Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0159/23.9BALSB
Data do Acordão:06/26/2024
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CT
Relator:PEDRO VERGUEIRO
Descritores:RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
IUC
INCIDÊNCIA
Sumário:Para efeitos do disposto no artigo 3º nº 1 do CIUC, na redacção introduzida pelo D.L. nº 41/2016, de 01-08, responde pelo pagamento do imposto a pessoa em nome da qual está registado o veículo à data da verificação do facto tributário, independentemente de nessa data já ter ocorrido transmissão da propriedade para outra pessoa.
Nº Convencional:JSTA00071859
Nº do Documento:SAP202406260159/23
Recorrente:A... S.A. - SUCURSAL PT
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:MAIORIA COM 5 VOT VENC
Aditamento:
Texto Integral: ************************
Processo n.º 159/23.9BALSB (Recurso para Uniformização de Jurisprudência)



Acordam no Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. RELATÓRIO

“A... S.A. - Sucursal em Portugal”, devidamente identificada nos autos, inconformada com a decisão proferida nos autos de processo arbitral - Proc. nº 99/2023-T - que julgou improcedente o pedido de pronúncia arbitral deduzido pela mesma tendo em vista a declaração de ilegalidade de 17 actos de liquidação de Imposto Único de Circulação (“IUC”) referentes a 2022, no valor global de € 2.150,69, com a consequente revogação do indeferimento expresso total da reclamação graciosa n.º ...30 e parcial da reclamação graciosa n.º ...08 e pagamento de juros indemnizatórios, veio interpor Recurso para Uniformização de Jurisprudência ao abrigo do disposto nos artigos 25º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT) e no artigo 152º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), aplicável ex vi do artigo 25º nº 3 do RJAT, com base em oposição de acórdãos, apontando como decisão fundamento, a decisão arbitral proferida no âmbito do Proc. n.º 55/2023-T, já transitada em julgado.

Formulou nas respectivas alegações, as seguintes conclusões que se reproduzem:

“ (…)

A. O presente recurso vem interposto do acórdão arbitral proferido no processo n.º 99/2023-T pelo Tribunal Arbitral, constituído sob a égide do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), notificado à aqui Recorrente em 26-07-2023 (doravante, «Decisão Recorrida»). Entende-se que está em contradição com a jurisprudência do tribunal arbitral no processo arbitral n.º 55/2023 T (doravante, “Decisão Fundamento”) relativamente a uma questão fundamental de direito que foi apreciada pelo Tribunal a quo.

B. A questão fundamental de direito em contradição nas duas decisões (Decisão Recorrida e Decisão Fundamento) refere-se à determinação de quem deve ser considerado sujeito passivo do imposto, de acordo com o previsto no n.º 1 do artigo 3.º do Código do Imposto Único de Circulação («IUC», na redação atual, atribuída pelo Decreto-Lei n.º 41/2016 de 01/08).

C. O fundamento dos atos tributários que subjazem a ambas as ações assenta no facto de que a Recorrente, que já foi proprietária e entidade locadora dos veículos automóveis, deve ser considerada responsável pelo pagamento dos IUC em causa depois ainda que já não seja titular dos veículos, com base numa suposta presunção inilidível de incidência subjetiva do imposto (ou, nas palavras da AT, opção do legislador), prevista no artigo 3.º, n.º 1 do Código do IUC.

D. Ora, na Decisão Recorrida, o Tribunal Arbitral para solucionar esta questão decidiu que a nova redação do n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC estabelece que o preenchimento da norma de incidência subjetiva do imposto afere-se em função do elemento registal, não relevando o facto de as propriedades das viaturas já não estarem, há muito, na esfera da Recorrente.

E. Em oposição, a Decisão Fundamento considerou, com base em pressupostos fácticos e jurídicos idênticos, que o artigo 3.º, n.º 1 do Código do IUC estabelece uma presunção ilidível de quem deve ser considerado sujeito passivo do imposto.

F. Podem elencar-se os requisitos essenciais, no plano formal, para a admissão por este douto Supremo Tribunal do presente recurso: a. a interposição do recurso no prazo de 30 dias contados da notificação da decisão arbitral recorrida - o prazo de interposição de recurso, 30 dias, terminaria, por força das férias judiciais, no dia 30 de setembro de 2023, um sábado, transitando o último dia do prazo para o dia útil seguinte, portanto, 2 de outubro; b. a invocação e identificação da decisão arbitral que se encontre em oposição com a decisão recorrida (i.e., a decisão arbitral fundamento) - as duas decisões encontram-se plenamente identificadas na peça. c. trânsito em julgado da decisão arbitral fundamento-tendo esta sido proferida dia 7 de junho de 2023, e não tendo a Requerente sido notificada da interposição de qualquer recurso por parte da Autoridade Tributária, o trânsito em julgado já ocorreu por força da extinção dos prazos admissíveis para interposição de recurso.

G. Quanto à oposição entre as Decisões podemos afirmar que, ao passo que na Decisão Recorrida o tribunal arbitral considerou absolutamente fulcral a retificação do direito registal, tendo em vista a publicidade da propriedade do veículo, e a consequente determinação do sujeito passivo adstrito ao pagamento do imposto; a decisão fundamento considerou que o sujeito passivo de IUC deverá ser o proprietário efetivo do bem e não o proprietário formal, admitindo-se, assim, prova em contrário ao que consta do Registo Automóvel.

H. Esclarecidos os termos do presente recurso, cabe apreciar, quanto à questão de fundo.

Vejamos:

I. Nem mesmo durante a vigência de um contrato de LSG (vulgo, leasing) ou de um ALD a entidade locadora é considerada sujeito passivo de imposto.

J. Logo, por maioria de razão, a partir do momento em que os anteriores locatários adquirem os veículos automóveis (ou até terceiros em casos pontuais), é apenas a estes - já na qualidade de (novos) proprietários dos mesmos -, que incumbe pagar os IUC e demais encargos associados à luz do princípio da equivalência, como fundamento e limite deste regime, conforme decidiu o Tribunal arbitral na Decisão Fundamento.

K. Ademais, não é possível tecer que o n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC estabelece uma «presunção inilidível de incidência subjetiva» do imposto com base tão só no registo automóvel, desde logo, porque os efeitos do registo automóvel e o princípio da equivalência não apontam nessa direção, mas também porque esta proposta hermenêutica não se coaduna com os elementos gerais da interpretação das leis, nos termos dos artigos 11.º da Lei Geral Tributária («LGT») e 9.º do Código Civil («CC»).

L. Em primeiro lugar, denote-se que o registo de propriedade automóvel não é condição de eficácia do contrato de compra e venda do veículo, mas tem somente de eficácia declarativa, tal como se pronunciou amplamente Agostinho Guedes no artigo «A incidência subjetiva do Imposto Único de Circulação no âmbito dos contratos de locação financeira ou outros contratos de locação com opção de compra», publicado na Revista de Ciências Empresariais e Jurídicas, n.º 23 (2013).

M. A falta de registo não afeta a validade do contrato de compra e venda, mas apenas a sua eficácia, e, mesmo esta, unicamente perante terceiros de boa-fé para efeitos do registo - posição que a AT não assume in casu.

N. Ademais, é uma consequência direta do princípio da equivalência que o sujeito do passivo do imposto deverá ser o real proprietário do veículo e não o proprietário registado, porquanto é o primeiro que causa os custos ambientais e viários que este tributo comutativo visa compensar.

O. Precisamente conforme ditou a Decisão Fundamento, a exclusão de tributação do real proprietário como sujeito passivo do imposto, faria surgir uma oneração fiscal na esfera de alguém que não causa danos viários e ambientais com o veículo em questão.

P. Noutra senda, sempre se dirá que com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 59/72, de 30 de dezembro, o primeiro a regular esta matéria, até ao Decreto-Lei n.º 116/94, de 3 de maio, o último a anteceder o Código do IUC aprovado pela Lei n.º 22-A/2007, de 29 de Junho, o legislador consagrou a presunção de serem as pessoas em nome das quais os veículos automóveis se encontravam registados que devem ser reconhecidas como sujeitos passivos, pelo que fica claro que a legislação fiscal teve, desde sempre, o objetivo de tributar o verdadeiro e efetivo proprietário e utilizador do veículo.

