Acórdão do Tribunal dos Conflitos | |
Processo: | 0679/20.7BELSB-S1-CP |
Data do Acordão: | 11/27/2024 |
Tribunal: | CONFLITOS |
Relator: | TERESA DE SOUSA |
Descritores: | CONSULTA DE JURISDIÇÃO CLÁUSULA CONTRATUAL CÓDIGO DOS CONTRATOS PÚBLICOS |
Sumário: | É da competência da Jurisdição Administrativa e Fiscal conhecer de uma acção na qual se discute a validade de uma cláusula do caderno de encargos de um contrato de fornecimento de gás natural, por se tratar de um contrato submetido a regras de contratação pública. |
Nº Convencional: | JSTA000P32862 |
Nº do Documento: | SAC202411270679 |
Recorrente: | CÂMARA MUNICIPAL DE ODIVELAS |
Recorrido 1: | CÂMARA MUNICIPAL DE LOURES E OUTROS |
Votação: | UNANIMIDADE |
Área Temática 1: | * |
Aditamento: | |
Texto Integral: | Consulta Prejudicial nº 679/20.7BELSB-S1 Acordam no Tribunal dos Conflitos 1. Relatório Por despacho da relatora no Tribunal Central Administrativo Sul (TCA Sul), de 17.06.2024, foi decidido suscitar a consulta prejudicial deste Tribunal dos Conflitos, ao abrigo do artigo 15º, nº 1 da Lei nº 91/2019, de 4 de Setembro, por se haver entendido que a questão da jurisdição competente suscita dúvidas. Na sequência da notificação do despacho de 27.05.2024 para as partes se pronunciarem quanto à intenção de submeter a questão da jurisdição competente à apreciação do Tribunal dos Conflitos, a Autora A..., SA veio dizer que “a apreciação dos pressupostos da competência em razão da matéria é extemporânea – tendo em conta a formação de caso julgado formal – pelo que entende que não há lugar à consulta prejudicial ao Tribunal dos Conflitos, o que se requer”, acrescentando que “ainda que fosse possível a consulta prejudicial, a Autora entende que o Tribunal a quo é o competente para dirimir o litigio; tanto assim é que a questão nunca foi suscitada”. Por seu turno, o Réu Município de Odivelas manifestou a sua não oposição à intenção do Tribunal suscitar a intervenção do Tribunal dos Conflitos. Na presente acção de condenação intentada por A..., SA, no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, contra o Município de Loures, o Município de Odivelas e Gestão de Equipamentos Sociais, EM, foi peticionado: “a)Deve ser declarada a nulidade parcial da Cláusula 7ª, nº 4, primeira parte, do Caderno de Encargos, parte integrante do Contrato de Fornecimento de Gás Natural (contrato nº ...16), relativamente à revisão trimestral dos preços mediante o mecanismo de formação do preço que tenha por base os contratos de aprovisionamento de longo prazo celebrados com os produtores de gás natural, por se tratar de um critério indeterminado e indeterminável, ao abrigo do disposto no artigo 280º, nº 1, do CC, devendo ainda, em consequência, ser determinada a redução da cláusula, sem a parte viciada, nos termos do artigo 292º do CC, e o aproveitamento do contrato à luz do princípio do favor negotii; b) Em consequência, devem os Réus ser condenados a pagar à Autora o remanescente do preço das facturas emitidas durante a execução do Contrato, aceitando-se a revisão do preço operada por força da cláusula 7ª, nº 4 do Caderno de Encargos ora reduzida de acordo com o peticionado supra, devendo o 1º Réu ser condenado a pagar à Autora a quantia de 14.652,76 €, o 2º Réu a quantia de 39.649,12 € e a 3ª Ré deverá ser condenada a pagar à Autora a quantia de 80.313,97 €, aos referidos montantes deverão acrescer os juros de mora, à taxa legal aplicável aos juros comerciais, contabilizados desde a data de entrada da presente acção em juízo até ao seu efectivo e integral pagamento; Caso assim não se entenda, c) Devem os Réus ser condenados a pagar à Autora o remanescente do preço das facturas emitidas durante a execução do Contrato de Fornecimento de Gás Natural, desde 1 de Abril de 2017, e que corresponde à diferença entre o preço inicial e o preço revisto, revisão essa operada de acordo com o contratualmente definido (com base na cotação média do crude Brent nos mercados internacionais e com base na taxa de câmbio Euro/US Dólar), a fim de repor o equilíbrio financeiro do contrato, ao abrigo do disposto nos artigos 282º, nº 1, 312.º, alínea a), e 314.