Acórdão do Tribunal dos Conflitos | |
Processo: | 0437/23.7BECBR-B.C1.S1 |
Data do Acordão: | 09/11/2024 |
Tribunal: | CONFLITOS |
Relator: | NUNO GONÇALVES |
Descritores: | CONFLITO DE JURISDIÇÃO |
Sumário: | I - Compete aos tribunais da jurisdição comum conhecer da impugnação judicial das decisões das autoridades administrativas que aplicam coimas por violação de normas legais e regulamentares sobre abastecimento público de água às populações, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos, por constituírem serviços públicos de carácter estrutural, essenciais ao bem-estar geral, à saúde pública e à proteção do ambiente. |
Nº Convencional: | JSTA000P32622 |
Nº do Documento: | SAC202409110437 |
Recorrente: | MINISTÉRIO PÚBLICO |
Recorrido 1: | CONDOMÍNIO DO PRÉDIO SITO RUA ……, COIMBRA |
Votação: | UNANIMIDADE |
Área Temática 1: | * |
Aditamento: | |
Texto Integral: | *
Conflito negativo de jurisdição ** O Tribunal dos Conflitos acorda: ---------------------- * a. relatório: No processo de contraordenação n.º 61/2019, o Presidente do Conselho de Administração da AC – Águas de Coimbra, E.M., por decisão de 31/07/2023, aplicou à ali arguido Condomínio do Prédio sito na Rua ..., Coimbra, aqui recorrente, a coima de € 8.500,00, pela prática de uma contraordenação p. e p. pelos arts. 73.º, n.º 9, e 117.º, n.º 1, al. a), do Regulamento Municipal de Água e Águas Residuais de Coimbra (Regulamento n.º 539/2016, de 31 de maio), por não ter eliminado a ligação indevida de águas pluviais do sistema público de drenagem de águas residuais. Notificado, o arguido apresentou impugnação judicial daquela decisão, dirigindo-a ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra. A entidade administrativa remeteu o processo ao Ministério Público junto daquele tribunal que fez os autos presentes ao respetivo Juiz, nos termos e com o efeito previstos no artigo 62.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro (RGCO). O Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, por sentença de 27/11/2023 julgou-se materialmente incompetente para conhecer da impugnação judicial em causa. Competência que atribuiu aos tribunais da jurisdição comum, concretamente ao Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra - Juízo Local Criminal de Coimbra, ordenando que os autos se lhe remetessem, após trânsito Entendeu, em suma, que não estando em causa a apreciação de um litígio em matéria de urbanismo ou de violação de normas tributárias, mas antes uma contraordenação ambiental, não há lugar à aplicação do art. 4.º, n.º 1, al. l), do ETAF. Recebidos o processo na comarca de Coimbra com distribuição ao Juízo Local Criminal de Coimbra – Juiz ..., o tribunal, por decisão de 5/01/2024, declinou a competência material para a tramitação dos autos, atribuindo-a ao Tribunal Administrativo e Tributário de Coimbra, por considerar que em causa está a prática de uma contraordenação urbanística, enquadrável na previsão do art. 4.º, n.º 1, al. l), do ETAF. Deparando-se com o conflito negativo de jurisdição, o Juízo Local Criminal de Coimbra – Juiz ..., por despacho de 23/05/2024, determinou a remessa dos autos ao Tribunal da Relação de Coimbra para apreciação e resolução. Na Relação de Coimbra, a Exma. Desembargadora sorteada, por despacho de 31/05/2024, determinou a remessa dos autos ao Tribunal dos Conflitos. b. parecer do Ministério Público: Neste Tribunal dos Conflitos, o Digno Procurador-geral Adjunto, na vista a que alude o artigo 11.º n.º 4 da Lei n.º 91/2019, de 4 de setembro, emitiu parecer no sentido de o conflito de jurisdição se resolver com a atribuição da competência material para conhecer do recurso de contraordenação em causa aos tribunais judiciais, mais concretamente ao Juízo Local Criminal de Coimbra – Juiz .... c. exame preliminar: No caso, dois tribunais, - um da ordem comum, o outro da ordem administrativa – declaram-se incompetentes em razão da matéria para conhecer e julgar a impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa apresentada nos autos pelo arguido. O tribunal da jurisdição comum pediu, oficiosamente, a resolução do vertente conflito negativo de jurisdição Este Tribunal é o competente para a sua resolução do conflito. Não há questões prévias que devam conhecer-se. d. objeto do conflito: Cumpre, assim, definir aqui qual é a jurisdição – comum ou administrativa –competente, em razão da matéria, para conhecer a impugnação judicial da decisão administrativa que condenou o recorrente em coima pela prática de uma contraordenação consistente na violação da obrigatoriedade de não ter eliminado a ligação indevida de águas pluviais do sistema público de drenagem de águas residuais. e. fundamentação: i. da competência Da arquitetura constitucional e do quadro orgânico, estatutário e adjetivo que a desenvolve, resulta que “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal”. E que lhe está