Acórdão do Tribunal dos Conflitos | |
Processo: | 06045/23.5T8VNF.G1.S1 |
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Data do Acordão: | 05/08/2025 |
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Tribunal: | CONFLITOS |
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Relator: | NUNO GONÇALVES |
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Descritores: | RECURSO |
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Sumário: | Compete aos tribunais administrativos conhecer da ação intentada por sócio minoritário peticionando a anulação de deliberação da Assembleia Geral de empresa de capitais maioritariamente públicos, submetida ao regime jurídico da atividade empresarial local e das participações locais, que aprovou por maioria, contrato de gestão delegada (CGD) com o município, que sobre a mesma tem influência dominante, alegado conter cláusulas que violam de forma direta e frontal os Estatutos da Sociedade e o Acordo Parassocial. |
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Nº Convencional: | JSTA000P33734 |
Nº do Documento: | SAC2025050806045 |
Recorrente: | GESWATER – ÁGUAS E RESÍDUOS, S.A. |
Recorrido 1: | AGERE – EMPRESA DE ÁGUAS EFLUENTES E RESÍDUOS DE BRAGA, E.M. BRAGA - MUNICÍPIO |
Votação: | UNANIMIDADE |
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Área Temática 1: | * |
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Aditamento: | ![]() |
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Texto Integral: | *
recurso ** O Tribunal dos Conflitos acorda: ---------------------- ** a. Relatório: GESWATER, Águas e Resíduos S.A. em 06/10/2023, intentou no Juízo de Comércio de Vila Nova de Famalicão, ação de anulação de deliberações sociais, contra: - AGERE, Empresa de Águas, Efluentes e Resíduos de Braga – EM; e - Câmara Municipal de Braga. pedindo que seja “declarada a invalidade (nulidade ou anulação) da deliberação tomada em sede de reunião da Assembleia Geral da Ré AGERE realizada no dia 06 de setembro de 2023, que aprovou a minuta do Contrato de Gestão Delegada (CGD)”. O réu Município de Braga contestou, defendendo-se por exceção e por impugnação. Deduziu a exceção dilatória de incompetência absoluta, em razão da matéria, dos tribunais judiciais para conhecer da causa, sustentando que a mesma está deferida à jurisdição administrativa e fiscal, por via do disposto na parte final da al. e) do n.º 1 do art. 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais. A ré AGERE contestou, defendendo-se, igualmente, por exceção e impugnação, excecionando a incompetência absoluta, em razão da matéria, do Juízo de Comércio e a caducidade do direito de propor a ação. A autora respondeu às exceções invocadas pelas rés, concluindo pela sua improcedência. O Juiz ... do Juízo de Comércio de Vila Nova de Famalicão do Tribunal Judicial da comarca de Braga, por despacho de 27/03/2024, julgou verificada a exceção de incompetência absoluta em razão da matéria do Juízo de Comércio para conhecer do pedido e absolveu os réus da instância. A autora, não se conformando, interpôs recurso de apelação. Os réus contra-alegaram, pugnando pela improcedência do recurso. O Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão de 03/10/2024, julgou a apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida, considerando, que a competência material para conhecer da ação se encontra deferida, nos termos da al. e) do n.º 1 do art. 4º do ETAF, à jurisdição administrativa. A autora, inconformado, interpôs recurso para o Tribunal dos Conflitos pugnando pela revogação do acórdão recorrido e pela sua substituição por outro que, julgando não verificada a deduzida exceção dilatória de incompetência absoluta em razão da matéria, considere o Juízo de Comércio competente para conhecer da vertente causa. Os réus contra-alegaram defendendo a improcedência do recurso e a confirmação da decisão recorrida. b. parecer do Ministério Público: No Tribunal dos Conflitos, o Digno Procurador-Geral Adjunto, na vista a que alude o art. 11.º, n.º 4, da Lei n.º 91/2019, de 4 de setembro emitiu douto parecer em que, aderindo à fundamentação do acórdão recorrido, se pronuncia no sentido da atribuição da competência material para conhecer da presente ação à jurisdição administrativa. a. exame preliminar: O recurso é o próprio - art. 101.º n.