junto do Banco 1..., a penhora objeto da presente Reclamação foi enviada para o Banco em 2 de fevereiro e efetuada em 5 de fevereiro de 2024, embora a mesma só se considere notificada à Requerente em 20 de fevereiro de 2024;
XX. Daqui resulta que a Autoridade Tributária efetuou penhoras mesmo antes de se pronunciar sobre o pedido de dispensa apresentado e, bem assim, antes de se esgotar o prazo para apresentação da respetiva Reclamação Judicial, atuação que é manifestamente ilegal e não respeita o princípio da tutela jurisdicional efetiva e as garantias de defesa legal e constitucionalmente previstas no artigo 268.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa;
XXI. Como resulta do n.º 4, do artigo 52.º da LGT e 170.º, do CPPT, a prestação de garantia não é imprescindível para a obtenção do efeito suspensivo, podendo ser dispensada;
XXII. De acordo com o artigo 52.º, n.º 4, da LGT, “A administração tributária pode, a requerimento do executado, isentá-lo da prestação de garantia nos casos de a sua prestação lhe causar prejuízo irreparável ou manifesta falta de meios económicos revelada pela insuficiência de bens penhoráveis para o pagamento da dívida exequenda e acrescido, desde que não existam fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a atuação dolosa do interessado.”.
XXIII. Ou seja, para efeitos do disposto n.º 4, do artigo 52.º, da LGT, para que os Executados possam ser isentados da prestação de garantia é necessário que i) a prestação de garantia lhe cause prejuízo irreparável ou ii) que seja manifesta a sua falta de meios económicos revelada pela insuficiência de bens penhoráveis para o pagamento da dívida exequenda e acrescido e, bem assim, que iii) a insuficiência / inexistência de bens não seja da sua responsabilidade.
XXIV. Admite-se, assim, “a dispensa da prestação de garantia a efectuar pelo órgão de execução fiscal, em caso de manifesta falta de meios económicos do executado ou, mesmo quando este disponha de meios económicos suficientes, a prestação de garantia lhe cause ou possa causar prejuízo irreparável” (cfr. Guerreiro, António Lima, Lei Geral Tributária Anotada, Editora Rei dos Livros, pág. 243).
XXV. Estes requisitos, exigidos pelo n.º 4 do artigo 52° da LGT, são requisitos alternativos, como nos indica a conjunção disjuntiva “ou”, o que significa que a lei se basta com a verificação de um dos requisitos aí previstos, desde que não seja apurada a responsabilidade do executado pela insuficiência ou inexistência de bens ou de rendimentos (cf. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, no Processo: 02029/07, de 09-10-2007, in www.dgsi.pt).
XXVI. Considera, pois, a Recorrida que continua a reunir os pressupostos legais, previstos no artigo 52.º, n.º 4, da LGT, para que lhe seja deferido o pedido de isenção de garantia, nomeadamente no que diz respeito à falta de meios económicos revelados pela insuficiência de bens penhoráveis para o pagamento da dívida exequenda e acrescido, que não lhe é imputável.
XXVII. Em face do exposto, dúvidas não subsistem de que, in casu, se encontram reunidos os pressupostos legais para à aplicação do artigo 52.º, n.º 4 da LGT, a saber:
XXVIII. A manifesta inexistência, não imputável à sociedade executada, de bens penhoráveis para garantia da dívida exequenda e acrescido, e;
XXIX. O prejuízo irreparável que decorreria da prestação de uma garantia de natureza financeira.
XXX. Aqui chegados, repita-se: em momento alguma a Recorrida se recusou a pagar os valores alegadamente em dívida, estando, nesta fase, a contestar a legalidade da dívida, e solicitar a suspensão dos processos de execução fiscal enquanto está a discutir a legalidade.
XXXI. De resto, no entender da Autoridade Tributária nem os pagamentos em prestações são admissíveis, o que coloca a Recorrida – e grande parte das sociedades na mesma situação, especula-se – em grandes dificuldades para dar cumprimento às ordens de recuperação notificadas.
XXXII. Foram estes factos que foram alegados em sede de pedido de dispensa de prestação de garantia, mas que, no entanto, não impediram que a Autoridade Tributária promovesse penhoras antes da sua apreciação, atuação que, conforme adiante melhor se circunstanciará, é manifestamente ilegal.