conferida a denominada competência residual que, na expressão do legislador, se traduz no poder-dever de conhecer de todas as “causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”. Resulta ainda que na ordem dos tribunais judiciais comuns, os juízos locais criminais possuem competência para “julgar os recursos das decisões das autoridades administrativas em processos de contraordenação, salvo” se, por lei, estiverem “expressamente atribuídos a juízos de competência especializada ou a tribunal de competência territorial alargada”. Aos tribunais da jurisdição administrativa compete conhecer e julgar as ações e recursos que tenham como causa “litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”. Tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição» A competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais encontra-se concretizada, essencialmente, no art. 4.º do ETAF. Que, na alínea l), na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, lhes veio atribuir competência para apreciar as “Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo.”. A propósito da redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015 ao art. 4.º, n.º 1, al. l), do ETAF, expendeu-se no acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 07/10/2020, processo n.º 01/201), que “o legislador previu, pois, a competência dos tribunais administrativos para o conhecimento das impugnações judiciais, no âmbito de ilícitos de mera ordenação social, mas restringido à violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo”. Posteriormente, na redação conferida pela Lei n.º 114/2019, de 12 de setembro (ora vigente), aquela norma passou a atribuir competência aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal para apreciação de “Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo e do ilícito de mera ordenação social por violação de normas tributárias”. Porque grassava conflitualidade entre as jurisdições relativamente à competência para as causas do direito do consumo, que estava a aumentar a entropia e a morosidade, o legislador quis por termo às inusitadas dificuldades interpretativas e conflitos de competência, aditando ao n.º 4 do art. 4.º do ETAF a alínea e), que veio clarificar que está excluída da competência da jurisdição administrativa a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos, incluindo a respetiva cobrança coerciva. Justificando que “da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo.” -cfr exposição de motivos da proposta de Lei n.º 167/XIII que originou a Lei n.º 114/2019. * Nos termos da lei - art. 38.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, “a competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei” (no mesmo sentido veja-se o art. 5.º do ETAF). Está pacificamente assente na doutrina e na jurisprudência2 que “a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos (…) A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável …»].”3. ii. regime jurídico (substantivo): Nos presentes autos, está em causa a impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa que aplicou à recorrente uma coima pela prática de uma contraordenação p. e p. pelos artigos 73.º, n.º 9 e 117.º, n.º 1, al. a), do Regulamento Municipal de Água e Águas Residuais de Coimbra (Regulamento n.º 539/2016, de 31 de maio), por incumprimento da obrigação de proceder à ligação da rede predial dos prédios de que é proprietária sitos no ..., em Coimbra, ao sistema público de drenagem de águas residuais, assim criando uma situação de insalubridade que não faz cessar. Aquele artigo 73.º, regendo sobre a “obrigatoriedade de ligação ao sistema público de drenagem de águas residuais”, no n.º 9 dispõe: ----- “Nos prédios ligados ao sistema público de drenagem em que seja detetada a existência de ligações indevidas de águas residuais domésticas a coletores públicos de águas pluviais e de águas residuais pluviais a coletores públicos de águas residuais domésticas, ficarão os proprietários obrigados a proceder à respetiva retificação no prazo considerado adequado em função da natureza dos trabalhos, precedendo notificação.” Por sua vez o artigo 117.º, n.º 1, al. a), do mesmo Regulamento comina: …. “1 - Sem prejuízo das contraordenações previstas no artigo 72.º, do Decreto-Lei n.º 194/2009, de 20 de agosto, constitui contraordenação, punível com coima de (euro) 1 500 a (euro) 3 740, no caso de pessoas singulares, e de (euro) 7 500 a (euro) 44 890, no caso de pessoas coletivas, a prática dos seguintes atos ou omissões por parte dos proprietários, arrendatários, usufrutuários, comodatários, superficiários, devidamente autorizados pelos primeiros ou titulares de qualquer direito sobre os prédios abrangidos por sistemas públicos ou dos utilizadores dos serviços: a) O incumprimento da obrigação de ligação dos sistemas prediais aos sistemas públicos, nos termos dos artigos 12.º e 73.