Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0448/18.4BELLE
Data do Acordão:06/05/2024
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
APRECIAÇÃO PRELIMINAR
Sumário:I - O recurso de revista excepcional, previsto no art. 285.º do CPTT, visa funcionar como “válvula de segurança” do sistema, sendo admissível apenas se estivermos perante uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental, ou se a admissão do recurso for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, incumbindo ao recorrente alegar e demonstrar os requisitos da admissibilidade do recurso de revista (cf. art. 144.º, n.º 2, do CPTA e art. 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, subsidiariamente aplicáveis).
II - É de admitir a revista relativamente à questão de saber se o mérito da questão do reinvestimento enquanto causa de exclusão das mais-valias obtidas com a venda um imóvel, debatida ao longo do procedimento e não relevada na liquidação, por a AT entender não estarem reunidos os respectivos requisitos, não pode ser apreciado judicialmente em sede de impugnação judicial deste acto com o fundamento de que «não apresenta qualquer relação com a fundamentação factual e jurídica do acto cuja legalidade se pretende ver sindicada pelo tribunal».
Nº Convencional:JSTA000P32355
Nº do Documento:SA2202406050448/18
Recorrente:AA (E OUTROS)
Recorrido 1:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Apreciação preliminar da admissibilidade do recurso excepcional de revista interposto no processo n.º 448/18.4BELLE

1. RELATÓRIO

1.1 Os acima identificados Recorrentes, notificados do acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul em 19 de Dezembro de 2023 ( Disponível em https://www.dgsi.pt/jtca.nsf/-/6cc41c59dfb470f380258a8d004c4479.) – que, concedendo provimento ao recurso interposto pela AT, revogou a sentença por que o Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé julgara procedente a impugnação judicial por eles deduzida contra a liquidação adicional de IRS do ano de 2014 e, em substituição, julgou parcialmente procedente essa impugnação judicial –, apresentaram requerimento de interposição de recurso excepcional de revista, ao abrigo do disposto no art. 285.º do CPPT. Apresentaram alegações de recurso, com conclusões do seguinte teor:

«A) Vem a presente revista interposta do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul que, conhecendo da apelação interposta pela Fazenda Pública, julgou improcedente o reinvestimento efectuado pelos ora Recorrentes para efeitos de exclusão da tributação.

B) A presente revista afigura-se objectivamente útil e necessária para melhor aplicação do Direito e por levantar questões revestidas de relevância social fundamental.

C) Por um lado, a matéria em causa foi tratada pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória ou mesmo de forma ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, o que justifica objectivamente a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema, suprindo definitivamente os erros imputáveis exclusivamente às instâncias e, assim, fazendo prevalecer o princípio da capacidade contributiva e o direito à tutela jurisdicional efectiva.

D) Por outro lado, a questão em análise, perante a importância do direito em causa e a natureza genérica e corrente do procedimento tributário também em causa, é susceptível de ter o mesmo desfecho administrativo e as mesmas consequências jurídicas negativas num número indeterminável de casos, sendo essencial que o STA defina uma orientação para a apreciação de outros casos, assim se salvaguardando os princípios da justiça e da capacidade contributiva.

E) O Tribunal a quo incorreu em manifesto erro de julgamento, na medida em que, para fundar a sua decisão de rejeitar o conhecimento do mérito do reinvestimento, estabelece uma ligação directa entre a liquidação impugnada e o relatório da inspecção tributária, ignorando, assim, todo o procedimento tributário que se seguiu à elaboração desse relatório, bem como todo o acervo factual já estabilizado nos autos.

F) Ao emitir a liquidação impugnada (18-04-2018), que veio na sequência da segunda declaração oficiosa, a AT proferiu um juízo de improcedência do reinvestimento, pelo que o mesmo se integra na fundamentação do acto impugnado.

G) Ademais, poderá extrair-se da fundamentação do acórdão revidendo que a decisão sobre a matéria do reinvestimento tem por base a falta de declaração do reinvestimento, o que, em face dos factos provados nos autos, afronta os princípios da justiça, da tributação do lucro real e da capacidade contributiva, o que se traduz em manifesto erro de julgamento.

H) A decisão de rejeitar o conhecimento de mérito da questão do reinvestimento, que se seguiu a uma omissão de pronúncia por parte do tribunal de primeira instância, oneram manifesta e injustificadamente a posição dos Recorrentes, coarctando o seu direito a uma tutela jurisdicional efectiva sobre matéria que impacta directamente com o princípio da capacidade contributiva.