Q. Em quinto lugar, é o próprio Código do IUC que prevê normas que apelam a realidades não registadas, como o n.º 2 do artigo 2.º e o n.º 2 do artigo 6.º, ambos daquele diploma legal, mas sim numa realidade de facto, «a permanência em território nacional por período superior a 183 dias, seguidos ou interpolados, em cada ano civil, de veículos não sujeitos a matrícula em Portugal e que não sejam veículos de mercadorias de peso bruto igual ou superior a 12 toneladas».

R. Assim, o n.º 1 do artigo 3.º do CIUC configura uma presunção ilidível, que admite sempre prova em contrário, porquanto a pessoa que está inscrita no registo como proprietária do veículo automóvel e que, por essa razão é considerada - e bem - pela AT como sujeito passivo de IUC, pode, no entanto, apresentar elementos de prova com vista a demonstrar que o titular da propriedade é outrem, para quem a propriedade foi transferida antes do imposto se tornar exigível.

S. Neste sentido pronunciaram-se diversas decisões arbitrais, designadamente, as prolatadas no âmbito dos Processos n.ºs 333/2018- T, 236/2019-T, 56/2023-T, 283/2019-T.

T. Quanto à violação do princípio da equivalência princípio norteador da cobrança do IUC, este imposto deverá adequar-se ao «custo que o sujeito passivo gera à administração ou ao benefício que a administração lhe proporciona», com repercussões nas bases de incidência: por um lado, a incidência objetiva deve ser estreita e ad rem ou específica e, por outro, a incidência subjetiva também deverá ser estreita, contanto que, em traços gerais, o imposto deverá equivaler a um montante próximo do custo ou do valor a compensar.

U. Os tributos baseados no princípio da equivalência deverão ter como pressuposto a compensação da comunidade pela criação de um custo ou o aproveitamento de um benefício pelos sujeitos passivos e, nessa medida, o custo e o benefício respetivamente provocado ou aproveitado deverão constituir o limite da quantificação dos tributos nele fundados.

V. Concretizando, na determinação da incidência subjetiva do imposto, este princípio possibilita que se tributem as pessoas que presumivelmente aproveitaram o benefício ou originaram o custo, sendo aqui exigível um grau de certeza na presunção tanto maior quanto menor for a base de incidência daquele tributo comutativo, sem prejuízo da praticabilidade estar sujeita a um controlo de proporcionalidade.

W. Ora, ainda que este princípio admita limitações por força das implicações ínsitas à simplicidade na cobrança de imposto, a presunção inilidível, alvitrada pela AT, de que o proprietário do veículo é também o sujeito passivo de imposto, viola frontalmente os ditames constitucionais.

X. Em síntese, e por maioria de razão, o entendimento de que o n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC consagra uma presunção inilidível que a AT tanto pregou de que o sujeito passivo é, sem prova admitida em contrário, a pessoa em nome da qual o mesmo está registado é uma interpretação totalmente contrária à lógica subjacente ao artigo 13.º da CRP, tese defendida veementemente pelo próprio Tribunal Constitucional.

O recurso foi admitido por despacho de 23-10-2023.

Foi cumprido o disposto no artigo 25º nº 5 do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária.


A Recorrida Autoridade Tributária e Aduaneira não apresentou contra-alegações.

O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de que se mostram reunidos os requisitos para o conhecimento do mérito do presente recurso para Uniformização de Jurisprudência e, confirmando-se a Decisão arbitral recorrida, entende que a uniformização de jurisprudência relativamente à questão supra enunciada deverá ser feita no seguinte sentido: - Para efeitos do disposto no artigo 3º, nº1, do CIUC, na redacção introduzida pelo D.L. nº 41/2016, de 1 de agosto, responde pelo pagamento do imposto a pessoa em nome da qual está registado o veículo à data da verificação do facto tributário, independentemente de nessa data já ter ocorrido transmissão da propriedade para outra pessoa.

Cumprido o estipulado no n.º 2 do artigo 92.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, cumpre decidir, em conferência, no Pleno da Secção.




2. FUNDAMENTOS

2.1. DE FACTO

Neste domínio, consta da decisão arbitral recorrida o seguinte:

“…

A. A Requerente dispõe de legitimidade, na medida em que, por sucessão universal resultante de uma operação de fusão, adquiriu os direitos e obrigações decorrentes dos contratos de locação financeira ou operacional de viaturas automóveis, relativamente às quais foram emitidas as liquidações de IUC controvertidas;

B. A Requerente celebra, com os seus clientes, contratos de locação financeira ou operacional de viaturas automóveis, nos termos dos quais estes últimos adquirem, respectivamente, a obrigação ou a opção de adquirir essas viaturas no fim do período contratual;

C. No ano de 2022 foram emitidas à Requerente as seguintes liquidações de IUC relativamente às seguintes viaturas automóveis que foram objecto de contratos de locação financeira ou operacional:

[IMAGEM]

D. As viaturas automóveis foram alienadas pela Requerente aos locatários, nas seguintes datas, mediante a emissão de uma factura:

[IMAGEM]

E. Apesar das referidas alienações, as liquidações de IUC referentes a 2022 foram emitidas à Requerente;

F. Nem os proprietários nem a Requerente cuidaram de actualizar o registo automóvel, razão pela qual esta última continua, perante a Conservatória do Registo Automóvel, a figurar como proprietária das viaturas;

G. A Requerente apresentou as reclamações graciosas n.º …… e n.º ……, através das quais solicitou a anulação integral da liquidação de IUC supra identificadas, com fundamento na prévia transferência de propriedade das viaturas automóveis;

H. As liquidações referidas foram, respectivamente, indeferidas parcial e totalmente;

I. Dessas decisões de indeferimento quanto às 17 supra citadas notas de liquidação de IUC, foi apresentado o presente pedido de pronúncia arbitral.

Por sua vez, a decisão arbitral fundamento relevou a seguinte matéria de facto:
“(…)
A Requerente é uma instituição de crédito que se dedica à actividade de locação financeira automóvel.

Para o desenvolvimento dessa actividade, celebra contratos com os seus clientes que obedecem a um guião comum, próprio deste tipo de financiamentos.

Depois de contactada pelo cliente - que, nessa fase, escolheu já o tipo de veículo automóvel que pretende adquirir, as suas características (marca, modelo, acessórios, etc.), e inclusive o seu preço - adquire a viatura ao fornecedor que lhe for indicado pelo cliente, e procede, de seguida, à sua entrega ao cliente, que, então, assume a qualidade de locatário. De acordo com cada um destes contratos, o financiamento concedido ao locatário pela Requerente é restituído em prestações mensais, sob a forma de rendas.

Uma vez liquidadas as rendas, e assim alcançado o termo do correspondente contrato, o locatário tem o direito de adquirir o bem locado mediante o pagamento do valor residual da viatura automóvel, acrescido de despesas e IVA.

Os veículos automóveis catalogados no documento identificado como Anexo A e junto com o pedido de pronúncia arbitral foram, sem excepção, objeto de contratos de aluguer de longa duraçaÞo (“ALD”) ou de locação financeira (“LSG”) celebrados entre a Requerente e os clientes ali identificados (cf. contratos juntos com o pedido de pronúncia arbitral como documentos n.ºs 1 a 39).

No final dos contratos, foram emitidas as facturas de venda aos clientes para pagamento do valor residual do bem locado, acrescido de despesas e IVA (cf. documentos n.ºs 40 a 78 juntos com o pedido de pronúncia arbitral).

A Requerida liquidou IUC relativo ao ano de 2021 sobre vários veículos automóveis que foram detidos pela Requerente.

A Requerente efectuou o pagamento das liquidações.

Os veículos que deram origem a liquidações de IUC em causa neste processo e que constam da listagem reproduzida no Anexo A junto com o pedido de pronúncia arbitral já tinham sido alienados pela Requerente na data em que ocorreu o facto gerador do imposto.


«»

2.2. DE DIREITO

2.2.1.- Dos requisitos de admissibilidade do recurso por oposição de acórdãos

O presente Recurso para Uniformização de Jurisprudência, interposto ao abrigo do disposto nos artigos 25º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT) e no artigo 152º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), aplicável ex vi do artigo 25º nº 3 do RJAT, respeita à decisão arbitral proferida no processo nº 99/2023-T - que julgou improcedente o pedido de pronúncia arbitral deduzido por “A... S.A. - Sucursal em Portugal” tendo em vista a declaração de ilegalidade de 17 actos de liquidação de Imposto Único de Circulação (“IUC”) referentes a 2022, no valor global de € 2.150,69, com a consequente revogação do indeferimento expresso total da reclamação graciosa n.º ...30 e parcial da reclamação graciosa n.º ...08 e pagamento de juros indemnizatórios, com base em oposição de acórdãos, apontando como decisão fundamento, a decisão arbitral proferida no âmbito do Proc. n.º 55/2023-T, já transitada em julgado.