XXXIII. O Supremo Tribunal Administrativo pronunciou-se concretamente sobre a necessidade da recuperação de auxílios de Estado ser imediata e efetiva e a possibilidade da dispensa de prestação de garantia e dos pagamentos em prestações (cfr. Acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal Administrativo nos processo n.ºs 33/24.1BEFUN e 88/24.9BEFUN), tendo decidido que: "A exigência de que a recuperação dos auxílios seja imediata e efetiva, tem de ser devidamente entendida. Isto é, o seu carácter imediato e efetivo não pode, sob pena de se desafiar a realidade dos factos, ser confundido com uma recuperação instantânea e 100% eficaz. Pois, a aplicação de um qualquer mecanismo de recuperação de auxílios tem de obedecer sempre a uma tramitação própria, devidamente harmonizada com a legalidade, e por isso pouco consentânea com uma recuperação instantânea. Isto é, a tramitação tem de ter necessariamente uma duração mínima, até para permitir a realização dos vários atos a compõem, só assim se podendo acomodar as exigências da legalidade e afastar a arbitrariedade.
Consequentemente, num quadro de legalidade só poderia ser este o entendimento expresso quer no regulamento quer na Decisão, sob pena de serem postos os em causa os princípios gerais de direito partilhados pela União, como são aqueles a que alude o artigo 16.º, n.º 1, in fine, do Regulamento. O razoável é inferir da fórmula execução imediata e efetiva o imperativo de que sejam iniciadas imediatamente, sem demoras, as diligências para a recuperação do auxílio, sendo, na verdade, esse impulso o que verdadeiramente depende do Estado-membro. Isto porque haverá seguramente situações, inelutáveis, em que a efetiva recuperação do auxílio, poderá nunca ocorrer, por exemplo, devido a uma insuficiência patrimonial ou outras vicissitudes que afetem o processo de execução (o que aliás é típico e pode ocorrer com e qualquer dívida tributária, em geral). A Autoridade Tributária não pode, no plano ad hoc, adaptar o regime legal da execução fiscal, especialmente no que respeita às garantias dos contribuintes, de modo a assegurar o que depreende serem os imperativos do Direito da União Europeia. Sobretudo se o fizer com base numa comunicação da Comissão que reveste a natureza de uma recomendação, sem caráter vinculativo, que, curiosamente, até reconhece no ponto 2.4.1.4, apesar de tudo, situações de impossibilidade absoluta de recuperação do crédito, como as que referimos. Reforçando, assim, a ideia de que a recuperação nem sempre é imediata e efetiva, tendo apenas de ser empreendida com prontidão. Não cabe, portanto, à Autoridade Tributária modelar o que é ou não possível no âmbito da execução tributária, truncando garantias e subtraindo expedientes, substituindo-se, assim, ao legislador na criação de um regime de execução específico para dívidas decorrentes da recuperação de benefícios fiscais. A este propósito é interessante recordar que, no âmbito do artigo 169.º do CPPT, no que era o seu n.º 11, já existiu um preceito (revogado pela Lei n.º 7/2021, de 26 de fevereiro, com efeitos a partir de 1 de julho de 2021) que afastava expressamente (por via legal, naturalmente, e não por via de uma atuação administrativa) a possibilidade de suspender a execução quando estivessem em causa as dívidas de recursos próprios comunitários. Não havendo, nesse contexto, uma referência a auxílios de Estado, ou seja, a recursos estaduais; o que permite inferir que não estariam incluídos. Com o desaparecimento da única a exceção que existia, se já não estavam incluídos os auxílios de Estado e não tendo havido a substituição daquela exceção por uma mais abrangente, sai ainda mais reforçada a ideia de que não há qualquer base legal interna para o regime interno que a AT pretendeu criar" (sublinhado da Requerente)”.
XXXIV. Termos em que deve o presente recurso ser julgado improcedente, mantendo-se integralmente a sentença recorrida – o que desde já se requer.

