Acórdão do Tribunal dos Conflitos | |
Processo: | 024/22 |
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Data do Acordão: | 12/11/2024 |
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Tribunal: | CONFLITOS |
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Relator: | ANTÓNIO MOURA MAGALHÃES |
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Descritores: | CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO |
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Sumário: | ![]() |
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Nº Convencional: | JSTA000P32994 |
Nº do Documento: | SAC20241211024 |
Recorrente: | CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LISBOA, JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LISBOA – J13 E OS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS RECORRENTE: AA RECORRIDOS: BANCO 1..., S.A. E OUTROS |
Recorrido 1: | * |
Votação: | UNANIMIDADE |
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Área Temática 1: | * |
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Aditamento: | ![]() |
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Texto Integral: | Acordam os Juízes, em conferência, no Tribunal de Conflitos: * AA intentou no Juízo Central Cível da Comarca de Lisboa, em 16.2.2017, acção declarativa de condenação com processo na forma comum, contra o Banco 1, S.A, Banco de Portugal, Banco 2..., S.A., Fundo de Resolução, CMVM - Comissão de Mercado de Valores Mobiliários e BB, pedindo a condenação solidária dos Réus no pagamento da quantia de €535.215,70, acrescida de juros vencidos (€131.115,37) e vincendos. Subsidiariamente, pediu a declaração de nulidade do contrato de intermediação financeira a que se reporta, por inobservância de forma, nos termos do art. 321º do CVM, com a consequente condenação solidária dos Réus na restituição da quantia de €535.215,70, acrescida de juros vencidos (€131.115,37) e vincendos. Mais pediu a condenação solidária dos Réus no ressarcimento dos danos não patrimoniais que lhe foram causados em valor a ser calculado em sede de liquidação de sentença.Alegou para o efeito, em síntese, que: - É cliente do 1º Réu desde há mais de 15 anos, no qual abriu diversas contas bancárias, sediadas em país estrangeiro, e onde foram aplicadas a quase totalidade do seu dinheiro e das suas poupanças. - O Autor deu sempre instruções à 6ª Ré, que era a gestora da conta, no sentido de não pretender que a aplicação do seu dinheiro fosse feita em produtos sem qualquer risco associado, querendo ter a certeza de que tinha o capital garantido e disponível para qualquer eventualidade. - A gestora de conta sempre lhe respondeu que a aplicação era “como depósitos a prazo”, pois que se tratava de produtos da titularidade do 1.º Réu e por isso eram totalmente garantidos. - Foi assim que, no âmbito das suas funções e sob a subordinação ao 1º Réu, a 6ª Ré aplicou a quantia de €535.215,70 do Autor na compra de produtos estruturados que constam actualmente da sua “Carteira de Títulos Custódia”, não obstante o 1.º Réu e a 6ª Ré saberem que o Autor apenas queria confiar o seu dinheiro em produtos seguros e com disponibilidade imediata de capital em caso de pedido de reembolso. - Em 3 de Agosto de 2014, o Banco de Portugal decidiu-se pela aplicação da medida de resolução ao 1.º R., criando o Banco 2..., S.A. (o 3º Réu) e determinou que os activos de real valor fossem transferidos para este. - O 1.º Réu criou uma provisão do valor de produtos vendidos, assumindo assim o seu reembolso, sendo que em momento algum a rubrica contabilística “provisão” constituída pelo 1.º Réu anteriormente à medida de resolução consta dos itens excluídos e elencados no Anexo 2 à deliberação do 2.º Réu de 3 de agosto de 2014, donde se conclui que aquela obrigação de reembolso terá sido transferida para o 3º Réu, havendo assim uma assunção de obrigação de reembolso conjunta do 2.º Réu (Banco de Portugal) e do 3.º Réu (Banco 2..., S.A). - Neste quadro de atuação ilegal do 1.º Réu junto dos seus clientes, não se podem esquecer os deveres de supervisão que legalmente competem ao 2.º Réu e à 5.ª Ré, cujo incumprimento deverá resultar na sua co-responsabilização na obrigação de devolução dos montantes investidos, recorrendo-se aos montantes sob tutela do 4.º Réu. - Sobre os 1.º, 2.º, 3.º, 5.º e 6.ª Réus recaíam deveres de conduta de informação, diligência e lealdade, que não foram observados. O Réu Banco 1... S.A. - Em Liquidação contestou, pugnando pela extinção da instância no que lhe respeita, nos termos do art. 277º, alínea e) do CPCivil, em consequência da deliberação tomada no dia 13 de Julho de 2016 pelo Banco Central Europeu, que revogou a autorização para o exercício da respectiva actividade. Os Réus Banco de Portugal, Fundo de Resolução e Comissão do Mercado de Valores Mobiliários contestaram, suscitando a excepção da incompetência material do tribunal, sustentando que a competência para apreciar o feito em questão pertence aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal. Para a hipótese de assim não se entender, concluíram todos pela improcedência da acção. O Réu, Banco 2..., S.A. e a Ré BB contestaram, sustentando a respectiva ilegitimidade e a improcedência da acção. Foi proferida decisão que julgou materialmente incompetente o Tribunal, sendo todos os Réus absolvidos da instância, com excepção do 1º, em relação ao qual foi declarada extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide. Inconformado com o assim decidido, o Autor apelou, mas sem êxito, pois que a Relação de Lisboa (com um voto de vencido) julgou improcedente o recurso e confirmou a decisão recorrida. Ainda inconformado, interpôs o Autor recurso de revista excepcional para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões: “1. Vêm as presentes alegações de recurso interpostas do Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 28/06/2018, que julgou improcedente a Apelação e, em consequência, manteve a decisão da Primeira Instância, quanto ao R. Banco 1.... 