Nos termos do n.º 2 do referido art. 25.º do RJAT, na redacção aplicável, «[a] decisão arbitral sobre o mérito da pretensão deduzida que ponha termo ao processo arbitral é […] susceptível de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, com outra decisão arbitral ou com acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo ou pelo Supremo Tribunal Administrativo»; dispõe o n.º 3 do mesmo artigo que a esse recurso «é aplicável, com as necessárias adaptações, o regime do recurso para uniformização de jurisprudência regulado no art. 152.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, contando-se o prazo para o recurso a partir da notificação da decisão arbitral».

Como já foi enunciado, o presente recurso tem fundamento na oposição de julgados, impondo-se aferir previamente da verificação dos pressupostos substantivos de que depende o conhecimento do seu mérito. Que são, esquematicamente, os seguintes:

[1.º] que a decisão recorrida tenha apreciado o mérito da pretensão deduzida e tenha posto termo ao processo arbitral (artigo 25.º, n.º 2, primeira parte, do Regime Jurídico da Arbitragem em matéria Tributária – doravante identificado pela sigla “RJAT”);

[2.º] que exista oposição quanto à mesma questão fundamental de direito, com outra decisão arbitral ou com acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo ou pelo Supremo Tribunal Administrativo (artigo 25.º, n.º 2, segunda parte, do mesmo diploma);

[3.º] que a orientação perfilhada na decisão arbitral não esteja de acordo com a jurisprudência mais recente consolidada do Supremo Tribunal Administrativo [artigo 152.º, n.º 3, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aplicável a coberto do n.º 3 do artigo 25.º daquele outro diploma].

[4.º] que o acórdão fundamento tenha transitado em julgado (artigo 688.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 140.º, n.º 3, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos), situação que se verifica neste caso, não existindo qualquer dissídio em relação a este elemento.

Avançando, diga-se ainda como se refere no Ac. deste Tribunal (Pleno) de 4 de Junho de 2014, Proc. nº 01763/13, www.dgsi.pt, para apurar da existência de contradição sobre a mesma questão fundamental de direito é exigível “que se trate do mesmo fundamento de direito, que não tenha havido alteração substancial da regulamentação jurídica e que se tenha perfilhado solução oposta nos dois arestos: o que, como parece óbvio, pressupõe a identidade de situações de facto, já que sem ela não tem sentido a discussão dos referidos pressupostos. Sendo que a oposição também deverá decorrer de decisões expressas, que não apenas implícitas. (Cfr., neste sentido, os acórdãos do Pleno da Secção de Contencioso Tributário, de 25/3/2009, rec. nº 598/08 e do Pleno da Secção de Contencioso Administrativo, de 22/10/2009, rec. nº 557/08; bem como Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3ª ed., Coimbra, Almedina, 2010, pp. 1004 e ss.; e Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário, Anotado e Comentado, Vol. IV, 6ª ed., Áreas Editora, 2011, anotação 44 ao art. 279º pp. 400/403.)”.

Tal significa que para apurar da existência de contradição sobre a mesma questão fundamental de direito entre o Acórdão recorrido e o Acórdão fundamento devem adoptar-se os critérios já firmados por este STA, quais sejam:

- Identidade da questão de direito sobre que recaíram as decisões em confronto, que supõe estar-se perante uma situação de facto substancialmente idêntica;

- Que não tenha havido alteração substancial da regulamentação jurídica;

- Que se tenha perfilhado, nos dois arestos, solução oposta;

- A oposição deverá decorrer de decisões expressas, não bastando a pronúncia implícita ou a mera consideração colateral, tecida no âmbito da apreciação de questão distinta.

Analisando:

A Recorrente começa por identificar a questão fundamental de direito, objecto de contradição entre a decisão arbitral recorrida e a decisão arbitral fundamento nos seguintes termos: determinação de quem deve ser considerado sujeito passivo do imposto, de acordo com o previsto no nº 1 do artigo 3º do Código do Imposto Único de Circulação («IUC», na redacção actual, atribuída pelo Decreto-Lei n.º 41/2016 de 01/08).

Por outro lado, a Recorrente pondera que, enquanto na Decisão Recorrida o tribunal arbitral considerou absolutamente fulcral a rectificação do direito registal, tendo em vista a publicidade da propriedade do veículo, e a consequente determinação do sujeito passivo adstrito ao pagamento do imposto, a Decisão fundamento considerou que o sujeito passivo de IUC deverá ser o proprietário efectivo do bem e não o proprietário formal, admitindo-se, assim, prova em contrário ao que consta do Registo Automóvel, referindo que a redacção actual do “… nº 1 do artigo 3º do CIUC configura uma presunção ilidível, que admite sempre prova em contrário, porquanto a pessoa que está inscrita no registo como proprietária do veículo automóvel e que, por essa razão é considerada - e bem - pela AT como sujeito passivo de IUC, pode, no entanto, apresentar elementos de prova com vista a demonstrar que o titular da propriedade é outrem, para quem a propriedade foi transferida antes do imposto se tornar exigível”, devendo ser “Uniformizado o entendimento perfilhado na Decisão Fundamento do Tribunal Arbitral, constituído sob a égide do CAAD, no processo n.º 55/2023-T”.

Pois bem, a decisão arbitral recorrida foi proferida na sequência do pedido de pronúncia arbitral para declaração de ilegalidade de diversos actos de liquidação de IUC referentes a 2022 e, debruçando-se sobre a questão do sujeito passivo deste imposto, considerou que a partir da vigência da nova redacção do nº 1 do art. 3º do CIUC, ou seja 02-08-2016, a incidência subjectiva do IUC passou a recair sobre a pessoa, singular ou colectiva, em nome da qual está registada a propriedade da viatura automóvel.

Ou seja, a decisão arbitral recorrida considerou que a publicação e entrada em vigor do D.L. nº 41/2016, de 01-08, determinou uma importante alteração na regra de incidência subjectiva do IUC, concretamente, o sujeito passivo passou a ser a pessoa, singular ou colectiva, em nome da qual está registada, na Conservatória do Registo Automóvel (CRA), a propriedade de uma dada viatura automóvel, sendo que não está em causa a presunção de propriedade, mas a de considerar que o sujeito passivo é a pessoa que se apresenta como proprietário na CRA, sendo que o mesmo dispõe sempre da faculdade de solicitar a alteração do registo e, dessa forma, afastar a sua condição de sujeito passivo.

Deste modo, por opção legislativa diversa da anterior, uma vez retirada a referência aos “proprietários dos veículos, considerando-se como tais”, a incidência subjectiva do IUC passou do proprietário do veículo para a pessoa em nome da qual esse veículo está registado, não mais se colocando a dicotomia entre a propriedade real e presumida (ou publicitada via direito registal, tendo alinhado os seguintes elementos:
Não estamos, como na vigência da redacção anterior, perante uma presunção ilidível, mas antes na presença de uma opção legislativa diversa da anterior, conforme o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 21/02/2019. Com efeito, o legislador pretendeu “(…) que seja sujeito passivo de imposto o proprietário constante do registo, independentemente de poder não ser o titular do direito real de propriedade sobre o veículo”.

Este entendimento sobre a relevância da inscrição no registo automóvel para a definição da sujeição subjetiva ao IUC, é também acolhido, em idênticos termos, no Acórdão de 20/09/2018, do Tribunal Central Administrativo Norte (processo n.º 01270/14.2BEPNF), em que se sustenta que “da redação dada ao n.º 1 do artigo 3.º do CIUC pelo Decreto-Lei n.º 41/2016 conclui-se que veio o legislador afastar qualquer presunção legal quanto a quem pode ser considerado proprietário de um veículo, vindo antes determinar que passará a ser sujeito passivo do imposto a pessoa em nome da qual os veículos se encontrem registados”.