I.3 - Parecer do Ministério Público
Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo, veio o Ministério Público emitir parecer com o seguinte conteúdo:

Encontra-se para apreciação nos autos o recurso jurisdicional apresentado pela Exma. Representante da Fazenda Pública (Autoridade Tributária e Assuntos Fiscais da Região Autónoma da Madeira) relativamente à douta sentença proferida pelo TAF do Funchal, na data de 27.06.2024, pela qual foi julgada procedente a reclamação apresentada pela firma A..., Sociedade Unipessoal, Lda. (ZFM), em relação a acto do órgão de execução fiscal, mais precisamente o acto de penhora sobre o saldo de conta bancária determinado no âmbito do processo de execução fiscal nº ...43 (e apensos), a correr termos pelo Serviço de Finanças do Funchal-1, e com isso declarada a ilegalidade do referido acto de penhora executiva, isto por ter o mesmo sido efectuado enquanto decorria o prazo de apresentação de reclamação judicial do precedente acto de indeferimento do pedido de suspensão do processo de execução com prestação de garantia.
O processo de execução fiscal mencionado reporta-se à cobrança coerciva da importância de € 599.290,87, divida decorrente da recuperação de Auxílios de Estado concedidos à empresa executada a operar no âmbito da Zona Franca da Madeira, e o mesmo decorre da Decisão EU/2022/1414, da Comissão, com data de 04.12.2020.
Como resulta das alegações do recurso apresentado pela Exma. Representante da Fazenda Pública, a mesma, e em síntese, invoca a nulidade da sentença, nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, alínea c), do CPC (aplicável ex vi do artigo 2º, alínea e), do CPPT), isto porque, segundo refere, os respectivos fundamentos se encontram em contradição com o teor da decisão, e, por outro lado, invoca ainda o erro de julgamento de direito, porque, neste caso, as normas processuais de direito interno que prevêem a possibilidade de suspensão do processo de execução fiscal, mediante a prestação de garantia ou de isenção, ou de dispensa, da mesma, se mostram incompatíveis com o que se encontra estabelecido pelo Direito da União Europeia, seja em função do disposto na Decisão da Comissão Europeia EU/2022/1414, de 04.12.2020, seja pelo disposto no Regulamento EU/2015/1589.
Sustenta ainda a Recorrente que ao indeferimento do pedido de prestação de garantia não pode ser atribuído o efeito jurídico atribuído na sentença recorrida, o da suspensão da instância executiva fiscal até estar esgotado o prazo para a reclamação judicial, isto porque, e de outra forma, se estaria a criar um diferimento ou uma dilação na recuperação de um Auxilio de Estado tido por ilegal, o que é incompatível com o Direito da União Europeia, do que resulta que a decisão do tribunal a quo, ao determinar a anulação do acto de penhora, afronta esse quadro normativo supra nacional, em particular os princípios do primado e do efeito directo do Direito da União Europeia, e afronta ainda os princípios da celeridade e da eficácia, tal como previstos no artigo 16º, nº 3, do Regulamento EU/2015/1589, de 13.07.2015, e, por outro lado, incumpre também com o dever que impende sobre o órgão jurisdicional nacional de afastar a aplicação de qualquer norma de direito interno que obstaculize a recuperação dos Auxílios de Estado, que é o que agora está em causa.
Acrescenta ainda a Recorrente que a interpretação acolhida na decisão recorrida, a da aplicação aos processos de execução fiscal destinados à cobrança coerciva de dividas de Auxílios de Estado das normas processuais que prevêem a suspensão da instância executiva fiscal, mediante dispensa ou a prestação de garantia, ou o pagamento em prestações, tal como previsto nas disposições dos artigos 169º, 170º, 196º, e 199º, todas do CPPT, e do artigo 52º, da LGT, ou ainda da igual possibilidade da sustação até que se encontre esgotado o prazo de reclamação judicial após o indeferimento de um desses pedidos, tal sorte de interpretação é mesmo inconstitucional por violação do disposto no artigo 8º, nº 4, da Constituição, e por igual violação do principio do primado Direito da União Europeia.
Remata a Exma. Representante da Fazenda Pública as suas alegações com a formulação do pedido de revogação da sentença recorrida, com a consequente manutenção do acto objecto da reclamação que determinara a penhora executiva, e ainda com a formulação de que seja efectuado um pedido de reenvio prejudicial ao TJUE, nos termos do disposto no artigo 267º, primeiro parágrafo, alínea b), e terceiro parágrafo, do TFUE, para efeitos de esclarecer a questão de saber se as disposições de Direito da União Europeia que estão em causa nos autos, seja o artigo 16º, nº 3, do Regulamento EU/2015/1589, seja a Comunicação da Comissão relativa à recuperação de Auxílios de Estado ilegais, e seja a Decisão EU/2022/1414, da Comissão, de 04.12.2020, impedem ou não a aplicação de normas processuais do direito nacional que prevejam a suspensão do processo de execução fiscal quando o mesmo seja destinado à cobrança coerciva de dividas decorrentes da recuperação de Auxílios de Estado, em cumprimento da Decisão EU/2022/1414, da Comissão, de 04.12.2020.
