Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0221/24.0BEFUN
Data do Acordão:09/11/2024
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ANABELA RUSSO
Descritores:AUXILIO DO ESTADO
REENVIO PREJUDICIAL
Sumário:Tendo sido suscitada no processo uma questão, relativamente à qual em outro processo se haja decidido o reenvio prejudicial para o TJUE, justifica-se que, ao abrigo do disposto nos artigos 269.º, n.º 1, alínea c), e 272.º, n.º 1, ambos do CPC, seja declarada a suspensão da instância, até admissão desse reenvio ou, admitido, proferida pronúncia por esse Tribunal de Justiça.
Nº Convencional:JSTA000P32563
Nº do Documento:SA2202409110221/24
Recorrente:A..., LDA.
Recorrido 1:AT – RAM
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:

ACÓRDÃO


1. RELATÓRIO

1. “A..., Lda., inconformada com a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal - que julgou improcedente a Reclamação por si deduzida contra o despacho do órgão de execução fiscal, datado de 15 de Abril de 2024, que indeferiu os pedidos de nulidade de citação apresentados no âmbito do processo de execução fiscal n.º ...23 (e apensos), instaurados por dívidas de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, dos exercícios de 2015, 2016, 2017 e 2018, no valor global de € 333. 488,52, interpôs o presente recurso jurisdicional.

1.2. Tendo alegado, aí formulou as seguintes conclusões:

«A. O presente recurso é interposto da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal que julgou improcedente a reclamação deduzida contra o despacho da AT-RAM, que, por sua vez, indeferiu os pedidos de nulidade de citação apresentados pela aqui Recorrente por esta ofender formalidades essenciais prescritas na lei: (i) omissão do valor para efeitos de prestação de garantia, (ii) proibição de pagamento em prestações, (iii) não atribuição de efeitos suspensivos da oposição à execução.

B. Na execução fiscal subjacente, a Recorrente está a ser alvo de uma cobrança executiva por alegadas dívidas de IRC (2015, 2016, 2017 e 2018), contra as quais instaurou oportunamente impugnação judicial junto do Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, que corre termos sob o processo n.º 212/24.1BEFUN. Estão em causa liquidações adicionais do IRC emitidas pela AT em alegada execução da Decisão da Comissão Europeia (Decisão (UE) 2022/1414 da Comissão, de 4 de dezembro, que declarou ilegais os auxílios concedidos a empresas da Zona Franca da Madeira.

C. A procedência de algum dos fundamentos desta impugnação implicará a anulação total daquelas liquidações (nomeadamente porque o ato de liquidação foi praticado por entidade incompetente materialmente) ou, pelo menos, uma redução do valor do IRC a recuperar para cerca de um terço do valor que foi (erradamente) quantificado pela AT e está a ser cobrado na execução fiscal.

D. Neste contexto, legitimamente, ao abrigo da lei vigente, a Recorrente pretende suspender a execução fiscal mediante prestação de garantia enquanto aguarda o desfecho daquele processo de impugnação judicial que irá dirimir, em definitivo, se as liquidações adicionais do IRC, que servem de título executivo, são ilegais ou não.

E. O Tribunal a quo julgou improcedente a reclamação deduzida pela Recorrente; ao arrimo do que a AT-RAM defendeu no despacho reclamado, o Tribunal a quo concluiu, também, que «[...] não é admissível qualquer medida que vise o retardamento da restituição do auxílio declarado ilegal, de que constitui exemplo a pretendida suspensão do processo de execução fiscal através, designadamente, da prestação de garantia, dispensa de prestação de garantia ou pagamento em prestações, até porque isso faria com que a decisão de recuperação não fosse executada de forma imediata e efetiva, como se impõe nos respetivos termos da Decisão».

F. A sentença parte de um pressuposto manifestamente errado, o de que a Decisão da Comissão Europeia é imediatamente exequível perante os contribuintes independentemente de a mesma reunir per se as condições objetivas para essa execução.

G. A situação vertente deve ser distinguida de muitas outras decisões da Comissão que ordenaram a recuperação (imediata) de auxílios de índole fiscal ilegalmente auferidos (citando alguns dos mais notórios, vejam-se os casos da Apple - T-778/16, Amazon - C- 457/21 P, Fiat Chrysler Finance Europe - C-885/19 P).