Em idêntico sentido se pronuncia o mesmo tribunal no Acórdão de 03/10/2018 (processo n.º 01271/14.0BEPNF), nos seguintes termos: “Daqui resulta, que a incidência subjetiva do IUC, nos termos do art. 3.º, n.º 1, do CIUC recai sobre «(...) as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos, independentemente da propriedade efetiva do veículo e da sua posse.» O sujeito passivo é a pessoa em nome de quem está registada a propriedade do veículo, independentemente de ser ou não o seu proprietário e/ou possuidor. A incidência subjetiva basta-se com o mero registo do direito de propriedade em nome do sujeito passivo, sendo suficiente o nome da pessoa em que se encontra registada a propriedade do veículo, independentemente de ela ser ou não a proprietária e possuidora efetiva do veículo no ano a que respeita o IUC, designadamente no caso das situações de venda do veículo sem atualização do registo de propriedade.”” E, sintetiza em jeito conclusivo aquela decisão recorrida, que: “a nova (2016) redacção do n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC estabelece que a propriedade de uma viatura automóvel não constitui o elemento de preenchimento da norma de incidência subjectiva do imposto. Essa incidência passou a aferir-se em função do elemento registal.

Por seu lado, a decisão arbitral fundamento foi proferida na sequência do pedido de pronúncia arbitral para declaração de ilegalidade de diversos actos de liquidação de IUC respeitantes a 2021, sendo que a questão em causa consistia em saber se se encontravam preenchidos os pressupostos de incidência subjectiva previstos no art. 3º do CIUC, porque nas datas da sua exigibilidade as viaturas já não eram propriedade da impugnante, por as ter vendido a anteriores locatários, tendo sido entendido que o artigo 3º nº 1 do Código do IUC continua a estabelecer uma presunção ilidível, nos termos do art. 73º da LGT, de quem deve ser considerado sujeito passivo do imposto, em face da inserção do mesmo num conjunto normativo onde se prevê que todas as presunções consagradas em normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário, concluindo que o sujeito passivo do imposto não deve ser o proprietário formal do veículo, mas sim o seu efectivo proprietário, permitindo-se ao titular inscrito no registo automóvel a possibilidade de apresentar elementos probatórios bastantes para a demonstração de que o efectivo proprietário é pessoa diferente da que consta do registo.

Nesta sequência, cabe indagar acerca da verificação ou não da substancial identidade factual entre as decisões arbitrais aqui em confronto, sendo que, na situação em apreço, importa ponderar os seguintes elementos:

- Estamos perante duas sociedades que desenvolvem actividade comercial em ALD e Leasing de viaturas automóveis;

- As duas sociedades celebram, com os seus clientes, contratos de locação financeira ou operacional de viaturas automóveis, nos termos dos quais estes últimos adquirem, respectivamente, a obrigação ou a opção de adquirir essas viaturas no fim do período contratual;

- As duas sociedades promoveram a alienação de determinadas viaturas mas, por lapso ou outra razão, continuaram com o registo das mencionadas viaturas em seu favor, por não ter sido promovido a respectiva alteração na titularidade registal;

- As duas sociedades já não eram proprietárias das ditas viaturas à data em que, nos termos do Código do IUC, se verificou o evento tributário anual de IUC e se tornou devido o respectivo imposto (respectivamente, anos de 2021 [decisão arbitral fundamento] e 2022 [decisão arbitral recorrida]);
- Está em causa, em ambas as decisões em confronto, o IUC e o respectivo Código na versão resultante da alteração legislativa operada pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de Agosto (doravante, versão pós-2016), a qual, designadamente, alterou a redacção do respetivo artigo 3.º, n.º 1, o qual passou a dispor que: “São sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos.

Atenta a manifesta similitude factual, importa reconhecer que a própria questão fundamental de Direito não deixa de ser idêntica: trata-se de saber qual o sentido a dar à alteração legislativa ao artigo 3.º do Código do IUC, ocorrida em 2016 e já supra referida e a respeito desta questão, pronunciaram-se as decisões ora em confronto em sentidos claramente opostos, na medida em que, a decisão arbitral recorrida pronunciou-se no sentido de que, na versão pós-2016, os sujeitos passivos de IUC não são já os proprietários dos veículos, mas, antes, os entes que como tal figurem no cadastro do registo automóvel, enquanto que a decisão arbitral fundamento entendeu que os sujeitos passivos continuam a ser os proprietários das viaturas, atenta a proibição de presunções ilidíveis em sede de normas incidência de imposto - cfr. artigo 73.º da LGT, que dispõe: “As presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário.

Por último, diga-se que não se pode afirmar que a orientação perfilhada no acórdão arbitral recorrido esteja de acordo com jurisprudência recente e consolidada do S.T.A., no que diz respeito à questão de direito que ora nos ocupa.

Em conclusão, mostram-se reunidos os requisitos do recurso para uniformização de jurisprudência previsto no art. 25º nº 2 do R.J.A.T. e no art. 152º do C.P.T.A., pelo que se passará ao conhecimento do mérito do recurso.

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2.2.2. - Do Mérito do Recurso

Como já ficou dito, a Recorrente identifica a questão fundamental de direito, objecto de contradição entre a decisão arbitral recorrida e a decisão arbitral fundamento nos seguintes termos: saber se o artigo 3.º do Código do Imposto Único de Circulação, na sua redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 41/2016 de 1 de agosto, contempla ou não uma presunção legal iuris tantum, ou seja, susceptível de prova em contrário, sobre quem se considera ser o proprietário do veículo, nomeadamente se a pessoa em nome da qual está registado o veículo pode afastar a responsabilidade pelo pagamento do imposto se fizer prova de que à data da verificação do facto tributário o veículo já não lhe pertencia.

Nesta matéria, cumpre notar que com a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 41/2016, de 01-08, o nº 1 do artigo 3º do CIUC, passou a ter a seguinte redacção:

“Artigo 3.º

Incidência Subjetiva

1 - São sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos.”.

Em momento anterior, a jurisprudência e a doutrina maioritárias tinham por adquirido que o art. 3º nº 1 do CIUC consagrava uma presunção registral susceptível de prova em contrário (cfr. neste sentido Acórdãos deste Supremo Tribunal de 18-04-2018, Proc. nº 0206/17 e de 03-06-2020, Proc. nº 0467/14.0BEMDL, ambos disponíveis em www.dgsi.pt e na doutrina, João Ochôa, “Breve reflexão sobre a incidência subjectiva do imposto único de circulação”, Cadernos de Justiça Tributária, Out/Dez 2014, pág. 3 e seguintes).

No preâmbulo do citado D.L. nº 41/2016, de 01-08 que introduziu a nova redação ao artigo 3º do CIUC, o legislador deixou expresso que “Finalmente, o artigo 169º da Lei do Orçamento do Estado para 2016 autoriza que se efetuem, também, alterações ao Código do Imposto Único de Circulação. Sendo estas, igualmente, conexas com a necessidade de ultrapassar dificuldades interpretativas que surgiram com redações anteriores deste Código, importa clarificar-se quem é o sujeito passivo do imposto”.

Neste ponto, deve dizer-se que, apesar do enunciado poder prestar-se a outras interpretações, é hoje pacífico que, como dá nota, o já referido Acórdão deste Supremo Tribunal de 03-06-2020, Proc. nº 0467/14.0BEMDL, www.dgsi.pt, “… o Governo não atribuiu, no Decreto-Lei n.º 41/2016, natureza interpretativa à alteração que introduziu no dispositivo em causa. Pela simples razão de que atribuiu no mesmo diploma natureza interpretativa a diversas outras disposições e não deixou de o anunciar expressamente no preâmbulo e o consignar expressamente no texto legislativo. O que não fez quanto à norma em causa.

Em segundo lugar, sendo embora verdade que a natureza interpretativa da norma pode ser revelada no facto de recair sobre matéria em que existam fortes divergências, documentadas na jurisprudência e/ou na doutrina, já assim não é se o sentido da lei nova vem ao arrepio da jurisprudência uniformizada ou consolidada sobre o âmbito interpretativo da lei antiga. Como refere J. BAPTISTA MACHADO (in «Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador», Almedina 1990, págs. 246/247), «se entretanto se formou uma corrente jurisprudencial uniforme que tornou praticamente certo o sentido da norma antiga, então a LN que venha a consagrar uma interpretação diferente da mesma norma já não pode ser considerada realmente interpretativa».

Ora, embora tenha existido, inicialmente, alguma controvérsia doutrinária e na jurisprudência arbitral (devidamente descrita no douto parecer do Ex.mo Sr. Procurador Geral Adjunto e para o qual ora remetemos), a jurisprudência dos tribunais superiores tem respondido de forma uniforme a esta questão e deve considerar-se consolidada no sentido que aqui se toma. …”

Assim, neste domínio, o legislador, porventura em função do entendimento defendido pela AT no sentido de que, razões de eficácia na cobrança e arrecadação do IUC, impunham assentar o procedimento de liquidação do imposto nos dados do registo automóvel, elegendo como sujeito passivo a pessoa que nele figure como titular do direito de propriedade da viatura.