I) A questão do reinvestimento – e pretensão de obter a exclusão de tributação por essa via – não foi trazida ex novo aos autos, mas foi formulada pelos Recorrentes aquando da submissão da declaração de substituição de 21-11-2016.

J) Não só essa questão foi formulada anteriormente à impugnação judicial, como foi discutida previamente à emissão da liquidação impugnada (de 18-04-2018).

K) Tal afirmação decorre inequivocamente do elenco de factos julgados provados, que nunca foram impugnados pela Fazenda Pública e que, por isso, estão assentes.

L) A obrigação de declarar a intenção de proceder ao reinvestimento, ou de que o mesmo ocorreu nos 24 meses anteriores à data da realização, não consubstancia um requisito absoluto da exclusão tributária e deve ceder perante os elementos comprovativos do reinvestimento constantes dos autos, prevalecendo a substância sobre a forma e, assim, os princípios da justiça, da tributação do lucro real e da capacidade contributiva.

M) No caso dos autos, a falta de declaração do reinvestimento não é susceptível, em face dos elementos que deles constam, de prejudicar o conhecimento dos requisitos substanciais do reinvestimento nem de justificar, a jusante, o indeferimento da exclusão de tributação pretendida.

N) Para além do erro de julgamento patente no acórdão recorrido, verifica-se que a AT, ao indeferir o reinvestimento, violou os princípios da legalidade tributária, do inquisitório e da capacidade contributiva.

O) Perante os erros da AT e a omissão de pronúncia do tribunal de primeira instância, impunha-se ao Tribunal a quo decidir definitivamente a questão do reinvestimento, ou seja, aplicar o Direito aos factos julgados provados, sem que nada a isso obstasse.

P) A decisão do Tribunal a quo deixa os contribuintes sujeitos ao livre-arbítrio da Administração e é susceptível de reproduzir-se num número indeterminável de reinvestimentos na aquisição de habitação.

Q) É necessário, por conseguinte, que o STA defina uma orientação para a apreciação de outros casos, que deverá ser a seguinte: verificando-se que o contribuinte declarou o reinvestimento posteriormente à emissão de relatório de inspecção tributária, mas antes da liquidação do imposto, e sendo impugnado o acto de liquidação com fundamento na desconsideração do reinvestimento, deverá entender-se que a rejeição do reinvestimento inscreve-se na fundamentação da liquidação impugnada, apresentando uma relação directa com a mesma e que, assim sendo, insere-se nos poderes de cognição do tribunal em sede de contencioso de anulação.

R) Constam da matéria de facto julgada provada os elementos factuais necessários ao preenchimento da previsão normativa do artigo 10.º, n.ºs 5 e 6 do CIRS, na redacção em vigor à data do facto tributário.

S) Verifica-se, por conseguinte, que os Recorrentes realizaram o reinvestimento nas condições legalmente exigíveis para puderem beneficiar da exclusão de tributação.

T) Impõe-se, assim, a revogação parcial do acórdão revidendo e, por essa via, a anulação integral da liquidação impugnada.

Nestes termos e nos mais de Direito, sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, deverá a presente revista ser admitida, julgada totalmente procedente, e, em consequência, ser parcialmente revogado o acórdão recorrido, no que respeita à decisão sobre o reinvestimento,

Com o que, assim judicando,

Definitivamente fará este Colendo Tribunal a necessária e devida JUSTIÇA!».

1.2 A Recorrida não contra-alegou.

1.3 O Desembargador relator no Tribunal Central Administrativo Sul ordenou a remessa dos autos ao Supremo Tribunal Administrativo.

1.4 Recebidos neste Supremo Tribunal, foi dada vista ao Ministério Público e o Procurador-Geral-Adjunto pronunciou-se no sentido de que «[n]ão compete ao Ministério Público, nesta fase, pronunciar-se quanto à admissibilidade ou não do Recurso de Revista, mas apenas quanto ao seu mérito e só no caso de este ser admitido».

1.5 Cumpre apreciar, preliminar e sumariamente, da admissibilidade do recurso ao abrigo do disposto no n.º 6 do art. 285.º do CPPT.