H. Ao contrário desses casos - que se dirigiram a um contribuinte em concreto como também quantificavam o valor a recuperar -, na situação sub judice tal não acontece. A Decisão da Comissão Europeia não é, de todo, imediatamente exequível, porque não nomeia os beneficiários que devem repor os auxílios, não quantifica o valor objeto de recuperação, nem fornece qualquer metodologia que, não caindo num exercício de pura discricionariedade e de ofensa dos princípios constitucionais da legalidade e da proporcionalidade, possa ser aplicada diretamente pelos competentes serviços da administração tributária nacional sem implicar da parte destes um esforço de subsunção e/ou de dedução de regras ad hoc de determinação da matéria tributável, que foi o que aconteceu na situação em apreço.

I. Defender o veredicto da Primeira Instância significa afirmar que as decisões da Comissão em matéria de auxílios de Estado, por muito pouco densas e auto-executórias que sejam e, bem assim, as decisões da AT nacional que as aplicam, ficam sempre à margem dos parâmetros constitucionais fiscais nacionais nomeadamente dos princípios da tutela jurisdicional efetiva e mesmo da legalidade pois, ao contrário do que sucede com qualquer liquidação tributária, condenam o sujeito passivo a pagar o imposto ou a reembolsar o imposto em causa e a ficar à espera que seja feita a justiça relativamente a esse mesmo imposto, com o periculum in mora daí decorrente, sobretudo quando está em causa o curso normal da justiça tributária.

J. Do teor da fundamentação e do excerto decisório da Decisão da Comissão Europeia não se retira que a “A... deve reembolsar o valor de € 333.488,52 a título de IRC”; caso contrário, não sobejaria qualquer dúvida sobre a vinculatividade dessa decisão e sua imediata exequibilidade contra a Recorrente.

K. O artigo 5.°, n.° 2 da Decisão da Comissão prevê que «Portugal deve assegurar a execução da presente decisão no prazo de oito meses a contar da data da respetiva notificação».

Mas o que daqui se infere não é que o reembolso deve ser assegurado no prazo de oito meses, mas tão somente avaliar, de entre os beneficiários do Regime III, aqueles que, face à suposta ilegalidade dos auxílios, beneficiaram indevidamente do regime especial da ZFM e proceder à respetiva notificação e envio de documento de liquidação contendo a quantificação do valor do reembolso.

L. Este preceito não pode significar, atendendo às circunstâncias já apontadas (abstração e indefinição dos auxílios a recuperar da Decisão), uma cobrança irrestrita sem, portanto, que possa ser obstada por via de apresentação de uma garantia que evita que o prejuízo que pode derivar de uma decisão que logo produz os seus efeitos económicos e que se vier a ser revertida já terá provocado danos muito possivelmente irreparáveis.

M. Portanto, a conclusão é a de que a sentença recorrida incorre em erro de direito ao não compreender o alcance a Decisão da Comissão e dele extrai uma consequência (recuperação imediata do valor apurado pela AT) ilegal.

N. Acresce que, na opinião da Recorrente, o ato de liquidação em crise padece de nulidade por provir da autoria de um órgão absolutamente incompetente - a AT - que exerceu uma competência que cabe exclusivamente à AT-RAM. Não obstante este quadro, o Tribunal a quo entendeu avalizar a decisão da AT-RAM que obriga a Recorrente a pagar esta pretensa dívida, sem possibilidade de suspender a respetiva execução.

O. De acordo com os considerandos 212 e 215 da sua Decisão, a Comissão Europeia indica não estar, i) nem «em condições de identificar, na própria decisão, todas as empresas que receberam um auxílio ilegal e incompatível», ii) nem «obrigada a fixar o montante exato a recuperar, especialmente quando não dispuser dos dados necessários para o efeito», acometendo essa responsabilidade ao Estado Português. Isto também, evidencia como o fundamento avançado pelo Tribunal a quo para impedir a prestação de garantia idónea para efeitos da suspensão das execuções não tem provimento (assim como a proibição expressa nos atos de citação de pagamento em prestações e os efeitos não suspensivos caso seja deduzida oposição à execução).

P. Acresce que os tribunais europeus consideram também possível «obter a suspensão da instância num processo de impugnação do ato nacional que vise a recuperação do auxílio ilegal». É o caso, desde logo, das situações em que a Comissão toma uma decisão sobre um regime de auxílio e omite o montante do auxílio a recuperar, como sucede in casu.

Q. Nestas situações, o TJ já afirmou que a executada deverá naturalmente poder «alegar, perante os órgãos jurisdicionais nacionais, que não cumpre os critérios de identificação dos beneficiários do auxílio ou que, em aplicação dos parâmetros estabelecidos pela Comissão, o montante do auxílio a reembolsar é, no seu caso, zero ou inferior ao montante reclamado pelo Estado» (C-5/89). E deverá, também sem surpresa, poder contestar simplesmente o quomodo de recuperação, como decorre do princípio da proteção jurisdicional efetiva, que não é um princípio exclusivo do enquadramento nacional.