E, na verdade, se a redacção anterior partia de uma presunção da titularidade da viatura em função do respectivo registo, - “considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados” -, possibilitando que o titular inscrito no registo infirmasse essa titularidade e nessa medida afastasse a responsabilidade pelo pagamento do imposto, a redacção actual e aplicável no caso concreto dos autos deixou deliberadamente - atentos os propósitos do legislador manifestados no preâmbulo do D.L. nº 41/2016, de 01-08 - de consagrar essa presunção.

Logo, atendendo ao elemento histórico e sistemático, resulta claro que o legislador elegeu como sujeito passivo do imposto não o proprietário do veículo, mas a pessoa como tal inscrita no registo automóvel, o que significa que, para efeitos de incidência subjectiva do imposto, o legislador elegeu “as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos”, independentemente de as mesmas serem ou não as proprietárias do veículo à data da verificação do facto tributário.

Diga-se ainda que a configuração do elemento subjectivo do facto tributário no sentido de abranger as pessoas em nome de quem se encontra registada a propriedade do veículo, é tão-só uma questão de incidência simples, na medida em que é determinado directamente o sujeito passivo, não assentando a técnica legislativa numa presunção legal, tal como ocorria na versão anterior da lei, ou seja, o artigo na versão actual não configura qualquer presunção em si, pode, quando muito, conceber-se que existe uma presunção no fundamento da norma, numa fase pré-jurídica, como processo intelectual que induziu o legislador a estabelecer a norma com a configuração actual.

Isso, porém, não tem relevo para a interpretação de uma norma em que a definição de quem é o sujeito passivo, entre outras situações de incidência subjectiva, que decorrem do mesmo artigo, e que com ela não se apresentam como incompatíveis, sem que aí esteja presente uma presunção com os seus elementos constitutivos (afirmação base ou indício, afirmação resultado ou afirmação presumida e pelo nexo lógico que existe entre ambas).

Nesta medida, deparamo-nos com uma opção legítima do legislador, no que diz respeito à alteração da incidência subjectiva do IUC, não havendo, em termos imediatos, impedimento a que o faça, realidade que tem de ser harmonizada com os princípios jurídico-constitucionais, situação que se mostra manifestamente assegurada.


Na verdade, no que se refere ao princípio da proporcionalidade e proibição do excesso não se vislumbra a existência de especiais dificuldades. Desde logo, porque a actualização do registo não é um ónus tão pesado que não possa e deva ser cumprido por quem deixa ou adquira a condição de proprietário. Especialmente num contexto em que o legislador instituiu mecanismos simples de actualização do registo automóvel, designadamente através do D.L. nº 177/2014, de 15-12, que criou “o procedimento especial para o registo de propriedade de veículos adquirida por contrato verbal de compra e venda, tendo em vista a regularização da propriedade …”. Além do mais, o que é normal é que o titular do registo seja suficientemente diligente para manter o registo actualizado e mesmo que, por incúria, não o tenha feito, as consequências que daí advêm não serão desproporcionadas, até porque o imposto é devido apenas até ao cancelamento da matrícula ou registo. É ainda de relevar que quem é titular do registo é porque alguma vez foi proprietário e que, por falta de diligência, não fez a actualização, sendo estas situações patológicas uma excepção. Eventualmente mais frequente será, correspondendo à normalidade, que quem por qualquer motivo adquire ou vende uma viatura, faça a actualização do registo, nomeadamente, quando estão em causa sociedades financeiras de locação, como é o caso dos autos, em que face ao carácter profissional da actividade desenvolvida, dificilmente se compreende a manifesta falta de diligência e consequentemente justificação da tutela reclamada nos autos.
Diga-se ainda que não é inédito que os impostos tenham uma função extrafiscal, o que neste caso poderia muito bem ter em vista assegurar que o registo dos automóveis esteja actualizado, não só para assegurar a praticabilidade da aplicação do IUC (que, seguramente, com a questão da ilisão das presunções, levantaria problemas não só para aplicação do imposto, como adensaria ainda mais o congestionamento nos tribunais tributários), mas também facilitar a aplicação do direito das contraordenações (por excesso de velocidade, por exemplo) ou disposições de outros ramos de direito que tenham como sujeitos os titulares do registo, constituindo um estímulo para que este esteja devidamente actualizado.
Nesta medida, e no domínio em análise, tem de concluir-se que, atendendo ao princípio da praticabilidade e da eficácia tributária, pode invocar-se que a oneração do titular do registo automóvel com o ónus da sua actualização, sob pena de responder pelo pagamento do imposto, não viola o princípio da proporcionalidade.
Por outro lado, cabe indagar se o disposto no artigo 3º nº 1 do CIUC é susceptível de colocar em crise o princípio da equivalência, muito presente nos impostos de tipo ambiental como o de que cuidamos, e acolhido expressamente no artigo 1º do CIUC, que sob a epígrafe “princípio da equivalência”, estabelece que “O imposto único de circulação obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária”. Antes de dar resposta a essa questão impõe-se que se diga que a verificação da equivalência tem aqui de ser considerada, não no plano da efectividade, como no domínio das taxas, mas no domínio da eventualidade dado estarmos no domínio dos impostos. Ora, decorre desta precisão que não há diferenças consideráveis, no que respeita à articulação com a ideia de equivalência, entre a condição de proprietário e de titular do registo, pois, tanto num caso como noutro, os eventuais danos ambientais são uma mera eventualidade, não se exigindo, como nas taxas, a sua verificação efectiva.
Tal equivale a dizer que a condição de proprietário ou de titular do registo, não apresenta diferenças em termos da relação que cada um tem com os eventuais danos ambientais, pois o veículo pode ou não ser usado pelo proprietário; o mesmo se passando em relação ao titular do registo. Tanto numa situação como noutra, por vezes, o uso com potencial para gerar danos ambientais é feito por um terceiro, ou até não tem de existir, podendo o veículo nem sequer ser utilizado, não interferindo isso com a condição de sujeito passivo, ou seja, qualquer ilação que se queira retirar, a nível da observância do princípio da equivalência, do facto de o sujeito passivo não ser eventualmente o proprietário, mas unicamente o titular do registo, surge como falaciosa. Por outras palavras, a existir uma violação do princípio da equivalência esta tanto surgiria quando o sujeito passivo é proprietário como quando é mero titular do registo. Importa acrescentar, neste âmbito, que se o titular inscrito no registo automóvel não é o proprietário do veículo automóvel, isso é indiferente no que respeita à determinação da existência ou não de qualquer custo ambiental ou viário, pois estes danos têm a ver com a detenção do veículo e não propriamente com o seu uso, sendo, para além do mais, realce-se, danos meramente eventuais. Mesmo num plano especulativo, não é sequer concebível que entre titular do registo e proprietário (nos casos, pouco frequentes, dir-se-ia, em que estas condições não se encontram cumulativamente preenchidas) exista uma relação de substituição tributária e uma daí decorrente responsabilidade tributária, uma vez que não está assegurado à pessoa inscrita no registo um mecanismo legal de reaver do efectivo proprietário do veículo o imposto que venha a suportar. Sendo, portanto, indiferente que a pessoa inscrita no registo faça prova da transmissão do veículo em data anterior à verificação do facto tributário, pois é a pessoa inscrita nesta data que está vinculada ao cumprimento da obrigação tributária.
Na sequência do que fica exposto, temos que dizer que, de acordo com o princípio subjacente à tributação automóvel (designadamente o IUC) a oneração dos contribuintes é feita na medida do potencial dano para o ambiente e infraestruturas viárias que decorre do veículo, sendo neste que é precisamente colocada a tónica, não fosse o IUC um imposto claramente ad rem, e não tanto no contributo pessoal dos sujeitos passivos para a verificação desses danos. A dinâmica do imposto, pela sua natureza, eminentemente real, e características intrínsecas, basta-se em fazer recair esse imposto sobre quem tem uma conexão mais estreita com o veículo e que supostamente o possa utilizar, ou tenha um título legal para condicionar a utilização de onde decorrerão os potenciais danos.
Assim, cumpre plenamente as exigências da estruturação da incidência subjectiva do imposto, pela forte conexão que têm com o veículo, tanto o proprietário como o titular do registo que, em situações normais, não patológicas, portanto, até acumulará a dupla condição (só tal não acontecendo em situações excepcionais), o que significa que deparamos com uma opção legítima do legislador.
No que concerne à matéria da igualdade, não se vê como a mesma é posta em causa, dado que a configuração do preceito é geral e abstracta, abrangendo todos os sujeitos que estejam nas mesmas circunstâncias, o mesmo se podendo dizer da capacidade contributiva que no nosso sistema é sobretudo um critério para determinar de modo geral e uniforme a medida do imposto que deve recair sobre cada sujeito. Mesmo num contexto em que se considerasse a capacidade contributiva como um princípio autónomo, dada a natureza real (ad rem) deste imposto, e a típica desconsideração que nos impostos deste tipo se faz da situação pessoal concreta do sujeito passivo, a acomodação do princípio não seria, ainda assim, inviável. Não podemos, todavia, esquecer que estamos no domínio dos impostos ambientais onde o critério da capacidade contributiva tem de se articular com o princípio da equivalência, o que implica, naturalmente, que os seus sujeitos não sejam aqueles que em termos clássicos têm a maior capacidade contributiva aferida com base no conceito de rendimento em sentido lato (envolvendo também a detenção de património e uso do rendimento no consumo), mas os que pela actuação ou conexão com actividades/bens susceptíveis de gerarem externalidades negativas, serão onerados na medida do potencial dano que daí decorra. Isto para dizer que, num contexto em que impostos como o IUC regressam a uma lógica comutativa, que implica uma ligação entre o eventual dano e medida do imposto, a capacidade contributiva clássica não pode ser aplicada de forma estrita, devendo ser temperada pelo princípio da equivalência que, em muitas situações, implica que quem tem menos capacidade contributiva, por exemplo, por consumir produtos menos ecológicos e mais baratos, por insuficiência de meios, seja mais onerado. Seria, portanto, complexo sustentar a violação da capacidade contributiva, especialmente num imposto com uma forte componente ambiental como o que está em causa. Mesmo que o fizéssemos, os eventuais fundamentos também se aplicariam se o sujeito passivo fosse o proprietário do veículo, pois o imposto seria determinado não, estritamente, com base na capacidade contributiva, que até seria muito baixa se o veículo fosse muito antigo, mas no potencial dano que dele poderia decorrer, o que redundaria muitas vezes, como já ficou enunciado, em situações em que quem é proprietário de veículos antigos e altamente poluentes e tem capacidade contributiva supostamente baixa, é mais fortemente onerado pela tributação ambiental.
Deste modo, invocar a violação da capacidade contributiva quando o sujeito passivo é o titular do registo contenderia com questões muito semelhantes às que surgiriam se o sujeito passivo fosse o proprietário o que implica que tal matéria exibe um certo artificialismo e exacerba desproporcionadamente a importância da condição de quem é unicamente titular do registo, pois o normal é que quem é titular do registo seja também proprietário, sendo as situações em que isso não acontece residuais e excepcionais e, por muito legítima que seja a tutela dessas situações, a via não será, certamente, fazer uma interpretação correctiva de um preceito que é claro e corresponde a uma opção legislativa legítima, não existindo espaço para uma autêntica contrarreforma legislativa por via de uma interpretação sem o mínimo apoio na letra da lei, ameaçando o princípio da separação de poderes.