2. Assim, não se conforma, o ora Recorrente, com o entendimento de direito que pugna pela confirmação da decisão de absolvição da instância do Réu, Banco 1..., S.A., (doravante apenas designado por Banco 1...) com fundamento na inutilidade superveniente da lide, por efeito da revogação pelo Banco Central Europeu, da autorização para o exercício da atividade bancária do Banco 1..., legalmente equiparada à declaração de insolvência, olvidando que se discutem outras questões de índole não patrimonial, e ainda, que até à presente data não foi decretada com efeito pleno. 3. Bem como discorda a ora Recorrente, da interpretação feita pela Segunda Instância do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Uniformização de Jurisprudência (AUJ) n° 1/2014, de 08.05.2013. 4. Existindo outros Acórdãos das Relações, designadamente o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 29-01-2015, e o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15-04-2013 (acórdãos fundamento), que apreciaram a mesma questão e julgaram em sentido contrário ao Acórdão em apreço, sem contudo, entrar em contradição com o AUJ acima referido por se tratar de questão fundamental de direito diversa. 5. Assim, entende o Recorrente, que o fundamento da presente Revista radica em erro de interpretação e aplicação da lei processual, concretamente, da alínea e) do artigo 277° do Código de Processo Civil, por duas ordens de razão: 6. Em Primeiro Lugar, porque o pedido da presente ação declarativa, não tem índole exclusivamente patrimonial, uma vez que o recorrente de entre outras questões, trouxe à colação a questão da nulidade do contrato de intermediação financeira, pedindo em consequência, a indemnização que por essa causa lhe entende ser devida. 7. O Tribunal de primeira instância responsável pelo processo de insolvência do Réu, ora Recorrente Banco 1..., limitar-se-á a verificar e reconhecer créditos da insolvente, não lhe cabendo decidir sobre a constituição da obrigação de prestar. 8. Resulta do Acórdão Fundamento do Tribunal da Relação de Évora de 29-01-2015, que: “Por causa da pendência do processo de insolvência não tem que ser julgada extinta uma ação que não visa a declaração de qualquer direito de crédito, mas em que se pede que sejam declarados nulos ou resolvidos os negócios jurídicos celebrados entre as partes, ou seja, em que só estão em causa efeitos reais inerentes à nulidade/resolução/anulação peticionados" 9. E assim, discutindo-se a nulidade de negócios jurídicos celebrados entre as partes, a insolvência não determina a inutilidade superveniente da lide declarativa, ao contrário do decidido no Acórdão sub judice. 10. Em segundo lugar, o despacho de prosseguimento nos termos do artigo 9º do DL. 199/2006 aquele Tribunal de Primeira instância responsável pelo processo de liquidação judicial do Recorrido Banco 1..., não declarou aberto o incidente de qualificação da insolvência, e tal significa então, que ainda não é possível determinar se o património do devedor insolvente será suficiente para responder pelos créditos reclamados. 11. Resulta do Acórdão Fundamental do Tribunal da Relação do Porto de 15-04-2013, que: “A declaração de insolvência do empregador, não conduz de imediato à inutilidade superveniente da lide da ação declarativa proposta pelo trabalhador, quando na sentença de declaração de insolvência foi declarado aberto o incidente de qualificação de insolvência com carácter limitado, e não veio a ser requerida a complementação da sentença.”. 12. Assim, não se encontrando aberto o incidente de qualificação da insolvência, não se poderá concluir pela imediata inutilidade superveniente da lide, e em consequência não será de absolver o Recorrente da instância declarativa, ao contrário do perfilhado no Acórdão em Recurso. 13. Não está assim, em causa, a aplicação do entendimento sufragado no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (AUJ) n° 1/2014 (publicado no DR 1ª série, n° 39 de 25 de fevereiro de 2014) que serviu de base à decisão em apreço, já que o mesmo teve na base da sua construção, e substância, os casos em que seja “Certificado o trânsito em julgado da sentença declaratória e declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência com caráter pleno e fixado o prazo para reclamação de créditos". E tal com o consta da proposta da Exma Procuradora Geral adjunta, transcrita naquele documento. 14. Assim, ao declarar a inutilidade superveniente da lide, e em consequência absolver o recorrido Banco 1... da instância, quando se tratava de apreciar também, mas não só, a nulidade do negócio jurídico e não tendo sido ainda, aberto o incidente de qualificação da insolvência, violou o Acordão em apreço, a lei processual vertida na alínea e) do artigo 277° do Código de Processo Civil. 15. Tal demonstra no caso em apreço, a utilidade do prosseguimento da presente demanda para o autor, que poderá pela mesma obter título do seu direito de crédito invocado, e só assim se garantindo o acesso do mesmo à defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (constitucionalmente protegidos - artigo 20° da C.R.P.) 16. Encontram-se reunidos os pressupostos da Revista, designadamente, a relevância jurídica da questão, necessária para uma melhor aplicação do direito, revelando-se essencial determinar o sentido e o alcance com que deve ser interpretado e aplicado o disposto na alínea e) do artigo 277° do Código de Processo Civil, em situações de insolvência, e idênticas. O Tribunal da Relação de Lisboa, já decidiu em sentido diverso, ordenando o prosseguimento dos autos para julgamento em 1ª instância relativamente aos RR Banco 1..., Banco 2... e BB. (vejam-se os Acórdãos da 6ª secção proferidos nos processos ns. 19125/16.4T8LSB.L1 de 11-01-2018, 18455/16.0T8SLB.L2 de 06-12-2017, 19541/16.1T8LSB, e ainda o Acórdão proferido pela 2ª secção no processo n° 18595/16.5T8LSB.L1 de 01-02-2018) bem como a interpretação dada ao Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n° 1/2014 de 25 de fevereiro. 17. Os interesses em causa são de particular relevância social, estando em causa a confiança no sistema bancário com todo o alarme social que os recentes acontecimentos têm causado. 