R. Por outras palavras, o princípio segundo o qual se deve ordenar a recuperação de um auxílio ilegal é isso mesmo - um princípio, suscetível de exceção e que deve ceder quando o alegado beneficiário de um auxílio ilegal invoca circunstâncias que imponham a exclusão do reembolso, seja referente à inaplicabilidade de uma Decisão da Comissão Europeia ordenando a recuperação do auxílio, seja atinente à respetiva confiança legítima no caráter regular do auxílio (TJ; C-5/89).

S. Em especial quanto à impugnação judicial, esta é suscetível de pôr em causa o mérito e a validade do ato impugnado, pelo que não permitir a suspensão da execução (quando garantida a dívida impugnada) afronta diretamente as normas do processo tributário, conclusão que resulta i) quer do considerando 25 e do artigo 16.°, n.° 3 do Regulamento Processual, ii) quer do considerando 70 da Comunicação da Comissão relativa à recuperação de auxílios estatais ilegais, quer, ainda, da jurisprudência dos tribunais europeus (TJ; C-527/12).

T. No entender da Recorrente, a interpretação normativa segundo a qual fica vedada a possibilidade de efeito suspensivo da execução de uma quantia a reembolsar fruto de auxílios alegadamente ilegais, quando a liquidação em causa seja impugnada e garantida nos termos da lei, afigura-se violadora de direitos fundamentais e princípios estruturantes do Estado de Direito e, bem assim, do Direito da União Europeia.

U. A saber: o direito de acesso aos tribunais e o direito-princípio da tutela jurisdicional efetiva e equitativa (artigos 20.° e 268.°, n.° 4 da CRP, 19.°, n.° 1 do Tratado da União Europeia (‘TUE’) e 47.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (‘CDF’); o princípio da proporcionalidade (artigos 2.° e 18.° CRP); os princípios da legalidade e tipicidade (artigos 18.°, n.° 2, 103.°, n.os 2 e 3 e 266.°, n.° 2 da CRP) e os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança (artigo 2.° da CRP).

V. O afastamento da possibilidade de suspensão da execução, em termos que eliminam o efeito útil da impugnação (e também o da oposição à execução), configura uma restrição dos direitos fundamentais consagrados nos artigos 20.° e 268.° da CRP.

W. Ao traduzir a imposição de um ónus de efeitos equivalentes à restituição definitiva dos montantes que a executada entende não dever restituir, o princípio da proporcionalidade é afrontado, e os direitos da executada comprometidos, em todas as subdimensões.

X. Mas, além de desproporcional, a solução contra a qual a Recorrente se insurge não encontra sequer respaldo na lei, isto é, na legislação processual nacional. Em particular no domínio tributário, o princípio da legalidade fiscal, decorrente do artigo 103.°, n.os 2 e 3 da CRP, comporta um âmbito formal e substancial e implica a existência de uma regra de reserva de lei, quer no que se refere à criação de impostos e normas de incidência, quer no que se refere às normas de garantias dos contribuintes.

Y. Em face do exposto, considera-se que a posição da AT-RAM, acolhida pelo Tribunal a quo, consistente em vedar a possibilidade de a executada requerer a suspensão da execução viola manifestamente o princípio da legalidade e as garantias dos contribuintes. Assim como viola - desde logo pelo seu caráter inovador e contrário, quer à lei processual tributária, quer à própria prática decisória da AT-RAM - o princípio da segurança jurídica.

Z. Do CPPT e da demais legislação administrativo-tributária aplicável, resulta de forma clara a possibilidade de requerer a suspensão de um ato administrativo, em caso de oposição à execução (artigo 169.°, n.° 12 do CPPT). Desse mesmo arsenal jurídico flui ainda a possibilidade de a executada prestar garantia idónea, substitutiva da prossecução da execução, em caso de impugnação judicial da liquidação de imposto (artigo 169.°, n.° 1 a 11 do CPPT).

AA. A esta luz, e perante esse enquadramento - com cuja aplicação a executada poderia razoavelmente contar - a posição da AT-RAM, corroborada pelo Tribunal a quo, além de ilegal, lesa o princípio da segurança jurídica, porquanto afeta a previsibilidade ínsita no contexto da legalidade ordinária.