2.2.3. - Conclusão
Para efeitos do disposto no artigo 3º nº 1 do CIUC, na redacção introduzida pelo D.L. nº 41/2016, de 01-08, responde pelo pagamento do imposto a pessoa em nome da qual está registado o veículo à data da verificação do facto tributário, independentemente de nessa data já ter ocorrido transmissão da propriedade para outra pessoa.


3. DECISÃO

Nestes termos, acordam em conferência os juízes do Pleno da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202.º da Constituição da República Portuguesa, em tomar conhecimento do mérito do recurso e, nesta sequência, negar provimento ao recurso, mantendo-se a decisão arbitral recorrida, uniformizando-se a jurisprudência nos termos descritos em 2.2.3..

Custas pela Recorrente.

Notifique-se. D.N..

Comunique ao CAAD.




Lisboa, 26 de Junho de 2024. - Pedro Nuno Pinto Vergueiro (relator por vencimento) – Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia - Isabel Cristina Mota Marques da Silva (vencida, nos termos da declaração de voto do Sr. Conselheiro Nuno Bastos) - Francisco António Pedrosa de Areal Rothes - Joaquim Manuel Charneca Condesso (vencido, acompanho o teor do voto do Sr. Conselheiro Gustavo Courinha, inicial relator do projecto) – Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos (vencido, nos termos da declaração de voto que junta) - Aníbal Augusto Ruivo Ferraz - Gustavo André Simões Lopes Courinha (vencido, nos termos da declaração de voto que junta) - Anabela Ferreira Alves e Russo - Fernanda de Fátima Esteves (vencida, nos termos da declaração de voto do Sr. Conselheiro Nuno Bastos) - João Sérgio Feio Antunes Ribeiro.

Declaração de voto do Senhor Conselheiro Nuno Bastos:

Não acompanho a posição firmada no acórdão, na parte em que atesta que a conformidade das regras de incidência subjetiva do IUC com os princípios jurídicoconstitucionais «se mostra manifestamente assegurada».

Começo por referir que, embora o artigo 17.º-A do Código do IUC atribua efeitos fiscais à regularização do registo da propriedade, não institui nenhum dever tributário neste âmbito nem associa à falta de diligência o incumprimento de obrigações tributárias.

Aliás, esta norma coexistiu com o artigo 19.º do mesmo Código (antes da sua revogação pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março) que atribuía aos locadores a obrigação - especificamente tributária - de fornecer à Direção-Geral de Impostos os dados relativos aos utilizadores dos veículos locados.

Que, de resto, não beneficiam dos mecanismos de regularização do registo da propriedade a que alude o Decreto-Lei n.º 177/2014, de 15 de dezembro e que se encontram referidos na fundamentação do acórdão (não só por não estarem em causa contratos verbais de compra e venda, mas também por serem entidades que procedem com regularidade à transmissão da propriedade dos veículos em virtude da sua atividade).

Assim, não encontro fundamento legal para configurar o dever de registo como um ónus jurídico no plano tributário nem para justificar o regime de tributação com o incumprimento deste dever ou, mais genericamente, com uma falta de diligênciado titular do registo, mesmo que se pudesse considerar invocada e demonstrada no procedimento ou no processo.

Ao invés considero que o legislador instituiu um regime de tributação que utiliza uma base de dados de cuja gestão se alheia para que eventuais problemas no registo não lhe possam ser opostos, mesmo que não tenham nada a ver com nenhuma falta de diligência dos contribuintes.

E que isso sucede porque se pretendeu assegurar, acima de tudo, a eficiência dos mecanismos de tributação, maximizando a receita e minimizando os custos de gestão.

E não vejo como se pode considerar, à partida, assegurada a conformidade com os princípios constitucionais de um sistema de tributação que sobrepõe a eficiência à justiça fiscal (no pressuposto de que se possa considerar eficiente até um sistema que não assegure a justiça na tributação).

Nem que se possam considerar proporcionadas as soluções legislativas que se traduzam em atender aos dados do registo mesmo quando não sejam adequados a manifestar a riqueza que justifique a tributação nem necessários para identificar o seu titular. Como sucede quando a administração sabe (por se encontrar documentado), não só que o proprietário registado não é o verdadeiro proprietário, mas também quem é o verdadeiro proprietário.

E é aqui que, a meu ver, está o problema fundamental do caso: os impostos assentam essencialmente na capacidade contributiva do sujeito (é, de resto, o que resulta do artigo 4.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária).

Mesmo que o princípio da equivalência seja convocado para a determinação da medida da tributação (nomeadamente para atender a finalidades extrafiscais), parece que não pode prescindir-se da capacidade contributiva como pressuposto da tributação.

Ora, ao considerar como sujeito passivo o titular do registo o legislador permite que prevaleçam os dados do registo sobre a realidade tributária do sujeito (não só em situações limite, em que seja desconhecido o verdadeiro proprietário, mas também naquelas em que se sabe quem é o verdadeiro proprietário e, por isso, o titular da riqueza).

E um imposto que remeta para uma base de dados do registo sem atender ao seu significado e sem se importar com o facto de não traduzir nenhuma manifestação de riqueza não é, a meu ver, compatível com tal princípio, até porque não está muito longe de um imposto de capitação.

