Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo | |
Processo: | 0859/18.5BEALM |
Data do Acordão: | 09/16/2020 |
Tribunal: | 2 SECÇÃO |
Relator: | FRANCISCO ROTHES |
Descritores: | REVISTA APRECIAÇÃO PRELIMINAR REQUISITOS DE ADMISSÃO |
Sumário: | I - O recurso de revista excepcional previsto no art. 285.º do CPPT não corresponde à introdução generalizada de uma nova instância de recurso, funcionando apenas como uma “válvula de segurança” do sistema, pelo que só é admissível se estivermos perante uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental, ou se a admissão deste recurso for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, incumbindo ao recorrente alegar e demonstrar os requisitos da admissibilidade do recurso. II - O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (cfr. art. 285.º, n.º 4, do CPPT). |
Nº Convencional: | JSTA000P26312 |
Nº do Documento: | SA2202009160859/18 |
Data de Entrada: | 07/31/2020 |
Recorrente: | A............, LDA. |
Recorrido 1: | AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA |
Votação: | UNANIMIDADE |
Aditamento: | |
Texto Integral: | Apreciação preliminar da admissibilidade do recurso excepcional de revista interposto no processo n.º 859/18.5BEALM
1. RELATÓRIO 1.1 A sociedade acima identificada, não se conformando com o acórdão proferido em 4 de Junho de 2020 nos presentes autos pelo Tribunal Central Administrativo Sul – que, negando provimento ao recurso por ela interposto, manteve a sentença proferida no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, que julgou improcedente a reclamação judicial interposta ao abrigo do disposto no art. 276.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) contra o despacho que indeferiu o pedido de dispensa de prestação de garantia –, interpôs recurso de revista excepcional, nos termos do art. 285.º do CPPT. 1.2 Com o requerimento de interposição do recurso, a Recorrente apresentou as alegações, com conclusões do seguinte teor: «1. As questões que constituem o objecto da presente revista são: (ii) O douto Acórdão recorrido viola, ou não viola, o disposto no artigo 52.º, n.º 4 e 74.º, n.º 1 da LGT e o disposto no artigo 170.º do CPPT? 2. A Recorrente identificou com clareza as questões sobre as quais pretende que o Supremo Tribunal Administrativo se pronuncie. 3. Para aferição dos pressupostos previstos no artigo 285.º, n.º 1 do CPPT, importa revisitar a matéria probatória provada, mormente os que têm interesse para as questões enunciadas: 4. O dolo, do termo latino dolus, “artifício”, é um instituto jurídico consistente na acção ou omissão consciente e volitiva a fim de causar dano. 5. Tecnicamente, as viaturas são um activo circulante, ou seja, são uma mercadoria que, enquanto tal, se destinam a ser transaccionadas e o rendimento das sociedades que se dedicam a esta actividade provém, precisamente, da actividade de compra e venda de viaturas. 6. Mesmo que as viaturas referidas no ponto k não tivessem sido vendidas, verificar-se-ia, igualmente, o 1.º requisito do n.º 4, do artigo 52.º da LGT: insuficiência de bens para garantir uma dívida de € 4.193.918,10 (€ 3.355.134,48 x 1,25). 7. A Recorrente nunca teve bens suficientes para prestar uma garantia no valor de € 4.193.918,10. (€ 3.355.134,48 x 1,25). 8. Os valores liquidados pela Autoridade Tributária a título de IVA NÃO FORAM RECEBIDOS pela Recorrente. 9. A Autoridade Tributária não provou a existência de fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a actuação dolosa da recorrente, – não provou o requisito subjectivo plasmado na norma contida no disposto no artigo 52.º, n.º 4 da LGT –, e não resultando dos factos provados essa realidade, decidiu mal o douto Tribunal a quo. 10. A decisão recorrida está ferida com o vício da falta de fundamentação, previsto no artigo 77.º da Lei Geral Tributária (LGT) e no artigo 268.º da Constituição da República Portuguesa, consagrado sob a epígrafe “Direitos e Garantias dos Administrados”; 11. A decisão recorrida está ferida com o vício do princípio do inquisitório, expresso no artigo 58.º da LGT; 12. A decisão recorrida viola o princípio da legalidade tributária, da proporcionalidade e da justiça, previstos no artigo 55.