BB. A controvérsia respeita ao direito nacional, e, em particular, à interpretação inovadora, ilegal e inconstitucional que o Tribunal a quo e a AT-RAM fazem do direito processual e administrativo-tributário aplicável. Ad cautelam, para o caso de a este douto Tribunal sobrevir uma dúvida sobre o alcance do dito «princípio da recuperação imediata...» que justifique a suspensão da instância para pronúncia pelo Tribunal de Justiça, ao abrigo do mecanismo de cooperação jurisdicional ínsito ao artigo 267.° do TFUE, sugere-se a formulação das seguintes questões:

• O princípio da recuperação imediata e efetiva dos auxílios de Estado, obsta a que, relativamente a uma decisão da Comissão Europeia que ordena a recuperação de auxílios de Estado de índole fiscal incompatíveis com o mercado interno, sem identificação dos beneficiários por ela abrangidos (a determinar, portanto, pelas autoridades nacionais competentes) e sem determinação de um método de aferição do montante de auxílios de estado alegadamente ilegais que dispense a intervenção do órgão da administração tributária nacional precisamente na definição concreta desse método - no caso concreto, a quantificação dos «postos de trabalho criados», seja reconhecida à impugnação da liquidação dos auxílios de estado alegadamente ilegais (que visa a sua cobrança) efeito suspensivo da execução dessa liquidação quando seja apresentada garantia idónea, nos mesmos termos em que tal é possível relativamente a qualquer liquidação tributária?

• Ao abrigo do n° 1 do artigo 16° do Regulamento (UE) 2015/1589 do Conselho, de 13 de julho de 2015 e, portanto, do princípio segundo o qual não se deve exigir a recuperação de um auxílio que atente contra os princípios gerais da União, é conforme com esses princípios uma interpretação segundo a qual as decisões da Comissão de reembolso imediato em matéria de auxílios de estado fiscais tidos por ilegais não têm de observar as garantias legais e/ou constitucionais previstas no direito interno dos Estados segundo as quais ao executado em processo de execução fiscal é dada a possibilidade de prestar garantia idónea para efeitos de assegurar a suspensão da execução de uma dívida fiscal, quando a dívida ou quantia exequenda foi impugnada judicialmente por se entender que o acto de fixação do valor dos ditos auxílios ilegais por parte do órgão nacional é ilegal por razões formais ou substanciais?

• Em termos mais gerais, o princípio da recuperação imediata e total dos auxílios do Estado significa que os Estados têm sempre de assegurar o reembolso imediato dos montantes alegadamente em dívida dos particulares ilegalmente auxiliados, mesmo quando estes apresentem garantia que acautela esse reembolso nos termos permitidos na lei interna e quando hajam contestado a legalidade da Decisão da Comissão em causa ou da decisão de execução dessa decisão por parte dos órgãos nacionais competentes?

CC. No caso sub judice, uma vez que o Tribunal a quo decidiu sobre o regime de subida imediata da reclamação a favor da Recorrente (cf. capítulo II da sentença recorrida), deverá este recurso ter efeito suspensivo, ex vi artigo 286.°, n.° 2 do CPPT, o que se requer.

1.3. A Recorrida contra-alegou, pugnando, em resumo nosso, pela manutenção do julgado ou, assim não se entendendo, que seja recusada a aplicação das normas previstas nos n.ºs 6, 8.º e 9.º do artigo 278.º do CPPT, por contrárias ao Direito da União Europeia. Subsidiariamente, caso subsistam dúvidas sobre a interpretação do Direito da União Europeia, que seja formulado pedido de reenvio prejudicial ao TJUE, nos termos do artigo 267.º, primeiro parágrafo, al. b) e terceiro parágrafo, do TFUE (aplicável ex vi artigo 8.º da CRP) para esclarecer as questões que propõe.

1.4. O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto neste Supremo Tribunal Administrativo, emitiu douto parecer de que destacamos o seguinte:

«(…)

II. Importa decidir no presente recurso a questão de saber se a sentença recorrida, ao julgar improcedente a reclamação do despacho de indeferimento da arguição da nulidade da citação, padece dos erros de julgamento em matéria de direito que lhe são imputados pela Recorrente, nos termos que emergem das respetivas conclusões recursivas.

III. Como decorre dos autos, a decisão de tal questão contende com a interpretação do direito da União Europeia, que é diretamente aplicável e prevalece sobre o direito interno.

