Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:0275/22.4BELSB.S1
Data do Acordão:05/08/2025
Tribunal:CONFLITOS
Relator:NUNO GONÇALVES
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:Compete aos tribunais da jurisdição administrativa, em razão da matéria, conhecer de ação em que se pede a condenação da Autoridade da Concorrência (AdC) a deferir pedido de trabalhador seu para acumular de funções públicas para que foi nomeado por outra entidade.
Nº Convencional:JSTA000P33731
Nº do Documento:SAC202505080275
Recorrente:AA
Recorrido 1:AUTORIDADE DA CONCORRÊNCIA
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: *

Conflito negativo de jurisdição


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O Tribunal dos Conflitos acorda: ----------------------


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a. Relatório:


AA intentou em 9.02.2022, no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, ação administrativa especial de condenação à prática de ato devido, contra: -----


- Autoridade da Concorrência, -----


formulando os seguintes pedidos: ------

a) Ser a Ré condenada à prática de ato legalmente devido, ou seja, a emitir decisão no sentido de deferir o pedido de acumulação de funções públicas formulado pelo Autor, com as devidas e legais consequências;

b) ser a Ré condenada a pagar ao Autor todos os valores, a calcular em sede de liquidação de sentença, que o mesmo não auferiu - desde o início do mandato junto da Comissão Independente de Acompanhamento e Fiscalização das Medidas Especiais de Contratação Pública até à reposição da legalidade apenas atingível através do deferimento do aludido pedido de acumulação de funções públicas - a título de remunerações e demais direitos inerentes à pretendida acumulação de funções públicas-, tudo com as devidas e legais consequências;

c) ser a Ré condenada ao pagamento de juros sobre as quantias que vierem a ser liquidadas, contados desde o momento em que tais quantias eram devidas.»”.

A ré, citada, contestou, excecionando a incompetência absoluta da jurisdição administrativa para conhecer da lide.


Alegou, em suma, que o litígio em causa emerge de um contrato de trabalho celebrado nos termos do Código do Trabalho, subtraído à apreciação da jurisdição administrativa, por via do art. 4.º, n.º 4, al. b), do ETAF.


O autor replicou, pronunciando-se pela improcedência da exceção.


O Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa – Unidade Orgânica... – por decisão de 16.02.2024, julgou procedente a exceção de incompetência absoluta do tribunal, atribuindo a competência aos tribunais do Trabalho e absolveu a ré da instância.


Fundamentou, em suma, que “tendo o presente processo por objeto um litígio decorrente de contrato de trabalho e não tendo o Autor vínculo de emprego público, a apreciação do litígio está excluída do âmbito da jurisdição administrativa, nos termos do disposto na al. b), do n.º 4 do art. 4.º do ETAF.


Notificado, o autor requereu a remessa dos autos ao Juízo do Trabalho do tribunal judicial da comarca de Lisboa.


O que o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa determinou em despacho de 8.04.2024.


Recebido e distribuído o processo, o Juízo do Trabalho de Lisboa – Juiz ..., o tribunal, por decisão de 05/06/2024, julgou-se materialmente incompetente para conhecer da causa, atribuindo a competência à jurisdição administrativa e absolveu a ré da instância.


Sustentou, em síntese, que o autor peticiona a prática de um ato (administrativo) legalmente devido (emissão de decisão de deferimento de acumulação de funções públicas), com fundamento na verificação de vícios do ato administrativo, designadamente falta de fundamentação e/ou violação de interesse público, não estando em causa um litígio decorrente de um contrato de trabalho.


Conclui que, “ainda que a relação entre o autor e a ré se trate de uma relação à qual é aplicada o regime jurídico do contrato de trabalho (n.º 2 do artigo 30.º do Decreto-Lei n.º 145/2014, de 18 de agosto), o pedido e a causa de pedir radicam em evidentes notas de administratividade do acto de recusa, inserido no n.º 1 do artigo 4.º do ETAF.”.