18. O Acórdão sindicado encontra-se em contradição com o Acórdão Fundamento proferido pelo Tribunal da Relação de Évora de 29/01/2015 porquanto decidiram diversamente a mesma questão de direito, a saber, num mesmo contexto jurídico ou situação equiparada, perante o pedido de declaração de nulidade de negócio jurídico, o Acórdão em apreço absolveu o recorrido Banco 1..., da instância, por inutilidade superveniente da lide, enquanto o Acórdão fundamento determinou o prosseguimento dos autos. 19. No que respeita ao Acórdão Fundamento do Tribunal da Relação do Porto, de 15-04-2013, verifica-se um tratamento jurídico diferente dado à situação jurídica de abertura de incidente de qualificação da insolvência, defendendo este Acórdão Fundamento, que a declaração de insolvência não conduz de imediato à inutilidade superveniente da lide da ação declarativa, quando a abertura do incidente de qualificação da insolvência não tem caráter pleno, ao contrário do decidido no Acórdão recorrido. 20. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo, não só viola as regras do direito nacional, mas também viola as regras do direito comunitário, através da violação das normas constantes na Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais que foi transposta para a ordem jurídica portuguesa. 21. A Convenção estabelece que os Estados são considerados responsáveis pelos atos das suas autoridades, que in casu sempre será o Banco de Portugal. 22. Sendo que tais atos não têm de provocar apenas efeitos prejudiciais dentro do estado nacional mas também fora do seu território, sejam eles praticados dentro ou fora das fronteiras nacionais. 23. Assim, segundo o disposto no artigo 1.° do Protocolo n.° 1, com a denominação “Proteção da propriedade" “Qualquer pessoa singular ou coletiva tem o direito ao respeito dos seus bens pelo que o Autor entende também ser legítimo alegar a violação do artigo 1,° do Protocolo n.° 1, na medida em que as decisões contra as quais se insurge se reportam aos seus “bens” no sentido desta disposição. 24. Incluindo-se nesses bens os créditos, por meio dos quais o requerente pode pretender ter, pelo menos, uma “expectativa legítima” de obter o gozo efetivo de um direito de propriedade. 25. O reenvio é um instrumento de cooperação judiciária, previsto no art° 267° do Tratado de Funcionamento da União Europeia, pelo qual um juiz nacional e um juiz comunitário, são chamados no âmbito das suas competências, a contribuir para uma decisão que assegure a aplicação uniforme do Direito Comunitário nos estados membros”. (Acórdão Schawrze, de 01/12/1965, proc. 16/65). 26. Este instituto jurídico fomenta a cooperação ativa entre as jurisdições nacionais e o espaço europeu, concretizando, assim, aquele que é um dos princípios basilares da União - princípio da lealdade europeia, consagrado no art° 4º do TUE. 27. Pela sua notoriedade, o recurso prejudicial dá um forte contributo para o contínuo processo de integração europeia. 28. Num processo pendente em órgão jurisdicional nacional, cuja decisão admita recurso ordinário, (como é o presente caso), este é livre de pedir ao TJUE, que se pronuncie sobre ela, exceto se o juiz nacional se pronunciar sobre a invalidade de um ato europeu, porquanto a competência para declarar a invalidade de um ato de Direito da União Europeia, é exclusivo do TJUE, à luz, entre outros, do Acórdão Foto-Frost de 22-10-87 (Proc. 314/85), segundo o qual, sempre que a validade de um ato ou disposição de Direito derivada da União suscite dúvidas, qualquer tribunal ainda que não esteja a decidir em última instância, tem a obrigação de submeter essa questão da eventual invalidade ao TJUE (consagrando-se assim a obrigação de reenvio para declaração de invalidade de ato da União, que o juiz nacional pretenda inaplicar). 29. Nos termos ora expostos, entendemos ter havido errónea interpretação das normas supra mencionadas, bem como a violação do disposto nos artigos 20°, 202° e 204° da Constituição da República Portuguesa, motivo pelo qual, deverá ser decidido o reenvio prejudicial, com a consequente suspensão da instância nos termos do disposto nos artigos 269° e 272° ambos do Código de Processo Civil. 30. Pretendendo o recorrente através do recurso prejudicial, obter resposta à seguinte questão: A declarada inutilidade superveniente da lide em relação ao Banco 1..., que impede a apreciação de factos que não são suscetíveis de serem apreciados noutra sede, maxime, a responsabilidade civil emergente de operações intermediárias financeiras, sem recurso ao princípio da imediação e sem uso cabal de todos os meios de defesa, não viola o princípio do julgamento de forma justa e equitativa, conforme dispõe o artigo 47° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia? 31. Perante a declaração de inutilidade superveniente da lide, proferida pelo douto tribunal a quo, em relação ao R. Banco 1..., sem que se tivesse pronunciado pelo mérito da causa, incorreu o mesmo na violação de um direito constitucionalmente garantido que é o direito a um julgamento justo, previsto no art° 20° da C.R.P. 32. Nos termos do art° 47° da Carta do Direitos Fundamentais da União Europeia, “toda a pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito de União Europeia tenham sido violados, tem direito a uma ação perante um tribunal. Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja julgada de forma equitativa, publicamente e num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, previamente estabelecido por lei. Toda a pessoa tem a possibilidade de se fazer aconselhar, defender e representar em juízo.” 33. Pelo quanto se encontra acima descrito, verificamos que a causa que originou o presente processo, não foi julgada de forma equitativa. 34. Ficando prejudicada a apreciação dos factos que preenchem todos os elementos para condenação em ação de responsabilidade civil, contidos nos artigos 483° e seguintes do Código Civil. 35. Constituindo a omissão de pronúncia, em relação às questões colocadas ao Tribunal a quo, verdadeira denegação de justiça! 