Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0205/18.8BELRA
Data do Acordão:12/05/2019
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:CARLOS CARVALHO
Descritores:CASOS JULGADOS CONTRADITÓRIOS
ACÇÃO ADMINISTRATIVA
MEIO PROCESSUAL INADEQUADO
Sumário:A ação administrativa não constitui o meio/forma processual adequado à dedução, ao abrigo do art. 625.º do CPC, de pretensão fundada na existência de casos julgados contraditórios, porquanto a mesma deverá ser deduzida através de incidente a suscitar no âmbito da ação administrativa que foi instaurada e na qual veio a ser proferida a decisão tida pelo A. como contraditória com a anterior que havia passado em julgado em primeiro lugar, ou então quanto muito, caso esteja pendente execução de julgado anulatório, nesses mesmos autos de execução.
Nº Convencional:JSTA000P25275
Nº do Documento:SA1201912050205/18
Data de Entrada:06/24/2019
Recorrente:A...
Recorrido 1:CSMP E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
RELATÓRIO
1. A……………., devidamente identificado nos autos, instaurou a presente ação administrativa contra ESTADO PORTUGUÊS, MINISTÉRIO DA JUSTIÇA [«MJ»] e CONSELHO Superior do MINISTÉRIO PÚBLICO [«CSMP»], nos termos e com a motivação aduzida na petição inicial de fls. 01/18 dos autos [paginação «SITAF» - tal como as referências posteriores a paginação salvo expressa indicação em contrário], peticionando que «a) Seja reconhecida a contradição existente entre os Acórdãos proferidos no âmbito do processo n.º 47555 e no âmbito da ação n.º 551/09; e que em consequência e em obediência aos disposto no artigo 625.º do CPC, b) Seja determinado o cumprimento do Acórdão transitado em primeiro lugar (processo n.º 47555), sendo o CSMP condenado a dar execução a essa decisão, designadamente revogando a pena aplicada ao Autor de aposentação compulsiva. pontuação final».

2. Citados os RR. pelos mesmos foram produzidas contestações, insertas a fls. 124/144 dos autos [«Estado Português», na qual se defendeu por exceção (incompetência em razão da hierarquia do TAF de Leiria, inadequação do meio processual utilizado, e ilegitimidade passiva do R. «Estado…») e por impugnação], a fls. 145/153 dos autos [«MJ», na qual deduziu defesa por exceção (inidoneidade do meio processual utilizado, incompetência do TAF de Leiria, intempestividade da prática do ato processual, ilegitimidade passiva do R. «MJ») e por impugnação] e a fls. 155/194 dos autos [«CSMP», na qual se defendeu por exceção (incompetência do TAF de Leiria) e por impugnação].

3. O A. apresentou réplica na qual sustentou a improcedência das exceções arguidas [cfr. fls. 196/209].

4. O TAF de Leiria proferiu decisão, datada de 27.03.2019, que não foi objeto de qualquer impugnação, a julgar «verificada a exceção dilatória de incompetência em razão da hierarquia» por competente ser este Supremo, tendo declarado a incompetência daquele Tribunal para o conhecimento da causa [cfr. fls. 218/225].

5. Dispensados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir em Conferência.


DO SANEAMENTO E QUESTÕES A DECIDIR

6. Este Tribunal é o competente, sendo que as partes mostram-se dotadas de personalidade e de capacidade judiciárias, estando devida e regularmente representadas.
*
EXCEÇÃO DE INIDONEIDADE DO MEIO PROCESSUAL EMPREGUE