Deparando-se com conflito negativo de jurisdição, o Juízo do Trabalho de Lisboa – Juiz ..., por despacho de 13.11.2024, determinou a remessa dos autos ao Tribunal dos Conflitos, para resolução.

b. parecer do Ministério Público:


No Tribunal dos Conflitos, o Digno Procurador-Geral Adjunto, na vista a que alude o art. 11.º, n.º 4, da Lei n.º 91/2019, de 4 de setembro, sustentando que a pretensão de deferimento do pedido de acumulação de funções públicas formulado pelo Autor, com as devidas e legais consequências (“pagamento de todos os valores, a título de remunerações e demais direitos inerentes a tal acumulação desde o início do mandato junto da Comissão Independente que passou a integrar”), “repercute-se na relação laboral existente entre as partes, porquanto também visa a condenação no pagamento de remunerações e outras prestações emergentes do contrato de trabalho - como decorrência da procedência do pedido de acumulação de funções - e para o qual o tribunal de trabalho é diretamente competente, está em discussão uma relação conexa com a relação laboral, resultante de uma relação de dependência entre elas, nos termos do já citado art.º 126.º, n.º 1, al. n) da LOSJ, no circulo da competência dos juízos do trabalho”, pronunciou-se no sentido da atribuição da competência material para julgar a ação ao Juízo do trabalho.

c. pronúncia da ré:


Pronunciando-se nos termos do art.º 11.º n.º 3 da Lei n.º 91/2029, a ré, argumentando que o contrato que celebrou com o autor, em 4.11.2004, é um contrato individual de trabalho que se rege “pelo disposto na legislação geral do trabalho, nomeadamente no Código do Trabalho”, pelo pugna a ré pela atribuição ao Juízo do Trabalho da competência pra conhecer o vertente litígio.

d. O autor, notificado, nada veio dizer.

e. exame preliminar:


No caso, dois tribunais, - um da ordem administrativa, o outro da ordem judiciária comum – declararam a respetiva incompetência em razão da matéria para conhecer e julgar a ação que o autor intentou nestes autos, atribuindo-a à outra jurisdição.


O tribunal da jurisdição comum pediu, oficiosamente, a resolução do vertente conflito negativo de jurisdição


Este Tribunal dos Conflitos é o competente para a sua resolução.


Não há questões prévias que devam conhecer-se.

f. objeto do conflito:


Cumpre-nos, assim, definir qual das jurisdições – comum ou administrativa – é competente, em razão da matéria, para conhecer a ação que o autor intentou neste processo peticionando a condenação da ré deferir-lhe pedido de acumulação de funções e, consequentemente, o pagamento das retribuições daí advenientes.

e. fundamentação:

i. da competência material:


1. pressuposto:


A competência do tribunal é um pressuposto indispensável para que o juiz possa conhecer do mérito de uma causa.


Está pacificamente assente na doutrina e na jurisprudência1 que “a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos (…)


A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável …»].2.


E, em determinadas causas, afere-se ainda em função da natureza jurídica dos sujeitos processuais. Sendo questão “a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor (compreendidos aí os respetivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão3.


2. fixação:


Nos termos da lei - art. 38.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013 -, “a competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei”.


Norma que o ETAF praticamente reproduz (“A competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente”.) Acrescentando o n.º 2 que Existindo, no mesmo processo, decisões divergentes sobre questão de competência, prevalece a do tribunal de hierarquia superior.”.


3. repartição:


Da arquitetura constitucional e do quadro orgânico, estatutário e adjetivo que a desenvolve, resulta que “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal”. E que lhe está conferida a denominada competência material residual que, na expressão do legislador, se traduz no poder-dever de conhecer de todas as “causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.


A LOSJ, fundando-se nas reconhecidas vantagens advenientes da especialização dos tribunais e juízes, reparte a competência ratione materiae dos tribunais da jurisdição comum atribuindo-a, segundo o critério da natureza substancial das causas, a juízos de competência especializada e aos tribunais de competência territorial alargada.


Atribuindo aos Juízos do trabalho a competência, em matéria cível, para conhecer das questões, ações, processos, execuções e recursos contraordenacionais catalogados no art.º 126.º daquela Lei. No que para aqui poderia relevar, atribui-lhe competência para conhecer “das questões emergentes de relações de trabalho subordinado”.