º da LGT; 13. À luz do critério qualitativo de admissibilidade do recurso que constitui jurisprudência pacífica do Colendo Supremo Tribunal Administrativo para o preenchimento do conceito indeterminado de relevância jurídica fundamental, relevância social fundamental e clara necessidade da admissão da revista para melhor aplicação do direito que a Recorrente fez constar da sua alegação de recurso, a relevância social fundamental, decorre do facto, público e notório, da actividade da Autoridade Tributária, enquanto exercício legítimo, lançar mão, amiúde, de acções inspectivas a empresas que se dedicam a diversas actividades, das quais resulta maioritariamente a prática de actos tributários de liquidação de impostos que, por seu turno, dão origem a execuções para a respectiva cobrança coerciva e, considerar-se que uma empresa que vende a sua mercadoria actua dolosamente, com o fim de dissipar o seu património, é uma interpretação que tem de ser analisada e julgada superiormente, pois afecta a possibilidade de suspender, sem prestação de garantia, as execuções enquanto as partes discutem judicialmente se o imposto é ou não devido. 14. Existem em Portugal milhares de pequenas e médias empresas que se dedicam ao comércio de automóveis, que contribuem fortemente para a circulação da riqueza, que representam parte significativa do PIB e que estão na mão de uma acção inspectiva, mais ou menos rigorosa, que pode conduzi-las à insolvência porque se entende que a venda do seu activo circulante, vulgo, mercadorias, constitui uma actuação dolosa que impede a verificação do requisito subjectivo do n.º 2 do artigo 54.º da LGT. 15. Igual situação se pode verificar em todas as demais actividades comerciais. 16. As questões subjudice extravasam os limites da situação singular da Recorrente face à possibilidade da sua repetição num número indeterminado de casos presentes e futuros, reclamando uma interpretação pacificadora e uniforme pelo STA, revestindo importância jurídica ou social fundamental, com contornos de novidade pois trata-se de questão que não foi objecto de específica apreciação pelo STA e que acaba por manter interesse e actualidade e é, nesse contexto, repetível ou susceptível de ser recolocada em casos futuros. 17. As questões colocadas têm relevância jurídica pois apresentam uma complexidade jurídica superior ao comum, sendo que a resposta que este STA lhes der é susceptível de poder servir de paradigma para futuros casos de suspensão da execução com dispensa de garantia, devendo, na ponderação, atender-se à circunstância da maioria das empresas que constituem o tecido empresarial português e a maioria dos particulares não terem a possibilidade de prestar garantia para suspender a execução, mas terem capacidade de pagar as dívidas. 18. Afigura-se, ainda, estarem preenchidos os requisitos exigíveis pelo n.º 1 do artigo 285.º do CPPT, porquanto a matéria em causa é susceptível de se configurar de importância fundamental porque se trata de questão relacionada com a natureza da prova exigível sobre a existência de fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a actuação dolosa da Recorrente e no contencioso tributário são frequentes as reclamações apresentadas como reacção ao indeferimento pelo órgão de execução das suspensão das execuções com dispensa de prestação de garantia, com implicações de grande relevância na vida económica e social das empresas pois pode determinar a sua insolvência e a incobrabilidade de receitas para o Estado. 19. Impõe-se a admissão do recurso para melhor aplicação do direito, porquanto se trata de questão relacionada com a natureza da prova exigível sobre a existência de fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a actuação dolosa da Recorrente, matéria susceptível de repetição em casos futuros, como também se nos afigura que o douto Acórdão, ora recorrido, tratou a matéria da prova exigível para a verificação da existência de indícios fortes de actuação dolosa de forma ostensivamente errada e juridicamente insustentável, o que gera incerteza na sua resolução a impor a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa e tributária como condição para dissipar dúvidas. 