º, n.º 3, do CCP, devendo o 1º Réu ser condenado a pagar à Autora a quantia de 14.652,76 €, o 2º Réu a quantia de 39.649,12 € e a 3ª Ré deverá ser condenada a pagar à Autora a quantia de 80.313,97 €, aos referidos montantes deverão acrescer os juros de mora, à taxa legal aplicável aos juros comerciais, contabilizados desde a data de entrada da presente acção em juízo até ao seu efectivo e integral pagamento; Caso assim não se entenda, d) Deverão os Réus ser condenados a restituir à Autora aquilo com que injustificadamente se locupletaram, nos termos dos artigos 473º, e 479.º, nº 1, do CC, a título de enriquecimento sem causa, nas mesmas quantias correspondentes às facturas emitidas e não pagas, conforme enunciadas na alínea b) supra, acrescidas dos juros de mora, à taxa legal aplicável aos juros comerciais, contabilizados desde a data de entrada da presente acção em juízo até ao seu efectivo e integral pagamento.” A Autora alega, em síntese, que “em Outubro de 2015, os Réus, agrupados à luz do disposto no artigo 39.º do Código dos Contratos Públicos (CCP), lançaram o Concurso Público n.º 42330/DL/2015, ao abrigo da alínea a), do n.º 1, do Artigo 20.º do CCP, para a “Aquisição de Gás Natural Para os Municípios de Loures, Município de Odivelas e Gesloures – Gestão de Equipamentos Sociais, E.M., Unipessoal, Lda.”, para os locais de consumo melhor descritos nos Anexos I, II e III ao respectivo Caderno de Encargos”. A referida aquisição foi adjudicada à Autora e em 08.04.2016 foi celebrado, entre a Autora e os Réus, o contrato nº ...16 para Fornecimento de Gás Natural para os locais de consumo melhor identificados nos Anexos I, II e III do Caderno de Encargos. Nos termos previstos na cláusula Segunda do referido Contrato, o mesmo “1. (…) tem início de produção de efeitos no dia 01 de abril de 2016, renovando-se automaticamente por iguais e sucessivos períodos de um ano, até um período máximo de três anos, tendo o seu termo, a 31 de março de 2019” e os Réus obrigaram-se a pagar à Autora o valor global de Euros 1.308.792,87 (um milhão, trezentos e oito mil, setecentos e noventa e dois euros e oitenta e sete cêntimos), acrescido de IVA à taxa legal em vigor, pelos consumos de gás efectuados durante os três anos de vigência do contrato (clausula 6.ª), sendo o pagamento repartido pelo Réus e cabendo a cada um liquidar as facturas relativas aos respectivos locais de consumo. Alega ainda que um ano após o início de execução do contrato, a Autora comunicou aos Réus a necessidade de revisão da componente de preço sujeito à concorrência, em cumprimento dos requisitos contratualmente previstos nos n.ºs 4, 5 e 6 da cláusula 7ª do Caderno de Encargos, tendo aqueles rejeitado a revisão de preços. Em sequência, a Autora facturou os consumos de gás natural pelo preço revisto, mas os Réus não procederam ao pagamento da diferença entre o preço original e o preço revisto. Segundo a Autora, os Réus recusaram a revisão de preços por não ter sido considerado o critério com referência aos contratos de aprovisionamento de longo prazo celebrados com os produtores de gás natural, previsto no nº 4 daquela cláusula, mas defende a Autora que não o fez por manifesta impossibilidade dado “o facto de o contrato não prever a forma segundo a qual a revisão de preços, tendo por base os contratos de aprovisionamento, deveria operar, o facto de não existir uma prática no mercado para a revisão de preços com base nos contratos de aprovisionamento de longo prazo, celebrados com os produtores de gás natural, que pudesse ser utilizada pelas Partes como directriz à pretendida revisão, e o facto de os contratos em causa serem confidenciais, faz com que aquela variável se torne numa imposição contratual indeterminada e indeterminável, impossível de dar cumprimento”. Por isso, pede que seja declarada a nulidade parcial daquela cláusula, ao abrigo do disposto nos artigos 280.º, n.º 1, do CC e 161.º, n.º 2, al. c) do CPA, devendo ser determinada a redução da cláusula, sem a parte viciada, nos termos do artigo 292.