Aos tribunais da jurisdição administrativa compete conhecer e julgar as ações e recursos que tenham como causa “litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”. Tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição»


O âmbito da competência material dos Tribunais Administrativos e Fiscais encontra-se concretizada, essencialmente, no art. 4.º do ETAF, estabelecendo no n.º 1 alíneas a) e o) que lhes cabe, (no que para aqui poderia convocar-se) “a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:--------

“a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais;

e …

o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores.

Por sua vez, a al. b) do n.º 4 daquele art. 4.º, excluiu do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, “A apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público”.


ii. relações jurídicas administrativas:


Relação jurídica administrativa é a “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a administração.”


É aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a administração”4


Considerando-se como tal para efeitos de delimitação da competência da jurisdição as “relações jurídicas públicas (seguindo um critério estatutário, que combina sujeitos, fins e meios) (…) em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido5.


ii. natureza da demandada:


A Autoridade da Concorrência (AdC) foi criada pelo Decreto-Lei n.º 10/2003, de 18 de janeiro.


Trata-se de uma pessoa coletiva de direito público, com a natureza de entidade administrativa independente, dotada de autonomia administrativa e financeira, de autonomia de gestão, de independência orgânica, funcional e técnica, e de património próprio (art. 1.º, n.ºs 1 e 2, dos Estatutos da Autoridade da Concorrência, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 125/2014, de 18 de Agosto).


A AdC rege-se pelo regime jurídico da concorrência, aprovado pela Lei n.º 19/2012, de 8 de maio e outras disposições legais que lhe sejam especificamente aplicáveis, pela lei-quadro das entidades reguladoras, pelos seus estatutos, pelos respetivos regulamentos internos e, supletivamente, no que respeita à gestão financeira e patrimonial, pelo regime jurídico aplicável às entidades públicas empresariais. (art. 2.º, n.º 1, dos Estatutos da Autoridade da Concorrência).


Estabelece o art. 30.º, n.º 2, daquele Estatuto que “Aos trabalhadores e aos titulares de cargos de direção ou equiparados da AdC é aplicado o regime jurídico do contrato individual de trabalho, sem prejuízo do disposto na lei-quadro das entidades reguladoras, nos presentes estatutos, nos regulamentos da AdC e na demais legislação setorial especificamente aplicável.”.


E no n.º 12 que “As condições de organização e de disciplina de trabalho, o regime de carreiras, o estatuto remuneratório do pessoal, o sistema de avaliação do desempenho dos trabalhadores e dos titulares de cargos de direção ou equiparados e o regime de proteção social são definidos em regulamento interno, sempre com observância das disposições legais imperativas do regime do contrato individual de trabalho.


Nos termos do art.º 19.º n.º 2, alíneas e), f), i) e l) dos referidos Estatutos “Compete ao conselho de administração no que respeita à orientação, organização e gestão da AdC:

e) Aprovar (…) os regulamentos relativos ao estatuto dos trabalhadores, nomeadamente sobre (…) o regime retributivo (…);

f) (…) exercer os correspondentes poderes de direção, gestão e disciplina, bem como praticar todos os demais atos respeitantes aos trabalhadores que estejam previstos na lei e nestes estatutos;

i) Designar os representantes da AdC junto de (…) de outras entidades, organismos e fóruns nacionais, (…) com atribuições na área da concorrência;

l) Praticar os demais atos de gestão decorrentes da aplicação da lei e dos presentes estatutos e necessários ao bom funcionamento dos serviços.”

E, regendo sobre o “controle jurisdicional”, dispõe o art. 45.º n.º 2 dos seus Estatutos que a “atividade da AdC de natureza administrativa fica sujeita à jurisdição administrativa, nos termos da respetiva legislação.”


Por sua vez, a lei-quadro das entidades reguladoras (aprovada pela Lei n.º 67/2013, de 28 de agosto), estabelece no seu art. 32.º, n.º 1 que aos trabalhadores das entidades reguladoras é aplicado o regime do contrato individual de trabalho.


