Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0119/23.0BEVIS
Data do Acordão:07/13/2023
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:JOAQUIM CONDESSO
Descritores:SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO FISCAL
PRESTAÇÃO DE GARANTIA
IMPUGNAÇÃO
Sumário:I - Os casos em que a execução fiscal se pode suspender estão previstos no artº.169, do C.P.P.T. (cfr.artº.52, da L.G.T.), consubstanciando um deles a hipótese em que o próprio executado oferece uma garantia idónea susceptível de assegurar os créditos do exequente (cfr.artº.199, do C.P.P.T.).
II - O mencionado regime é, obviamente, uma manifestação dos princípios da proporcionalidade e da suficiência, os quais sempre devem presidir à constituição da garantia e sua manutenção, durante as vicissitudes que podem ocorrer no processo de execução fiscal suspenso.
III - Do citado artº.169, nº.1, do C.P.P.T., de tal normativo se retira que a execução fica suspensa, além do mais, em caso de impugnação judicial que tenha por objecto a legalidade da dívida exequenda e a cobrança da dívida esteja garantida.
IV - Ao relacionar a suspensão da execução com o objecto da impugnação, o legislador não pode ter deixado de levar em conta o regime processual que instituiu no mesmo código para o processo de impugnação dos actos de liquidação (cfr.artºs.99 e seg. do C.P.P.T.).
V - Ao dispor que a execução fica suspensa quanto pender impugnação que tenha por objecto a legalidade da dívida exequenda, o legislador não poderia ter pretendido investir a A. Fiscal no poder de formular um juízo sobre os pressupostos, ou o conteúdo, do processo de impugnação, ao decidir da suspensão.
(sumário da exclusiva responsabilidade do relator)
Nº Convencional:JSTA000P31240
Nº do Documento:SA2202307130119/23
Data de Entrada:07/04/2023
Recorrente:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A... S.A.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
ACÓRDÃO
X
RELATÓRIO
X
O DIGNO REPRESENTANTE DA FAZENDA PÚBLICA, deduziu recurso dirigido a este Tribunal tendo por objecto sentença proferida pelo Mº. Juiz do T.A.F. de Viseu, constante a fls.137 a 145 do processo físico, que julgou totalmente procedente a reclamação de acto do órgão de execução fiscal, deduzida pela ora recorrida, "A..., S.A.", visando decisão de indeferimento de pedido de manutenção da suspensão do processo de execução fiscal nº...., o qual corre seus termos no Serviço de Finanças de Viseu.
X
O recorrente termina as alegações do recurso (cfr.fls.146 a 155 do processo físico) formulando as seguintes Conclusões:
a-Vem o presente recurso interposto da douta sentença que julgou procedente a reclamação de atos do OEF e, em consequência, decidiu anular “a decisão reclamada”.
b-A Fazenda Pública não pode concordar com tal decisão e nas razões que foram apresentadas para a justificar, tendo o tribunal, na sua perspetiva, errado quanto ao direito aplicável ao caso, nomeadamente os arts.º 52.º da LGT e 169.º do CPPT.
c-Tomando por base a factualidade apurada nos autos, entendeu o Tribunal a quo que considerando que se encontra em curso a discussão da legalidade da liquidação resultante da declaração de substituição a correr termos a coberto do processo 315/20.1BEVIS e que a Reclamante mantém as garantias oportunamente decididas como idóneas nos processos de execução fiscal em causa, entendeu que se encontravam reunidos os pressupostos para a suspensão dos referidos processos de execução fiscal [como defendeu a Reclamante].
d-Ora, com todo o respeito que é devido ao Tribunal a quo [que se diga, é muito], a RFP não pode acompanhar tal entendimento.
e-Quanto aos efeitos da submissão de uma declaração de substituição face à primitiva declaração e aos efeitos do caso julgado decorrentes da decisão proferida no âmbito do processo 314/18.3BEVIS, a FP entende que o Tribunal a quo fez tábua rasa da autoridade do caso julgado, violando o n.º 1 do art.º 619.º do Código de Processo Civil [CPC].