Designadamente, com:

- a referida Decisão (UE) 2022/1414 da Comissão, de 4 de dezembro de 2020 relativa ao regime de auxílios SA....59 (2018/C), que impõe, no seu artigo 5°, que a recuperação de auxílios concedidos ao abrigo do regime previsto no artigo 1° deve ser imediata e efetiva;

- o disposto no art. 16°, n° 3, do Regulamento (UE) 2015/1589, de 13/07/2015, segundo o qual a “recuperação será efetuada imediatamente e segundo as formalidades do direito nacional do Estado-Membro em causa, desde que estas permitam uma execução imediata e efetiva da decisão da Comissão”.

Impondo-se, pois, determinar qual será a correta interpretação desse direito da União Europeia e, particularmente, o que deva entender-se por “execução imediata e efetiva da decisão da Comissão”, para, em face dela, se aferir se as normas de direito interno - máxime as previstas nos arts. 169° e 170°do CPPT e 52° da LGT - a permitem ou não e, portanto, se deverá ou não ser recusada a sua aplicação.

A nosso ver, essa interpretação não se revela isenta de dúvidas, disso sendo reflexo evidente as posições divergentes a esse respeito espelhadas nos autos, com argumentos que se nos afiguram ser sérios e relevantes num sentido e no outro.

Bem como o diferente entendimento que vem sendo perfilhado em 1ª instância e aquele que tem vindo a ser adotado em sede de recurso (v. Acs. de 03/07/2024, proc. 0033/24.1BEFUN e proc. 088/24.9BEFUN, e de 11/07/2024, proc. 050/24.1BEFUN, proc. 092/24.7BEFUN e 094/24.3BEFUN).

Sem que, porém, os atos jurídicos do Direito da União Europeia definam qual seja o sentido e o alcance dos aludidos conceitos de recuperação ou execução “imediata e efetiva” da Decisão.

E sem que, ademais, se conheça qualquer decisão do TJUE sobre essa interpretação.

Afigurando-se-nos, assim, ser imprescindível obter, através deste, uma interpretação uniforme desses conceitos do Direito da União Europeia, que permita ultrapassar as dúvidas interpretativas a esse respeito.

Visando esclarecer a questão de saber se:

A Decisão (UE) 2022/1414 da Comissão, de 4 de Dezembro de 2020, e o art. 16°, n° 3, do Regulamento (UE) 2015/1589 do Conselho, e os conceitos neles contidos “de que a recuperação de auxílios concedidos ao abrigo do regime previsto no artigo 1° deve ser imediata e efetiva” (v. artigo 5° da Decisão) e de que a “recuperação será efetuada imediatamente e segundo as formalidades do direito nacional do Estado-Membro em causa, desde que estas permitam uma execução imediata e efetiva da decisão da Comissão” devem ser interpretados no sentido de que se opõem, ou não, à aplicação das normas internas, designadamente dos artigos 169° e 170° do CPPT e n°s 4, 5 e 6 do artigo 52.° da LGT, que permitem a suspensão dos processos de execução fiscal, mediante dispensa ou prestação de garantia, e pagamento a prestações, em processos cujas dívidas exequendas consistem nos auxílios de Estado cuja recuperação foi ordenada pela Comissão Europeia através daquela Decisão?

Assim, concordando-se com a pretensão deduzida subsidiariamente pela Recorrente e Recorrida e, particularmente, com o expendido pela AT RAM nos artigos 72° a 90° das suas contra-alegações (que acompanhamos integralmente), considera-se que se justificará/imporá no presente caso recorrer ao mecanismo de reenvio prejudicial, nos termos do disposto no artigo 267° do TFUE.

Dispõe, efetivamente, o artigo 267°, do TFUE, na parte que aqui releva, que:

O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial:

a) Sobre a interpretação dos Tratados;

b) Sobre a validade e a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.

(...)

Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal.

(...)

Decorrendo, pois, deste preceito que as questões prejudiciais são consideradas obrigatórias nos casos - como o dos autos - em que a decisão a proferir pelo Juiz Nacional não admite recurso.

Não se afigurando, além disso, que ocorra qualquer situação em que a obrigação de suscitar a questão prejudicial de interpretação pudesse ser dispensada, nos termos estabelecidos pelo Acórdão Cilfit de 06.10.82 (Processo 283/81).

Ou seja, quando:

i) a questão não for necessária, nem pertinente para o julgamento do litígio principal;

ii) o Tribunal de Justiça já se tiver pronunciado de forma firme sobre a questão a reenviar, ou quando já exista jurisprudência sua consolidada sobre a mesma;

iii) o Juiz Nacional não tenha dúvidas razoáveis quanto à solução a dar à questão de Direito da União, por o sentido da norma em causa ser claro e evidente («teoria do acto claro»).