20. Os actos de comércio de venda de mercadorias não têm consistência, solidez ou idoneidade de indícios que apontem para uma actuação dolosa dirigida para a dissipação de património e para a frustração de créditos, impondo-se aplicar o direito de modo a que esta conduta não seja considerada dolosa, não integrando a previsão do requisito subjectivo previsto no n.º 2, do artigo 54.º da LGT. 21.O Tribunal Central Administrativo do Sul decidiu de forma controvertida e não isenta de dúvidas. 22. O Tribunal Central Administrativo do Sul no plano dos raciocínios lógicos ou jurídicos enferma de erros manifestos em termos da estrita interpretação das regras e no plano dos princípios pertinentes. 23. O Supremo Tribunal Administrativo tem competência para a reapreciação da decisão de direito, em função do erro grosseiro do Acórdão recorrido ser susceptível de legitimar a intervenção do STA em ordem a contribuir para uma melhor aplicação do direito, mormente do artigo 52.º, n.º 4 da LGT e 170.º, n.º 4 do CPPT, já que a responsabilidade prevista na parte final deste número deve entender-se em termos de dissipação dos bens com o intuito de diminuir a garantia dos credores e não como mero nexo de causalidade desprovido de carga de censura ou simples má gestão dos seus bens. 24. Mostra-se inequívoco que as questões decidendas estão dotadas de capacidade de expansão de controvérsia. As questões que a Recorrente coloca não têm natureza casuística. 25. As «quaestio juris» em presença tem vocação de repetibilidade. 26. As quaestiones juris assume manifesto relevo jurídico ainda porque a resposta que a ela se dê tem consequências ao nível da apreciação e preenchimento dos pressupostos do probatório indiciário sobre conduta dolosa, e tem relevo social, visto que, tratando-se de situações com impacto e que se repetem, é de todo o interesse da comunidade que sobre ela exista o entendimento o mais estabilizado possível. 27. A definição do concreto regime substantivo previsto nos artigos 52.º, n.º 4 e 74.º, n.º 1, ambos da LGT, é matéria cuja elucidação assume relevo jurídico, reclamando a necessária intervenção deste Tribunal. 28. A Recorrente alegou, suficientemente, em que medida estas questões cumprem os requisitos do n.º 1, do artigo 285.º do CPPT. 29. Ademais, o montante pecuniário em causa no processo também concorre para que seja admitido o recurso. 30. A suspensão da execução enquadra-se no direito constitucionalmente garantido à efectividade da tutela judicial, conforme artigos 20.º, n.º 1, 268.º, n.º 4, da CRP e artigo 9.º, n.º 1 da LGT. Termos em que, e sempre com o mui douto suprimento de Venerandos Juízes Conselheiros, se requer muito respeitosamente, seja admitido e concedido provimento ao presente recurso de REVISTA e, em consequência, a douto Acórdão seja revogado in totum e comutada por outra que julgue procedente a reclamação apresentada pela Recorrente, dispensando-a de apresentar garantia, só assim se alcançando e fazendo JUSTIÇA!». 1.3 Não foram apresentadas contra-alegações. 1.4 Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo, foi dada vista ao Ministério Público e a Procuradora-Geral-Adjunta emitiu parecer no sentido de que o recurso não deve ser admitido. Isto, após ter enunciado os requisitos da admissibilidade do recurso de revista e elaborado em torno dos mesmos, com a seguinte fundamentação: «[…] Em nossa opinião, salvo melhor juízo, a Recorrente não demonstra estarem preenchidos os pressupostos de que depende a admissibilidade do recurso de revista pelas razões a seguir explanadas: 1.5 Cumpre apreciar e decidir da admissibilidade do recurso, nos termos do disposto no n.º 6 do art. 285.º do CPPTA. * * * 2. FUNDAMENTAÇÃO 2.1 DE FACTO Nos termos do disposto nos arts. 663.º, n.º 6, e 679.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi do art. 281.º do CPPT, remete-se para a matéria de facto constante do acórdão recorrido. 2.2 DE FACTO E DE DIREITO 2.2.1 DOS PRESSUPOSTOS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO 2.2.1.1 Decorre expressa e inequivocamente do n.º 1 do art. 285.º do CPPT – tal como do n.º 1 do art. 150.