A firma Reclamante/Recorrida apresentou contra-alegações nos autos, que constam de fls. 442/460 (SITAF), nas quais e de uma forma desenvolvida sustenta a improcedência do recurso e a consequente manutenção da decisão tomada pela sentença recorrida.
Importa de momento tomar posição sobre o recurso em apreciação, e, pela nossa parte, entendemos que a sentença recorrida fez uma lidima interpretação e aplicação do quadro normativo aplicável ao caso, a respectiva fundamentação é plausível e congruente, e a mesma não merece a censura que lhe vem apontada pela Exma. Representante da Fazenda Pública.
Com efeito, por um lado, e a nosso ver, não se verifica a apontada nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e o teor da decisão, nulidade prevista na disposição do artigo 615º, nº 1, alínea c), do CPC. É que não existe essa contradição, poder-se-á é discordar da fundamentação aduzida pelo tribunal a quo o que poderá integrar erro na subsunção jurídica ou erro na interpretação, que conduzem ao erro de julgamento, mas tal constitui coisa diversa daquela referida nulidade.
Ora, e como se disse, sucede que também se não verifica o invocado vício de erro de julgamento de direito, por errada interpretação e aplicação de lei, na forma e nos termos como vêm assacados à decisão recorrida porque a mesma esteve bem ao considerar que o direito nacional respeitante à cobrança executiva de dívidas relativas à recuperação de Auxílios de Estado não afronta o Direito da União Europeia, pelo que não poderia ser afastado pelo órgão de execução fiscal.
Aliás essa questão, da compatibilidade do quadro processual nacional com o Direito da União Europeia e das garantias processuais dos devedores foi entretanto objecto de apreciação jurisdicional no Supremo Tribunal Administrativo em vários processos decorrentes de contencioso executivo associado à recuperação de Auxílios de Estado concedidos a empresas estabelecidas na denominada Zona França da Madeira.
Referimo-nos ao processo nº 33/24.1BEFUN (Acórdão do STA, de 03.07.2024), ao processo nº 88/24.9BEFUN (Acórdão do STA de 03.07.2024), ao processo nº 50/24.1BEFUN (Acórdão do STA de 11.07.2024), ao processo nº 92/24.7BEFUN (Acórdão do STA de 11.07.2024), e ao processo nº 94/24.3BEFUN), nos quais, por decisões recentes, foi fixada jurisprudência no sentido de que não existe um quadro normativo no Direito da União Europeia que impeça a aplicação das garantias processuais previstas em sede de execução fiscal e aplicáveis à recuperação executiva de Auxílios de Estado ilegais, o que torna também inviável a formulação do pretendido pedido de reenvio prejudicial dirigido ao TJUE.
Neste contexto, e a nosso ver, são de considerar como relevantes, e como síntese dessa jurisprudência, as conclusões que constam do sumário tirado no Acórdão do STA, de 03.07.2024 (processo nº 33/24.1BEFUN), e de acordo com o qual se considerou que:
I - A questão fundamental é a de saber se decorre dos instrumentos de Direito da União Europeia invocados a inadmissibilidade da dispensa de garantia para a suspensão do processo de execução fiscal.
II - É de afastar, logo à partida, que seja recusada a suspensão do processo de execução fiscal com dispensa de prestação de garantia, só porque, supostamente, seria o que resultaria dos instrumentos de Direito da União Europeia invocados. Sendo essa atuação ainda mais censurável por se apoiar, sobretudo, numa comunicação da Comissão.
III - Mesmo no plano dos princípios gerais da União dificilmente se conceberia uma discriminação dos executados em função da situação que esteve na origem do crédito fiscal a recuperar.
IV - Concede-se provimento ao recurso jurisdicional interposto pela Recorrente, revogando a decisão recorrida e anulando o despacho do órgão de execução reclamado.
Ora, no caso dos autos, e tal como decidiu o tribunal a quo, o órgão de execução fiscal não poderia avançar para a realização da penhora executiva enquanto decorria o prazo para o executado poder apresentar reclamação judicial da decisão do mesmo que indeferira o pedido de suspensão do processo de execução mediante a prestação de garantia, pois a decisão de indeferimento não se encontrava ainda estabilizada e consolidada na ordem jurídica, com a força de caso julgado, do que resulta que aquela penhora compromete inexoravelmente o efeito útil de uma eventual decisão judicial favorável ao executado em sede de reclamação judicial apresentada contra aquela decisão.
Assim, neste condicionalismo, s.m.o., é nosso parecer que será de julgar improcedente o presente recurso jurisdicional, com a consequente manutenção da decisão recorrida que considerou ilegal o acto da penhora determinado pelo órgão de execução fiscal.”