7. Defendem os RR. «Estado…» e «MJ» que a presente ação administrativa, destinada ao reconhecimento da existência de contradição «entre os Acórdãos proferidos no âmbito do processo n.º 47555 e no âmbito da ação n.º 551/09» e que, «em obediência aos disposto no artigo 625.º do CPC», fosse «determinado o cumprimento do Acórdão transitado em primeiro lugar (processo n.º 47555), sendo o CSMP condenado a dar execução a essa decisão, designadamente revogando a pena aplicada ao Autor de aposentação compulsiva», não constitui o meio processual idóneo/adequado, porquanto a pretensão nele deduzida, ao abrigo do normativo citado, deve ser efetivada ou em sede de ação executiva do julgado anulatório, ou no quadro de incidente suscitado no segundo processo a «requerer a declaração judicial a dar sem efeito ou sem eficácia, ou a declarar inexistente ou nula» a decisão ali proferida, ocorrendo inidoneidade/inadequação do meio processual atento o disposto conjugadamente nos arts. 199.º, 202.º, 278.º, n.º 1, al. e), 576.º, n.ºs 1 e 2, e 625.º do Código de Processo Civil [CPC] [ex vi do art. 01.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA)] [na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 41/2013 - tal como as referências posteriores ao mesmo Código sem expressa menção em contrário], 88.º e 89.º do CPTA [na redação anterior à introduzida pela Lei n.º 118/2019, de 17.09 - cfr. seus arts. 13.º e 14.º - tal como as referências posteriores ao mesmo Código sem expressa menção em contrário].

8. Contra tal entendimento se insurgiu o A. na resposta/réplica produzida [cfr. fls. 196/209], pugnando pela improcedência da exceção, nela sustentando, em suma, que esta ação constitui o meio idóneo e adequado a fazer valer a sua pretensão.

9. Passando à apreciação da exceção em epígrafe tem-se como apurada a seguinte factualidade relevante:
9.1) O A. era magistrado do Ministério Público, com a categoria de Procurador da República e encontrava-se colocado no Círculo Judicial de Santarém quando foi afastado das suas funções, em 27.02.2003, em virtude da execução de sanção disciplinar de «demissão», aplicada por deliberação do Plenário do «CSMP» de 31.01.2001, em confirmação da deliberação da Secção Disciplinar do «CSMP» de 14.12.2000.
9.2) Tal deliberação, objeto de impugnação através de recurso contencioso de anulação, foi contenciosamente anulada pelo acórdão da 2.ª Subsecção deste Supremo Tribunal Administrativo, datado de 13.02.2007 [Proc. n.º 47555], juízo esse confirmado pelo acórdão do Pleno deste mesmo Supremo Tribunal, de 27.11.2008 - cfr. doc. n.º 01 junto com a petição inicial [a fls. 19/45] e cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.
9.3) O «CSMP» veio, após prolação da decisão judicial referida no ponto antecedente, por acórdão da Secção Disciplinar de 16.12.2008, a aplicar ao A. a sanção de aposentação compulsiva, deliberação essa que, objeto de reclamação, foi mantida na íntegra pelo Plenário do mesmo Conselho, por acórdão de 03.02.2009.
9.4) O A. impugnou contenciosamente a referida deliberação do Plenário do «CSMP» junto deste Supremo Tribunal, dando origem ao processo n.º 551/09, tendo a ação administrativa de impugnação sido julgada improcedente pelo acórdão da Secção Administrativa deste mesmo Tribunal de 17.01.2010, confirmado pelo acórdão do Pleno deste mesmo Supremo, de 16.09.2010 - cfr. doc. n.º 02 junto com a petição inicial [a fls. 46/111] e cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.
9.5) Em 07.04.2011, o A. propôs nova ação administrativa de impugnação que deu origem ao processo n.º 356/11, peticionando a declaração de nulidade da deliberação do Plenário do «CSMP» de 03.02.2009.
9.6) Pelo acórdão da Secção Administrativa deste Supremo, de 21.05.2015, foi julgada improcedente a pretensão da referida ação administrativa, julgamento esse que confirmado, na sequência de recurso interposto pelo A., pelo acórdão do Pleno deste Supremo Tribunal, de 21.01.2016.

10. Presente o quadro factual antecedente e passando à análise da exceção temos que os tribunais na sua ação e função destinam-se a prevenir e dirimir litígios/conflitos, ou seja, situações com interesse prático e não a praticar atos inúteis [cfr. art. 130.º do CPC].