º 2 do CPC. Está admitido. Este Tribunal dos Conflitos é o competente para julgar o recurso no que respeita à questionada incompetência jurisdicional material dos tribunais da jurisdição comum para conhecer a causa – art. 3.º alínea c) da Lei n.º 91/2019 de 4 de setembro. Não existem questões processuais que devam conhecer-se previamente à apreciação do mérito e que pudessem impedir o prosseguimento do recurso para julgamento. b. objeto do recurso: Cumpre-nos, assim, julgar o recurso da recorrente/autora, definindo qual das jurisdições – comum ou administrativa – é competente, em razão da matéria, para conhecer a ação que intentou neste processo contra os réus, pedindo a anulação da indicada deliberação social. e. fundamentação: i. da competência material: 1. pressuposto: A competência do tribunal é um pressuposto indispensável para que o juiz possa conhecer do mérito de uma causa. Está pacificamente assente na doutrina e na jurisprudência1 que “a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos (…) A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável …»].”2. E, em determinadas causas, afere-se ainda em função da natureza jurídica dos sujeitos processuais. Sendo questão “a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor (compreendidos aí os respetivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão”3. 2. fixação: Nos termos da lei - art. 38.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013 -, “a competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei”. Norma que o ETAF praticamente reproduz (“A competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente”.) Acrescentando o n.º 2 que Existindo, no mesmo processo, decisões divergentes sobre questão de competência, prevalece a do tribunal de hierarquia superior.”. 3. repartição: Da arquitetura constitucional e do quadro orgânico, estatutário e adjetivo que a desenvolve, resulta que “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal”. E que lhe está conferida a denominada competência material residual que, na expressão do legislador, se traduz no poder-dever de conhecer de todas as “causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”. A LOSJ, fundando-se nas reconhecidas vantagens advenientes da especialização dos tribunais e juízes, reparte a competência ratione materiae dos tribunais da jurisdição comum atribuindo-a, segundo o critério da natureza substancial das causas, a juízos de competência especializada e aos tribunais de competência territorial alargada. Que no art.º 128.º n.º 1, alínea c) e d), atribui competência material aos Juízos do comércio para “preparar e julgar: c) As ações relativas ao exercício de direitos sociais; d) As ações de suspensão e de anulação de deliberações sociais;” Aos tribunais da jurisdição administrativa compete conhecer e julgar as ações e recursos que tenham como causa “litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”. Tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição» O âmbito da competência material dos Tribunais Administrativos e Fiscais encontra-se concretizada, essencialmente, no art. 4.º do ETAF, estabelecendo no n.º 1 alíneas e) e o) que lhes cabe, (no que para aqui poderia convocar-se) “a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:-------- “e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes; e o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores. (…)”. ii. relações jurídicas administrativas: Relação jurídica administrativa é a “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a administração. (…”) “É aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a administração”4 Considerando-se como tal para efeitos de delimitação da competência da jurisdição as “relações jurídicas públicas (seguindo um critério estatutário, que combina sujeitos, fins e meios) (…) em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”5. f) a ré E. M.: A AGERE - Empresa de Águas, Efluentes e Resíduos de Braga, E. M. resultou da transformação dos Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento, através da constituição, pela Câmara Municipal de Braga, de um novo ente jurídico, uma Empresa Pública Municipal (EPE), totalmente detida pela autarquia, com a missão de prosseguir o exercício das competências jurídico-públicas atribuídas pelo Município, concretamente no domínio do fornecimento de água, da rede pública de saneamento e de recolha do lixo que, nos termos da lei, consubstanciam serviços de interesse geral e visam a prossecução do interesse público, estando sujeitas a obrigações específicas de serviço público. Município que tendo alienando, em 2004, através de concurso público, parte da AGERE, E. M., manteve a posição dominante com 51% do respetivo capital social. A AGERE - EM é uma empresa municipal de capitais maioritariamente públicos, que goza de personalidade jurídica e é dotada de autonomia administrativa, financeira e patrimonial (art. 2.