I.4 - Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


II - FUNDAMENTAÇÃO

II.1 – De facto
A decisão recorrida julgou como provada os seguintes facto:
1. Pelo Serviço de Finanças do Funchal - 1 foi instaurado contra A..., SOCIEDADE UNIPESSOAL LDA., o processo de execução fiscal n.º ...43 e apensos, por dívida de IRC dos exercícios de 2015, 2016 e 2019 – recuperação de auxílios (cfr. processo de execução fiscal em suporte virtual);
2. Em tal processo, a aqui Reclamante apresentou em 02/11/2023 um requerimento visando a suspensão do processo de execução fiscal com dispensa de prestação de garantia (cfr. processo de execução fiscal em suporte virtual);
3. O requerimento veio a ser indeferido por despacho da Exma. Senhora Diretora da Autoridade Tributária e Assuntos Fiscais da Região Autónoma da Madeira de 06/02/2024, notificado à aqui Reclamante através do ofício n.º ...47 de 06/02/2024 (cfr. processo de execução fiscal em suporte virtual e documento junto à p.i.);
4. No dia imediatamente anterior, isto é, 05/02/2024, a Autoridade Tributária e Assuntos Fiscais da Região Autónoma da Madeira tinha avançado, no âmbito do processo de execução fiscal supra identificado, com a penhora n.º ...60, sobre uma conta bancária da Reclamante, no valor de € 599 290,87 (cfr. processo de execução fiscal em suporte virtual);
5. Tendo tomado conhecimento da penhora, veio a Reclamante apresentar a presente ação (cfr. processo de execução fiscal em suporte virtual e teor da p.i.)

II.2 – De Direito
I. Vem o presente recurso interposto pela FAZENDA PúBLICA da douta sentença proferida pelo TAF do Funchal, a qual julgou procedente a reclamação judicial interposta pela reclamante, ora recorrida A..., Sociedade Unipessoal, Lda (ZFM), deduzida contra o acto de penhora n.º ...60 no valor de € 599 290,87 que corre termos no âmbito do processo de execução fiscal n.º ...43 e apensos, instaurado por dívida de IRC dos exercícios de 2015, 2016 e 2019.