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DOS PRESSUPOSTOS DE ADMISSIBILIDADE DO RECURSO

2.1.1 Em princípio, as decisões proferidas em 2.ª instância pelos tribunais centrais administrativos não são susceptíveis de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo; mas, excepcionalmente, tais decisões podem ser objecto de recurso de revista em duas hipóteses: i) quando estiver em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, assuma uma importância fundamental; ou ii) quando a admissão da revista for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito (cfr. art. 285.º, n.º 1, do CPPT).
Como decorre do próprio texto legal e a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem repetidamente sublinhado, trata-se de um recurso excepcional, como de resto o legislador cuidou de sublinhar na Exposição de Motivos das Propostas de Lei n.ºs 92/VIII e 93/VIII, considerando-o como uma «válvula de segurança do sistema», que só deve ter lugar naqueles precisos termos.

2.1.2 Como a jurisprudência tem vindo a salientar, incumbe ao recorrente alegar e demonstrar essa excepcionalidade, que a questão que coloca ao Supremo Tribunal Administrativo assume uma relevância jurídica ou social de importância fundamental ou que o recurso é claramente necessário para uma melhor aplicação do direito. Ou seja, em ordem à admissão do recurso de revista, a lei não se satisfaz com a invocação da existência de erro de julgamento no acórdão recorrido, devendo o recorrente alegar e demonstrar que se verificam os referidos requisitos de admissibilidade da revista (cf. art. 144.º, n.º 2, do Código de Processo dos Tribunais Administrativos e art. 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável).

2.1.3 Na interpretação dos conceitos a que o legislador recorre na definição do critério qualitativo de admissibilidade deste recurso, constitui jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal, que «(…) o preenchimento do conceito indeterminado de relevância jurídica fundamental verificar-se-á, designadamente, quando a questão a apreciar seja de elevada complexidade ou, pelo menos, de complexidade jurídica superior ao comum, seja por força da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de um enquadramento normativo especialmente intricado ou da necessidade de concatenação de diversos regimes legais e institutos jurídicos, ou quando o tratamento da matéria tem suscitado dúvidas sérias quer ao nível da jurisprudência quer ao nível da doutrina. Já relevância social fundamental verificar-se-á quando a situação apresente contornos indiciadores de que a solução pode constituir uma orientação para a apreciação de outros casos, ou quando esteja em causa questão que revele especial capacidade de repercussão social, em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio. Por outro lado, a clara necessidade da admissão da revista para melhor aplicação do direito há-de resultar da possibilidade de repetição num número indeterminado de casos futuros e consequente necessidade de garantir a uniformização do direito em matérias importantes tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória – nomeadamente por se verificar a divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais e se ter gerado incerteza e instabilidade na sua resolução a impor a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa e tributária como condição para dissipar dúvidas – ou por as instâncias terem tratado a matéria de forma ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, sendo objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema» ( Cf., por todos, o acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo de 2 de Abril de 2014, proferido no processo n.º 1853/13, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/aa70d808c531e1d580257cb3003b66fc.).

2.1.4 Cumpre também ter presente que, como decorre do n.º 4 do art. 285.º do CPPT, «[o] erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova».

2.1.5 Convém ainda ter presente que a jurisprudência tem vindo a afirmar, uniforme e repetidamente, que, atento que, atento o carácter extraordinário da revista excepcional prevista no art. 285.º do CPPT (e no art. 150.º do CPTA), não pode este recurso ser utilizado para arguir nulidades do acórdão recorrido, devendo tais nulidades ser arguidas perante o tribunal recorrido mediante reclamação, nos termos do art. 615.º, n.º 4, do CPC ( Vide, a título de exemplo, os seguintes acórdãos da formação do n.º 6 do art. 285.º do CPPT:
- de 3 de Junho de 2020, proferido no processo com o n.º 343/14.6BEPRT-B, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/eb157c30c16c267d802585810030f0f8;
- de 1 de Julho de 2020, proferido no processo com o n.º 1460/10.7BELRA, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/de1cbacc46f1fa58802585a0004d2a45;
- de 16 de Fevereiro de 2022, proferido no processo com o n.º 39/11.0BEALM, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/9ec1ef94cc133cc1802587ec00449c1a.).

2.1.6 Referidos que ficaram os pressupostos da admissibilidade da revista excepcional e o seu âmbito abstracto, passemos a verificar, preliminar e sumariamente, se o recurso pode ser admitido (cfr. art. 285.º, n.ºs 1 e 6, do CPPT).