º, n.º 1. dos respetivos estatutos6). Rege-se “pela Lei n.º 58/98, de 18 de Agosto, ou por outra que a substitua, pelos (…9 estatutos e, subsidiariamente, pelo regime das empresas públicas e, no que neste não for especialmente regulado, pelas normas aplicáveis às sociedades comerciais.” (art. 2.º n.º 2). Que “tem como objeto social o exercício da atividade de captação, tratamento e abastecimento público de água às populações, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos e limpeza pública” (art. 3.º). À Assembleia Geral compete deliberar sobre quaisquer assuntos de interesse para a empresa e aprovar as orientações anuais para o exercício da sua “atividade de prossecução dos serviços de interesse geral, tendo em consideração as orientações estratégicas aprovadas pela Câmara Municipal de Braga”. Versando sobre a “Delegação de poderes respeitantes à prestação de serviço público” o artigo 17.º dos Estatutos consigna que “1. Nos termos e para os efeitos do artigo vigésimo sétimo da Lei n.° 50/2012, ou de outra que a substitua, são delegados na empresa pela Câmara Municipal de Braga os poderes de autoridade que, em cada caso, se revelem necessários à prestação do serviço público que constitui o seu objeto social.” E “Todos os demais poderes administrativos e de autoridade púbica, previstos na lei e cujo exercício não seja da competência exclusiva do Município de Braga, necessários à prossecução do seu objeto social;” E o artigo 29°, com o proémio “Contratos-programa”, estabelece que “1. A prestação de serviços de interesse geral pela Empresa, no âmbito da prossecução do seu objeto social, depende da celebração de contratos-programa com o Município de Braga, os quais fundamentam a necessidade do estabelecimento da relação contratual e o fim desta, definem a política de preços e regulam as transferências financeiras necessárias ao financiamento da atividade de interesse geral na forma de subsídios à exploração.” g) apreciação: 1. pedido e causa de pedir: No caso dos autos, a autora alega, em síntese, que: --- - A AGERE – Empresa de Águas, Efluentes e Resíduos de Braga, E.M. foi constituída e registada em 31/12/1998, tendo como único acionista o Município de Braga; - À data da sua constituição, a AGERE tinha como objeto social a “Captação, tratamento e distribuição de água para consumo público, recolha, tratamento e rejeição de efluentes, recolha e deposição de resíduos sólidos urbanos e a limpeza e higiene públicas”; - Por reunião ordinária realizada no dia 21/10/2004, o Executivo Municipal de Braga deliberou a venda de 49% da participação social na AGERE, elaborando e aprovando, para tanto, o respetivo Regulamento do Concurso Público, bem como a nomeação do Júri do Concurso e a Comissão da Análise de Propostas; - As sociedades D..., S.A. (D...), B..., S.A. (B...) e A..., S.A. (AB...) apresentaram naquele concurso público proposta de preço e de Acordo Parassocial que correspondeu à proposta selecionada para aquisição da participação social na AGERE; - De acordo com a proposta apresentada, o Consórcio investidor iria incorporar uma nova sociedade veículo para deter a participação na sociedade AGERE, o que foi efetuado: a GESWATER; - Em 14/01/2005 foi celebrado Acordo Parassocial entre os representantes da sócia privada e do Município de Braga, visando definir as condições adicionais ou extraestatutárias no que respeita às relações entre o Município e o Investidor, delinear as decisões estratégicas para a Empresa, sendo propósito das Partes assegurar, desde logo, e naquilo que se refere aos respetivos interesses coincidentes, um quadro de conduta consensual, estável e harmonioso; - Em 21/04/2005, foi outorgada Escritura de Transformação de Empresa Municipal e Alienação