f-É daí que advém o duplo efeito da sentença, ou seja, o seu efeito negativo – que se consubstancia na exceção dilatória de caso julgado – e o seu efeito positivo – que se consubstancia na autoridade de caso julgado.
g-Segundo o Tribunal a quo, tal decisão só deverá ter efeitos no seio da impugnação que corre a coberto do nº 315/20.1BEVIS, no entanto, entende a RFP que o Tribunal não poderia deixar de aferir os concretos efeitos do caso material daquela decisão também no âmbito do processo de execução fiscal, como bem fez o OEF e, por via disso, no âmbito dos presentes autos.
h-A força de caso julgado da sentença é um fenómeno essencial à garantia dos valores constitucionais da confiança e da segurança jurídica, bem como à prossecução da finalidade da pacificação social, e espraia-se sob diferentes prismas ou modalidades.
i-Ora, a primitiva liquidação da CESE foi julgada legal pelas mais altas instâncias judiciais do nosso país [TCAS e TC], decisão que vincula as partes e os todos os Tribunais e que o OEF está impedido de concretizar.
j-Ora, de acordo com o estatuído no n.º 6 do art.º 59.º do CPPT [para qual remete o art.º 10.º do regime da CESE], o contribuinte, na sequência da notificação da liquidação que foi emitida após a submissão da declaração de substituição, está legitimado a discutir o imposto liquidado em decorrência da apresentação da declaração de substituição, mas nunca o que foi liquidado anteriormente.
k-Acompanhar o entendimento do Tribunal a quo, abre a porta aos contribuintes poderem obter a suspensão do processo de execução fiscal ad eternum, pois, na sequência das decisões proferidas pelos tribunais judiciais, basta aos mesmos proceder à entrega de declarações de substituição para voltar a discutir a legalidade de toda a dívida e, por via disso, pedirem a suspensão do PEF, o que coloca em causa os interesses do Estado na arrecadação das receitas.
l-Em todo o caso, equacionando-se a possibilidade desta última impugnação ser procedente [315/20.1BEVIS], no caso do Tribunal não atentar na violação do n.º 6 do art.º 59.º do CPPT, ela nunca desembocará “na anulação pura e simples do acto de autoliquidação de substituição na íntegra”, desde logo porque nos termos do art.º 625.º do Código Processo Civil [CPC], havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar”.
m-Consentir na possibilidade do contribuinte poder beneficiar da suspensão do processo de execução fiscal por via do simples facto deste [ora Reclamante] ter declarado na sua petição inicial da impugnação que esta tem em vista a anulação de toda a liquidação, em clara violação do n.º 6 do art.º 59.º do CPPT e da autoridade do caso julgado da decisão que julgou a primitiva liquidação legal, constitui uma aplicação cega do regime constante nos art.º 52.º da LGT e 169.º do CPPT.
n-Vigora entre nós o denominado sistema de administração executiva, nos termos do qual a lei permite que a AT elabore títulos executivos relativos às quantias que liquida e que não são pagas nos prazos de pagamento voluntário, que encontra sua justificação na celeridade reclamada na arrecadação das receitas tributárias, que são a mais importante fonte de receita para fazer face à satisfação das necessidades públicas.
o-No entanto, nos termos do n.º 1 do art.º 169.º do CPPT, o interessado pode obter a suspensão do PEF.
p-Temos dois interesses conflituantes, por um lado, o do interessado em ver anulado o ato que considera ilegal e, por outro, o da administração tributária na arrecadação das receitas tributárias com vista à satisfação das necessidades públicas.
q-E se, aquando, da apresentação do contencioso após a primitiva autoliquidação [impugnação judicial n.º 314/18.3BEVIS], o peso do primeiro interesse era superior [do interessado em ver anulado o ato que considerou anulado], justificando-se, assim, a suspensão do PEF, entende a RFP que, atualmente, a peso do segundo interesse [da administração tributária na arrecadação das receitas tributárias com vista à satisfação das necessidades públicas] deverá prevalecer.