2.2 O CASO SUB JUDICE

2.2.1 Estamos perante uma impugnação judicial de uma liquidação de IRS respeitante ao ano de 2014 e às mais-valias apuradas pela venda de um imóvel.
Os sujeitos passivos dessa liquidação impugnaram a liquidação com três fundamentos, que se reconduzem todos eles a vício de violação de lei por erro nos pressupostos de direito; a saber:
i) quanto ao valor de aquisição considerado pela AT para o cálculo das mais-valias, pois defendem que o mesmo não pode ser apenas o valor do terreno que consta da matriz predial, devendo ser-lhe acrescidos os custos da construção;
ii) quanto ao valor de realização considerado pela AT no mesmo cálculo, pois sustentam que deve ser relevado o valor efectivamente recebido pela venda do imóvel, tal como declarado na respectiva escritura, e não o valor patrimonial do prédio constante da matriz;
iii) quanto à não-consideração pela AT do reinvestimento da mais-valia obtida com a venda do imóvel na aquisição de habitação própria e permanente.
A sentença julgou procedente o primeiro vício invocado pelos Impugnantes e, com esse fundamento, anulou (totalmente) a liquidação impugnada; mais deu como prejudicado o conhecimento dos demais fundamentos de impugnação judicial invocados na petição inicial.
Dessa sentença recorreu a AT para o Tribunal Central Administrativo Sul, que decidiu no seguinte sentido:
- considerou que a Recorrente (Fazenda Pública) tinha invocado a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, no que respeita às questões relativas aos vícios acima referidos sob os n.ºs ii) e iii) (do valor de realização e do reinvestimento, respectivamente) e, apreciando essa nulidade, deu-a por verificada, motivo por que considerou que devia conhecer, em substituição, como conheceu, dessas questões;
- conhecendo da questão do valor de realização, o Tribunal Central Administrativo Sul entendeu que a liquidação enfermava do vício que os Impugnantes lhe assacaram, uma vez que o valor a considerar não pode ser outro que não o valor que consta como preço na escritura de compra e venda, atento o disposto no n.º 2 do art. 44.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS), na interpretação subscrita pelo Tribunal Constitucional e pelo Supremo Tribunal Administrativo ( O acórdão recorrido cita o acórdão n.º 211/2017 do Tribunal Constitucional, proferido em 2 de Maio de 2017 no processo n.º 285/15, disponível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20170211.html e o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 23 de Junho de 2021, proferido no processo com o n.º 2681/15.1BEALM, disponível em https://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/5fbefedcb198f65480258703006076a6.), e o facto de a AT não pôr em causa que o mesmo seja o correspondente à realidade do negócio; em consequência, entendeu que se impõe a anulação da lei na parte em que considerou valor de realização superior;
- quanto à questão do reinvestimento, o Tribunal Central Administrativo Sul entendeu que não podia proceder-se à respectiva sindicância judicial, porque «a quantificação da matéria tributável subjacente à liquidação foi efectuada unicamente para determinar os ganhos sujeitos a imposto de rendimento, não compreendendo a sua fundamentação qualquer alusão ao disposto nos artigos 9.º e 10.º do CIRS», designadamente ao n.º 5 deste último artigo, na redacção vigente à data, e «[e]mbora as partes pareçam estar de acordo em introduzir na controvérsia dos autos a questão do reinvestimento da mais-valia obtida com a venda do imóvel»; isto porque «tal não se compreende na fundamentação do acto e em contencioso de mera anulação, como é o das impugnações judiciais, o tribunal apenas pode sindicar os aspectos de legalidade que se apreendem da fundamentação do acto»; por isso, concluiu: «Nesta linha de entendimento, embora o reinvestimento se trate de questão trazida à discussão dos autos, é certo (e, nessa medida, sempre teria de merecer pronúncia do tribunal), ela terá de ser julgada improcedente, uma vez que não apresenta qualquer relação com a fundamentação factual e jurídica do acto cuja legalidade se pretende ver sindicada pelo tribunal (aliás, a questão do reinvestimento coloca-se a jusante da questão da quantificação da matéria tributável, de que aqui tratamos)»;
- de seguida, passando ao conhecimento do recurso, que se referia ao erro de julgamento que a aí Recorrente (a Fazenda Pública) assacou à sentença recorrida por considerar que o reconhecido vício quanto ao valor de aquisição não impunha a anulação total da liquidação, mas apenas a anulação parcial desse acto na parte afectada, o Tribunal Central Administrativo Sul concedeu provimento ao recurso.
A final, decidiu o Tribunal Central Administrativo Sul nos seguintes termos:
«i. Conceder provimento ao recurso e revogar a sentença na parte recorrida e, consequentemente, anular parcialmente o acto impugnado;
ii. Julgar a sentença parcialmente nula e, conhecendo em substituição, julgar a impugnação procedente e anular o acto tributário impugnado na parte afectada de ilegalidade».