º do CC, e o aproveitamento do contrato à luz do princípio do favor negotii e, consequentemente, condenados os Réus a pagar o remanescente das facturas emitidas. Se assim não se entender, alega que nos termos dos artigos 282.º, nº 2, e 314.º, nº 3, do CCP, “tem direito à reposição do equilíbrio financeiro considerando que, tendo em conta a repartição do risco entre as partes, o facto invocado como fundamento desse direito alterou de forma significativa os pressupostos com base nos quais foi determinado o valor das prestações” e devem os Réus condenados a pagar o remanescente das facturas emitidas. E, ainda, se assim se não atender, tem direito à restituição das quantias correspondentes facturadas emitidas e não pagas, a título de enriquecimento sem causa. Em sede de contestação o Município de Odivelas suscitou a prescrição da dívida por considerar aplicável ao litígio a Lei n.º 23/96, de 26 de Julho (Lei dos Serviços Públicos). No saneador sentença o TAC de Lisboa julgou improcedente a questão prévia por “o regime previsto na Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, em concreto o regime da prescrição, não se aplica a contratos de concessão de serviços” e ordenou o prosseguimento da acção. O Réu Município de Odivelas interpôs recurso para o TCA Sul quanto a esta decisão. O TCA Sul veio submeter a consulta prejudicial a questão da competência da jurisdição por considerar que “O contrato é, pois, de mero fornecimento de gás natural, em que os RR., entidades públicas, são o utente e consumidor final do fornecimento de gás natural – entendido este como um serviço público essencial nos termos da Lei 23/96, de 26 de julho - comercializado pela Autora. Sendo que a pretensão da A. mais não é do que dirigida ao pagamento das quantias, ainda falta, tituladas pelas faturas que discrimina na petição inicial e que respeitam a uma relação de consumo relativa à prestação de um serviço público essencial. Em face do disposto no art. 4.º, n.º 1 al. e) e n.º 4, al. e) do ETAF suscitam-se-nos dúvidas sobre a competência desta jurisdição administrativa e fiscal para decidir a causa, pelo que, prevenindo um eventual conflito negativo de competência, solicita-se ao Tribunal dos Conflitos, nos termos do artigo 15.º e seguintes da Lei n.º 91/2019, de 4 de setembro, consulta prejudicial”. Remetidos os autos a este Tribunal dos Conflitos, nos termos ao nº 1 do art. 15º da Lei nº 91/2019, face ao pedido de consulta prejudicial, foi dado cumprimento ao disposto no nº 3 do art. 11º daquele diploma. A Exma. Procuradora Geral Adjunta pronunciou-se no sentido de dever ser emitida decisão que atribua a competência material à jurisdição comum. 2.Questão prévia A Autora A..., SA veio dizer que “a apreciação dos pressupostos da competência em razão da matéria é extemporânea – tendo em conta a formação de caso julgado formal – pelo que entende que não há lugar à consulta prejudicial ao Tribunal dos Conflitos, (…)”. A consulta prejudicial de jurisdição está prevista e regulamentada nos arts. 15º a 17º da Lei nº 91/2019, de 4/9, sendo-lhe ainda aplicável o disposto nos nºs 3 e 4 do art. 11º e nos arts. 12º a 14º desta Lei. No caso nem o pedido de consulta foi liminarmente recusado por se ter considerado que não se encontram preenchidos os respectivos pressupostos (cfr. nº 1 do art. 16º), nem a relatora entendeu que o pedido é manifestamente infundado (cfr. nº 2 do art. 12º e nº 3 do art. 16) por extemporaneidade. A qual resultaria de se ter formado caso julgado formal, o que não se vislumbra visto apenas ter sido proferido despacho tabelar no saneador objecto da presente consulta (cfr. art. 620º, nº 1 do CPC), sendo certo que o âmbito da jurisdição administrativa e a competência dos tribunais administrativos, em qualquer das suas espécies é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria (cfr. art. 13º do CPTA). 3. Do mérito da consulta Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas “que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” [arts. 211º, nº 1, da CRP; 64º do CPC; e 40º, nº 1, da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas “emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” [arts. 212º, nº 3, da CRP e 1º, nº 1, do ETAF]. A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no art. 4º do ETAF com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4). Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o Autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta. Como se disse no Acórdão deste Tribunal de 08.11.2018, Proc. 020/18, disponível em www.dgsi.pt, “A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável - ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência…»”. Nos termos da alínea e) do nº 1 do art. 4º do ETAF compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a “Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes”. Explica Mário Aroso de Almeida, no que respeita ao critério do contrato administrativo, “Estão, desde logo, abrangidos pelo âmbito da jurisdição administrativa os contratos administrativos, isto é, os contratos que apresentem alguma das notas de administratividade enunciadas no nº 6 do artigo 1º do CCP” (actualmente, nº 1 do art. 280º do CCP). No que concerne ao critério do contrato submetido a regras de contratação pública, diz o mesmo autor que “Tal como antes, a alínea e) do nº 1 do artigo 4º do ETAF atribui à jurisdição administrativa a competência para dirimir os litígios emergentes dos contratos que a lei submeta a regras de contratação pública. A previsão do preceito compreende claramente litígios respeitantes a quaisquer contratos, que não apenas a contratos administrativos, e tanto contratos celebrados por pessoas coletivas de direito público, como contratos celebrados por entidades privadas, quando sujeitas a regras de direito público em matéria de procedimentos pré-contratuais (ou seja, quando legalmente qualificadas como entidades adjudicantes, segundo a terminologia do CCP, como agora é explicitado no preceito). (…) O critério não é, aqui, na verdade, o do contrato administrativo, mas o do contrato submetido a regras de contratação pública: desde que um contrato esteja submetido a regras procedimentais de formação de Direito Administrativo, todas as questões que dele possam vir a emergir devem ser objecto de uma acção a propor perante os tribunais administrativos, e não perante os tribunais judiciais - e isto, independentemente da sua qualificação ou não como contrato administrativo, nos termos do CCP.” (cfr. Manual de Processo Administrativo, 3ª ed., Almedina, 2017, p. 165/169). Como se alcança do relato supra a questão nesta acção prende-se com a discussão da validade de uma cláusula do caderno de encargos do contrato de fornecimento de gás natural, sustentando a Autora que aquela cláusula é parcialmente nula devendo ser eliminada a referência aos “contratos de aprovisionamento de longo prazo celebrados com os produtores de gás natural”, por se tratar de um critério indeterminado e indeterminável, e que os Réus ao impedirem a revisão de preços e a modificação contratual sugerida pela Autora deram origem a um prejuízo considerável para si e, consequentemente, a um desequilíbrio económico-financeiro contratual, que deverá ser resposto. Assim, não está apenas em causa o pagamento das quantias, centrando-se a pretensão principal enunciada pela Autora na validade de uma cláusula do caderno de encargo anexo ao contrato celebrado entre as partes - sendo os Municípios entidades adjudicantes (cfr. alínea c) do nº 1 do art. 2º do CCP) -, nos termos da legislação sobre contratação pública, e que tem implicações na pretendida revisão de preços e, consequentemente, na exigibilidade do remanescente das facturas. Como se referiu, a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos, independentemente daquilo que o réu invoque no quadro da sua defesa. Deste modo, tem de concluir-se que, atendendo à relação material controvertida tal como configurada pela Autora, são os tribunais administrativos os competentes para conhecer a presente acção, nos termos da alínea e) do nº 1 do art. 4º do ETAF. Pelo exposto, e nos termos do disposto no art. 17º da Lei nº 91/2019, acordam em emitir pronúncia no sentido de que cabe à Jurisdição Administrativa e Fiscal conhecer da presente acção. Lisboa, 27 de Novembro de 2024. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Nuno António Gonçalves. |