r-A RFP entende que a situação fáctica do acórdão proferido pelo STA, em 5 de junho de 2013, no âmbito do processo n.º 0566/13, não tem respaldo nos presentes autos, pois o que está em causa naqueles concretos autos é a possibilidade de reclamação ou impugnação de uma liquidação emitida na sequência da concretização de uma decisão judicial.
s-Para saber se existe ou não meio processual que ponha em causa a “legalidade da dívida exequenda” (art. 169º do CPPT) o órgão de execução fiscal pode e deve apreciar se tais processos têm virtualidade para tocar na legalidade da quantia exequenda, sem que isso represente qualquer interferência na apreciação do seu mérito.
t-Se o OEF sabe que, considerando que a liquidação que está em causa no PEF ...14, foi julgada válida por decisão transitada em julgado e sindicada pelas mais altas instâncias superiores [incluindo o Tribunal Central Administrativo Sul e o Tribunal Constitucional] e que, por via disso, a mesma já não é sindicável [sob pena de violação quer da autoridade do caso julgado] e em nenhuma circunstâncias poderá ser anulada [só podendo ser anulada a parte da liquidação adicional, no valor de € 7.103,47], qual o sentido de dar àquele contencioso para efeitos de suspensão do PEF.
u-Tal não nos parece ser de todo uma ingerência por parte do OEF, mas antes o estrito cumprimento do princípio da indisponibilidade do crédito tributário.
v-A figura da declaração de substituição tem longa tradição no seio do direito tributário, sendo que o legislador, ao utilizar a declaração de substituição no regime da CESE não alterou a natureza da declaração de substituição, nem os seus efeitos jurídicos [ao contrário do que defende a Reclamante].
w-O próprio legislador que refere que a declaração entregue nos termos do n.º 6 do art.º 3.º da CESE é “para correção da contribuição liquidada nos termos do número anterior”, não havendo nada na letra da lei que leve a concluir que o que o legislador pretendeu foi anular os efeitos da primeira liquidação.
x-Do exposto, AT não optou pela “não manutenção do ato de liquidação pré-existente” [como defendeu a Reclamante na sua petição inicial], pois manteve a liquidação e os processos de contencioso e execução fiscal associados [tendo somente promovido a anulação parcial da primitiva autoliquidação, tomando por base os elementos declarados pela Reclamante na declaração de substituição], não se podendo concluir pela revogação tácita, como defendeu a Reclamante na sua petição inicial [desconhecendo-se sequer a existência de tal figura jurídica no nosso ordenamento jurídico].
y-De todo o exposto, entende a Fazenda Pública que a sentença aqui em escrutínio deverá ser revogada e substituída por decisão que julgue a reclamação improcedente.
z-A Fazenda Pública requer, muito respeitosamente a V. Exas., ponderada a verificação dos seus pressupostos, a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça prevista no n.º 7 do art.º 6º do Regulamento das Custas Processuais [RCP].
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A reclamante e ora recorrida produziu contra-alegações no âmbito da instância de recurso (cfr.fls.156 a 163 do processo físico), as quais rematou com as seguintes Conclusões:
A-A decisão reclamada é ilegal, devendo ser confirmada a sentença recorrida, que a anulou, porque, nos termos do regime do n.º 4 e do n.º 6 do artigo 7º do regime da CESE, o segundo acto de autoliquidação da CESE de 2017 da A... (de substituição) teve por efeito anular o primeiro acto, sendo que também, de qualquer modo, a dívida em causa passou – e está neste momento – a ser contestada no processo de impugnação judicial do acto de indeferimento da reclamação graciosa deduzida contra o acto de autoliquidação de substituição.
B-Só uma decisão final nesses autos, nos quais se contesta integralmente a CESE de 2017 da A... – por reporte à invalidade total do seu regime e, portanto, à totalidade do montante liquidado –, é que pode originar a obrigatoriedade de a Reclamante pagar esse montante.
C-Aliás, é isso que resulta também do regime do artigo 169º do CPPT (ao abrigo do qual estes autos executivos têm estado suspensos), em cujo n.º 1 se estabelece que, verificadas todas as demais condições de tal regime (designadamente a prestação de garantia), as execuções permanecem suspensas até que, por decisão final do processo administrativo ou judicial que tenha por objeto a legalidade da dívida exequenda, ocorra uma declaração definitiva da validade ou invalidade dessa dívida.