2.2.2 É desse acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul que vem interposto o presente recurso de revista.
Se bem interpretamos a posição dos Recorrentes, a sua discordância com o acórdão respeita apenas à solução que aí foi dada à questão do reinvestimento, mais concretamente, quanto à decisão no sentido da impossibilidade de conhecer do mérito da questão, impossibilidade que o Tribunal Central Administrativo Sul estribou na circunstância de se tratar de questão que, a seu ver, não tinha servido de fundamentação à liquidação impugnada e de, em sede de contencioso de anulação, o tribunal dela não poder conhecer, «uma vez que não apresenta qualquer relação com a fundamentação factual e jurídica do acto cuja legalidade se pretende ver sindicada pelo tribunal (aliás, a questão do reinvestimento coloca-se a jusante da questão da quantificação da matéria tributável, de que aqui tratamos)».
Segundo os Recorrentes, não é certo que a AT não tenha ponderado a questão, pois o reinvestimento foi por eles invocado em sede de procedimento e a respectiva questão foi «efectivamente disputada» entre eles e a AT «previamente à emissão da liquidação e sua impugnação», sendo que «[o] facto de o relatório da inspecção tributária não abordar a questão do reinvestimento não significa que a mesma não tenha sido abordada durante o procedimento que conduziu à liquidação impugnada e que não se esgotou na referida inspecção e respectivo relatório»; que assim é resulta dos elementos constantes dos autos e dos factos que foram dados como assentes pelas instâncias, de uns e doutros resultando «insofismavelmente que a questão do reinvestimento foi abordada e disputada previamente à emissão do acto de liquidação impugnado, que relembramos, é de 18-04-2018».
Ainda segundo os Recorrentes, nem sequer releva o facto de não terem oportunamente apresentado a declaração de reinvestimento, que, aliás, nunca foi o argumento utilizado pela AT para não aceitar o reinvestimento, que assentou essa não-aceitação, exclusivamente, na circunstância de a documentação apresentada, por falta de tradução para português, não o justificar. Isto, após interacção entre a AT e os ora Recorrentes em ordem à comprovação da afectação do imóvel que adquiriram na Alemanha a habitação própria e permanente, tudo em data anterior à liquidação impugnada.
Consideram, pois, que a pretensão da exclusão da tributação das mais-valias em função do reinvestimento foi formulada antes da liquidação, mais concretamente, consta da declaração de substituição apresentada em 21 de Novembro de 2016, enquanto a liquidação tem data de 18 de Abril de 2018.
Salientam ainda que, como resulta dos factos provados, estão verificados todos os requisitos estabelecidos pela lei em vigor à data – arts. 10.º, n.º 5, alíneas a) e b) e 11.º, n.º 6, alínea b), 1.ª parte, do CIRS, na redacção em vigor à data (que é a anterior à republicação do CIRS pela Lei n.º 82-E/2014, de 31 de Dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2015) – para que fossem excluídos de tributação os ganhos (mais-valias) em causa.
Invocam, pois, os Recorrentes que o Tribunal Central Administrativo Sul, ao não tomar conhecimento do mérito da questão do reinvestimento, privilegiando uma decisão formal, não só fez errado julgamento, como põe em causa o acesso à tutela jurisdicional efectiva.
Relativamente aos requisitos específicos de admissibilidade da revista, os Recorrentes invocam a pouca consistência do tratamento dado à questão pelas instâncias e a necessidade da admissão do recurso para melhor aplicação do direito.