11. A utilidade do meio contencioso corresponde à sua utilidade específica, não podendo aquela utilidade ser dissociada das possibilidades legais que esse meio pode proporcionar para a satisfação dos direitos ou interesses legítimos que os interessados pretendem fazer valer e tutelar por seu intermédio, não relevando para o efeito as consequências indiretas, reflexas ou colaterais como o interesse abstrato na legalidade.

12. Na verdade, a tutela jurisdicional efetiva de direitos e interesse legítimos a quem acede aos tribunais assegura, nomeadamente, o direito de obter o reconhecimento jurídico da sua existência e a eliminação jurídica dos obstáculos à sua concretização, bem como a possibilidade de executar coercivamente o julgado [cfr. entre outros, os arts. 20.º e 268.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa (CRP)].

13. É isso que expressa, com caráter geral e em termos de lei ordinária, quer o n.º 1 do art. 02.º do CPTA quando se refere que o «princípio da tutela jurisdicional efetiva compreende o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, cada pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar e de obter as providências cautelares, antecipatórias ou conservatórias, destinadas a assegurar o efeito útil da decisão» [concretizado a título exemplificativo no seu n.º 2], quer ainda o mesmo preceito do CPC quando ali se estabelece que «a proteção jurídica através dos tribunais implica o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar», derivando, ainda, do n.º 2 do mesmo artigo que a «todo o direito, exceto quando a lei determine o contrário, corresponde a ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da ação».

14. Nessa medida, como acabamos de ver a proteção jurídica dos direitos consubstancia-se não só na obtenção de uma decisão judicial que os reconheça, mas também na possibilidade de a fazer executar, sendo que para determinar a adequação da ação à proteção de um determinado direito releva não só a sua idoneidade para o mero reconhecimento desse direito, mas igualmente para a prevenção ou reparação da sua violação e para a sua realização coerciva, nos casos em que o mero reconhecimento seja bastante para assegurar essa proteção.

15. Daí que para a ponderação da idoneidade/adequação da forma/meio processual do contencioso administrativo empregue temos que partir da pretensão subjacente do A./requerente [que é a de afastar a lesão de que foi alvo o seu direito ou interesse legítimo por ação ou omissão do R./requerido, repondo e reconstituindo a situação jurídica subjetiva em questão], aferindo da correção/acerto do meio contencioso utilizado para lograr realizar aquele desiderato.

16. Extrai-se dos arts. 278.º e 576.º do CPC e 89.º do CPTA que as exceções dilatórias são de conhecimento oficioso e que obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância ou à remessa do processo para outro tribunal.

17. Decorre, por sua vez, do art. 625.º do CPC, sob a epígrafe de «casos julgados contraditórios», que «[h]avendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar» [n.º 1], sendo que «[é] aplicável o mesmo princípio à contradição existente entre duas decisões que, dentro do processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual» [n.º 2].

18. Cientes dos considerandos antecedentes, do quadro factual e normativo pertinente e da pretensão que se mostra deduzida pelo A. temos como procedente a arguida exceção.

19. Com efeito, partindo do pressuposto alegado da existência in casu de decisões contendo julgados contraditórios, pressuposto esse que não se concede e que apenas para efeitos de análise da exceção se admite num plano estritamente lógico por nele se haver sustentado ou estribado a pretensão deduzida pelo A. ao abrigo do disposto no art. 625.º do CPC, temos que a presente ação administrativa não constitui o meio/forma processual adequado à dedução daquela pretensão, porquanto esta deveria ser deduzida através de incidente a suscitar no quadro da ação administrativa que foi instaurada e na qual veio a ser proferida a decisão tida pelo A. como contraditória com a anterior que havia passado em julgado em primeiro lugar, ou então quanto muito, caso tivesse pendente execução de julgado anulatório, nos autos de execução, mas nunca numa nova ação judicial a instaurar, tanto mais que o nosso contencioso facultava e faculta ao A. aquele meio/forma de tutela idóneo/adequado e mais expedito, que observa, inclusive, as exigências de um correto uso e de economia dos meios e dos recursos que se mostram ao dispor dos interessados.