36. Não se conforma, o ora Recorrente, com a decisão de incompetência material do Tribunal Judicial Cível para julgar a presente ação, porquanto constitui doutrina e jurisprudência pacíficas que a competência material do tribunal é aferida em função dos termos em que a ação é proposta pelo Autor, atendendo-se à estruturação dada pelo Autor, ao pedido e à causa de pedir, relevando, assim, para fixação da competência do tribunal o “quid disputatum” e não o “quid decisum” 37. Ora, na presente ação, o Autor, ora Recorrente, peticiona pela responsabilização civil dos RR. por violação das regras de intermediação financeira, mormente por via do consagrado nos artigos 304° A e 321° do Código dos Valores Mobiliários, isto é, está em causa a apreciação da violação dos deveres de informação, diligência e lealdade que impendem sobre os intermediários financeiros, bem assim como a nulidade daquela relação jurídica por inobservância de forma, encontrando-nos perante o Direito dos Valores Mobiliários que representa uma área do Direito Comercial e/ou Financeiro - que não se confunde com Finanças Públicas -, constituindo um ramo do direito privado (in Paulo Câmara, Manual do Direito dos Valores Mobiliários, Almedina, 2009). 38. Invoca-se, neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16/06/2015 (acórdão fundamento) que apreciou a mesma questão e julgou em sentido contrário ao Acórdão em recurso. 39. Assim, entende o ora Recorrente que o fundamento da presente Revista radica em erro de interpretação e aplicação da lei processual, concretamente, dos artigos 64°, 96º al. a), 99º n.°1, 278° n.° 1 do C.P.C., 80° n.º 1 da L.O.S.J. e artigo 4º n.°1 al. f) e n.º 2 do E.T.A.F.. 40. Pelo que, subjaz à correta interpretação e aplicação dos referidos normativos legais, concluir pela competência material do Tribunal Judicial (Civil) para apreciar e julgar o presente litígio, ou seja, para dirimir litígios nos quais entidades com natureza pública atuam como privados, à luz do direito privado e, nessa qualidade, devem ser responsabilizadas. 41. O Autor, ora Recorrente, peticionou contra os RR: “Nestes termos e nos mais de Direito que v/ Exa. doutamente suprirá deverá a presente acção ser julgada totalmente procedente por provada que ficou: a) A responsabilidade civil dos RR., enquanto intermediários financeiros, por violação dos deveres de informação, diligência e lealdade, nos termos do disposto no artigo 304°-A do CVM, devendo em consequência os RR. serem solidariamente condenados a pagar ao A, a quantia de € 535.215,70, acrescida de: i) € 131.115,37 a título de juros vencidos à taxa legal em vigor, e calculados desde a data de utilização ilícita pelos RR. das quantias monetárias do A.; ii) Juros vincendos calculados desde a data da citação até integral pagamento da sentença condenatória; Caso assim não se entenda: b) A nulidade do contrato de intermediação financeira por inobservância de forma nos termos do disposto no artigo 321° do CVM, devendo em consequência serem os RR. solidariamente condenados a restituir ao A. a quantia de € 535.215,70, acrescida de: i) € 131.115,37 a título de juros vencidos à taxa legal em vigor, e calculados desde a data de utilização ilícita pelos RR. das quantias monetárias do A.; ii) Juros vincendos calculados desde a data da citação até integral pagamento da sentença condenatória; Mais se requer, que sejam ainda os RR. condenados a ressarcir solidariamente ao A. os danos não patrimoniais que lhe foram causados, em valor a ser calculado em sede de liquidação de sentença” (cfr. P.l.) 42. No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.06.2015, (acórdão fundamento disponível para consulta in www.dgsi.pt) pode ler-se: “É entendimento pacífico que a competência material dum tribunal constitui um pressuposto processual, sendo aferida pela questão ou questões que o A coloca na respectiva petição inicial e pelo pedido formulado, conforme ensina Manuel de Andrade. E nesta lógica, a apreciação da competência dum tribunal tem de resolver-se face aos termos em que a acção é proposta, aferindo-se portanto pelo “quid disputatum”, ou seja, pelo pedido do A e respectiva causa de pedir, sendo irrelevantes as qualificações jurídicas alegadas pelas partes ou qualquer juízo de prognose que possa fazer-se quanto à viabilidade ou inviabilidade da pretensão formulada pelo Autor. Foi neste sentido que se firmou a jurisprudência, podendo ver-se o acórdão do STJ de 14/5/2009, www.dgsi.pt, de cujo sumário se conclui que “a competência material do tribunal afere-se pelos termos em que a acção é proposta e pela forma como se estrutura o pedido e os respectivos fundamentos. Daí que para se determinar a competência material do tribunal haja apenas que atender aos factos articulados pelo autor na petição inicial e à pretensão jurídica por ele apresentada, ou seja à causa de pedir invocada e aos pedidos formulados”. 43. É também esta a orientação do Tribunal de Conflitos, conforme se colhe do acórdão de 30.10.2013, proferido no Conflito n.º 37/13, donde se conclui que “é pois a estrutura da causa apresentada pela parte que recorre ao tribunal que fixa o tema decisivo para efeitos de competência material, o que significa que é pelo quid decidendum que a competência se afere, sendo irrelevante qualquer tipo de indagação atinente ao mérito do pedido formulado, ou seja, sendo irrelevante o quid decisum. Será portanto a partir da análise da forma como a causa se mostra estruturada na petição inicial e do respectivo pedido que deveremos decidir da questão de saber qual é a jurisdição competente para o seu conhecimento. 44. Logo, a natureza pública ou privada de cada um dos RR. é irrelevante na medida em que o “thema decidendum”, tal como configurado pelo Autor, ora Recorrente, não se prende com qualquer questão de domínio administrativo. Sendo que também o pedido indemnizatório deduzido pelo Autor, ora Recorrente, não colide, nem depende, da apreciação jurídico-administrativa dos atos que conduziram à resolução do Réu Banco 1..., pelos RR. intervenientes naquela decisão. 