Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:01768/23.1T8BRR.L1.S1
Data do Acordão:09/11/2024
Tribunal:CONFLITOS
Relator:NUNO GONÇALVES
Sumário:I - Compete aos tribunais administrativos e fiscais conhecer da causa em que vem pedida a condenação da Caixa Geral de Pensões a: i) reconhecer a existência de uma união de facto entre a autora e determinado falecido subscritor daquela entidade; ii) reconhecer o direito da autora à correspondente pensão de sobrevivência e; iii) ao pagamento das prestações devidas.
Nº Convencional:JSTA000P32623
Nº do Documento:SAC2024091101768
Recorrente:AA
Recorrido 1:INSTITUTO DE SEGURANÇA SOCIAL, I.P.
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: *

recurso


**


Acórdão:


O Tribunal dos Conflitos acorda: ----------------------

a. Relatório:


AA, em 15/07/2023, intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Barreiro, ação declarativa em processo comum contra:


Instituto da Segurança Social, I.P., peticionando o reconhecimento da união de facto nos termos e para os fins previstos na Lei n.º 7/2001, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 71/2018.


Alega, para tanto e em suma, ter vivido em comunhão de cama, mesa e habitação, com BB, desde .../10/1977 até à data do falecimento deste, ocorrido em .../11/2020, situação que pretende ver reconhecida.


O Juízo de Família e Menores do Barreiro - Juiz ..., por despacho de 30/10/2023, determinou a notificação da autora para se pronunciar, querendo, sobre a verificação da exceção de incompetência.


Em resposta, a autora pronunciou-se pela competência dos tribunais comuns, concretamente do Juízo de família e menores do Barreiro para conhecer desta causa.


Aquele tribunal, por decisão de 18/12/2023, atribuindo a competência à jurisdição administrativa, julgou-se incompetente, em razão da matéria, para conhecer da ação, absolvendo o réu da instância.


Inconformada com o assim decidido, a autora apelou para a 2.ª instância.


Admitido que foi, o Tribunal da Relação de Lisboa -6.ª Secção Cível, por acórdão de 07/03/2024, julgou recurso improcedente, confirmando a decisão recorrida.


Não se conformando, a autora interpôs recurso de revista excecional.


Que foi admitido como revista normal.


Recebido e distribuído o recurso no Supremo Tribunal de Justiça, o Conselheiro relator, por despacho de 17/05/2024, decidiu não conhecer do objeto do recurso, por se tratar de competência reservada, nos termos do art. 101.º, n.º 2, do CPC, determinando a remessa dos autos ao Tribunal dos Conflitos.

b. Parecer do Ministério Público:


Neste Tribunal, na vista a alude o art. 11.º, n.º 4, da Lei n.º 91/2019, de 4 de setembro, o Digno Procurador-Geral Adjunto, convocando a jurisprudência que cita, defende a improcedência do recurso e a atribuição da competência material para a causa à jurisdição administrativa.


c. exame preliminar:


O recurso é o próprio - art. 101.º n.º 2 do CPC.


Está admitido.


Este Tribunal dos Conflitos é o competente para julgar o recurso no que respeita à recorrida decisão que declarou a incompetência material do tribunal da ordem judiciária comum para conhecer da vertente causa – art. 3.º alínea c) da Lei n.º 91/2019 de 4 de setembro.


Não existem questões processuais que devam conhecer-se previamente à apreciação e que pudessem impedir o prosseguimento do recurso para julgamento.

d. objeto do recurso:


Consiste em resolver se a competência em razão da matéria para conhecer da do presente litígio que a autora intentou contra o réu caberá aos tribunais da jurisdição comum ou aos tribunais da jurisdição administrativa.

d. fundamentação:

1. o direito:

i. da competência material das jurisdições:

A competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função do modo como o autor estrutura e exprime a sua pretensão em juízo.


Da arquitetura constitucional e do quadro legal orgânico, estatutário e adjetivo que a desenvolve, resulta que aos tribunais judiciais comuns está atribuída a denominada competência residual. Que, na expressão do legislador, se traduz no poder-dever de conhecer das “causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.


Na jurisdição dos tribunais comuns a competência material reparte-se essencialmente em função dos ramos do direito substantivo ou da fase do processo.