20. Constitui o entendimento expendido posição que, igualmente, se mostra sufragado na doutrina [cfr. José Alberto dos Reis, in: «Código de Processo Civil Anotado», volume V, reimpressão, 1984, págs. 193/195 e 198; José Lebre de Freitas, in: «Código de Processo Civil Anotado», volume 2.º, pág. 693] e na jurisprudência [cfr., entre outros, Acs. do STJ de 09.07.1986 (Proc. n.º 38464) in: BMJ n.º 359, págs. 549/551; de 16.10.1991 (Proc. n.º 041871), de 16.11.2011 (Proc. n.º 1874/07.0TAFUN), de 13.02.2014 (Proc. n.º 171/03.4GTVCT-B.S1, todos consultáveis in: «www.dgsi.pt/jstj»], entendimento firmado, é certo, no quadro do art. 675.º do CPC [na redação anterior à introduzida pela Lei n.º 41/2013], mas que mantém plena valia à luz do atual art. 625.º do CPC vigente [cfr., entre outros, Ac. do STJ de 07.01.2016 (Proc. n.º 503/10.9PCOER-A.S1) consultável no mesmo sítio], preceito aplicável ao contencioso administrativo ex vi do art. 01.º do CPTA.

21. Tal como é sustentado a este propósito por José Alberto dos Reis «a razão da lei está na imperatividade ou na força obrigatória do caso julgado (artigos 671.º e 672.º). Formado o caso julgado, a situação jurídica que ele declarou e definiu torna-se imutável; portanto, não pode tal situação ser alterada por caso julgado posterior. O novo caso julgado, destruindo o benefício que o caso julgado anterior assegurara à parte vencedora, é contrário à ordem jurídica, é, por assim dizer, um facto processual ilícito, e não deve, por isso, subsistir» [in: ob. cit., pág. 193], pelo que, confrontado com a instauração de execução, bastaria então que o «executado dê conhecimento da existência do caso julgado, juntando ao processo, em qualquer altura, certidão da sentença anterior transitada, para que o juiz tenha de declarar sem efeito o processo de execução» [in: ob. cit., pág. 195], sendo que no quadro de ação declarativa, o «autor teria, a nosso ver, o direito de requerer, no respetivo processo …, que a sentença fosse declarada sem efeito com fundamento no art. 675.º» [in: ob. cit., pág. 198].

22. E no citado acórdão do STJ de 09.07.1986 «a situação criada pelas duas sentenças proferidas … encontra solução em simples declaração a fazer pelo Tribunal no segundo processo de acordo com o preceituado no artigo 675.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, não se justificando, por não ser admissível, um recurso de revisão» [entendimento este totalmente reiterado, nomeadamente, no citado Ac. do STJ de 16.10.1991 (Proc. n.º 041871)].

23. Nessa medida, em decorrência de tudo o supra exposto, a instauração de uma nova ação administrativa como a sub specie, para fazer valer a pretensão deduzida e nos termos em que a mesma se mostra fundada, tem-se o uso que foi feito daquele meio/forma processual como enfermando de inidoneidade ou de inadequação formal absoluta, procedendo, por conseguinte, a exceção dilatória arguida, conducente à extinção da instância [cfr. arts. 02.º, 130.º, 278.º, n.º 1, al. e), 576.º, n.ºs 1 e 2, 625.º, todos do CPC, 02.º e 89.º do CPTA], ficando prejudicado o conhecimento das demais questões.







DECISÃO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202.º da Constituição da República Portuguesa, em julgar procedente a arguida exceção dilatória e, em consequência, absolvem-se os RR. da instância.
Custas a cargo do A..
D.N..




Lisboa, 5 de Dezembro de 2019. – Carlos Luís Medeiros de Carvalho (relator) – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano – Jorge Artur Madeira dos Santos.