Termos em que se emite parecer no sentido de ser formulado um pedido de reenvio prejudicial ao TJUE, nos termos do disposto no art. 267°, primeiro parágrafo, alínea b), e terceiro parágrafo, do TFUE, para esclarecer a questão acima enunciada (e/ou outras que este Colendo Tribunal tenha por mais adequadas ou pertinentes com vista ao devido esclarecimento das dúvidas interpretativas suscitadas), com a consequente suspensão da presente instância de recurso.».

1.10. Colhidos os vistos dos Excelentíssimos Juízes Conselheiros Adjuntos, submetem-se agora os autos à Conferência para julgamento.

2. OBJECTO DO RECURSO

2.1 Como é sabido, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva oficiosamente conhecer, o âmbito de intervenção do tribunal de recurso é determinado pelo teor das conclusões com que a Recorrente finaliza as suas alegações [artigo 635.º do Código de Processo Civil (CPC)].

Essa delimitação do objecto do recurso jurisdicional, numa vertente negativa, permite concluir se o recurso abrange tudo o que na sentença foi desfavorável ao Recorrente ou se este, expressa ou tacitamente, se conformou com parte da decisão de mérito proferida quanto a questões por si suscitadas, desta forma impedindo que essas questões voltem a ser reapreciadas pelo Tribunal de recurso (artigos 635.º, n.º 3 e 4 do CPC). Numa vertente positiva, a delimitação do objecto do recurso, especialmente nas situações de recurso directo para o Supremo Tribunal Administrativo, como é o caso, constitui ainda o suporte necessário à fixação da sua própria competência, nos termos em que esta surge definida nos artigos 26.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e 280.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

2.2. No caso concreto, tendo por referência o que ficou dito, é, no essencial, apenas uma a questão a decidir, qual seja, a de saber se o Tribunal a quo errou no julgamento de direito ao decidir que, nas circunstâncias de facto apuradas, não questionadas por qualquer uma das partes, a Autoridade Tributária e Aduaneira não podia, com os fundamentos aduzidos no despacho impugnado e a que se reporta o ponto 3 do probatório, indeferir pedido de arguição de nulidade da citação, designadamente não podia indeferir esse pedido com o fundamento de que, no caso concreto, não é admissível que a parte pretenda proceder ao pagamento em prestações, suspender as execuções fiscais com prestação de garantia ou com dispensa desta.

Em suma, importa decidir se o acto de indeferimento das nulidades arguidas é ilegal, o que passará pela apreciação dos fundamentos convocados pela Autoridade Tributária para assim o decidir.

Simultaneamente importará ainda julgar o pedido de reenvio formulado por ambas as partes e pelo Ministério Público no seu parecer, isto é, decidir se, no caso, uma decisão conscienciosa da questão colocada implica, ou não, que seja formulado reenvio prejudicial ao TJUE. Ou, por outro lado, considerando o conhecimento oficial deste Supremo Tribunal quanto ao pedido de reenvio já formulado noutro processo em que a questão de mérito colocada nos autos é, no essencial, a mesma (processo 299/24.BEFUN) nos devemos limitar a suspender a instância até que à mesma seja dada resposta pelo TJUE.

3. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Fundamentação de facto

Com relevância para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:

1. Pelo Serviço de Finanças do Funchal - 1 foi instaurado contra A... LDA., o processo de execução fiscal n.° ...23 e apensos, por dívidas de IRC dos exercícios de 2015, 2016, 2017 e 2018 - recuperação de auxílios, no valor global de € 333 488,52 (cfr. processo de execução fiscal em suporte virtual e citação junta à p.i.).

2. Citada, a aqui Reclamante apresentou junto do Serviço de Finanças do Funchal - 1 requerimento a arguir a nulidade da citação, uma vez que a citação emitida lhe vedava, no seu entender, a possibilidade de suspensão do processo de execução fiscal através da prestação de garantia, a possibilidade de formular pedido de dispensa de prestação de garantia ou de efectuar o pagamento da dívida em prestações (cfr. processo de execução fiscal em suporte virtual e documentos juntos à p.i.).

3. Por despacho de 15/04/2024 foi proferida decisão de indeferimento do pedido de reconhecimento de nulidade da citação apresentado pela Reclamante (cfr. processo de execução fiscal em suporte virtual e despacho e informação de suporte juntos à p.i.).

4. Notificada do despacho de indeferimento, veio a Reclamante apresentar a presente acção (cfr. processo de execução fiscal em suporte virtual e despacho de indeferimento junto à p.i.).