de Parte de Participação Social, nos termos da qual a sociedade GESWATER adquiriu uma participação da sociedade AGERE correspondente a 49% do respetivo capital social; - A AGERE é, desde então, uma sociedade de capitais maioritariamente públicos, regendo-se pelo regime jurídico da atividade empresarial local e das participações locais (DL 50/2012, de 31 de agosto); - Durante todo o período em que a GESWATER é sócia da AGERE, esta sociedade manteve a prestação de serviços para o Município de Braga de captação, tratamento e distribuição de água para consumo público; recolha, tratamento e rejeição de efluentes; a recolha e deposição de resíduos sólidos urbanos e a limpeza e higiene públicas, correspondente às quatro grandes unidades de negócio da sociedade: (i) água; (ii) saneamento; (iii) varredura, canil, gatil e sanitários públicos; (iv) recolha de resíduos; - No entanto, a AGERE apenas é remunerada por parte daqueles serviços, pois que, após a entrada em vigor do atual Regime Jurídico dos Serviços Municipais de Abastecimento Público de Água, de Saneamento de Águas Residuais e de Gestão de Resíduos Urbanos (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 194/2009, de 20 de agosto), bem como do atual Regime Jurídico da Atividade Empresarial Local e das Participações Locais (aprovado pela Lei n.º 50/2012, de 31 de agosto), o Município de Braga deixou de pagar os serviços de limpeza e higiene públicas, por alegada falta de enquadramento em contrato de gestão delegada (CGD); - Durante o ano de 2014, após muita insistência por parte da autora, foi elaborado um projeto de CGD, cuja minuta foi enviada para a Entidade Reguladora do Setor das Águas e Resíduos (ERSAR) e objeto de parecer com várias recomendações de alterações; - Desde 2014 até à presente data, foram elaboradas várias versões de CGD, tendo a definitiva, finalizada no primeiro semestre de 2021, sido remetida para a ERSAR, que emitiu parecer favorável, apresentando apenas três propostas de correções para o cumprimento dos requisitos legais e nove recomendações; - Tais recomendações foram incorporadas numa nova minuta, dando origem à versão final e definitiva, de 22/11/2021. - Porém, o Município de Braga, continuou injustificadamente a não promover a aprovação do CGD, forçando a autora a recorrer ao Tribunal Arbitral no sentido de pedir a sua condenação no pagamento da quantia devida pela remuneração dos serviços de limpeza e higiene públicas, incluindo varredura, canil, gatil e sanitários públicos, que o réu deixou de pagar por alegada falta de enquadramento em contrato de gestão delegada; - Em 06/03/2023 o executivo municipal tomou a decisão de apresentar o CGD aos seus órgãos internos, para aprovação, primeiramente em reunião de Câmara ocorrida nesse dia; - Contudo, este ponto foi “Retirado da agenda para melhor análise”, voltando a ser discutido e aprovado na reunião de Câmara de 03/04/2023 e, posteriormente, em sede de Assembleia Municipal realizada no dia 12/05/2023; - Sucede que a versão submetida a aprovação dos órgãos municipais: --- a) Não corresponde à última minuta do CGD de 22/11/2021, que foi enviada para a ERSAR, e que já integra as correções e recomendações emitidas pela ERSAR no seu parecer de 22/07/2021; b) Não corresponde a qualquer documento previamente analisado, discutido ou negociado com os órgãos internos da AGERE; c) Não corresponde a qualquer documento previamente analisado, discutido ou negociado com os órgãos internos da Geswater; d) Contém cláusulas que violam as regras do regulamento apresentado pelo Município no concurso público de venda de 49% do capital social da AGERE; e) Contém cláusulas que violam os estatutos da AGERE bem como o acordo parassocial celebrado entre o Município e a Geswater; - Perante a recusa do réu Município em negociar qualquer alteração ao CGD aprovado, a autora, em carta datada de 03/07/2023, requereu ao Presidente da Mesa da Assembleia Geral a convocação de uma reunião; - A este pedido respondeu o Presidente da mesa, mediante carta datada de 17/07/2023, remetendo juntamente com a mesma a correspondente convocatória da reunião da Assembleia Geral para o dia 06/09/2023, com a seguinte (nova) ordem de trabalhos, “de onde retirou a palavra deliberação”: «Ponto único: Apreciação, Discussão do Contrato de Gestão Delegada a submeter