º”. É o Decreto-Lei nº 194/2009, de 20 de agosto que contém o regime jurídico dos serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos. O Regulamento n.º 539/2016, de 31 de maio (Regulamento Municipal de Água e Águas Residuais de Coimbra) foi aprovado, além do mais, ao abrigo do disposto no art. 62.º do Decreto-Lei n.º 194/2009 (cfr. art. 2.º). Regulamento que no n.º 1 do art. 3.º prevê a aplicação subsidiária, em tudo em que for omisso, das disposições legais em vigor respeitantes aos sistemas públicos e prediais de distribuição de água e de drenagem de águas residuais urbanas, designadamente as constantes do referido Decreto-Lei n.º 194/2009. iii. apreciação: O Tribunal dos Conflitos, no acórdão de 21/03/2018, tirado no processo n.º 37/184, incidindo sobre questão similar à dos presentes autos, expendeu-se: “O … (DL 194/2009) constitui mais uma emanação da Lei de Bases do Ambiente (Lei 11/87, de 7 de Abril), que se assume como a lei-quadro definidora da política de ambiente, cujos princípios são integrados por um elenco de técnicas básicas de protecção, pelo estabelecimento de uma planificação directamente dirigida à defesa do meio e do ambiente (necessariamente em coordenação com outras espécies de planificação, como a urbanística (Só nesta relação de complementaridade se pode compreender a referência feita no acórdão acima citado (cfr. relatório) de que a infracção se insere no “amplo âmbito do direito do urbanismo”, salientando-se, por outro lado, que aí se teve em consideração a anterior redacção da norma da alínea l) do n.º 1, do artigo 4º do ETAF.) e a económica) e por um conjunto de medidas informais de actuação. O objectivo último é a criação de um ambiente propício à saúde e bem-estar das pessoas e ao desenvolvimento social e cultural das comunidades, em sintonia com a fundamentalidade material e formal do direito ao ambiente e à qualidade de vida consagrado no artigo 66° da Constituição. O preâmbulo do DL 194/2009 reafirma esse objectivo, na área específica a que se dirige: “As actividades de abastecimento público de água às populações, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos constituem serviços públicos de carácter estrutural, essenciais ao bem-estar geral, à saúde pública e à segurança colectiva das populações, às actividades económicas e à protecção do ambiente.” A imposição da ligação dos sistemas prediais de distribuição de água e de drenagem de águas residuais aos respectivos sistemas públicos surge assim, ao mesmo tempo, como medida inibidora de poluição de componentes ambientais naturais (água e solo) e como fonte de melhor saúde pública, segurança e bem-estar das populações. Sendo uma norma de cariz eminentemente ambiental está excluída do âmbito de actuação da alínea l) do n.º 4 do ETAF, na medida em que esta atribui à jurisdição administrativa a apreciação de impugnações de decisões judiciais que apliquem coimas por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo. Ora, como o direito do urbanismo é constituído pelo conjunto de normas e institutos jurídicos que, no quadro das directivas e orientações definidas pelo direito do ordenamento do território, se destinam a promover o desenvolvimento e a conservação cultural da urbe (Luís Filipe Colaço Antunes, “Direito Urbanístico - Um outro paradigma - a planificação modesto- situacional”, Livraria Almedina, 2002, páginas 68 e seguintes.) (figurando portanto como um desenvolvimento ou prolongamento do desenvolvimento do ordenamento do território), facilmente se constata que a norma que esteve na origem da aplicação da coima não tem qualquer ponto de contacto com esta matéria# (…) Em conformidade, decide-se o presente conflito de jurisdição atribuindo-se a competência material ao Juízo Local Criminal do Porto.”. No mesmo sentido se decidiu no recentemente o acórdão do Tribunal dos Conflitos de 19/06/2024 -com a mesma composição -, prolatado no processo n.º 172/23.6T8MLG.S1. Secundando os fundamentos constantes daqueles arestos e uma vez que em causa está a impugnação de uma contraordenação não urbanística, conclui-se que a competência material para a apreciação da impugnação judicial em causa cabe aos tribunais da jurisdição comum. f. dispositivo: Pelo exposto, o Tribunal de Conflitos acorda em resolver o vertente conflito negativo de jurisdição, atribuindo aos tribunais judiciais comuns, nos termos do art. 4.º, n.º 4, alínea e) do ETAF, concretamente ao Juízo local criminal de Coimbra -Juiz..., a competência material para conhecer da impugnação judicial da decisão administrativa que coimou o arguido nestes autos. Não são devidas custas – art. 5.º n.º 2, da Lei n.º 91/2019, de 04 de setembro. Lisboa, 11 de setembro de 2024. - Nuno António Gonçalves (relator) - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa. 1. http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/f2d1a7b4511d414d802585ff002f42b0 |