45. O Autor, ora Recorrente peticiona pela responsabilização civil dos RR. por violação das regras de intermediação financeira, mormente por via do consagrado nos artigos 304° A e 321° do Código dos Valores Mobiliários, isto é, está em causa a apreciação da violação dos deveres de informação, diligência e lealdade que impendem sobre os intermediários financeiros, bem assim como a nulidade daquela relação jurídica por inobservância de forma. O Direito dos Valores Mobiliários é um ramo do Direito Comercial e/ou Financeiro, afastado da conceção de Direito de Finanças Públicas, e designado como: ‘‘conjunto de normas que regulam as actividades ligadas aos mercados financeiros e exercidas de forma profissional pelos intermediários financeiros.” (in Morais, Jorge Alves, Código dos Valores Mobiliários Anotado, Quid Juris 2015). Sendo ainda que: “(...) todo o regime geral sobre o valor mobiliário, seu conteúdo transmissão, encontrado no Título II do Código constitui direito privado. Na componente privada do direito mobiliário cabe ainda mencionar as regras (...) sobre responsabilidade civil dos intermediários financeiros.” (in Paulo Câmara, Manual do Direito dos Valores Mobiliários, Almedina, 2009). 46. As entidades de natureza administrativas também são entidades civilmente responsáveis, sendo tal asserção justificada, p. ex., com o facto de a Lei Orgânica do Réu Banco de Portugal prever no seu artigo 62° que: “compete aos tribunais judiciais o julgamento de todos os litígios em que o Banco seja parte, incluindo as ações para efetivação da responsabilidade civil por atos dos seus órgãos, bem como a apreciação da responsabilidade civil dos titulares desses órgãos para com o Banco.”. 47. O Recorrente não está isolado neste seu entendimento, como se pode verificar da seguinte jurisprudência recente, onde se entendeu que: ‘‘Porém, esse acto administrativo já não releva no domínio factual que agora se encontra controvertido nos autos, ou seja, já não contende com a factualidade subjacente aos prejuízos que os Autores alegam ter sofrido, sendo uma realidade pretérita distinta da que agora se pretende discutir. Ou seja, a responsabilidade civil extra-contratual aqui invocada contra as Rés já não dimana de relações jurídicas administrativas, não dependendo a sua apreciação e julgamento das relações jurídico- administrativas havidas entre as partes e que foram declaradas anuladas, não havendo a necessidade de aplicação de normas de direito administrativo, antes se centrando a controvérsia no plano puramente privado e civilístico, bastando à decisão o ordenamento jurídico decorrente do Código Civil. Dito de outro modo, a relação material controvertida, envolvente dos prejuízos sofridos pelos Autores, não provêm da prática de actos de gestão pública, assentando sim no âmbito das relações de natureza privatística que entre as partes surgiram após a anulação daquele acto expropriativo. Aliás, tendo o acto expropriativo sido anulado, assim tendo deixado de existir, mal se compreenderia que a pretensão indemnizatória formulada pelos Autores ainda pudesse ter assento na esfera jurídico-administrativa que se exauriu com aquela decisão anulatória.” (negrito nosso in Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 10.11.2016 in www.dgsi.pt). E, ainda, ‘‘Por conseguinte, nenhum impedimento legal existe para que o Fundo de Resolução possa ser demandado, sendo certo ainda que a sua natureza de direito público não afasta, em tese, a possibilidade de ser demandado nos Tribunais Cíveis, desde que na relação jurídica que está subjacente à demanda esteja desprovido de prerrogativas de ius imperium.” (negrito nosso in Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10.11.2016 Processo n.º 26688/15.0T8LSB-A.L1-6, Relator MARIA DE DEUS CORREIA in www.dgsi.pt). 48. Pretendendo-se explicar que não está em causa a apreciação de qualquer conduta dos RR., munidos de ius imperi, pelo contrário, está em causa a apreciação de atos de intermediação financeira por quem exerce profissionalmente esta atividade, prévios aos atos de resolução que vieram a ser tomados posteriormente. Pese embora ao Tribunal Judicial - como a qualquer outro tribunal - não esteja vedado, antes pelo contrário, conhecer da conformidade à lei e à Constituição da República Portuguesa de qualquer lei lato sensu. Prevê o artigo 280.°, n.°1, da C.R.P. que os tribunais podem recusar a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade, em causa que se encontra a restrição do direito fundamental de propriedade do Recorrente, pois que aos tribunais compete administrar a justiça em nome do povo, assegurando a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimindo a violação da legalidade democrática e dirimindo os conflitos de interesses públicos e privados, não podendo aplicar normas que infrinjam a Constituição ou os princípios nela consignados (artigos 202.° e 204.° da C.R.P.). 49. Nos termos do artigo 212.°, n.°3 da Constituição da República Portuguesa «Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.». Nas palavras dos Constitucionalistas Gomes Canotilho e Vital Moreira a relação jurídica administrativa “(...) transporta duas dimensões caracterizadoras: as acções e recursos que incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico-civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal” - Vide in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed. 50. Logo, no artigo 4.°, n.°1, alínea f) do E.T.A.F. não cabe a relação jurídica puramente civilista trazido pelo Autor, ora Recorrente que, assim, soçobrará na jurisdição dos tribunais judiciais, definida pelo artigo 211.° n°1 da Constituição da República Portuguesa, plasmada também no artigo 64.° do Código de Processo Civil e artigos 40.°, n.°1 e 80.°, n.°1, da L.O.S.J. que determinam que a competência dos tribunais judiciais para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional. 51. Conclui-se pela competência material do tribunal judicial civil para apreciar e dirimir o presente litígio. 52. A entender-se diferentemente, será privilegiar a forma em detrimento da substância, invocando-se figuras jurídicas que não solucionam o litígio, que dificultam o acesso à justiça do caso concreto e contribuem para a tão famigerada crise na justiça atentando contra os basilares princípios de um Estado Democrático, designadamente, o direito constitucionalmente consagrado de obter, com força de caso julgado, uma decisão judicial que aprecie de mérito a sua pretensão (artigos 2º, 2º, 202°, n.