II. A decisão recorrida, ao julgar procedente a referida reclamação judicial deduzida pela ora Recorrida, considerou em síntese que “…o que resulta dos autos é que a Autoridade Tributária e Assuntos Fiscais da Região Autónoma da Madeira avançou com um ato de penhora antes de se pronunciar sobre o pedido formulado pela aqui Reclamante de suspensão do processo de execução fiscal com dispensa de prestação de garantia..(…) O que manifestamente sucede in casu dado que não é o responder-se ao requerimento apresentado pela Reclamante que impede a execução imediata e efetiva da decisão da Comissão. (…) Ao assim agir, a Autoridade Tributária e Assuntos Fiscais da Região Autónoma da Madeira violou, desde logo, o princípio da decisão que sobre si impende nos termos do art.º 56.º da Lei Geral Tributária. Para além de obviamente causar um prejuízo imediato à Reclamante, que se viu desapossada da quantia penhorada. (…)”
Neste sentido entendeu o tribunal recorrido julgar procedente a dita reclamação e anular o acto reclamado.

II. Inconformada com o assim decidido, vem dela a ora Recorrente interpor recurso para esta instância superior, alegando que o tribunal a quo errou e invoca para o efeito que existe:
- nulidade da sentença recorrida por os fundamentos da decisão estarem em clara contradição com o decidido pelo Tribunal a quo, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil, aplicável ex vi alínea e) do artigo 2.º do CPPT;
- erro de direito por violação do direito da União europeia visto que as normas processuais de direito interno que prevêem a suspensão do processo de execução fiscal, mediante a prestação de garantia ou de isenção (ou dispensa) da mesma, são incompatíveis com o direito da União Europeia, designadamente, com a decisão da Comissão Europeia - Decisão (UE) 2022/1414, de 04/12/de 2020 - e com o Regulamento (UE) 2015/1589 do Conselho.
- erro na anulação do acto de penhora por ser realizado antes do decurso do prazo para a reclamação judicial do ato de indeferimento do pedido de dispensa da prestação de garantia, incorrendo em erro de julgamento por violação do Direito da União Europeia aplicável ao caso concreto.
Vejamos, então.

III. Pelo que vem dito, surge imediatamente claro que as ditas três questões se resumem, na verdade, a duas, sendo que a segunda a terceira têm idêntica natureza e serão tratadas em conformidade, atenta a relevância da questão da conformidade da legislação nacional com o Direito Europeu.
Sendo que a primeira questão reside em indagar se existe, como alega a ora Recorrente, uma nulidade da sentença por incoerência, obscuridade ou ambiguidade entre a decisão recorrida e a respetiva fundamentação.
E, já adiantamos, que a resposta não pode deixar de ser negativa.
Sem prejuízo da correção (ou não) da análise da questão de fundo, a verdade é que a sentença recorrida é absolutamente coerente face à sua fundamentação. Com efeito, o sentido da decisão vem explicado nos seguintes termos:
Ora, não é o tempo de responder ao pedido de dispensa de prestação de garantia (sobretudo, quando se respondeu ao mesmo no dia imediatamente a seguir à penhora), que põe em causa a possibilidade de a recuperação ser imediata e efetiva.
Tanto mais quando a Autoridade Tributária e Assuntos Fiscais da Região Autónoma da Madeira demorou já muito tempo para tramitar o procedimento de recuperação de auxílios. Recorde-se que estamos em fim de junho de 2024 e a Decisão da Comissão Europeia é do início de dezembro de 2020…
Muito menos está em questão o princípio da efetividade ou do primado.
Com efeito, as normas de direito português só devem ser afastadas quando colidam de forma expressa e impeçam a efetividade do Direito da União. Recuperando aqui o artigo 16.º, n.º 3, do Regulamento Processual, «a recuperação será efetuada imediatamente e segundo as formalidades do direito nacional do Estado-Membro em causa, desde que estas permitam uma execução imediata e efetiva da decisão da Comissão».
O que manifestamente sucede in casu…”.
Quer dizer que, bem ou mal – isso é questão que depois se analisará –, é evidente que o tribunal a quo julgou que a tomada de uma posição acerca da dispensa de garantia para efeitos da suspensão da execução fiscal não afronta o Direito Europeu, na medida em que este impõe o cumprimento das “formalidades do direito nacional do Estado Membro” e, segundo o entendimento daquele tribunal, não existe qualquer colisão in casu com as normas europeias.
Não se vislumbra, por conseguinte, o preenchimento dos termos em que a lei descreve a nulidade constante da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.
Pelo que há que indeferir o recurso a este respeito.