a visto do Tribunal de Contas, apresentado pelo Acionista Município de Braga”.». - Por insistência da autora, o Presidente da Mesa alterou a convocatória daquela reunião, passando o ponto único da ordem de trabalhos a ter a seguinte redação: «Ponto único: Apreciação, Discussão e Deliberação sobre a minuta do Contrato de Gestão Delegada a submeter a visto do Tribunal de Contas, apresentado pelo Acionista Município de Braga.» - Realizada a reunião à hora e no local agendados na respetiva convocatória, o Ponto Único da ordem de trabalhos foi aprovado com o voto favorável do acionista Município de Braga, representativo de 51% dos votos, e com o voto desfavorável da Geswater, representativo de 49% dos votos. - Acontece que esta deliberação, tomada na Assembleia Geral da AGERE do dia 06/09/2023, que aprovou o Contrato de Gestão Delegada, é nula e/ou anulável, porquanto: a) Foi aprovada com o voto do acionista Município em manifesto conflito de interesses com a sociedade; b) O acionista Município de Braga exerceu de forma abusiva o seu direito de voto, para aprovar uma deliberação em seu claro benefício, mas em prejuízo da sociedade e, muito particularmente, do acionista minoritário (a aqui autora); c) O contrato aprovado contém cláusulas que violam de forma direta e frontal os Estatutos da Sociedade; d) O contrato aprovado contém cláusulas que violam de forma direta e frontal os Acordo Parassocial celebrado entre o Município de Braga e a Geswater. Prossegue, ainda, a autora afirmando, além do mais: ------ - Não poderão ignorar-se as especificas condições em que os Municípios — no caso , o Município de Braga — assumem a sua qualidade de sócios/acionistas em sociedades de capitais maioritariamente públicos — sujeitas ao Regime Jurídico da Atividade Empresarial Local e das Participações Locais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 50/2012 , de 31 de agosto —, que têm como objeto e função a prestação de serviços de interesse geral — estando , por isso, sujeitas ao Regime Jurídico dos Serviços Municipais de Abastecimento Público de Água, de Saneamento de Águas Residuais e de Gestão de Resíduos Urbanos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 194/2009, de 20 de agosto; - Nos termos estabelecidos naqueles diplomas legais, os Municípios — no caso, o Município de Braga — atuam numa tripla qualidade, designadamente: (i) assumem a qualidade de entidade adjudicante quando os serviços de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos são delegados numa empresa do setor empresarial local. Sendo que, nessa qualidade, são os Municípios — no caso, o Município de Braga — que impõem, no Caderno de Encargos do Concurso Público, os pressupostos de seleção a serem cumpridos pelos concorrentes privados que pretendam ser acionistas na empresa local a quem será adjudicado o desempenho daquelas tarefas/ funções de interesse público. Percorrida a causa de pedir, verifica-se que a autora se insurge contra a deliberação tomada na Assembleia Geral da AGERE do dia 06/09/2023 que aprovou o Contrato de Gestão Delegada entre o Município de Braga e a AGERE, E. M., arguindo de nulidade com os fundamentos acima enunciados, peticionando a sua anulação. Para tanto alega, em apertada síntese que a deliberação aprovada viola os Estatutos da EM e o acordo parassocial, tendo sido aprovada pelo sócio maioritário, o réu Município, em manifesto conflito de interesses, em seu benefício e em prejuízo da ré AGERE. Na concisa e precisa definição do acórdão recorrido “é com base nas violações acabadas de enunciar do clausulado acima identificado no contrato de gestão delegada (CGD), aprovado na assembleia geral da Ré Agere, de 06 de setembro de 2023, que a recorrente retira o pretenso conflito de interesses que diz existir entre o acionista Município de Braga e a Ré Agere, (…) e, bem assim, em que fundamenta a sua alegação de que o exercício do direito de voto pelo Município de Braga (“sócio” maioritário), que levou à aprovação do identificado contrato de gestão delegada, contendo aquelas cláusulas, se revela abusivo e lesivo da boa fé, por dele resultarem benefícios para o próprio Município, em detrimento da Agere e, principalmente, da própria recorrente (“sócia” minoritária).” Mas, diversamente do que aí se refere, a autora não peticiona a nulidade nem a anulação “do procedimento de contratação pública seguido pelo Município de Braga, que culminou com a seleção da recorrente (Autora) para adquirir 49% do capital social da Ré Agere, transformando então esta empresa pública em empresa de capitais maioritariamente públicos”. E também não questiona a validade do contrato social da AGERE EM nem dos respetivos estatutos. Insurge-se contra o contrato de gestão delegada (CGD) alegado conter cláusulas que violam de forma direta e frontal os Estatutos da Sociedade e o Acordo Parassocial celebrado com a autora. 