Competindo aos juízos cíveis conhecer das causas que não estejam atribuídas a tribunais ou juízos “dotados de competência especializada”.


Assim, não cabendo uma causa na competência material, legalmente atribuída a outro tribunal, será a mesma da competência residual do tribunal comum. E nesta jurisdição se não estiver especificadamente atribuída a outra área, competirá aos tribunais cíveis.


Estabelece a Constituição da República - art. 212.º, n.º 3 – e regulamenta a Lei de Organização do Setor Judiciário/LOSJ – art. 144.º, n.º 1 que aos tribunais administrativos e fiscais compete “o julgamento das ações e recursos contenciosos” “emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”, nos termos concretizados pelo ETAF, tendo nessas matérias «reserva de jurisdição» “excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição”.


Competência em razão da matéria que o artigo 4.º enuncia, dispondo (no que para aqui releva): ----------------


1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:

a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais;

ii. apreciação:


É o tutela de um direito fundamental que a autora pretende ver reconhecido e efetivar com a ação, concretamente o invocado direito fundamental à segurança social, constitucionalmente consagrado, na vertente de direito à pensão de sobrevivência, constituída por prestações pecuniárias destinadas a compensa-la pela perda de rendimentos decorrente daa morte do beneficiário com quem, alega, vivia em união de facto desde há vários anos e até à data do respetivo falecimento.


Atentando na petição inicial pretende que o tribunal condene o réu a reconhecer que viveu em união de facto com o falecido BB desde .../10/1977 e até ao momento do decesso deste ocorrido em .../12/2020.


Acrescenta que não obstante toda a documentação que comprova a união de facto existente entre a autora e o falecido, a ré recusou-se a aceitar a existência daquela união, indeferindo o pedido de atribuição de prestação por morte reclamada pela autora.


Por sua vez, o reu é um instituto público de regime especial, integrado na administração indireta do Estado, com a atribuição de prosseguir atribuições do Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social, sob superintendência e tutela do respetivo ministro -art. 1.º do DL n.º 83/2012 de 30 de março. Incumbido, além do mais, “gerir as prestações do sistema de segurança social e dos seus subsistemas” e de “garantir a realização dos direitos e promover o cumprimento das obrigações dos beneficiários do sistema de segurança social” – art. 3.º n.º 2 al.ªs a) e b) do mesmo diploma legal.


Na prossecução da respetiva missão está investido nos poderes de autoridade para praticar atos administrativos - cfr art. 148.º do CPA – e executar, por autoridade própria, as decisões dos seus órgãos.


Assim, o ato administrativo do Instituto de Segurança Social que indefere uma pretensão como a que está em causa nesta ação -a atribuição de uma prestação social -, pode ser impugnado como qualquer outro ato administrativo, designadamente para o que aqui importa, mediante a instauração da ação administrativa.


Se atualmente é assim, não o era no domínio de vigência da redação originária da Lei n.º 7/2001 de 11 de maio (adotou medidas de proteção das uniões de facto), no art. 6.º, estatuindo sobre o regime de acesso às prestações por morte, que no n.º 1 dispunha: “Beneficia dos direitos estipulados nas alíneas e), f) e g) do artigo 3.°, no caso de uniões de facto previstas na presente lei, quem reunir as condições constantes no artigo 2020.° do Código Civil, decorrendo a ação perante os tribunais cíveis.” (realce nosso).


Norma atributiva de competência que despareceu na redação que a Lei n.º 7/2001 veio a ser dada pela Lei n.º 23/2010, de 30 de agosto. Desde então o direito às prestações decorrentes de união de facto efetiva-se administrativamente, através da intervenção dos serviços da segurança social, perante o qual a/o interessada/o tem de requerer o reconhecimento do direito e produzir prova dos respetivos pressupostos de facto. Para esse efeito, o ISS, IP instaura o correspondente procedimento administrativo que deve culminar com o ato administrativo que atribui ou recusa o direito às prestações peticionadas.


Destarte, a impugnação judicial do que seja decidido no procedimento administrativo instaurado pelos serviços da segurança social com a finalidade de verificar os pressupostos do direito às prestações sociais requeridas pelos interessados, incluídas as que se fundam na existência de união de facto com beneficiário falecido, recai claramente no âmbito da jurisdição administrativa.