IV. Resta, agora, abordar a questão comum às duas alegações acima apresentadas pela Recorrente.
Recorde-se que a dita Recorrente remata as suas alegações recursivas com o pedido de revogação da sentença recorrida, e requer a este Supremo Tribunal o reenvio prejudicial ao TJUE ((§§ 62 e seguintes), nos termos do disposto no artigo 267º, primeiro parágrafo, alínea b), e terceiro parágrafo, do TFUE, para que se esclareça a questão de saber se a interpretação feita “… impede ou não a aplicação de direito interno que permitem a suspensão da execução fiscal destinada à cobrança de dívida decorrente da recuperação de auxílios de Estado (em cumprimento da Decisão (UE) 2022/1414 da Comissão, de 4 de Dezembro de 2020).”
Esta leitura é, na essência, a razão de ser das duas questões acima colocadas e que agora cabe abordar; pelo que se impõe saber se é ou não devida o reenvio prejudicial ou uma qualquer outra intervenção de sentido equivalente, por parte deste Supremo Tribunal.

V. E, neste sentido, começamos por sublinhar que, como é de conhecimento oficial, estão pendentes neste Supremo Tribunal e no Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal diversos processos cujos litígios têm por objecto a mesma questão de fundo que ora nos cumpre decidir, sendo que, conforme informação prestada e documentalmente comprovada neste (e noutros processos), no âmbito do processo n.º 299/24.7BEFUN foi formulado ao TJUE pedido de reenvio prejudicial.
O qual, segundo também documento constante dos autos, foi aí recebido, tendo-lhe sido atribuído o n.º C-545/24.

VI. Ora, como se disse no acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo de 15 de Novembro de 2006, no processo n.º 1216/05 (integralmente disponível para consulta em www.dgsi.pt), “Tendo sido suscitada no processo uma questão essencial, relativamente à qual em outro processo se haja decidido o reenvio prejudicial para o TJUE, não faz sentido um segundo reenvio em relação a essa questão essencialmente idêntica. (…) justifica-se que, ao abrigo do disposto nos artigos 276.º, n.º 1, alínea c), e 279.º, n.º 1, ambos do CPC, seja declarada a suspensão da instância, até proferimento da pertinente pronúncia por esse Tribunal de Justiça.

VII. Assim sendo, e tendo em consideração a identidade da questão de mérito colocada em todos os processos mencionados e o pedido de reenvio prejudicial formulado, entende-se que é, por ora, e pelo menos até que o TJUE profira despacho de admissão do reenvio prejudicial que lhe foi submetido, de suspender a presente instância, nos termos do preceituado nos artigos 269.º, n.º 1, alínea c), e 272.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.


III. DECISÃO
Termos em que acordam os Juízes que integram a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em suspender esta instância de recurso, até que esteja decidido pelo TJUE a admissibilidade do reenvio ou o reenvio prejudicial que lhe foi enviado no âmbito do processo n.º 299/24.7BEFUN.


Notifiquem-se as partes e o Exmo. Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal Administrativo do presente despacho, mais se ordenando ao tribunal a quo que nos seja dado conhecimento de todas as comunicações que, a partir da presente data, lhe sejam realizadas pelo TJUE no âmbito do processo n.º 299/24.7BEFUN.


Lisboa, 2 de Outubro de 2024. - Gustavo André Simões Lopes Courinha (relator) - Pedro Nuno Pinto Vergueiro - Francisco António Pedrosa de Areal Rothes.