º 1 e n° 2, todos da Constituição da República Portuguesa e artigo 2º do C.P.C.). 53. Atentando, também, contra as normas constantes na Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, transposta para a ordem jurídica portuguesa, designadamente, artigo 1.° do Protocolo n.º 1, com a denominação “Proteção da propriedade” "Qualquer pessoa singular ou coletiva tem o direito ao respeito dos seus bens incluindo-se nesses bens os créditos, por meio dos quais o Recorrente pode pretender ter, pelo menos, uma “expectativa legítima" de obter o gozo efetivo de um direito de propriedade. 54. Revela-se essencial para uma melhor aplicação do direito determinar o sentido e alcance com que deve ser interpretado e aplicado o disposto na alínea f) do número 1, do artigo 4º do E.T.A.F. em situações idênticas, atento o ritmo crescente de processos resultantes do colapso de diversas instituições financeiras que integravam o nosso sistema financeiro tem vindo a subir drasticamente e que põe em causa o direito de propriedade, constitucionalmente consagrado. 55. Os efeitos dos últimos acontecimentos verificados na vida do sistema bancário português provocaram um abalo, quiçá, irreversível na confiança depositada pela população nos Bancos portugueses e na banca em geral. A confiança no sistema bancário é interesse de particular relevância social e vital na sociedade hodierna. 56. Assim, contar com uma clara e uniforme interpretação e aplicação do Direito que salvaguarde os interesses patrimoniais da comunidade e garanta uma solução uniforme e igual para todos, sem surpresas e percalços injustificados de caminho, é questão de particular interesse social. 57. Razão por que os interesses jurídicos sindicados na presente Revista devem ser considerados de particular relevância social. 58. Assim, o Acórdão sindicado encontra-se em contradição com o Acórdão Fundamento proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 16/06/2015 porquanto decidiram diversamente a mesma questão de direito, a saber, num mesmo contexto jurídico ou situação equiparada, perante o pedido de declaração de nulidade de negócio jurídico, o Acórdão em apreço absolveu os RR por incompetência absoluta do tribunal judicial enquanto o Acórdão fundamento julgou competente o tribunal judicial para conhecer da causa, 59. O que ora se defende. Nestes termos (…) deve o presente recurso de revista excepcional ser admitido e julgado totalmente procedente, ordenando-se em consequência a anulação do acórdão recorrido.” A CMVM, o Banco 1..., o Banco de Portugal e o Fundo de Resolução apresentaram contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso. No Supremo Tribunal de Justiça, a Sr.ª Conselheira Relatora determinou a remessa dos autos ao Tribunal dos Conflitos, para apreciação da questão relativa à competência do tribunal cível para apreciar as questões jurídicas suscitadas nos autos contra os réus Banco de Portugal, Banco 2..., S.A, Fundo de Resolução, CMVM- Comissão de Mercado de Valores Mobiliários e BB; e à Formação prevista no n.º 3 do art. 672.º do CPCivil no que toca “à questão da absolvição do Banco 1...”. A Formação decidiu não admitir o recurso de revista excepcional, tendo mandado fazer os autos conclusos à Sr.ª Juiz Relatora em conformidade com a decisão desta no sentido de que a questão da competência dos tribunais devia ser resolvida pelo Tribunal de Conflitos. Seguiu-se despacho do Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que determinou que, após o visto do MP, se procedesse ao exame preliminar previsto no n.º 1 do art. 12.º da Lei nº 91/2019 de 4.9. O Sr. PGA no STJ emitiu parecer no sentido de que o acórdão da Relação deve ser parcialmente revogado decidindo-se pela competência dos tribunais comuns relativamente aos demandados com excepção do Banco de Portugal e da CMVM. Procedendo ao exame preliminar, a Sr.ª Vice-Presidente do Supremo verificou que a referida Lei apenas se aplicava aos recursos interpostos de acórdãos das Relações proferidos 30 dias após a publicação (n.º 2 do art. 23.º e art. 24.º da Lei nº 91/2019), pelo que, tendo o acórdão recorrido nos presentes autos, sido proferido em 28.6.2018, concluiu que era aplicável a lei anterior e que o processo devia ser remetido ao Supremo Tribunal Administrativo. Já no Tribunal dos Conflitos, o Sr. Representante do MP reiterou o parecer anterior do Sr. PGA no STJ. Cumpre apreciar e decidir. O circunstancialismo fáctico processual a ter em consideração é o que emerge do relatório que antecede. O Direito. Como se referiu, o recurso foi interposto para o Supremo Tribunal de Justiça. Porém, atento o disposto no disposto no n.º 2 do art. 101.º do CPC, é ao Tribunal dos Conflitos, e não ao Supremo Tribunal de Justiça, que cabe decidir sobre a competência material, o que se fará, de seguida, atento o princípio estabelecido no art. 6.º do CPC. A questão que demanda resolução é, como decorre do exposto, a de saber qual a jurisdição competente para a presente acção: se a comum, se a administrativa. E isto em relação a todos os pedidos, à excepção do pedido dirigido contra Banco 1..., S.A, uma vez que, em relação a este Réu, não foi suscitada a questão da competência, tendo o acórdão recorrido que declarou a instância extinta transitado em julgado nessa parte (na medida em que a Formação não admitiu a revista excepcional). Como é entendimento uniforme deste Tribunal dos Conflitos, a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos (pedido e causa de pedir) em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial incluindo os seus fundamentos (Ac. Tribunal dos Conflitos de 14.2.2019, proc. n.º 31/18), devendo atender-se, ainda, e para o efeito, à vertente subjectiva, respeitante às partes (cfr. Ac. Tribunal de Conflitos, de 19.12.2012, proc. n.º 20/12). Tem-se entendido, ainda, que a competência se afere pelos pedidos principais e não pelos pedidos deduzidos subsidiariamente (cfr. Ac. Tribunal dos Conflitos de 14.9.2017, proc n.º 9/17). Nos termos dos arts. 211.º, n.