Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0708/13.0BEAVR
Data do Acordão:09/25/2019
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:CIRCULAR
MÉTODOS INDIRECTOS
ÓNUS DE PROVA
Sumário:Padece de ilegalidade o apuramento do lucro tributável em obediência à orientação constante no ponto 7. da Circular n.º 7/2004, de 30 de Março, da DSIRC, a menos que se demonstre a inviabilidade da determinação directa dos encargos financeiros suportados com a aquisição de participações sociais [cfr. arts. 85.º, n.º 1 e 87.º, n.º 1, alínea b), da LGT], recaindo o ónus de tal demonstração sobre a AT (cfr. art. 74.º, n.º 3, da LGT).
Nº Convencional:JSTA000P24899
Nº do Documento:SA2201909250708/13
Data de Entrada:05/02/2019
Recorrente:AT-AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A...., SGPS, S.A.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Reclamação para a conferência da decisão sumária que decidiu o recurso jurisdicional da sentença proferida no processo de impugnação judicial com o n.º 708/13.0BEAVR

1. RELATÓRIO

1.1 A Representante da Fazenda Pública junto deste Supremo Tribunal Administrativo, invocando o disposto no n.º 3 do art. 652.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável ex vi da alínea e) do art. 2.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), reclama para a conferência da decisão sumária por que o Relator negou provimento ao recurso que a Fazenda Pública interpôs recurso da sentença proferida no Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro que, julgando procedente a impugnação judicial deduzida pela sociedade acima identificada, anulou a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) do ano de 2008, na parte referente aos encargos financeiros com aquisições de participações sociais.

1.2 Se bem interpretamos o teor da reclamação, a Recorrente discorda da decisão sumária que, essencialmente, remeteu para a jurisprudência deste Supremo Tribunal. Depois de alegar em ordem à conclusão de que «pretende a Impugnante, na presente impugnação, quantificar através de um método de afectação real, os encargos financeiros declarados a acrescer ao lucro tributável atendendo à sua não dedutibilidade fiscal, por serem enquadráveis no disposto no n.º 2 do art. 32.º do EBF», considerou, em síntese:
(i) que os acórdãos «utilizados na fundamentação da sentença recorrida, e posteriormente na decisão sumária ora reclamada, resultam de uma realidade factual distinta daquela que é retratada nos presentes autos», pois, enquanto naqueles arestos «a aplicação do método para apuramento dos encargos financeiros a acrescer ao lucro tributável nos termos do n.º 2 do art. 32.º do EBF, conforme resulta da Circular n.º 7/2004, foi da iniciativa da Administração Tributária, uma vez que a impugnante não tinha declarados encargos financeiros não dedutíveis fiscalmente, nos termos do n.º 2 do artigo 32.º do EBF» – e foi por isso que o Supremo Tribunal Administrativo entendeu que «ao aplicar a Circular n.º 7/2004, a AT estaria aplicar métodos indirectos e como tal, caberia sobre a AT, o ónus da prova da impossibilidade de realização de uma avaliação por via directa, conforme o n.º 3 do art.º 74.º da LGT» –, na situação os autos «a aplicação do método para apuramento dos encargos financeiros a acrescer ao lucro tributável nos termos do n.º 2 do art.º 32.º do EBF, conforme resulta da Circular n.º 7/2004, foi da iniciativa da impugnante, quando apresentou a sua declaração de rendimentos – Modelo 22»;
(ii) que a decisão sumária não se pronunciou sobre a questão que a Recorrente elegeu como sendo aquela que cumpria dirimir no recurso, que era a de saber sobre quem recaía o ónus da prova da impossibilidade de realização de uma avaliação por via directa, designadamente, se podia fazer-se recair esse ónus sobre a AT «apesar da liquidação impugnada ser resultante da declaração de rendimentos apresentada por iniciativa da impugnante, com base em valores por esta quantificados (não obstante ter seguido as instruções previstas na Circular n.º 7/2004, os mesmos resultaram da sua opção já que não está obrigada às instruções administrativas da AT)», sendo que a situação nos acórdãos citados na decisão reclamada era diversa, pois aí «não foi questionada a possibilidade de poder utilizar a afectação real», enquanto «nos presentes autos, a Impugnante mencionou, na sua contestação, a possibilidade de recorrer ao uso do método de afectação real, não o tendo usado porque entendeu existir a imposição da instrução administrativa, a Circular n.º 7/2004».
Concluiu a reclamação com o pedido de que seja proferido acórdão que revogue a decisão sumária reclamada e, em substituição:
«Anule a decisão sumária que mantém a sentença recorrida e que anula o acto de autoliquidação impugnado, na sua totalidade; […] aprecie e determine que o ónus da prova, no caso dos autos, não recai sobre a AT; […] mande baixar os autos, no sentido da Impugnante vir apresentar prova do valor a quantificar (procedendo à sua afectação real) referente a encargos financeiros resultantes da aquisição de participações sociais e que de acordo como seu acto declarativo, são enquadráveis nos termos do n.º 2 do art. 32.º do EBF, e consequentemente, declarados como custos não aceites fiscalmente a acrescer ao lucro tributável, no sentido, de ser posteriormente rectificado o valor a considerar, para efeitos de autoliquidação».