3.2. Fundamentação de direito

3.2.1. O presente recurso vem interposto do Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal que julgou improcedente a Reclamação apresentada contra o acto de indeferimento do pedido de dispensa de prestação de garantia.

3.2.2. Conforme resulta dos factos apurados, que nenhuma das partes contesta, o referido indeferimento por parte da Autoridade Tributária fundou-se, nuclearmente, no entendimento de que o regime legal de suspensão da execução previsto no direito interno - Lei Geral Tributária (LGT) e Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPP) - não se aplica por colidir com a natureza urgente do procedimento de recuperação dos auxílios ilegais previsto no direito comunitário (Regulamento (UE) 2015/1589).

3.2.3. Foi também esse o entendimento do Tribunal a quo, que, perfilhando a posição da Autoridade Tributária, deixou consignado na sentença recorrida o seguinte:

«O que está na base dos presentes autos é a Decisão da Comissão Europeia (Decisão (UE) 2022/1414 da Comissão, de 4 de dezembro de 2020 relativa ao regime de auxílios SA....59 (2018/C) (ex - 2018/NN) aplicado por Portugal a favor da Zona Franca da Madeira (ZFM) - Regime III), e que ordenou a Portugal, enquanto Estado-Membro, a imediata e efetiva recuperação dos auxílios concedidos, sob a forma de redução de impostos, de forma ilegal (cfr. art.° 5.° da Decisão).

Ora, não há dúvidas de que Portugal está vinculado ao cumprimento de tal decisão.

E quanto aos termos em que tal recuperação se processa, há que atender ao teor da Comunicação da Comissão relativa à recuperação de auxílios estatais ilegais e incompatíveis (2019/C 247/01), e ainda ao Regulamento (UE) 2015/1589 do Conselho (também denominado «Regulamento Processual»), dado que quer a Decisão, quer a Comunicação, quer o Regulamento Processual, constituem direito da União Europeia e logo aplicáveis em Portugal nos termos do n.° 4 do art.° 8.° da Constituição da República Portuguesa.

Ora, visto o teor de tais atos, temos que o artigo 16.°, n.° 3, do Regulamento Processual estabelece que «a recuperação será efetuada imediatamente e segundo as formalidades do direito nacional do Estado-Membro em causa, desde que estas permitam uma execução imediata e efetiva da decisão da Comissão».

Por outro lado, no ponto 37 da Comunicação estabelece-se que “(...) os princípios do primado e da efetividade do direito da União Europeia significam que os Estados-Membros e os beneficiários do auxílio não podem invocar o princípio da segurança jurídica para limitar uma recuperação no caso de um alegado conflito entre o direito nacional e o da União Europeia. O direito da União Europeia prevalece e as regras nacionais não devem ser aplicadas ou devem ser interpretadas de uma forma que preserve a efetividade do direito da União Europeia”.

E tal primazia tem até lugar, note-se, perante decisões judiciais já transitadas em julgado, como decorre do ponto 45 da Comunicação: “Ao abrigo do princípio do primado do direito da União Europeia, as regras da União Europeia em matéria de auxílios estatais prevalecem sobre leis nacionais divergentes, que não devem ser aplicadas. O mesmo se aplica às regras e decisões judiciais nacionais cujo efeito da aplicação do princípio da autoridade do caso julgado se traduza na violação das regras da União Europeia em matéria de auxílios estatais”. Mais se dispondo no ponto 69 que “Uma decisão da Comissão dirigida a um Estado-Membro é vinculativa para todos os órgãos do Estado destinatário, incluindo os seus tribunais”.

Ou seja, e volvendo ao caso que nos ocupa, a aplicação de normativos nacionais não é automaticamente impedida pela execução de uma decisão de recuperação de auxílios ilegais. Todavia, tais normativos não podem pôr em causa a decisão de recuperação, e a obrigatoriedade da mesma ser imediata e efetiva.

O que sempre sucederia com os preceitos legais relativos à suspensão do processo de execução fiscal com dispensa de prestação de garantia.

Com efeito, a sua primeira consequência seria precisamente a recuperação não ser imediata e efetiva.

De onde, não merece censura a atuação da Autoridade Tributária e Assuntos Fiscais da Região Autónoma da Madeira que desconsiderou os normativos nacionais atinentes à possibilidade de dispensa de prestação de garantia visando a suspensão do processo de execução fiscal.

Até porque, a suspensão com prestação de garantia é algo considerado inadmissível por parte da Comunicação.