2. regime jurídico: Conforme referido, a AGERE, EM foi criada na vigência do regime jurídico instituído pela Lei n.º 58/98, de 18 de agosto, que aprovou a Lei das Empresas Municipais, Intermunicipais e Regionais que regulava as condições em que os municípios, as associações de municípios e as regiões administrativas podiam/podem criar empresas dotadas de capitais próprios (art. 1.º, n.º 1). Lei (58/98) que foi revogada pela Lei n.º 53-F/2006, de 29 de dezembro, que aprovou o regime jurídico do sector empresarial local (RJSEL). RJSEL que veio a ser revogado pela Lei n.º 50/2012, de 31 de agosto, que estabelece o regime jurídico da atividade empresarial local e das participações locais (RJAEL). Estabelece o art. 7.º, n.º 1, desta Lei que “As sociedades comerciais controladas conjuntamente por diversas pessoas coletivas de direito público integram-se no setor empresarial da entidade que, no conjunto das participações de natureza pública, seja titular da maior participação ou que exerça qualquer outro tipo de influência dominante.”. O art. 19.º da Lei n.º 50/2012, diz-nos, no n.º 1, que “São empresas locais as sociedades constituídas ou participadas nos termos da lei comercial, nas quais as entidades públicas participantes possam exercer, de forma direta ou indireta, uma influência dominante em razão da verificação de um dos seguintes requisitos: a) Detenção da maioria do capital ou dos direitos de voto; b) Direito de designar ou destituir a maioria dos membros do órgão de gestão, de administração ou de fiscalização; c) Qualquer outra forma de controlo de gestão.” E, no n.º 4 que “As empresas locais são pessoas coletivas de direito privado, com natureza municipal, (…) independentemente da respetiva tipologia (…).” Que se regem “(…) pela presente lei [50/2012], pela lei comercial, pelos estatutos e, subsidiariamente, pelo regime do setor empresarial do Estado, sem prejuízo das normas imperativas neste previstas” - art. 21.º. A sua gestão “(…) deve articular-se com os objetivos prosseguidos pelas entidades públicas participantes no respetivo capital social, visando a satisfação das necessidades de interesse geral (…) assegurando a viabilidade económica e o equilíbrio financeiro.” – art. 31.º. Em que os direitos societários “(…) são exercidos nos termos da lei comercial, em conformidade com as orientações estratégicas previstas no artigo 37.º” - art. 24.º Competindo à entidade pública participante definir e rever periodicamente as orientações estratégicas da empresa local. Que devem estabelecer “a forma de prossecução dos serviços de interesse geral, contendo metas quantificadas e contemplando a celebração de contratos entre as entidades públicas participantes e as empresas locais”. Metas que devem “refletir-se nas orientações anuais definidas em assembleia geral e nos contratos de gestão a celebrar com os gestores.” – art. 37.º. O controlo financeiro de legalidade das empresas locais compete à Inspeção-Geral de Finanças e ao Tribunal de Contas – art. 39.º n.º 2. A regime constante da Lei n.º 50/202 que vimos de citar “não prejudica a aplicação das normas especiais previstas nos Decretos-Leis n.os 194/2009, de 20 de agosto (…)”. O regime jurídico dos serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos (podendo incluir a limpeza urbana) é o constante do Decreto-Lei n.º 194/2009, de 20 de agosto. No preâmbulo desse diploma legal esclarece-se que “As actividades de abastecimento público de água às populações, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos constituem serviços públicos de carácter estrutural, essenciais ao bem-estar geral, à saúde pública e à segurança colectiva das populações, às actividades económicas e à protecção do ambiente.” Motivando-se que “O presente decreto-lei visa assegurar uma correcta protecção e informação do utilizador destes serviços, evitando possíveis abusos decorrentes dos direitos de exclusivo, por um lado, no que se refere à garantia e ao controlo da qualidade dos serviços públicos prestados e, por outro, no que respeita à supervisão e controlo dos preços praticados, que se revela essencial por se estar perante situações de monopólio.” E, “Por fim, articula-se o regime aplicável com as alterações legislativas entretanto ocorridas. É especialmente significativo, devido às potenciais implicações nos serviços municipais, o Código dos Contratos Públicos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de Janeiro, que fornece um regime geral para a contratação pública e para a disciplina substantiva dos contratos administrativos, e o regime jurídico do sector empresarial local, aprovado pelo Lei n.º 53-F/2006, de 29 de Dezembro (…).” Nessa senda, o art. 3.º do Decreto-Lei em citação, afirma que a exploração e gestão dos sistemas municipais, tal como referidas no n.º 1 do art. 2.º, consubstanciam serviços de interesse geral e visam a prossecução do interesse público, estando sujeitas a obrigações específicas de serviço público. Estabelece o art. 6.º que “(…) a gestão dos serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos é uma atribuição dos municípios (…)”. Um dos modelos de gestão desses serviços essências é a “Delegação do serviço em empresa do sector empresarial local” - art. 7.º n.º 1 al.ª c). Entidade gestora que fica obrigada ao cumprimento dos deveres enunciados nos art.º 8.º a 10.º, 11.º-A e 13.º do citado Decreto-Lei n.º 194/2009. O modelo de gestão delegada está pormenorizadamente regulado no capítulo V, artigos 17.º a 30.º do mesmo diploma normativo. Segundo o qual “Um município, (…) podem delegar os respectivos serviços descritos no artigo 2.º em empresa do sector empresarial local, abreviadamente designada por empresa municipal, cujo objecto compreenda a gestão dos mesmos” - art. 17.º n.º 1. Delegação que se efetua “através da celebração de contrato de gestão delegada entre o município, (…) e a empresa municipal delegatária” – art. 17.º n.º 3. Pelo contrato de gestão delegada – com clausulado que deve observar o estabelecido no art. 20.º -, a entidade delegante autoriza a empresa municipal delegatária a prestar os serviços delegados. A empresa municipal delegatária tem de constituir-se nos termos previstos no regime jurídico do sector empresarial local – art. 18.º. Estabelecendo o art. 26.º, n.º 1 do mesmo diploma legal que “A participação de capitais privados no capital de empresas municipais delegatárias não pode conferir-lhe posição de influência dominante, tal como previsto no n.º 1 do artigo 3.º do regime jurídico do sector empresarial local, (…)”. Sendo que “A selecção de capitais privados realiza-se mediante procedimento de contratação pública, nos termos do Código dos Contratos Públicos, que tem por objecto a participação financeira do parceiro privado bem como o seu contributo para a melhor gestão do serviço delegado” - art. 27.º, n.º 1. E, finalmente no que para aqui pode relevar, dispõe o art. 31.º do mesmo Decreto-Lei que “A atribuição e a execução da concessão de serviços descritos no artigo 2.º rege-se pelo disposto no presente decreto-lei e, subsidiariamente, no Código dos Contratos Públicos.” Do exposto e como emerge dos articulados, não restam dúvidas que a AGERE, EM é uma empresa local de gestão de serviços de interesse geral, de natureza municipal, sendo também uma pessoa coletiva de direito privado. Com a sua constituição, a Câmara Municipal de Braga, constituiu um novo ente jurídico, em que detém posição dominante – com uma participação de 51% do respetivo capital –, para o qual transferiu competências, por via estatutária, para que prossiga, no que especificamente ora releva, através de um contrato de gestão delegada, a gestão de serviços de interesse geral que, por lei, são atribuições do próprio Município. Assim, extrai-se do regime normativo aplicável, quer nos termos definidos na lei, quer dos respetivos Estatutos, que a Autora, por ter sido criada e ser maioritariamente participada pelo Município, entidade que, por esse motivo, sobre aquela tem controle ou domínio com uma influência dominante, nos termos do disposto no n.º 1, do artigo 19.º da Lei n.