2.2.3 Em face desta alegação, podemos desde já adiantar que se nos afigura ser de admitir a presente revista.
A questão de saber se o Tribunal Central Administrativo Sul deveria, ou não, ter conhecido da nulidade por omissão de pronúncia ( É duvidoso que a Fazenda Pública tenha suscitado junto do Tribunal Central Administrativo Sul a questão da nulidade por omissão de pronúncia [cfr. redacção dada à conclusão vertida sob a alínea D) do recurso que lhe foi endereçado] e que tivesse legitimidade para o fazer.) e, consequentemente, da questão do reinvestimento em sede de substituição, está fora do objecto do recurso. Tendo-se decidido pelo conhecimento da questão e não vindo o acórdão recorrido nessa parte, é, no entanto, discutível que esse conhecimento tenha sido efectuado em termos adequados. Vejamos:
Apesar de o acórdão recorrido ter entendido dever conhecer da questão da exclusão da tributação em função do reinvestimento e dela ter conhecido, eximiu-se à apreciação do mérito da questão com a seguinte fundamentação: «embora o reinvestimento se trate de questão trazida à discussão dos autos, é certo (e, nessa medida, sempre teria de merecer pronúncia do tribunal), ela terá de ser julgada improcedente, uma vez que não apresenta qualquer relação com a fundamentação factual e jurídica do acto cuja legalidade se pretende ver sindicada pelo tribunal (aliás, a questão do reinvestimento coloca-se a jusante da questão da quantificação da matéria tributável, de que aqui tratamos)».
Ora, sendo certo, como se afirma no acórdão recorrido, que «em contencioso de mera anulação, como é o das impugnações judiciais, o tribunal apenas pode sindicar os aspectos de legalidade que se apreendem da fundamentação do acto», não é líquido – bem pelo contrário, é altamente duvidoso – que a questão do reinvestimento não seja de considerar como integrando a fundamentação do acto. Note-se que os ora Recorrentes apresentaram declaração de substituição em que fazem referência ao reinvestimento como causa de exclusão da tributação das mais-valias em momento anterior à liquidação; note-se também que, ao longo do procedimento que concluiu com a liquidação ora impugnada, a questão foi objecto de amplo debate e que a AT optou por não relevar tal reinvestimento na liquidação ora impugnada porque considerou que os ora Recorrentes não tinham logrado a prova dos factos pertinentes por não terem apresentado a tradução para língua portuguesa dos documentos comprovativos [cfr. alínea FFF) dos factos provados]. Veja-se também, para além do mais, o teor do ofício remetido aos ora Recorrentes para o exercício do direito de audiência prévia [cfr. alínea DDD) dos factos provados].
Aliás, mesmo a admitir-se que a questão não integra a fundamentação do acto – o que ponderamos apenas para efeitos de argumentação – sempre veríamos como problemático que tal omissão, sendo certo que a questão foi debatida e decidida no procedimento que conduziu à liquidação, pudesse justificar a impossibilidade da sua sindicância em sede impugnação judicial da liquidação que não levou em conta o reinvestimento.
Estão, pois, reunidas as condições para a admissão da revista para melhor aplicação do direito, uma vez que a solução dada pelo acórdão recorrido à questão do reinvestimento – o Tribunal Central Administrativo Sul, conhecendo a questão do reinvestimento, entendeu não poder sindicar o mérito da mesma – se afigura requerer a intervenção deste Supremo Tribunal, enquanto órgão de cúpula do sistema, designadamente para que possa servir de orientação para o futuro em casos análogos.
Por tudo isto, afigura-se-nos que se impõe admitir a revista para que, como pedem os Recorrentes, este Supremo Tribunal possa pronunciar-se sobre a correcção do decidido pelo Tribunal Central Administrativo Sul quando entendeu não poder apreciar o mérito da questão do reinvestimento enquanto causa de exclusão da tributação.

2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:

I - O recurso de revista excepcional previsto no art. 285.º do CPTT não corresponde à introdução generalizada de uma nova instância de recurso, funcionando apenas como uma “válvula de segurança” do sistema, pelo que só é admissível se estivermos perante uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental, ou se a admissão deste recurso for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, incumbindo ao recorrente alegar e demonstrar os requisitos da admissibilidade do recurso.

II - É de admitir a revista relativamente à questão de saber se o mérito da questão do reinvestimento enquanto causa de exclusão das mais-valias obtidas com a venda um imóvel, debatida ao longo do procedimento e não relevada na liquidação, por a AT entender não estarem reunidos os respectivos requisitos, não pode ser apreciado judicialmente em sede de impugnação judicial deste acto com o fundamento de que «não apresenta qualquer relação com a fundamentação factual e jurídica do acto cuja legalidade se pretende ver sindicada pelo tribunal».


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3. DECISÃO

Em face do exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência da formação prevista no n.º 6 do art. 285.º do CPPT, em admitir o presente recurso.

Custas a determinar a final.


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Informe o Tribunal Judicial da Comarca de Faro - Juízo de Instrução Criminal de Portimão (Instrução n.º 217/16.6IDFAR), como solicitado pelo ofício com a referência ...19.

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Lisboa, 5 de Junho de 2024. – Francisco Rothes (relator) - Aragão Seia – Isabel Marques da Silva.