De acordo com o n.º 4 daquele normativo, “A adoção do regime do contrato individual de trabalho não dispensa os requisitos e as limitações decorrentes da prossecução do interesse público, nomeadamente os respeitantes a acumulações e incompatibilidades legalmente estabelecidos para os trabalhadores em funções públicas.”.


A Lei n.º 30/2021, de 21 de maio, aprovou medidas especiais de contratação pública e alterou o Código dos Contratos Públicos e o Código de Processo nos Tribunais Administrativos.


A Comissão Independente, criada pela Lei n.º 30/2021, é constituída por:

a) Três membros designados pela Assembleia da República, de entre cidadãos de reconhecido mérito e comprovada idoneidade e independência, um dos quais assume a função de presidente;

b) Um membro designado pelo Conselho de Prevenção da Corrupção;


c) Um membro designado pelo IMPIC, I. P. (art. 18.º, n.º 1)


De acordo com o n.º 4 do art. 18.º da Lei n.º 30/2021, “Os membros da comissão não podem ser prejudicados na sua colocação, nos seus benefícios sociais ou no seu emprego permanente em virtude do desempenho do seu mandato.


Estabelecendo o n.º “6 - Os membros da comissão são equiparados a dirigente superior de 1.º grau para efeitos remuneratórios, tendo ainda direito a ajudas de custo e despesas de transporte, nos termos da lei.”


Dispondo o art. 19.º, n.º 1, da Lei n.º 30/2021 que, “Sem prejuízo das atribuições próprias do Tribunal de Contas, a comissão tem por missão acompanhar e fiscalizar os procedimentos adotados ao abrigo do disposto na secção i do presente capítulo, bem como a celebração e a execução dos respetivos contratos, controlando de modo particular o cumprimento das exigências de transparência e imparcialidade que lhe são aplicáveis, assim como a execução dos contratos celebrados na sequência desses procedimentos.”.


iii. apreciação:


No caso dos autos, o autor alega, em síntese, que: ------

- é trabalhador da ré desde 2003;

- foi designado pelo Conselho de Prevenção da Corrupção para membro da Comissão Independente de Acompanhamento e Fiscalização das Medidas Especiais de Contratação Pública, pela Declaração n.º 17/2021, publicada no Diário da República de 25 de outubro;

- com a finalidade de iniciar o mandato para o qual estava designado, solicitou à ré, em 29/10/2021, autorização para a acumulação das funções que desempenha na Unidade Especial de Avaliação de Políticas Públicas da AdC com o exercício do mandato na Comissão Independente de Acompanhamento e Fiscalização das Medidas Especiais de Contratação Pública

- a ré, em 09/11/2021, deliberou indeferir o pedido de acumulação de funções, o que “consubstancia o 1.º ato administrativo em crise”;

- solicitou à ré, através de e-mail de 12/11/2021, a reapreciação do pedido de acumulação de funções;

- através de e-mail, de 23/11/2021, foi-lhe comunicado que o Conselho de Administração da Autoridade da Concorrência deliberou manter a decisão de indeferimento, o que “consubstancia o 2.º ato administrativo em crise”;

- face às sucessivas recusas quanto à pretensão de acumulação de funções públicas e para que pudesse iniciar funções como membro da Comissão Independente de Acompanhamento e Fiscalização das Medidas Especiais de Contratação Pública, sem incorrer em qualquer prática que pudesse consubstanciar fundamento para processo disciplinar por parte da ré, apresentou junto desta, através de email de 28/11/2021, pedido de suspensão do contrato de trabalho, com reserva;

- a ré, em 07/12/2021, deliberou pela suspensão do contrato individual de trabalho celebrado entre o autor e a Autoridade;

- como consequência, o contrato individual de trabalho celebrado entre o autor e a ré encontra-se suspenso com efeitos a 01/12/2021;

- a ré, ao indeferir o pedido de acumulação de funções solicitado pelo autor, praticou um ato administrativo que viola de forma ostensiva o disposto na legislação aplicável;

- Segundo o n.º 4 do art. 18.º da Lei n.º 30/2021, "os membros da comissão não podem ser prejudicados na sua colocação, nos seus benefícios sociais ou no seu emprego permanente em virtude do desempenho do seu mandato";

- a expressão — emprego permanente — não é conciliável com qualquer suspensão do contrato de trabalho (que o autor se viu obrigado, com reserva, a solicitar), nem com qualquer cedência do trabalhador, seja ao abrigo do Código de Trabalho ou ao abrigo da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas;

- a ré é uma pessoa coletiva de direito público, com a natureza de entidade administrativa independente.