D-No nosso caso, é certo que não só a AT está na posse de duas garantias que salvaguardam inteiramente o seu crédito relativo à CESE de 2017 da A... como está em curso um processo de contestação da legalidade desse crédito.
E-Caso vingasse aqui qualquer interpretação do regime do artigo 169º do CPPT da qual derivasse que a Reclamante estava obrigada a pagar o montante da CESE de 2017 (ou parte dela) enquanto a totalidade da dívida está subjacente a um processo de contestação da sua legalidade, então o regime teria de ser considerado inconstitucional, por violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva de direitos e interesses legalmente protegidos, consagrado no artigo 20º e no n.º 4 do artigo 268º da Constituição.
F-Nesta sequência, não tem qualquer sentido a alusão ao regime do caso julgado. O que interessa fundamentalmente para os presentes efeitos é que neste momento há um contencioso pendente sobre a legalidade da dívida da CESE de 2017 da A..., contencioso esse que diz respeito a um acto de liquidação do montante total desse tributo, apurado quanto a esse ano, e em que a ora Reclamante utiliza argumentos para anular o tributo desse ano in totum, e não simplesmente quanto a qualquer valor residual.
G-Portanto, deferir o requerimento da Reclamante não equivalerá a violar o efeito de caso julgado da sentença incidente sobre a impugnação do acto de autoliquidação originário. Recusar a anulação da decisão reclamada com base nesse argumento redundaria numa usurpação por parte da AT do poder de livre decisão que cabe ao juiz do processo de impugnação da autoliquidação de substituição. Não cabe à AT (nem, em boa verdade, ao juiz dos presentes autos de reclamação) antecipar qual deverá ou deveria ser a decisão naquela impugnação; isso cabe, apenas, ao juiz que decidir esse outro processo, no âmbito desse outro processo.
H-Em face o do exposto, a decisão reclamada é ilegal por violação do n.º 4 do artigo 3º do regime da CESE, do n.º 6 do artigo 7º do mesmo regime e ainda do artigo 169º do CPPT, bem tendo andado o Tribunal recorrido, ao anulá-la.
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Remetidos os autos a este Tribunal, o Digno Magistrado do M. P. emitiu douto parecer (cfr.fls.197 a 200 do processo físico), concluindo no sentido de se negar provimento ao presente recurso.
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Sem vistos, atenta a natureza urgente do processo (cfr.artº.657, nº.4, do C.P.Civil; artº.278, nº.5, do C.P.P.T.), vêm os autos à conferência para deliberação.
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FUNDAMENTAÇÃO
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DE FACTO
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A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto (cfr.fls.139 a 141 do processo físico):
1-A..., S.A. (NIPC ...), ora reclamante, procedeu à autoliquidação da CESE (através da submissão da declaração modelo 27) do ano de 2017, da qual resultou um montante a pagar de € 494.252,03, mas não a pagou – facto não controvertido e cfr. modelo 27 de fls. 93 a 95 da paginação eletrónica;
2-Em 25 de novembro de 2017, o Serviço de Finanças de Viseu instaurou o processo de execução fiscal n.º ... contra a reclamante, para cobrança coerciva da CESE de 2017 e juros de mora, no montante de € 494.252,03 e acrescido no montante de € 1.722,52 – facto não controvertido, cfr. documento de fls. 176 e 177 da paginação eletrónica, cfr. documento de fls. 178 a 184 da paginação eletrónica e cfr. informação de fls. 110 da paginação eletrónica;
3-Em 28 de dezembro de 2017, a reclamante manifestou junto do Serviço de Finanças de Viseu a intenção de contestar a legalidade da dívida exequenda referida na alínea precedente e apresentou, como garantia, uma fiança prestada pela B..., SGPS, S.A. (NIPC ...) até ao montante de € 625.367,24, com vista à suspensão do processo de execução fiscal referido em 2) – facto não controvertido, cfr. documento de fls. 119 a 125 da paginação eletrónica e cfr. informação de fls. 110 da paginação eletrónica;
4-Em 8 de fevereiro de 2018, o Diretor da Direção de Finanças de Viseu proferiu despacho a aceitar a garantia prestada pela reclamante sob a forma de fiança – facto não controvertido, cfr. documento de fls. 104 a 107 da paginação eletrónica e cfr. informação constante de fls. 110 da paginação eletrónica;
5-A reclamante apresentou reclamação graciosa contra a autoliquidação de CESE de 2017, mas a mesma foi objeto de indeferimento – facto não controvertido e cfr. informação constante de fls. 110 da paginação eletrónica;
6-A reclamante deduziu impugnação judicial contra a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, neste Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, no processo que correu termos sob o n.º 314/18.3BEVIS – facto não controvertido e cfr. informação constante de fls. 111 da paginação eletrónica;
7-A impugnação judicial referida na alínea precedente foi julgada improcedente – facto não controvertido e cfr. informação constante do documento de fls. 185 a 200 da paginação eletrónica;
8-Da decisão de improcedência da impugnação judicial a reclamante interpôs recurso para o Supremo Tribunal Administrativo que negou provimento ao recurso – facto não controvertido, cfr. documento ... junto com a contestação de fls. 185 a 200 da paginação eletrónica;
9-A reclamante interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, mas foi negado provimento ao recurso – facto não controvertido e cfr. documento de fls. 201 a 230 da paginação eletrónica;
10-A decisão de indeferimento do processo de impugnação judicial n.º 314/18.3BEVIS transitou em julgado – facto não controvertido;
11-Após apuramento dos valores dos ativos decorrentes dos ajustamentos da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) aos proveitos permitidos, a reclamante procedeu à entrega de uma declaração de substituição referente à CESE de 2017, mas não pagou o montante que dela resultou - € 7.103,47 – facto não controvertido;
12-O Serviço de Finanças de Viseu extraiu a certidão de dívida contra a reclamante no montante de € 7.103,47, referente à CESE de 2017, e instaurou-lhe o processo de execução fiscal n.º ... para cobrança coerciva de tal montante – cfr. documento de fls. 231 e 232 da paginação eletrónica;
13-Em 27 de fevereiro de 2020, a reclamante manifestou a intenção de contestar a legalidade da dívida da liquidação adicional de CESE e procedeu à entrega da fiança prestada pela B..., SGPS, S.A. (NIPC ...) até ao montante de € 632.514,30, tendo em vista a suspensão do processo de execução fiscal n.º ... – cfr. documento de fls. 233 a 238 da paginação eletrónica;
14-A reclamante apresentou reclamação graciosa contra a autoliquidação de CESE resultante da submissão da declaração de substituição referida em 12), a qual veio a ser indeferida – facto não controvertido;
15-A reclamante deduziu impugnação judicial, neste Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, contra a decisão de indeferimento da reclamação graciosa que manteve a autoliquidação de substituição de CESE do ano de 2017, no processo que ainda corre termos sob o n.º 315/20.1BEVIS – facto não controvertido e cfr. documento de fls. 276 a 280 da paginação eletrónica;
16-No processo de impugnação n.º 315/20.1BEVIS, a reclamante impugnou o ato tributário de autoliquidação da CESE, referente ao ano de 2017, no montante total de € 501.355,50, sendo este o valor que atribuiu à ação – cfr. petição inicial do processo 315/20.1BEVIS, constante do documento de fls. 276 a 280 da paginação eletrónica;
17-Em 25 de janeiro de 2023, a reclamante apresentou requerimento junto do Serviço de Finanças de Viseu no qual solicitou a manutenção da suspensão do processo de execução fiscal n.º ...14 até que seja proferida decisão transitada em julgado no âmbito do processo de impugnação judicial n.º 315/20.1BEVIS, uma vez que a totalidade da dívida exequenda está a ser discutida no processo de impugnação n.º 315/20.1BEVIS e porque já se encontram prestadas e aceites duas garantias a favor da Administração Tributária para suspensão dos respetivos processos de execução fiscal – cfr. documento ... junto com a contestação, de fls. 34 a 36 da paginação eletrónica e cfr. documento de fls. 114 a 118 da paginação eletrónica;
18-Em 14 de fevereiro de 2023, através de correio eletrónico dirigido ao mandatário da reclamante, o Chefe do Serviço de Finanças de Viseu indeferiu o pedido referido na alínea antecedente, nos seguintes termos:
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19-Em 15 de fevereiro de 2023, a reclamante remeteu a presente reclamação do ato do órgão de execução fiscal – cfr. informação constante de fls. 110 da paginação eletrónica.
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A sentença recorrida considerou como factualidade não provada a seguinte: "…Com relevância para a decisão do mérito, inexistem factos não provados…".
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Por sua vez, a fundamentação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida é a seguinte: "…Na determinação do elenco dos factos considerados provados, o Tribunal considerou e analisou, de modo crítico e conjugado, os documentos e informações constantes dos presentes autos, conforme o especificado nas várias alíneas da factualidade dada como provada, documentos esses que não foram impugnados e que, pela sua natureza e qualidade, mereceram total credibilidade por parte do Tribunal, por não haver razões para duvidar da sua fidedignidade…".
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ENQUADRAMENTO JURÍDICO
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Em sede de aplicação do direito, a decisão recorrida julgou totalmente procedente a presente reclamação de acto do órgão de execução fiscal, em consequência do que anulou a decisão reclamada (cfr.nº.18 do probatório supra).
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Relembre-se que as conclusões das alegações do recurso definem, como é sabido, o respectivo objecto e consequente área de intervenção do Tribunal "ad quem", ressalvando-se as questões que, sendo de conhecimento oficioso, encontrem nos autos os elementos necessários à sua integração (cfr.artº.639, do C.P.Civil, na redacção da Lei 41/2013, de 26/6, "ex vi" do artº.281, do C.P.P.Tributário).
O apelante dissente do julgado alegando, em sinopse, que consentir na possibilidade do contribuinte poder beneficiar da suspensão do processo de execução fiscal por via de ter declarado na sua petição inicial da impugnação que esta tem em vista a anulação de toda a liquidação, em clara violação do artº.59, nº.6, do C.P.P.T., e da autoridade do caso julgado da decisão que julgou a primitiva liquidação legal, viola o regime constante dos artºs.52, da L.G.T., e 169, do C.P.P.T. Que a primitiva liquidação da CESE do ano de 2017, cuja cobrança coerciva é objecto do PEF ..., já foi julgada legal por decisão judicial transitada em julgado. Que a decisão recorrida incorreu em erro de julgamento, consubstanciado na errada interpretação e aplicação dos preceitos legais convocados para sustentar a revogação do acto em crise no processo, nomeadamente, os artºs.52, da L.G.T., e 169, do C.P.P.T. (cfr.conclusões a) a z) do recurso). Com base em tal alegação pretendendo concretizar um erro de julgamento de direito da decisão recorrida.
Examinemos se a decisão objecto do presente recurso comporta tal vício.
Os casos em que a execução fiscal se pode suspender estão previstos no artº.169, do C.P.P.T. (cfr.artº.52, da L.G.T.), consubstanciando um deles a hipótese em que o próprio executado oferece uma garantia idónea susceptível de assegurar os créditos do exequente (cfr.artº.199, do C.P.P.T.). O acto tributário que constitui a dívida exequenda vê, assim, como que a sua eficácia suspensa a partir do momento em que o Estado assegurou (através da garantia) a efectiva cobrança do crédito que se atribui (cfr.Diogo Leite de Campos e Outros, Lei Geral Tributária Anotada e comentada, 4ª.Edição, Editora Encontro da Escrita, 2012, pág.423 e seg.; Jorge Lopes de Sousa, C.P.P.Tributário anotado e comentado, III volume, 6ª. Edição, 2011, pág.411 e seg.; Carlos Paiva, O processo de Execução Fiscal, 4ª. Edição, Almedina, 2016, pág.206 e seg.).
O regime exposto é, obviamente, uma manifestação dos princípios da proporcionalidade e da suficiência, os quais sempre devem presidir à constituição da garantia e sua manutenção, durante as vicissitudes que podem ocorrer no processo de execução fiscal suspenso.
"In casu", o Tribunal "a quo" concluiu que se encontra em curso a discussão da legalidade da liquidação resultante da declaração de substituição a correr termos a coberto do processo 315/20.1BEVIS e que a reclamante/recorrida mantém as garantias oportunamente decididas como idóneas nos processos de execução fiscal em causa, pelo que se encontram reunidos os pressupostos para a manutenção da suspensão dos processos de execução fiscal em causa, nomeadamente, do processo nº...., assim anulando a decisão do O.E.F. reclamada.
A entidade recorrente não concorda, por entender que nos casos em que já há uma decisão transitada em julgado que confirma a legalidade da primitiva liquidação e em que na segunda liquidação está em causa a diferença de valores a favor da A. Fiscal, a impugnação desta segunda liquidação também só pode ter por objecto essa diferença de valores, porque da apresentação da declaração de substituição não pode resultar a anulação dos efeitos do julgado anterior. Logicamente, a pendência dessa impugnação também só pode suspender a execução instaurada para cobrança dessa diferença de valores.
Vejamos quem tem razão.
Observemos, antes de mais, que, para indeferir o pedido de suspensão da execução fiscal a que se reporta a presente reclamação, o O.E.F. competente adoptou como pressuposto que no âmbito do processo de impugnação judicial ainda em curso (processo 315/20.1BEVIS) não vinha contestada a legalidade da dívida cobrada na execução nº. ... (relativa à liquidação inicial de CESE identificada nos nºs.1 e 2 do probatório supra), mas antes, e somente, a legalidade da dívida cobrada na execução fiscal nº.... (relativa à liquidação resultante da declaração de substituição identificada nos nºs.11 e 12 da factualidade provada), tudo conforme se retira do nº.18 do probatório acima estruturado.
No entanto, no ponto 16 dos factos provados, o Tribunal de primeira instância deu como assente que a impugnação judicial ainda em curso (315/20.1BEVIS) tinha por objecto a autoliquidação da totalidade da CESE de 2017, assim englobando, por isso, a dívida cobrada em ambas as execuções fiscais identificadas na matéria de facto supra exarada.
O julgamento da matéria de facto não faz parte do âmbito deste recurso, pelo que, devemos dar como assente que a entidade que proferiu a decisão administrativa reclamada partiu de um pressuposto que, no caso, não se verifica.
Avançando.
Da exegese dos artºs.52, da L.G.T., 169 e 199, ambos do C.P.P.T., resulta a conclusão de que, instaurada a execução fiscal, a sua suspensão apenas pode ser decretada nos casos previstos na lei, sendo que para esse efeito importa, por um lado, que o sujeito passivo interponha o competente meio de discussão da legalidade/inexigibilidade da dívida exequenda e, ao mesmo, esteja associada uma garantia idónea ou tenha sido dispensado da sua prestação, podendo, no entanto, a garantia prestada ser objecto da competente substituição desde que demonstrados os respectivos pressupostos legais.
Nos presentes autos o objecto da lide reconduz-se à apreciação da legalidade/validade do acto reclamado, concretamente, se é de manter a suspensão do processo de execução fiscal, tendo em conta os respectivos pressupostos legais, em nada podendo comportar uma apreciação atinente ao âmbito e extensão da lide de impugnação 315/20.1BEVIS, mormente, se é legítima a dedução de uma impugnação judicial adveniente de uma declaração de substituição, e se a mesma pode acarretar a anulação da totalidade do acto impugnado, incluindo o abarcado pela liquidação inicial de CESE.
Com efeito, a recorrente incorre em confusão conceptual, não só com o âmbito e delimitação das lides de impugnação judicial e da reclamação de actos do O.E.F., mas, igualmente, com a própria concretização e extensão do caso julgado, mormente, na sua dimensão material.
Dir-se-á, portanto, que se o alcance e extensão do objecto dirimido no processo de impugnação judicial 314/18.3BEVIS, cuja decisão já transitou em julgado, está a ser correcta, ou incorrectamente, apreciado no processo 315/20.1BEVIS, não comporta, nem pode comportar, as consequências que lhe pretende granjear a entidade recorrente para a presente lide, sendo certo que, não lhe assiste razão quando propugna pela manutenção "ad aeternum" da suspensão executiva, desde logo, atento o normativamente consignado no artº.3, nº.4 (normativo que legitima as declarações de substituição) e no artº.7, nº.5, ambos do regime da CESE, aprovado pela Lei 83-C/2013, de 31/12.
Ademais, importa ter presente que existindo utilizações abusivas e manobras dilatórias, sempre a parte lesada pode adoptar as medidas e os mecanismos de reacção reputados de relevo para a reposição da verdade, seja no plano cautelar e perfunctório, seja no plano da tutela definitiva, não podendo, sem mais, enveredar-se por uma remoção liminar.
Regressando à exegese do citado artº.169, nº.1, do C.P.P.T., de tal normativo se retira que a execução fica suspensa, além do mais, em caso de impugnação judicial que tenha por objecto a legalidade da dívida exequenda e a cobrança da dívida esteja garantida. E o que resulta do teor literal desta norma é que, para efeitos da suspensão da execução, o que releva é o objecto que a impugnação tem, que não o objecto que, na perspectiva da Fazenda Pública, a impugnação possa ou deva ter.
Ao relacionar a suspensão da execução com o objecto da impugnação, o legislador não pode ter deixado de levar em conta o regime processual que instituiu no mesmo código para o processo de impugnação dos actos de liquidação (cfr.artºs.99 e seg. do C.P.P.T.), do qual decorre que o objecto do processo impugnatório é delimitado pela pretensão impugnatória e, mediatamente, pelo acto impugnado. No caso, o acto de autoliquidação de CESE.
Assim, ao dispor que a execução fica suspensa quanto pender impugnação que tenha por objecto a legalidade da dívida exequenda, o legislador não poderia ter pretendido investir a A. Fiscal no poder de formular um juízo sobre os pressupostos, ou o conteúdo, do processo de impugnação, ao decidir da suspensão.
A nosso ver, esta interpretação é também a única que salvaguarda a lógica do regime. Faz sentido que a Fazenda Pública seja investida no poder de decidir da suspensão da execução se esta não estiver dependente de um juízo de prognose que implique a análise dos pressupostos ou do mérito da pretensão impugnatória. De outro modo, o que faria sentido é que a decisão respectiva fosse atribuída à entidade com competência para a decisão da impugnação.
No sentido acabado de defender se pronunciou, muito recentemente, este Tribunal em processo paralelo ao presente (cfr.ac.S.T.A.-2ª.Secção, 7/06/2023, rec. 0807/22.8BEAVR).
Por último, não vislumbra esta instância judicial de controlo que a sentença recorrida tenha violado o disposto nos artºs.59, nº.6, do C.P.P.T. (norma que relaciona a apresentação de declaração de substituição com os prazos legais consagrados para a contestação, graciosa ou contenciosa, do acto tributário), 619, nº.1 (regra que define a autoridade de caso julgado da sentença que decida do mérito da causa), e 625, nº.1, ambos do C.P.Civil (preceito que pretende dirimir a existência de casos julgados contraditórios incidentes sobre a mesma pretensão), contrariamente ao defendido pela entidade recorrente.
Sem necessidade de mais amplas considerações, nega-se provimento ao presente recurso e confirma-se a sentença recorrida, ao que se provirá na parte dispositiva deste acórdão.
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DISPOSITIVO
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Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO deste SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO EM NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO E CONFIRMAR A DECISÃO RECORRIDA, a qual, em consequência, se mantém na ordem jurídica.
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Condena-se a recorrente em custas, na presente instância de recurso (cfr.artº.527, do C.P.Civil), mais se dispensando do pagamento do remanescente da taxa de justiça, na parte em que excede € 275.000,00.
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Registe.
Notifique.
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Lisboa, 13 de Julho de 2023. - Joaquim Manuel Charneca Condesso (relator) – José Gomes Correia - Gustavo André Simões Lopes Courinha.