º 1, da CRP e 64.º do CPCivil, os tribunais judiciais constituem a regra dentro da organização judiciária e, por isso, gozam de competência não discriminada (competência residual), enquanto os restantes tribunais têm a sua competência limitada às matérias que lhes são especialmente atribuídas. Assim, como foi dito no acórdão no STA de 20.3.2009, processo n.º 39/09, “cabe aos tribunais judiciais julgar todas as causas que não sejam especialmente atribuídas a outras espécies de tribunais, cumprindo aos tribunais administrativos dirimir os litígios decorrentes da violação de direitos fundados em normas de direito administrativo ou decorrentes de atos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo” (Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 5.ª edição, pág. 23). Segundo o art. 212.º, nº 3, da CRP “compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal o julgamento de acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”. Nos termos do art. 1.º, n.º 1 do ETAF “os Tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”. A delimitação do âmbito material da jurisdição administrativa e fiscal assenta, assim, na noção de relação jurídica administrativa ou fiscal (v. Ac. STJ de 13.3.2008, proc. n.º 08A391 e Ac. STJ de 7.10.2004, proc. n.º 04B3003, ambos in www.dgsi.pt). E a relação jurídica administrativa reporta-se às relações jurídicas públicas; ou seja, àquelas em que, pelo menos, um dos sujeitos actua “com vista à realização de um interesse público legalmente definido”, no exercício de uma função administrativa dotada de poderes de autoridade pública “para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público” (José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, Almedina, 12.ª edição 2012 pág. 49, citado no Ac. Tribunal dos Conflitos de 19.1.2021, proc. n.º 63/19). Deste modo, “a função administrativa compreende o conjunto de actos destinados à produção de bens e à prestação de serviços tendo em vista a satisfação das necessidades coletivas função que é desempenhada essencialmente por pessoas colectivas públicas e marginalmente por pessoas colectivas privadas integradas na Administração Pública” (Ac. Tribunal dos Conflitos de 2.10.2008, proc. n.º 12/08). Concretizando os meios processuais que têm por objecto dirimir os “litígios emergentes de relações jurídicas administrativas”, no n.º 1 do art. 4.º o ETAF delimita o âmbito da jurisdição administrativa, estabelecendo na al. f) (que agora importa) que “compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do nº 4 do presente artigo”. Pedidos contra os Réus Banco de Portugal e Comissão do Mercado de Valores Mobiliários: A pretensão do Autor contra o Réu Banco de Portugal vem fundamentada em factos alegadamente integradores duma violação de deveres de supervisão, numa garantia da solvência, estabilidade e segurança do Réu Banco 1... e, ainda, numa assunção da obrigação de reembolso. No que respeita à 5ª Ré, Comissão de Mercado de Valores Mobiliários, a respectiva responsabilização também é fundada na violação de deveres de supervisão. Ora, perante o objecto da causa assim delimitado, resulta que a jurisdição competente para apreciar a pretensão do Autor contra os Réus Banco de Portugal e Comissão do Mercado de Valores Mobiliários é a administrativa. Com efeito, a estes Réus, que são pessoas coletivas de direito público - como resulta do art. 1.º da Lei Orgânica do primeiro (Lei n.º 5/98, de 31.1, sucessivamente alterada), e do art. 3.º, n.º 1 do regime anexo à Lei n.º 67/2013, de 28.8, lei-quadro das entidades reguladoras) e dos Estatutos (DL n.º 5/2015, de 8.1) da segunda- é imputada a responsabilidade extracontratual que emerge, directa e indirectamente, de actos praticados no exercício das suas atribuições legais de prossecução do interesse público, regulada por normas de direito administrativo, atributivas de prerrogativas de autoridade, actos (ou omissões) que se fundamentam na falta de cumprimento dos deveres de supervisão (art. 17.º da Lei n.º 5/9 e artigo 4.º, do DL 5/2015; cfr., ainda, os Acs. do Tribunal dos Conflitos de 14.2.2019, proc. n.º 46/18 e o citado 6.2.2020, proc. n.º 22/19). Ou seja, relativamente a estes dois Réus estamos, assim, claramente perante um litígio emergente de relações jurídicas de natureza administrativa, da competência dos tribunais administrativos nos termos do art. 4..º, n.º1, al. f) do ETAF. Argumenta o recorrente que as entidades de natureza administrativas também são entidades civilmente responsáveis, sendo tal asserção justificada, por exemplo, com o facto de a Lei Orgânica do Réu Banco de Portugal prever no seu art. 62.° que: “compete aos tribunais judiciais o julgamento de todos os litígios em que o Banco seja parte, incluindo as acções para efectivação da responsabilidade civil por atos dos seus órgãos, bem como a apreciação da responsabilidade civil dos titulares desses órgãos para com o Banco. ”. Porém, e pese embora o disposto no art. 62.º da Lei Orgânica do Banco de Portugal, tem sido entendido que tal disposição se mostra tacitamente revogada pelo actual Estatuto dos Tribunais Administrativos [conforme decidido nos Acs. do Tribunal de Conflitos de 14.2.2019, proc. n.º 31/18, de 6.2.2020, proc. n.º 22/19, de 6.6.2019, proc. n.º 41/18 e o de 14.02.2019, proc. n.º 31/18, todos em www.dgsi.pt]. Aliás, o Tribunal de Conflitos tem decidido de forma constante no sentido da competência dos tribunais administrativos para conhecerem das acções (similares a esta) em relação ao Banco de Portugal e à CMVM (cfr. o citado Ac. de 6.2.2020, proc. n.º 22/19, o de 14.2.2019, proc. n.º 31/18, o de 30.1.2020, proc. n.º 39/19, o de 21.11.2019, proc. n.º 23/19, o de 21.11.2019, proc. n.º 25/19, o de 23.1.2020, proc. n.º 14/18, o de 30.1.2020, proc. n.º 28/19, o de 31.10.2019, proc. n.º 14/19, o de 31.10.2019, proc. n.º 3/19 e o de 14.2.2019, proc. n.º 46/18). Pedido contra o Réu Fundo de Resolução: O Réu Fundo de Resolução é, também, uma pessoa coletiva de direito público (art. 153.º-B do RGICSF e art. 2.º, n.º 1 do respetivo Regulamento, aprovado pela Portaria n.