- Segundo o n.º 2 do art. 30.º dos Estatutos da AdC, "aos trabalhadores e aos titulares de cargos de direção ou equiparados da AdC é aplicado o regime jurídico do contrato individual de trabalho, sem prejuízo do disposto na lei-quadro das entidades reguladoras, nos presentes estatutos, nos regulamentos da AdC e na demais legislação sectorial especificamente aplicável".

- dispõe o art. 32.º nos seus n.ºs 1 e 4, da Lei-Quadro das Entidades Reguladoras:

"1 - Aos trabalhadores das entidades reguladoras é aplicado o regime do contrato individual de trabalho;

[…]

4 - A adoção do regime do contato individual de trabalho não dispensa os requisitos e as limitações decorrentes da prossecução do interesse público, nomeadamente os respeitantes a acumulações e incompatibilidades legalmente estabelecidos para os trabalhadores em funções públicas”;

- é inequívoca a remissão dos Estatutos da ré para a Lei-Quadro das Entidades Reguladoras, bem como a remessa que a Lei-Quadro faz para o regime previsto pela Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, no que respeita às acumulações de funções;

- com o seu pedido, o autor pretendeu acumular as funções públicas que desempenhava perante a ré, com as funções públicas para as quais foi designado na Comissão Independente de Acompanhamento e Fiscalização das Medidas Especiais de Contratação Pública, direito que lhe assistia nos termos do art. 21.º, n.º 2, al. b), da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas;

- para além da violação ostensiva de lei (geradora de, pelo menos, anulabilidade), os atos administrativos praticados pela ré, comunicados ao autor em 09/11/2021 e 23/11/2021, padecem de insuficiência na sua fundamentação, o que equivale a falta de fundamentação dos atos administrativos;

- não poderá o Tribunal deixar de apreciar os atos administrativos praticados pela ré, porquanto os mesmos se encontram feridos de nulidade por duas vias: uma primeira, por violação dos normativos legais e, numa segunda, “por manifesto erro grosseiro na apreciação e valoração do manifesto interesse público na acumulação de funções públicas, apreciação e valoração essas que, in casu, escapam a qualquer pretenso poder discricionário da ré”.

Já em sede de pedido (art. 152.º), o autor conclui que, “em face das enunciadas razões de facto e de direito, deverá a Ré ser condenada a deferir o pedido de acumulação de funções públicas formulado pelo Autor, bem como e em consequência, ser condenada a pagar ao Autor todos os valores, a calcular em sede de liquidação de sentença, que o mesmo não auferiu - desde o início do mandato junto da Comissão Independente de Acompanhamento e Fiscalização das Medidas Especiais de Contratação Pública até à reposição da legalidade apenas atingível através do deferimento do aludido pedido de acumulação de funções públicas - a título de remunerações e demais direitos inerentes à pretendida acumulação de funções públicas, tudo com as devidas e legais consequências.” (negrinho nosso para realçar).


Assim, ainda que refira que entre as partes foi celebrado um contrato individual de trabalho, verifica-se, em apertada síntese, que o autor se insurge contra o indeferimento do pedido de acumulação de funções públicas que formulou junto da ré, assinalando detalhadamente as razões pelas quais entende assistir-lhe o direito de ver deferida essa pretensão.


E, note-se que o autor vem expressamente impugnar o que designa de “atos administrativos”, apontando aos mesmos, além do mais, o vício de falta de fundamentação, convocando os artigos 152.º a 154.º e 163.º, n.º 1, todos do CPA.