º 50/2012, de 31/08, é uma empresa local, pertencente à Administração Pública Local Autárquica, enquanto fenómeno da Administração Pública sob forma privada. Acresce que o contrato de gestão delegada é o instrumento administrativo, aprovado pelos órgãos da autarquia - executivo e deliberativo -, mediante prévia supervisão da entidade reguladora, que contém as orientações estratégicas e de gestão que disciplinam o exercício da atividade delegada pelo município na EM. A jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo vai no sentido de admitir a competência dos tribunais administrativos, entendendo que os contratos programa (outro dos instrumentos jurídico-contratuais previstos na Lei n.º celebrados entre os municípios e as empresas do sector empresarial local, para regular as tarefas nelas delegadas constituem contratos de direito administrativo destinados a definir a missão, responsabilidades e as respectivas dotações financeiras que são transferidas do Município para as empresas locais em que as vestes privadas da ora ré, adquirem, neste contexto, um relevo exclusivamente formal, que não impede nem colide com o exercício das competências jurídico-públicas que lhe foram atribuídas, enquanto entidade administrativa privada. – Acs. do STA de 16.10.2020, proc. 0675/09.5BECTB 0586/17, de 16.11.2023, proc. 02953/17.0BEPRT, de 7.12.2023, proc. 02836/18.7BEPRTE, e de 20.12.2023, proc. 02181/21.0BEPRT. Dúvidas também não restam que a autora pretende, como sintetizado, obter uma declaração judicial de anulação da deliberação da Assembleia Geral da AGERE, realizada em 6 de setembro de 2023, que aprovou a minuta do Contrato de Gestão Delegada (CGD), alegando para tanto que a mesma viola os Estatutos daquela EM e que viola também o acordo parassocial celebrado entre o Município de Braga e a Geswater. Como explicitado, o contrato de gestão delegada contém enquadramento jurídico-administrativo próprio, subordinado a gestão dos serviços municipais à prossecução do interesse público legalmente definido, nomeadamente no domínio do abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos. É um contrato, que depois de aprovado pelos órgãos próprios da autarquia, é celebrado entre o ente público e a empresa local por si detida, que tem de observar o conteúdo legalmente prescrito e obter parecer favorável da entidade reguladora. Não é um contrato de direito provado. Pelo que, a validade do contrato de gestão delegada ou de alguma ou algumas das respetivas cláusulas só pode sindicar-se na jurisdição administrativa. Acresce que a ação é intentada também contra a Câmara Municipal de Braga, uma autarquia local, pessoa jurídica territorial, de direito público, criada para o prosseguimento de tarefas de natureza pública. próprios das populações respetivas (cfr. artigo 235.º da Constituição da República), que, através do competente órgão deliberativo, aprovou o CGD em causa. Assim, tudo ponderado, vista a relação jurídica material controvertida que a autora delineou na petição inicial – e somente esta releva para o efeito -, conclui-se que a jurisdição administrativa e fiscal é a competente para conhecer da ação, nos termos do art. 4.º, n.º 1, al. o), do ETAF. f. Dispositivo: Assim, o Tribunal dos Conflitos acorda em julgar procedente o recurso, revogando-se o acórdão recorrido, decidindo-se que materialmente competente para conhecer da ação intentada nos autos são, nos termos do no n.º 1 do artigo 1.º e al.ª o) do n.º 1 do artigo 4º do ETAF, os tribunais da jurisdição administrativa, concretamente o Tribunal administrativo e fiscal de Braga. * Sem custas por não serem devidas – art. 5.º n.º 2, da Lei n.º 91/2019, de 04 de setembro. * Lisboa, 8 de maio de 2025. – Nuno António Gonçalves (relator) - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa. * 1. Acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 08/11/2018, processo n.º 020/18. 2. http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/00026a026bf60a4e802583440035ed00 3. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, pag. 91. 4. Freitas do Amaral in “Direito Administrativo”, volume III, Lisboa, 1989, pág. 439. 5. José Carlos Vieira de Andrade in “A Justiça Administrativa”, 17.ª Edição, Almedina, 2019, pág. 49. 6. https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/ato-societario/6182802 |