º 420/2012, de 21 de Janeiro). Porém, tendo em consideração que este Réu vem demandado unicamente pelo facto de ser detentor do capital social do Banco 2..., e tendo presente o disposto no n.º 3 do art. 8.º do Código Civil, deverá ser seguida a orientação, reiteradamente assumida na jurisprudência deste Tribunal em casos similares, no sentido de que a competência recai sobre os tribunais judiciais (cfr. Acs Tribunal dos Conflitos de 22.3.2018, proc. n.º 56/17, de 22.3.2018, proc. nº 50/17, de 17.5.2018, proc. nº 52/17, de 7.6.2018, proc. nº 061/17, de 8.11.2018, proc. nº 20/18, de 13.12.2018, proc. n.° 33/18, de 19.6.2019, proc. 5/19 e de 19.6.2019, proc. n.º 2/19, todos acessíveis em www.dgsi.pt). Como assim, e no que respeita o réu Fundo de Resolução, deve proceder a pretensão do recorrente atribuindo-se a competência aos tribunais judiciais. Pedido contra os RR. Banco 2..., S.A. e BB: Da petição inicial verifica-se que o Autor fez fundar a sua pretensão indemnizatória contra o Banco 2... em factos que alegadamente integram uma violação de deveres pré-contratuais e contratuais inerentes à relação bancária que vinha vigorando entre o Autor e o Banco 1... (tendo o Banco 2... sido demandado por ser sucessor dos direitos e obrigações do Banco 1...) e, ainda, na assunção da obrigação de reembolso por parte do Banco 2.... Por outro lado, a Ré BB foi demandada na qualidade de gestora de conta do A., ao serviço do Banco 1.... A responsabilização dos RR não emerge, pois, de qualquer relação jurídica administrativa nem tais Réus são pessoas coletivas de direito público. Pelo contrário, trata-se de pessoas de direito privado e a base da sua responsabilização funda-se numa relação puramente civilística. Consequentemente, a competência cabe inequivocamente aos tribunais judiciais. Pedido subsidiário de nulidade: O pedido subsidiário de nulidade funda-se na alegada circunstância de que, subjacente à aplicação dos capitais em causa, não existiu um contrato celebrado por escrito (art. 113 da petição). Sendo subsidiário, não deve determinar, como se disse acima, a competência material do Tribunal. Todavia, ainda que assim não fosse, esse pedido de declaração de nulidade do contrato nunca emergiria de qualquer relação jurídica administrativa mas antes de uma relação privatística. Pedido de condenação solidária dos Réus: Apesar de vir pedida a condenação solidária dos Réus, não é caso de aplicar o disposto no n.º 2 do art. 4.º do ETAF (competência por conexão), de modo a estender à jurisdição administrativa e fiscal a competência relativamente aos Réus Fundo de Resolução, Banco 2..., S.A. e BB. É também esta a orientação que tem sido seguida neste Tribunal. Assim, escreve-se no supracitado acórdão de 14.2.2019, proc. n.º 46/18, que: “É certo que, como supra foi relatado, o A formulou um pedido de condenação solidária de todos os RR a pagarem-lhe determinada quantia em dinheiro e respetivos juros, bem, como o valor dos danos não patrimoniais. Contudo, não enformou os fundamentos dessa sua pretensão com qualquer espécie de intervenção das entidades públicas nos factos ilícitos imputados às 1ªs RR, pelo que não ressuma da PI o fundamento previsto no citado nº 2 do art. 4° do ETAF para deverem ser demandados conjuntamente todos os RR, porquanto não se vê em que medida aqueles entes poderiam estar ligados por vínculos jurídicos de solidariedade com as demais RR (particulares), designadamente por terem concorrido em conjunto com estas para a produção dos mesmos danos (Mário Aroso de Almeida [Em “Manual de Processo Administrativo”, Almedina, 3ª ed., pp. 253-254] refere que aquela regra procurou obviar a dificuldades que se vinham suscitando «quanto à competência dos tribunais administrativos para conhecer de ações de responsabilidade civil quando se verifique o chamamento ao processo de sujeitos privados que se encontrem envolvidos com a Administração ou com outros particulares numa relação jurídica administrativa ou no âmbito de uma relação conexa com a relação principal que constitui objeto do litígio». E acrescenta-se: “(...) a solidariedade nas obrigações, tal como decorre do artigo 513º do CC, só existe quando resulta da lei ou da vontade das partes. Não basta, deste modo, pedir ao Tribunal que condene solidariamente, sendo necessário alegar os factos - para os poder vir a demonstrar - «de que deriva a obrigação de indemnizar e, em caso de pluralidade de responsáveis, que as obrigações tenham entre si uma relação de solidariedade, que, em caso de procedência, fundamente a condenação solidária». [cit. Acórdão de 22-03-2018 (p. 56/17)]” No mesmo sentido, pode ver-se os Acórdãos deste Tribunal de 6.6.2019, no proc. n.º 2/19 e o Acórdão de 19.6.2019, no proc. n.º 5/19 (ambos disponíveis em www.dgsi.pt). Revertendo ao caso sub judice, verifica-se que o Autor não alegou factos que indiquem a existência de solidariedade emergente da vontade das partes, sendo que da lei não resulta, também, qualquer solidariedade entre esses Réus e o Banco de Portugal e/ou a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários. Como assim, a simples circunstância de o Autor pedir a condenação solidária dos Réus Fundo de Resolução, Banco 2..., S.A. e BB não implica a extensão da competência dos tribunais administrativos à apreciação da pretensão dirigida contra estes Réus. Por todo o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal dos Conflitos em: a) julgar parcialmente procedente o recurso, e, revogando em parte o acórdão recorrido, atribuir ao Tribunal Judicial a competência para conhecer dos pedidos deduzidos contra relativamente aos Réus Banco 2..., S.A., Fundo de Resolução e BB; b) no mais, julgar improcedente o recurso e confirmar o acórdão da Relação na parte em que atribui aos Tribunais Administrativos a competência para apreciar os pedidos formulados contra os Réus Banco de Portugal e Comissão do Mercado de Valores Mobiliários. Sem custas. Lisboa, 11 de dezembro de 2024. - António José Moura de Magalhães (relator) – Cláudio Ramos Monteiro – Ricardo Alberto Santos Costa – Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva – Nuno Manuel Pinto Oliveira – Ana Celeste Catarilhas da Silva Evans de Carvalho. |