De resto, começa por referir, na Petição Inicial, que “Constitui objeto da presente ação o Ato Administrativo praticado pela Ré, através do seu Conselho de Administração, constante da Deliberação de 9.11.2021, em que foi tomada a decisão de indeferir o pedido de acumulação de funções apresentado pelo Autor (cf. doc. 1), bem como o Ato Administrativo de 23.11.2021 que manteve o indeferimento do primeiro”.


Por outro lado, como se viu, apenas no final do seu articulado Inicial, já em sede de pedido (art. 152.º) e como decorrência da pretendida condenação à prática de ato legalmente devido de deferimento de acumulação de funções públicas, vem aludir e peticionar o pagamento de remunerações e demais direitos inerentes à pretendida acumulação.


Conforme referido na sentença de 05/06/2024, do Juízo do Trabalho de Lisboa- Juiz ..., “O autor pede a prática de um acto (administrativo) legalmente devido que lhe indeferiu a solicitação para acumulação de funções (vg artigos 1.º, 15.º e 16.º da petição inicial); impugna tal indeferimento por vícios de acto administrativo, como a falta de fundamentação e/ou violação de interesse público (v.g. artigos 129.º, 141.º e 142.º da petição).”


“Acto praticado pela ré, (…) de cuja invalidade decorrem as quantias que pede, as quais, correspondendo ao valor das retribuições não têm tal natureza pois não são contrapartida da prestação de trabalho nem decorrem de uma relação de trabalho subordinado, que aliás suspendeu. São, em síntese, e ao invés, danos que decorrem do acto administrativo, inválido. Não se trata, portanto, na versão do autor, de um litígio entre o autor e a ré que decorra de um contrato de trabalho, não valendo assim a exclusão da jurisdição administrativa e fiscal constante da al. b) do n.º 4 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.”


“Em conclusão, ainda que a relação entre o autor e a ré se trate de uma relação à qual é aplicada o regime jurídico do contrato de trabalho (n.º 2 do artigo 30.º do Decreto-Lei n.º 145/2014, de 18 de agosto), o pedido e a causa de pedir radicam em evidentes notas de administratividade do acto de recusa, inserido no n.º 1 do artigo 4.º do ETAF.


Atendendo à forma como a ação foi delineada pelo autor, pedindo, inclusivamente a condenação da ré à prática de ato devido (cfr. art. 66.º e seguintes do CPTA), está em causa a condenação à prática de um ato pela ré, que se insere plenamente na atividade administrativa da AdC, prevista no art.º 19.º n.º 2, alíneas e), f), i) dos seus Estatutos. Ré que, repete-se, é uma entidade administrativa independente, dotada de autonomia administrativa e financeira, de autonomia de gestão, de independência orgânica, funcional e técnica.


Em suma, vem pedida a condenação da ré à prática de um ato de natureza administrativa, que se enquadra na previsão do art. 4.º, n.º 1, al. o), do ETAF.


E, de todo o modo e como acima se referiu, a “atividade da AdC de natureza administrativa”, nomeadamente em matéria inerente à sua própria organização, gestão e funcionamento, está “sujeita à jurisdição administrativa” – art. 45.º n.º 2 dos Estatutos.

f. dispositivo:


Assim, o Tribunal de Conflitos acorda em resolver o vertente conflito negativo de jurisdição, atribuindo nos termos dos artigos 4.º, n.º 1, alínea o) do ETAF e 151.º, n.º 1 do CPPT, aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, concretamente ao Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa -unidade orgânica 5, a competência jurisdicional material para conhecer da ação que o autor, aqui requerente, AA intentou nestes autos contra a ré Autoridade da Concorrência (AdC).


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Não são devidas custas – art. 5.º n.º 2, da Lei n.º 91/2019, de 04 de setembro.


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Lisboa, 8 de maio de 2025. - Nuno António Gonçalves (relator) - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.


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1. Acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 08/11/2018, processo n.º 020/18.

2. http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/00026a026bf60a4e802583440035ed00

3. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, pag. 91.

4. Freitas do Amaral in “Direito Administrativo”, volume III, Lisboa, 1989, pág. 439.

5. José Carlos Vieira de Andrade in “A Justiça Administrativa”, 17.ª Edição, Almedina, 2019, pág. 49.