1.3 A Reclamada não respondeu.

1.4 Cumpre apreciar e decidir.

* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO

Antes do mais, cumpre ter presente que, contrariamente ao que sustenta a Reclamante, não pode afirmar-se que «pretende a Impugnante, na presente impugnação, quantificar através de um método de afectação real, os encargos financeiros declarados a acrescer ao lucro tributável atendendo à sua não dedutibilidade fiscal, por serem enquadráveis no disposto no n.º 2 do art. 32.º do EBF».

Salvo o devido respeito, o que a Impugnante pretende é que seja anulada a autoliquidação de IRC do ano de 2006, na parte referente aos encargos financeiros com aquisições de participações sociais, pretensão que deduziu judicialmente depois de ter visto indeferidos, sucessivamente, a reclamação graciosa e o recurso hierárquico que interpôs.

Na verdade, na declaração de rendimentos que apresentou relativamente àquele ano, a impugnação, ora Reclamada, seguiu as instruções veiculadas pela AT através da Circular n.º 7/2004, de 30 de Março, da Direcção de Serviços do IRC (DSIRC), designadamente o ponto 7 da Circular n.º 7/2004, que instituiu um método indirecto, presuntivo, de cálculo dos encargos financeiros suportados com a aquisição de participações sociais.

É certo que, como afirma a Reclamante, a sociedade ora reclamada não estava obrigada a seguir as orientações genéricas veiculadas pela Circular n.º 7/2004, pois é sabido que apenas os serviços da AT a elas ficam vinculados, nos termos do n.º 1 do art. 68.º-A da Lei Geral Tributária (LGT), que dispõe: «A administração tributária está vinculada às orientações genéricas constantes de circulares, regulamentos ou instrumentos de idêntica natureza, independentemente da sua forma de comunicação, visando a uniformização da interpretação e da aplicação das normas tributárias».

A doutrina administrativa assim veiculada, sendo obrigatória para os serviços da AT, não é vinculativa para os tribunais nem para os sujeitos passivos. Na verdade, as ordens internas da AT, seja qual for a forma que revistam – “despachos genéricos”, instruções, circulares ou outra – não são fontes de Direito Fiscal «porquanto a força vinculativa de tais diplomas se acha circunscrita a um sector da ordem administrativa. E essa mesma força vinculativa resulta tão-somente da autoridade hierárquica dos agentes de onde provêm, e dos deveres de acatamento dos subordinados aos quais se dirigem» (SOARES MARTÍNEZ, Direito Fiscal, Almedina, 7.ª edição, pág. 111.). A doutrina nelas veiculada apenas poderá convencer de que fazem a melhor interpretação da lei em razão da sua fundamentação.
Apesar da sua natureza não vinculativa para os sujeitos passivos, se estes não as seguirem serão confrontados com os posteriores dissabores e incómodos decorrentes da correcção a que AT sempre estaria obrigada – em função dos princípios da igualdade e da boa fé (cf. art. 55.º da LGT) – pela referida Circular. Assim, como impressivamente ficou dito no acórdão de 8 de Março de 2017, proferido no processo com o n.º 227/16 (Disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/5704ee0d1f7f25b9802580df004e3eed.), «de nada lhe valeria [ao sujeito passivo] fazer de modo diferente porque, caso o fizesse, seria sempre corrigida a sua liquidação nos precisos termos daquelas orientações genéricas existentes».

Serve este intróito para salientar que mal se compreende e causa até alguma perplexidade que seja a AT a vir agora sustentar que o sujeito passivo não deveria ter seguido a doutrina administrativa por ela veiculada no ponto 7 da Circular n.º 7/2004.