Com efeito, consta do respetivo ponto 119 que “Em contrapartida, a prestação de garantias para o futuro pagamento do montante de recuperação não constitui uma medida provisória adequada uma vez que, entretanto, o auxílio fica à disposição do beneficiário.”

Logo, e por maioria de razão, a suspensão do processo de execução fiscal com dispensa de prestação de garantia, não pode beneficiar de entendimento diferente.

Sintetizando, poderemos então dizer que não é admissível qualquer medida que vise o retardamento da restituição do auxílio declarado ilegal, de que constitui exemplo a pretendida dispensa de prestação de garantia para suspensão do processo de execução fiscal, até porque isso faria com que a decisão de recuperação não fosse imediata e efetiva, como se impõe nos respetivos termos da Decisão.

Pelo que há que concluir que não merece o ato reclamado a censura que lhe vem dirigida pela Reclamante, pelo que deve improceder a presente reclamação, como disso se dará nota em sede de dispositivo.».

3.2.4. É contra este julgamento que, inconformada, a Recorrente se insurge, alegando, sinteticamente, que é aos juízes nacionais que compete controlar juridicamente os moldes em que é feita a recuperação dos auxílios em execução da Decisão da Comissão, através da aplicação da legislação interna, o que o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo não fez. E, prossegue, neste contexto o que importa ressalvar é que a Autoridade Tributária, face à Decisão da Comissão que condenou o Estado português à recuperação de auxílios ilegais concedidos no âmbito do reconhecimento da ZFM e do regime fiscal especial ao abrigo do qual as entidades com sede naquele local eram tributadas, optou por recuperar os auxílios de Estado em questão através de liquidações de imposto, o que significa que não pode afastar o cumprimento das normas que o regem, designadamente as normas que titulam as garantias dos contribuintes.

3.2.5. Cumpre, então, agora, decidir. E, neste sentido, começamos por sublinhar que, como é de conhecimento oficial, estão pendentes neste Supremo Tribunal e no Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal diversos processos cujos litígios tem por objecto a mesma questão de fundo que ora nos cumpre decidir, sendo que, conforme informação prestada e documentalmente comprovada neste (e noutros processos), no âmbito do processo n.º 299/24.7BEFUN foi formulado ao TJUE pedido de reenvio prejudicial. O qual, segundo também documento constante dos autos, foi aí recebido, tendo-lhe sido atribuído o n.º C-545/24.

Ora, como se disse no acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo de 15 de Novembro de 2006, no processo n.º 1216/05 (integralmente disponível para consulta em www.dgsi.pt ), «Tendo sido suscitada no processo uma questão essencial, relativamente à qual em outro processo se haja decidido o reenvio prejudicial para o TJE, não faz sentido um segundo reenvio em relação a essa questão essencialmente idêntica. (…) Mas justifica-se que, ao abrigo do disposto nos artigos 276.º, n.º 1, alínea c), e 279.º, n.º 1, ambos do CPC, seja declarada a suspensão da instância, até proferimento da pertinente pronúncia por esse Tribunal de Justiça.».

3.2.6. Assim, tendo em consideração a identidade da questão de mérito colocada em todos os processos mencionados e o pedido de reenvio prejudicial formulado, entende-se que é, por ora, e pelo menos até que o TJUE profira despacho de admissão do reenvio prejudicial que lhe foi submetido, de suspender a presente instância, nos termos do preceituado nos artigos 269.º, n.º 1, alínea c), e 272.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

4. DECISÃO

Termos em que, acordam os Juízes que integram a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em suspender esta instância de recurso, até que esteja decidido pelo TJUE a admissibilidade do reenvio ou decidido o reenvio prejudicial que lhe foi enviado no âmbito do processo n.º 299/24.7BEFUN.

Notifique as partes e o Exmo. Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal Administrativo do presente despacho, com cópia do despacho determinativo de reenvio prejudicial que consta do processo n.º 299/24.7BEFUN e do documento confirmativo do seu recebimento no TJUE, o qual deverá ser junta a estes autos e se encontram anexos, como documentos n.ºs 1 e 2, ao requerimento de 26 de Agosto de 2024 apresentado no processo n.º 117/24.6BEFUN.

Mais se determina que o Tribunal a quo dê a este Supremo Tribunal imediato conhecimento de todas as comunicações que TJUE, a partir da presente data, lhe realize no âmbito do processo n.º 299/24.7BEFUN.

Lisboa, 11 de Setembro de 2024 – Anabela Ferreira Alves e Russo (relatora) – Fernanda de Fátima Esteves – Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos.