Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0939/09
Data do Acordão:11/18/2009
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:MIRANDA DE PACHECO
Descritores:EXECUÇÃO FISCAL
PENHORA
BENS PENHORÁVEIS
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
CERTIFICADO DE AFORRO
Sumário:I - Os certificados de aforro titulam um negócio jurídico através do qual os particulares entregam dinheiro ao Estado tendo em vista a obtenção de proventos remuneratórios, representando dívida da República Portuguesa.
II - O disposto no artigo 20.º da Lei n.º 7/98, de 3 de Fevereiro, ao revogar a norma constante do n.º 4 do artigo 22.º do Decreto n.º 43.453 que determinava a impenhorabilidade dos certificados de aforro, não se aplica aos certificados da série "B" que foram criados ao abrigo do DL n.º 172-B/86 de 30 de Junho.
Nº Convencional:JSTA00066123
Nº do Documento:SA2200911180939
Data de Entrada:10/01/2009
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAF PORTO PER SALTUM.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - EXEC FISCAL.
Legislação Nacional:DL 172-B/86 DE 1986/06/03 ART16.
D 43453 DE 1960/12/30 ART22 N4.
L 7/98 DE 1998/02/03 ART20.
DL 122/2002 DE 2002/05/04 ART2 N1.
DL 48214 DE 1968/01/22 ART7.
CCIV66 ART12 N1 N2.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
1- A Fazenda Pública vem recorrer da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que concedeu provimento à reclamação deduzida por A… com os sinais dos autos, da decisão do Chefe de Finanças do Porto 3 que ordenou a penhora, através do Sistema de Penhoras Automáticas (SIPA) de certificados de aforro existentes no Instituto de Gestão de Tesouraria e do Crédito Público, no valor de € 7.847,75, em consequência do que revogou o despacho reclamado, tendo formulado as seguintes conclusões:
1. A questão a dirimir nos presentes autos prende-se com o facto de saber se os certificados de aforro penhorados em 27-12-2006 e 28-10-2008, nos montantes de € 6 739,80 e € 1 107,95, respectivamente, no âmbito do processo de execução fiscal n.° 3360200501041169, eram ou não passíveis de penhora, atenta a impenhorabilidade decorrente da lei, que vigorou até 28-02-1998.
2. Na Douta sentença recorrida decidiu-se pela revogação do despacho que ordenou a penhora dos certificados de aforro, com fundamento na sua impenhorabilidade, uma vez que a aquisição (emissão) daqueles ocorreu em data anterior à da entrada em vigor da norma que revogou a impenhorabilidade.
3. Contrariamente, e salvo o devido respeito, entende a Fazenda Pública que a penhora deve subsistir uma vez que, aquando da sua concretização, não existia qualquer norma legal que determinasse a impenhorabilidade dos certificados de aforro.
4. Enquadrando juridicamente a situação sub judice, verifica-se que o art.° 16° do DL n.° 172-B/86, diploma que criou os certificados de aforro da “série B”, estatuia que lhes era aplicável o disposto no art.° 7° do DL n.° 48 214, de 22-01-1968, que, por sua vez, preceituava que os certificados de aforro gozavam dos direitos, isenções e garantias consignados no art.° 58° da Lei n.° 1933, de 13-02-1936 e no art.° 22° do DL n.° 43453, de 30-12-1960.
5. Estabelecendo o § 4° do art.° 22° do citado DL n.° 43 453, de 30-12-1960, a impenhorabilidade dos certificados de aforro.
6. Sucede que, o mencionado art.° 22° do DL n.° 43 453 foi revogado, com efeitos a partir de 01-03-1998, pelo art.° 20° da Lei n.° 7/98, de 3/2, diploma que veio estabelecer o regime geral de emissão e gestão da dívida pública.
7. Assim sendo, a partir dessa data, os certificados de aforro deixaram de ser considerados bens impenhoráveis.
8. Ora, considerando que os certificados de aforro são valores escriturais nominativos, reembolsáveis, representativos de dívida pública da República Portuguesa, denominados em moeda com curso legal em Portugal e destinados à captação da poupança familiar (cfr. n.° 1 do art.° 2° do DL n.° 122/2002, de 4/5).
9. Considerando que fazem parte do património de uma pessoa, da mesma forma que o fazem, designadamente, os bens móveis e imóveis, sendo passíveis de conversão em dinheiro (valor nominal adicionado dos juros capitalizados), após a sua penhora, com vista ao pagamento da dívida exequenda.
10. Tendo em conta que todos os bens do devedor, que nos termos da lei substantiva sejam susceptíveis de penhora, respondem pela dívida exequenda e, consequentemente, podem ser executados (cfr. Artºs 601° do CC e 821° do CPC).
11. Não resultando, das leis em vigor, qualquer impenhorabilidade absoluta, relativa ou parcial, no que aos certificados de aforro diz respeito (cfr. Artºs 822° a 824° do CPC).
12. Antes pelo contrário, resultando clara a sua penhorabilidade, nos termos do disposto no DL n.° 122/2002, de 4/5, que estabelece o regime jurídico dos certificados de aforro, quando determina, na alínea c) do n.° 1 do seu art.° 10°, que o Instituto de Gestão do Crédito Público (IGCP) estabelecerá o montante das taxas a cobrar aos interessados pela prestação de serviços de fiel depositário em caso de penhora sobre os certificados de aforro.
13. Assim, afigura-se-nos legítimo concluir, contrariamente ao decidido na Douta sentença de que ora se recorre, que os certificados de aforro são susceptíveis de penhora, tendo o órgão de execução fiscal, ao determiná-la, actuado em estrita obediência à Lei.
14. Caso assim não se entendesse, estar-se-ia a consagrar uma impenhorabilidade dos referidos bens “ad eternum”, situação que, na nossa modesta opinião, não estava no espírito do legislador quando tomou a decisão de revogar a norma que consagrava o referido regime de impenhorabilidade.
15. Na verdade, salvo melhor opinião, pretendeu o legislador com a revogação do art.° 22° do DL n.° 43 453, efectivada por intermédio do art° 20° da Lei n.° 7/98, revogar, a partir da entrada em vigor dessa Lei (01-03-1998), a impenhorabilidade dos certificados de aforro, tornando possível a sua penhora, independentemente da data em que os mesmos foram adquiridos.
16. Finalmente, acresce ainda salientar que não se verifica qualquer aplicação retroactiva da lei, porquanto a penhora apenas produziu os seus efeitos em momento posterior à da revogação da norma que consagrava a impenhorabilidade dos certificados de aforro.
17. Ora, tendo a Douta sentença sob recurso decidido no sentido da impenhorabilidade de tais bens, revogando o despacho que determinou a sua penhora, entende a Fazenda Pública que a mesma incorreu em erro de julgamento na aplicação do direito, por violação do disposto nos art.ºs 200 da Lei n.° 7/98, 601° do CC e 821° do CPC, infringindo o disposto no art.° 659° n.° 2 do CPC, aplicável ex vi alínea e) do art.° 2° do CPPT.
2-O recorrido A… contra-alegou nos termos que constam de fls. 156 e seguintes e em que conclui pela improcedência do recurso.
3-O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer nos seguintes termos:
“A questão objecto do presente recurso reporta-se à impenhorabilidade dos certificados de aforro.
Refere a recorrente que tendo o art º2 22v, § 4 do Decreto 43453 sido revogado pelo art 20º da Lei 7/98, os certificados de aforro deixaram de ser considerados bens impenhoráveis.
E que a interpretação que a decisão recorrida faz da Lei 7/98 consagra a impenhorabilidade dos referidos bens «ad eternum», o que não estaria no espírito do legislador quando tomou a decisão de revogar a norma.
A nosso ver, e pese embora não se concorde com a sentença recorrida no que respeita à aplicação no tempo da Lei 7/98, o presente o recurso não merece provimento porque se entende que os certificados de aforro são, por natureza, impenhoráveis.
Com efeito, e como bem sublinha a recorrida, os certificados de aforro apenas podem ser emitidos a favor de pessoas singulares, são nominativos, e só são transmissíveis por morte (art 3.º, n.º 1 do Decreto-Lei 172-B/86, de 30. 06).
Quer isto dizer que os certificados de aforro não podem ser negociados nem endossados, sendo a sua impenhorabilidade uma consequência natural da sua inalienabilidade (art 822º, al. a) do Código de Processo Civil).
É que, como referem José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado, Rui Pinto, Código de Processo Civil anotado, vol, IIJ, pags. 344-345 «uma vez que a penhora consiste na apreensão de um bem com vista a uma ulterior transmissão, seria inútil admiti-la quando, segundo a lei substantiva, o bem apreendido é objectivamente indisponível . São, pois, impenhoráveis, além dos do domínio público do Estado (...) os bens inalienáveis do domínio privado».
Nestes termos e com estes fundamentos, por se entender que os certificados de aforro so efectivamente impenhoráveis, tal como decidido na sentença recorrida, somos de parecer que o presente recurso deve ser julgado improcedente, confirmando-se o julgado recorrido.
Sem vistos, dada a natureza urgente do processo, cumpre decidir.
4-A sentença recorrida fixou a seguinte matéria de facto:
1. Em 2005.08.25 Administração Fiscal instaurou processo de execução fiscal n.° 3360200501041 169, contra B…, entretanto falecida, por dívidas de Imposto Sobre o Rendimento do ano de 2001, no montante de 5.748,98 €;
2. A participação do óbito teve como participante A… ora reclamante;
3. Foram penhorados certificados de aforro no valor de 6.739,80 € e 1.017,95 €, com os n.° de pedidos 336020060000058350 e 336020080000019899, respectivamente - tudo conforme SIPA constante de fls. 11 dos autos que aqui se dá por integralmente reproduzido;
4. Os certificados de aforro penhorados são da série B e foram emitidos em 13.09.1989 (doc. de fls. 125 dos autos).
5. Por ofício n.° 8446 datado de 17.11.2008, foi expedida carta registada com aviso de recepção, da penhora dos certificados de aforro dirigido a A… — cfr. fls. 14 a 16 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
6. Por ofício n.° 8699 datado de 28.11.2008, foi expedida carta registada com aviso de recepção, da penhora dos certificados de aforro e certidão de dívida dirigido a A… — cfr. fls. 17 a 19 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
7. Foi apresentada reclamação na Repartição de Finanças do 3° Bairro Fiscal do Porto em 04.12.2008;
5- A questão que importa conhecer no presente recurso jurisdicional prende-se em saber se os certificados de aforro da série “B” emitidos a 13/09/89, criados pelo DL n.º 172-B/86, de 30 de Junho, podem ou não ser objecto de penhora.