É assim que tem vindo a decidir este Tribunal dos Conflitos, designadamente no Acórdão de 25/01/2017, tirado no processo n.º 028/161 que em situação idêntica decidiu: -----


2 - Conforme se alcança da petição inicial, a Autora, não se conformando com a decisão do Réu que indeferiu a sua pretensão no sentido de lhe serem reconhecidos os direitos de natureza social derivados da situação de união de facto que invoca, demandou o Réu para que este fosse condenado a reconhecer que «a) (…) à data do falecimento de B…………….. existia uma relação de união de facto entre o “de cujus” e a Autora»; a reconhecer «b) (...) o direito à Autora às prestações por morte de B…………….. »; a «c) (...) a reconhecer a união de facto entre a autora e B…………….. »; a «e) (...) a reconhecer que a Autora tem direito a ser titular das prestações por morte do “de cujus”» e «f) (...) ao pagamento das prestações por morte referente ao “de cujus”, desde a data do óbito, acrescidas dos respetivos juros à taxa legal».


No fundo, a Autora pretende a alteração da situação jurídica emergente do ato administrativo que recusou as prestações sociais peticionadas através da condenação do Réu a reconhecer a existência da situação de união de facto e a reconhecer o direito àquelas prestações.


Nos pressupostos desse direito encontra-se a situação de união de facto que a Autora entende que teria de ser declarada judicialmente nos tribunais judiciais e escaparia à competência dos tribunais administrativos.


Tal como se mostra configurado, o litígio entre a Autora e o Réu emerge de uma relação jurídica de natureza administrativa que decorre da responsabilidade da segurança social pelo sistema de prestações sociais consagrado na Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, na versão resultante da Lei n.º 23/2010, de 30 de agosto.


A Autora e o Réu divergem relativamente à demonstração da existência da situação de união de facto como pressuposto do direito às prestações que a Autora reclama e cujo reconhecimento se insere nas atribuições da segurança social.


A relação jurídica em causa é disciplinada pelo direito público e é nos quadros deste ramo do Direito que o litígio terá de ser resolvido.


À luz do acima exposto, bem andou o Tribunal da Relação quando decidiu que a competência para conhecer do litígio pertence aos Tribunais da Jurisdição Administrativa, nos termos do artigo 4.° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.”.


Jurisprudência seguida no acórdão de 22/11/2023, prolatado no processo n.º 03962/22.3T8VCT.G1.S12, no qual a ré era a Caixa geral de Aposentações.


E que, este mesmo Tribunal e coletivo reafirmou no recente acórdão de 17/04/2024, proferido no processo n.º 3805/22.8T8VCT.G1.S13, assim sumariado:


I - Compete aos tribunais administrativos e fiscais conhecer da causa em que vem pedida a condenação da Caixa Geral de Pensões a: i) reconhecer a existência de uma união de facto entre a autora e determinado falecido subscritor daquela entidade; ii) o reconhecer-lhe o direito à correspondente pensão de sobrevivência; iii) ao pagamento das prestações vencidas e com juros (…)”.


Reiterando aquele entendimento, conclui-se competir aos tribunais da jurisdição administrativa e, concretamente (n.º 5 do artigo 14.º e artigo 18.º da lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro), ao Juízo Administrativo Comum do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada (al. a) do Decreto-Lei n.º 174/2019, de 13 de Dezembro, do mapa anexo ao Decreto-Lei n.º 325/2003, de 29 de Dezembro e n.º 1 do artigo 16.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos) conhecer da causa intentada neste processo.

e. Dispositivo:


Pelo exposto, o Tribunal de Conflitos decide julgar o não provido o recurso da autora e, em consequência, atribuir aos Tribunais da Jurisdição Administrativa e Fiscal, - concretamente ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada - a competência material para conhecer da vertente ação intentada pela autora AA contra o réu Instituto da Segurança Social, I.P.


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Não são devidas custas – art. 5.º n.º 2, da Lei n.º 91/2019, de 4 de setembro.


Lisboa, 11 de setembro de 2024. - Nuno António Gonçalves (relator) - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.

1. http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/7692032727d27162802580ba003edebb
2. https://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/64775c73382f0aef80258a7000596879
3. https://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/d8661112434f96ea80258b1200615467