º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA) – a excepcionalidade do recurso de revista. Em princípio, as decisões proferidas em 2.ª instância pelos tribunais centrais administrativos não são susceptíveis de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo; mas, excepcionalmente, tais decisões podem ser objecto de recurso de revista em duas hipóteses: i) quando estiver em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, assuma uma importância fundamental ou ii) quando a admissão da revista for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito. 2.2.1.2 Como a jurisprudência também tem vindo a salientar, incumbe ao recorrente alegar e demonstrar essa excepcionalidade, que a questão que coloca ao Supremo Tribunal Administrativo assume uma relevância jurídica ou social de importância fundamental ou que o recurso é claramente necessário para uma melhor aplicação do direito. Ou seja, em ordem à admissão do recurso de revista, a lei não se satisfaz com a invocação da existência de erro de julgamento no acórdão recorrido, devendo o recorrente alegar e demonstrar que se verificam os referidos requisitos de admissibilidade da revista [cfr. art. 144.º, n.º 2, do CPTA e art. 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil (CPC), subsidiariamente aplicável]. 2.2.1.3 A Recorrente interpõe o presente recurso de revista em ordem a que este Supremo Tribunal, se pronuncie sobre duas questões, que ela mesma enunciou como sendo as de saber se «[c]onstitui forte indício de uma conduta dolosa intencionalmente dirigida para a dissipação de património e para a frustração de créditos uma empresa que vende, durante um exercício fiscal, na prossecução do seu objecto social e no exercício normal da sua actividade principal, a sua mercadoria, pelo preço de mercado, recebendo o respectivo preço, facturando a operação, cumprindo todas as normas que sobre ela impendem, designadamente regras contabilísticas e fiscais» e se o acórdão recorrido «viola, ou não viola, o disposto no artigo 52.º, n.º 4 e 74.º, n.º 1 da LGT e o disposto no artigo 170.º do CPPT?» 2.2.1.4 Como dispõe o n.º 4 do art. 285.º do CPTA, «[o] erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova». 2.2.1.5 Invoca também a Recorrente que o acórdão recorrido incorreu em erro grosseiro, a justificar a admissão da revista em ordem à melhoria da aplicação do direito. 2.2.1.6 No que respeita à alegação vertida nas conclusões 10. a 12., parece a Recorrente ignorar que os recursos jurisdicionais não se destinam a imputar vícios ao acto administrativo-tributário impugnado, mas a questionar o julgamento feito pelas instâncias. Reiterando o que lhe foi dito no acórdão recorrido, «os recursos são meios para obter o reexame das questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre». 2.2.1.7 Em suma, não se mostram reunidos os pressupostos de admissibilidade do recurso de revista previstos no art. 285.º do CPPT que, recorde-se não constitui mais um grau de recurso que o legislador tenha posto à disposição da parte que considera que o acórdão recorrido enferma de erro de julgamento. 2.2.2 CONCLUSÕES Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões: I - O recurso de revista excepcional previsto no art. 285.º do CPPT não corresponde à introdução generalizada de uma nova instância de recurso, funcionando apenas como uma “válvula de segurança” do sistema, pelo que só é admissível se estivermos perante uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental, ou se a admissão deste recurso for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, incumbindo ao recorrente alegar e demonstrar os requisitos da admissibilidade do recurso. II - O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (cfr. art. 285.º, n.º 4, do CPPT). * * * 3. DECISÃO Em face do exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência da formação prevista no n.º 6 do art. 285.º do CPPT, em não admitir o presente recurso, por se julgar não estarem preenchidos os pressupostos do recurso de revista excepcional previstos no n.º 1 do mesmo artigo. * Custas pela Recorrente. * Lisboa, 16 de Setembro de 2020. – Francisco Rothes (relator) – Aragão Seia - Isabel Marques da Silva. |