Por isso, concluiria pela inconstitucionalidade do artigo 3.º, n.º 1, do CIUC, na parte em que considera sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos e que não sejam os verdadeiros proprietários dos mesmos.

Nuno Bastos


Declaração de voto do Senhor Conselheiro Gustavo Lopes Courinha:

Voto vencido o presente acórdão, nos seguintes termos:


I. Pronunciaram-se as decisões ora em confronto em sentidos claramente opostos, assim se verificando os pressupostos para o conhecimento do mérito do recurso, tudo como defende o projecto que fez vencimento.

Com efeito, pronunciou-se a decisão arbitral recorrida no sentido de que, na versão pós-2016, os sujeitos passivos de IUC não são já os proprietários dos veículos, mas, antes, os entes que como tal figurem no cadastro do registo automóvel. Foi esta interpretação que logrou vencimento no presente acórdão

Por oposição, e em leitura a que aderimos, entendeu-se na decisão arbitral fundamento que os sujeitos passivos continuam a ser os proprietários das viaturas, atenta a proibição de presunções ilidíveis em sede de normas incidência de imposto – cfr. artigo 73.º da LGT, que dispõe: “As presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário.

II. Comecemos por contrapor as redacções do artigo 3.º do Código do IUC, nas versões anterior e posterior às alterações promovidas pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de Agosto.

Dispunha a versão pré-2016 do artigo 3.º do Código do IUC, sob a epígrafe “Incidência Subjetiva”, que:

1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.

3 - É ainda equiparada a sujeito passivo a herança indivisa, representada pelo cabeça de casal.

Após as mencionadas alterações, passou a dispor aquela mesma norma - versão pós-2016 - e mantendo a mesma epígrafe, que:

1 - São sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos.

2 - São equiparados a sujeitos passivos os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.

3 - É ainda equiparada a sujeito passivo a herança indivisa, representada pelo cabeça de casal.

III. Perante esta redacção pós-2016, defrontam-se duas posições.

A primeira posição, acolhida na decisão arbitral recorrida, pelo Parecer do Ministério Público junto aos autos e já amparada pelo Tribunal Central Administrativo Norte em, pelo menos, três ocasiões, encontra-se muito correctamente descrita nos fundamentos daquela decisão, onde se pode ler: “Não estamos, como na vigência da redacção anterior, perante uma presunção ilidível, mas antes na presença de uma opção legislativa diversa da anterior, conforme o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 21/02/2019. Com efeito, o legislador pretendeu “(…) que seja sujeito passivo de imposto o proprietário constante do registo, independentemente de poder não ser o titular do direito real de propriedade sobre o veículo”.

Este entendimento sobre a relevância da inscrição no registo automóvel para a definição da sujeição subjetiva ao IUC, é também acolhido, em idênticos termos, no Acórdão de 20/09/2018, do Tribunal Central Administrativo Norte (processo n.º 01270/14.2BEPNF), em que se sustenta que “da redação dada ao n.º 1 do artigo 3.º do CIUC pelo Decreto-Lei n.º 41/2016 conclui-se que veio o legislador afastar qualquer presunção legal quanto a quem pode ser considerado proprietário de um veículo, vindo antes determinar que passará a ser sujeito passivo do imposto a pessoa em nome da qual os veículos se encontrem registados”.

Em idêntico sentido se pronuncia o mesmo tribunal no Acórdão de 03/10/2018 (processo n.º 01271/14.0BEPNF), nos seguintes termos: “Daqui resulta, que a incidência subjetiva do IUC, nos termos do art. 3.º, n.º 1, do CIUC recai sobre «(...) as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos, independentemente da propriedade efetiva do veículo e da sua posse.» O sujeito passivo é a pessoa em nome de quem está registada a propriedade do veículo, independentemente de ser ou não o seu proprietário e/ou possuidor. A incidência subjetiva basta-se com o mero registo do direito de propriedade em nome do sujeito passivo, sendo suficiente o nome da pessoa em que se encontra registada a propriedade do veículo, independentemente de ela ser ou não a proprietária e possuidora efetiva do veículo no ano a que respeita o IUC, designadamente no caso das situações de venda do veículo sem atualização do registo de propriedade.”” E, sintetiza em jeito conclusivo aquela decisão recorrida, que: “a nova (2016) redacção do n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC estabelece que a propriedade de uma viatura automóvel não constitui o elemento de preenchimento da norma de incidência subjectiva do imposto. Essa incidência passou a aferir-se em função do elemento registal.” (sublinhado nosso).

Designaremos esta posição de incidência registal, tendo a mesma merecido o acolhimento maioritário no presente Acórdão.

IV. Por contraposição, e como resulta da decisão arbitral fundamento, entendemos, sem prejuízo da alteração legislativa promovida em 2016, que o legislador continua a consagrar, pese embora por outros termos, o princípio da tributação do verdadeiro proprietário, com prejuízo do que emane do registo automóvel.

É isso que se explana nesta decisão arbitral, em termos inequívocos: “É certo que a última alteração introduzida no n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC potenciou (ainda mais) a discussão sobre se a presunção nela consagrada é, ou não, suscetível de ser ilidida através de prova em contrário – ainda para mais conhecendo-se o debate que antecedeu a respetiva consagração em texto legal. Contudo, a partir do momento em que a norma se insere num conjunto normativo onde se prevê, inequivocamente, que todas as presunções consagradas em normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário, não há outra forma adequada de interpretar o texto legal que não seja a de entender que o mesmo contempla uma presunção ilidível. Para tanto basta sabermos o que é uma presunção – nos termos do Código Civil, presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido – e sabermos reconhecer no n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC uma norma de incidência tributária – facto que nem a AT discute.

Quanto ao elemento teleológico, importa referir que o princípio estruturante da reforma da tributação automóvel é justamente o da incidência da tributação sobre o verdadeiro utilizador do veículo, não se coadunando este princípio com a leitura “cega” da letra da lei, que poderia levar, afinal, a tributar quem não fosse proprietário e, dessa forma, quem não fosse o sujeito causador do “custo ambiental e viário” provocado pelo veículo, a que alude o artigo 1.º do CIUC. Donde, a interpretação do n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC à luz da relevância legalmente, constitucionalmente e até no âmbito do Direito da União Europeia, conferida ao princípio da equivalência não comporta a tributação, em IUC, do locador que, enquanto proprietário formal do veículo, não tem, consequentemente, qualquer potencial poluidor, o que significa que os danos advenientes para a comunidade, decorrentes da utilização dos veículos automóveis devem ser assumidos pelos seus reais utilizadores, como custos que só eles deverão suportar.

Assim, quanto à incidência subjectiva do imposto, é de concluir que não se verificam alterações relativamente à situação anteriormente em vigor no âmbito do Imposto Municipal sobre Veículos, Imposto de Circulação e Imposto de Camionagem, como aliás é amplamente reconhecido pela doutrina, continuando a valer uma presunção ilidível nesta matéria. Este entendimento é, ainda, o único que se afigura adequado e conforme ao princípio da verdade material e da justiça, subjacentes às relações fiscais, com o objetivo de tributar o real e efectivo proprietário e não aquele que, por circunstâncias de diversa natureza, não passa, por vezes, de um aparente e falso proprietário, por constar do registo automóvel.

Nesta conformidade, considerando os elementos de interpretação da lei referidos, somos conduzidos à conclusão de que o artigo 3.º, n.º 1, do Código do IUC, consagra uma verdadeira presunção de propriedade e não qualquer ficção, sendo, por isso, tal presunção ilidível. Por ser assim, tem de se permitir ao titular inscrito no registo automóvel a possibilidade de apresentar elementos probatórios bastantes para a demonstração de que o efectivo proprietário é, afinal, pessoa diferente da que consta do registo.” (sublinhados nossos).

Designaremos esta posição, que aqui igualmente acolhemos, de incidência real.

V. Cabe, por um lado, começar por reconhecer que a posição da incidência registal (adotada na decisão arbitral recorrida e que ora recebe acolhimento vencedor) parece ter, na aparência, um muito maior apego à letra da lei.

É assim que a expressão “proprietário dos veículos” é substituída por “pessoa em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos”, inculcando a ideia de que, para efeitos fiscais, a propriedade real cede perante a propriedade aparente emanada do averbamento registal. Ora, este elemento interpretativo literal não deixa (rectius, não pode deixar) de ser um argumento forte no sentido da mencionada leitura que vê a redacção do artigo 3.º do Código do IUC como consagrando uma incidência registal. Teríamos, deste modo, consagrada uma opção de política fiscal inovadora, com a desconsideração definitiva do proprietário enquanto sujeito passivo do imposto.