No sentido negativo se entendeu na sentença recorrida e daí que tenha sido concedido provimento à reclamação deduzida da decisão do Chefe de Finanças Porto 3 que ordenou a penhora dos certificados de aforro nos processos de execução fiscal em causa nos autos.
Para tanto, ponderou-se na sentença, no essencial, que muito embora a norma que previa a impenhorabilidade desses certificados (artigo 22.º n.º 4 do Decreto n.º 43453, de 30/12/60) tenha sido revogada pelo artigo 20.º da Lei n.º 7/98, de 3 de Fevereiro, o certo é que este preceito não fixava efeitos retroactivos e daí que se tivesse mantido a garantia de impenhorabilidade que “estava determinada pela lei aquando da sua emissão”.
Por seu turno, a Fazenda Pública vem defender, em suma, que a penhora dos certificados devia subsistir uma vez que, aquando da sua concretização, não existia qualquer norma legal que determinasse a respectiva impenhorabilidade.
Vejamos.
Os certificados de aforro titulam um negócio jurídico através do qual os particulares entregam dinheiro ao Estado tendo em vista a obtenção de proventos remuneratórios, representando dívida pública da República Portuguesa (cfr. n.º 1 do artigo 2.º do DL n.º 122/2002, de 4/5), sendo nessa medida, por outra parte, instrumentos de dívida criados com o objectivo de captar a poupança das famílias.
Têm, assim, os certificados de aforro uma base contratual assente num contrato de adesão que se consubstancia na respectiva subscrição por parte dos particulares.
Ora, é neste enquadramento jurídico que o artigo 16.º do DL n.º 172-B/86, de 30/6, diploma que criou os certificados de aforro da série “B”, previa que lhes era aplicável o disposto no artigo 7.º do DL n.º 48.214. de 22/01/68, donde resultava que os certificados de aforro gozavam, entre outros direitos e isenções, da garantia de impenhorabilidade prevista no n.º 4 do artigo 22.º do Decreto n.º 43.453.
Doutra parte, dispunha o artigo 3.º, n.º 1 do já aludido DL n.º 172-B/86 que “ os certificados de aforro são nominativos, reembolsáveis, só transmissíveis por morte e assentados apenas a pessoas singulares”.
Mais tarde, acontece que pelo artigo 20.º da Lei n.º 7/98, de 3/2, foi revogado o artigo 22.º do Decreto n.º 43.453 e daí que a impenhorabilidade dos certificados de aforro deixasse de estar expressamente determinada na lei.
Aqui chegados, impõe-se apurar se esta norma revogatória possui a virtualidade de afectar pela sua actuação retroactiva os certificados de aforro subscritos em momento anterior à sua entrada em vigor.
Acompanhando a sentença sob recurso, consideramos que não.
De facto, em matéria de aplicação das leis no tempo, o regime dos contratos está abrangida, a contrario, pela parte final do n.º 2 do artigo 12 do Código Civil, na medida em que, prevendo que há leis que dispõem sobre os factos jurídicos abstraindo dos factos que lhe dão origem (leis que serão de aplicação imediata às situações anteriores que subsistam), deixa entrever, a contrario, que há leis que regulam o conteúdo das relações jurídicas sem abstrair do facto que lhes deu origem, a que continua a aplicar-se a lei antiga.
É isso que sucede com os contratos.
Sendo assim, não vemos como possa ser postergado o princípio de que a lei só dispõe para o futuro (artigo 12.º, n.º 1 do CC), na ausência de norma expressa que diga o contrário, e daí que o quadro de isenções, direitos e garantias de que os certificados de aforro gozavam na altura em que foram subscritas, os quais, como acima se disse, titulam um negócio jurídico de empréstimo de dinheiro ao Estado concretizado num contrato de adesão, não possa ser objecto de supressão por lei posterior.
Para mais, não pode ser afastada a possibilidade desse quadro de regalias ter sido um dos componentes do núcleo essencial de factores que influenciaram a formação de vontade do recorrido no momento da subscrição dos certificados.
Bem se andou, pois, na sentença recorrida ao concluir pela impenhorabilidade dos certificados de aforro da série “B”, emitidos a 13/09/89.
Termos em que se acorda negar provimento ao recurso, mantendo-se, em consequência, a sentença recorrida.
Custas a cargo da Fazenda Pública, fixando-se a procuradoria em 1/8.
Lisboa, 18 de Novembro de 2009. – Miranda de Pacheco (relator) – Lúcio Barbosa – Jorge Lino.