Seja como for, como se deixou dito na decisão singular ora reclamada, apesar de ter sido a sociedade ora reclamada quem efectuou a liquidação ao abrigo da referida Circular, a AT recusou razão à Contribuinte quando esta, em sede de reclamação graciosa e de recurso hierárquico, pôs em causa a legalidade da doutrina por aquela veiculada e, consequentemente, do acto de autoliquidação na parte correspondente. E bem poderia a AT, nessa fase, ter pedido à sociedade para «vir apresentar prova do valor a quantificar (procedendo à sua afectação real) referente a encargos financeiros resultantes da aquisição de participações sociais e que de acordo como seu acto declarativo, são enquadráveis nos termos do n.º 2 do art. 32.º do EBF, e consequentemente, declarados como custos não aceites fiscalmente a acrescer ao lucro tributável, no sentido, de ser posteriormente rectificado o valor a considerar», pedido esse que agora quer que seja o tribunal a fazer, quando não ignora que os poderes judiciais são de mera sindicância da legalidade do acto tributário.

Mas, dizíamos, não o fez e, pelo contrário, “administrativizou” o acto de autoliquidação praticado pela sociedade (Neste sentido, CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, 5.ª edição, Almedina, Coimbra, 2009, págs. 300/401.). Como ficou dito na decisão sumária reclamada, apesar de ter sido a sociedade quem efectuou a liquidação ao abrigo da referida Circular (ou, como alega a Reclamante, «estamos perante uma liquidação da iniciativa do contribuinte e não da AT, atendendo a que a autoliquidação é a liquidação de um tributo que não é realizada por aquela, mas pelo sujeito passivo, ainda que seguindo as orientações vertidas numa determinada circular, à qual não deve, porém, qualquer tipo de obediência»), a AT recusou razão à Contribuinte quando esta, em sede de reclamação graciosa e de recurso hierárquico, pôs em causa a legalidade da doutrina por aquela veiculada; ora, só era possível à AT manter o acto de autoliquidação caso se demonstrasse a legalidade do recurso ao método indirecto previsto na Circular 7/2004, o que implicava que a AT fizesse prova da inviabilidade da determinação directa dos encargos financeiros suportados com a aquisição de participações sociais [cfr. arts. 85.º, n.º 1 e 87.º, n.º 1, alínea b), da LGT], como lhe compete (cfr. art. 74.º, n.º 3, da LGT).

Mal se compreende, pois, a alegação de que a decisão sumária não conheceu da questão do ónus da prova.

Finalmente, também não se compreende a alegação de que a situação fáctica no presente processo não tem correspondência com as situações de facto retratadas nos acórdãos para os quais remeteu a decisão sumária ora reclamada. Na verdade a situação fáctica é em tudo semelhante às que ficaram espelhadas no já referido acórdão deste Supremo Tribunal e bem assim no acórdão de 31 de Maio de 2017, proferido no processo com o n.º 1229/15 (Disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/38bdd8c5a148a1bf80258133003a1f82.). Note-se que uma coisa é a situação fáctica e outra, bem distinta, é a argumentação jurídica aduzida.
Por tudo o que deixámos dito, entendemos que a decisão sumária reclamada, que segue a jurisprudência deste Supremo Tribunal nela expressamente referida, não merece censura, antes sendo de confirmar.


2.2.2 CONCLUSÃO

Preparando a decisão, formulamos a seguinte conclusão:
Padece de ilegalidade o apuramento do lucro tributável em obediência à orientação constante no ponto 7. da Circular n.º 7/2004, de 30 de Março, da DSIRC, a menos que se demonstre a inviabilidade da determinação directa dos encargos financeiros suportados com a aquisição de participações sociais [cfr. arts. 85.º, n.º 1 e 87.º, n.º 1, alínea b), da LGT], recaindo o ónus de tal demonstração sobre a AT (cfr. art. 74.º, n.º 3, da LGT).
* * *
3. DECISÃO
Em face do exposto, indefere-se a reclamação.
Custas pela aqui Reclamante (cf. arts. 527.º, 529.º, 530.º, 539.º, do CPC, e art. 7.º, n.º 4, do RCP e Tabela II ao mesmo anexa), fixando-se a taxa de justiça em uma UC.
*
Lisboa, 25 de Setembro de 2019. – Francisco Rothes (relator) – Isabel Marques da Silva – Aragão Seia.