VI. Todavia, entendemos que esta clareza é meramente aparente, atentos três elementos não menos importantes e que, a final, nos parecem verdadeiramente decisivos na fixação do sentido interpretativo a extrair deste inciso na versão pós-2016.

Por um lado, ao atentarmos no n.º 2 do mesmo dispositivo, constatamos que são aí tratados como sujeitos passivos “os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”.

Ora, todos estes sujeitos acabados de referir são apresentados como sujeitos passivos do imposto, independentemente do registo das respectivas qualidades, o que faz supor que a mesma solução – a titularidade real e não registal – se encontra ínsita no n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC. Quer dizer, ao não fazer depender a exigibilidade do imposto a estes sujeitos da sua inscrição registal enquanto tal – inscrição esta que é possível, atenta a abrangência dos atos registáveis, nos termos do Regime do Registo Automóvel, previsto no Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro (republicado em anexo ao Decreto-Lei n.º 111/2019, de 16 de Agosto, que o alterou) – mal se compreende que tal solução surgisse consagrada no respectivo n.º 1 apenas por se tratar da situação mais frequente (o proprietário).

Em suma, é dificilmente compreensível que o legislador tenha reservado a incidência registal subjectiva exclusivamente para o direito de propriedade no n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC, excluindo tal especial incidência subjectiva para os demais direitos registáveis constantes do n.º 2 do mesmo dispositivo, onde, alegadamente, permaneceria em vigor a incidência real.

Ainda nesta sede, sublinhe-se (como faz a Recorrente) que pontuam igualmente no mesmo sentido da incidência real os n.º 2 do artigo 2.º e n.º 2 do artigo 6.º, ambos do Código do IUC, ao sujeitarem a imposto “a permanência em território nacional por período superior a 183 dias, seguidos ou interpolados, em cada ano civil, de veículos não sujeitos a matrícula em Portugal e que não sejam veículos de mercadorias de peso bruto igual ou superior a 12 toneladas”.

VII. Por outro lado, ao aceitar-se a teoria da incidência registal, logo seríamos condenados a concluir que o Código do IUC se houvera convertido num imposto sobre o (próprio) registo automóvel (e, ainda assim, com os limites acabados de evidenciar), o que contrasta de sobremaneira com a sua incidência objectiva e a respetiva base tributável.

Com efeito, tal base tributável pressupõe uma correlação, mais ou menos direta, entre a titularidade real da viatura e o pagamento do imposto, atentos os fundamentos jurídico-económicos deste específico tributo.

Para assim concluir, basta atentar nas bases de incidência associadas às Categorias A a D da incidência objectiva (artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) a d) do Código do IUC) – aquelas mais relevantes no presente caso – para logo se denunciarem manifestos elementos de cálculo do quantum do imposto que pressupõem, forçosamente, a titularidade material real dos veículos sujeitos ao mesmo. É nesta linha de coerência que se estabelecem como elementos daquela base tributável a “cilindrada, a voltagem, a antiguidade da matrícula e o combustível” – Categoria A; a “cilindrada e o nível de emissão de dióxido de carbono (CO2) relativo ao ciclo combinado de ensaios resultante dos testes realizados ao abrigo do 'Novo Ciclo de Condução Europeu Normalizado' (New European Driving Cycle - NEDC) ou ao abrigo do 'Procedimento Global de Testes Harmonizados de Veículos Ligeiros' (Worldwide Harmonized Light Vehicle Test Procedure - WLTP), consoante o sistema de testes a que o veículo foi sujeito para efeitos da sua homologação técnica, ou, quando este elemento não integre o certificado de conformidade, as emissões que resultam de medição efetiva realizada em centro técnico legalmente autorizado nos termos previstos para o cálculo do imposto sobre veículos” – Categoria B; ou o “peso bruto, o número de eixos, o tipo de suspensão dos eixos motores e antiguidade da primeira matrícula do veículo motor” – Categorias C e D – cfr. artigo 7.º, n.º 1, alíneas a) a c) do Código do IUC.

VIII. Ora, nenhum destes elementos é compatível com uma incidência subjectiva de natureza registal.

Ao invés, só se podem aferir critérios como os de “emissões poluentes” ou de “antiguidade da primeira matrícula” para fixação do valor de um tributo por referência ao responsável efectivo pela produção desses efeitos, numa lógica de proprietário real responsável pelos mesmos e, por isso, na condição de efectivo (e não presumido) poluidor-pagador.

Tal incoerência entre incidências – subjectiva e objectiva – que deriva da opção pela incidência registal torna-se especialmente evidente nos casos, como os dos autos, em que o sujeito passivo do imposto já não teria qualquer espécie de relação material com o veículo e o grau de poluição associado ao mesmo e anualmente tributável (cfr. artigo 4.º, n.ºs 1 e 2 do Código do IUC), nem sequer está em condições de repercutir o imposto ao real proprietário, uma vez que se encontrava já extinta a relação jurídica subjacente.

IX. Por último, e este é o terceiro ponto, quer parecer-nos que a alteração promovida em 2016 mais não traduziu do que uma resposta apressada e mal conseguida a uma situação patológica reiterada – o que, pelas regras da Legística, nunca é aconselhável.

O legislador fiscal, diante das (justificadas, aliás) queixas da AT, sobre reiteradas falhas na correta identificação dos sujeitos passivos do IUC (e consequentes anulações das respectivas liquidações, seguidas das dificuldades de indagação dos novos titulares), terá optado por tentar solucionar o problema por um golpe de caneta, fazendo recair sobre o titular registal do direito de propriedade da viatura a responsabilidade originária pelo pagamento do Imposto Único de Circulação. Contudo, não só tal solução é logo posta em causa pela estrutura do imposto – atenta a incoerência sistemática face ao n.º 2 do artigo 3.º do Código e, bem assim, à incidência objectiva e base tributável do imposto, a que acima já fizemos referência – como implicaria a aceitação de uma incidência desligada da realidade subjacente e, por conseguinte, do princípio constitucional da equivalência, emanado do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, em que se estriba este especial imposto.

Por tudo o exposto, não pode aquela ser a interpretação mais correta do artigo 3.º, n.º 1 do Código do IUC à luz da Constituição.

X. Em suma, por respeito às exigências de devida conformidade com os princípios que estruturam o imposto, a interpretação do n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC enquanto determinando a incidência subjectiva do imposto por referência ao proprietário real é de preferir, sem prejuízo da menos feliz redacção ali adotada.

Trata-se de uma consequência direta do princípio da equivalência que o sujeito do passivo do imposto seja o real proprietário do veículo e não o proprietário registado, porquanto é o primeiro (e não o segundo) que é responsável pelos custos ambientais e viários que este imposto comutativo forçosamente visa compensar. E, em coerência com aquele princípio ordenador, só ao proprietário real cabe internalizar as externalidades negativas produzidas pelo seu comportamento, seja ao nível da poluição, seja ao nível do desgaste das vias rodoviárias.

A exclusão de tributação do real proprietário como sujeito passivo do imposto faria, com efeito, surgir uma oneração fiscal na esfera de um sujeito não causador, sequer remotamente, dos danos viários e ambientais com o veículo em questão e que nem sequer susceptibilidade de repercussão do valor de imposto pago teria, atenta a extinção da relação jurídica subjacente.

Assim sendo, a referência feita no artigo 3.º, n.º 1 do Código do IUC à incidência subjectiva registal da propriedade só pode ter uma natureza meramente presuntiva e, por isso, forçosamente susceptível de ilisão por mandato constitucional, vertido no artigo 73.º da Lei Geral Tributária.

XI. Por todo o exposto, tenderia a conceder provimento ao recurso e a uniformizar jurisprudência no sentido de que “o artigo 3.º, n.º 1 do Código do IUC, na redacção decorrente da alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de Agosto, consagra uma incidência subjectiva real, apesar de assente numa presunção de propriedade decorrente do averbamento constante do registo automóvel e que é ilidível, podendo o titular inscrito no registo automóvel inverter a prova no sentido de que o efectivo proprietário é outrem” e, em consequência, anular a decisão arbitral recorrida e as liquidações de IUC ali contestadas.

Gustavo Lopes Courinha