Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:0256/20.2BESNT
Data do Acordão:11/27/2024
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
RESPONSABILIDADE CÍVIL EXTRACONTRATUAL
PESSOA COLECTIVA DE DIREITO PÚBLICO
Sumário:É da competência dos tribunais da Jurisdição Administrativa e Fiscal conhecer de um litígio no qual está em causa a responsabilidade civil extracontratual de uma pessoa colectiva de direito público.
Nº Convencional:JSTA000P32860
Nº do Documento:SAC202411270256
Recorrente:AA
Recorrido 1:MUNICÍPIO DE CASCAIS
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
AA, identificado nos autos, intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste – Juízo Local Cível de Cascais, Juiz 3, acção declarativa de condenação com processo comum, contra o Município de Cascais, formulando o pedido de condenação do Réu no pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, a saber: i) da importância no valor de €5.000,00, a título de indemnização por lucros cessantes; ii) da importância nunca inferior a €2.000,00, por danos não patrimoniais; iii) na condenação no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, nos termos do disposto no artigo 829-A, do Código Civil, a ser fixada em €1.500,00, por cada dia que a fotografia do autor foi utilizada/publicada na Revista ... e na página do Facebook do ... – Cascais; iv) e ainda na condenação do Réu a abster-se da divulgação e/ou publicação da fotografia do Autor e de todas as demais que, futuramente, o mesmo poderia usar para efeito de publicidade, sem que este tenha dado o seu respectivo consentimento.
O Réu apresentou contestação defendendo-se por excepção, invocando, nomeadamente, a excepção da incompetência material do Tribunal e por impugnação.
O Autor deduziu incidente de intervenção provocada contra a ... [o qual veio a ser admitido por despacho do TAF de Sintra proferido em 16.11.2022].
Por despacho de 06.12.2019, o Juízo Local Cível de Cascais julgou verificada a excepção de incompetência absoluta daquele Tribunal, em razão da matéria, para decidir a acção e absolveu o Réu da instância, sem prejuízo do direito a que alude o artigo 99º, nº 2 do CPC.
Remetido o processo ao tribunal da jurisdição administrativa – o TAF de Sintra -, veio este a proferir despacho saneador-sentença, em 17.01.2024, no qual julgou procedente a excepção dilatória de incompetência, em razão da matéria, da jurisdição administrativa e fiscal para conhecer da presente causa e, em consequência, absolveu da instância as entidades demandadas.
Suscitada oficiosamente a resolução do conflito pelo TAF de Sintra, foi o processo remetido ao Tribunal dos Conflitos.
Neste Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do artigo 11º da Lei nº 91/2019, emitindo ambas a respectiva pronúncia sobre o conflito a dirimir.
O Exmo. Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de dever ser atribuída a competência material para apreciar a presente acção aos tribunais de jurisdição administrativa, mais precisamente ao TAF de Sintra.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os constantes do relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste - Juízo Local Cível de Cascais, Juiz 3 e o TAF de Sintra.
Entendeu o Juízo Local Cível de Cascais ser a jurisdição comum incompetente, em razão da matéria, para conhecer do litígio por considerar que é da competência dos tribunais administrativos a apreciação dos litígios que tenham por objecto a responsabilidade civil extracontratual por actos praticados por pessoas colectivas de direito público, natureza que possui quer o Município de Cascais, quer a denominada “A...”, que prossegue fins públicos, e a qual, segundo se diz na contestação do Réu Município terá sido quem promoveu o evento no qual foi utilizada e divulgada sem autorização do autor a sua fotografia.
Termos em que, atendendo à natureza de pessoa colectiva de direito público, tanto do Réu como da Interveniente, e, tendo em conta que a causa de pedir, emerge de responsabilidade extracontratual por violação do direito à imagem do autor, por ter sido utilizada uma sua fotografia sem o seu consentimento, considerou o tribunal caber à jurisdição administrativa e a competência em razão da matéria para conhecer da presente acção.

Por sua vez o TAF de Sintra também se considerou incompetente em razão da matéria. Entendeu, nomeadamente que: “No caso vertente, o A. invoca, como causa de pedir, a violação do seu direito fundamental à imagem, previsto no artigo 26.º da Constituição da República Portuguesa e nos artigos 70.º e 79.º do Código Civil, e peticiona a reparação dos prejuízos que a atuação que imputa aos RR. lhe causaram.
Ora, não são alegados quaisquer normas administrativas, ou relação administrativa entre as partes, ou poderes jurídico-administrativos exercidos pelos RR. sobre o A., mas apenas e somente a alegada violação dos seus direitos de personalidade através da atuação material daquelas.
Ou seja, o A., de acordo com a concreta configuração da causa, pretende garantir a tutela dos seus direitos de personalidade.
Destarte, reportando-se a petição inicial à tutela de direitos de personalidade, apartada de uma relação jurídica administrativa, afigura-se que este Tribunal é incompetente, em razão da matéria, para a apreciação da causa, dado que a mesma não se insere na sua esfera de competência, delineada pelo disposto no artigo 4.º do ETAF e no n.º 3 do artigo 212.º da CRP.
Consequentemente, a competência material para o julgamento da causa estará residualmente atribuída aos tribunais judiciais, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 40.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) e do nº 1 do artigo 211.º da CRP.
Vejamos.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [artigos 211º, nº 1, da CRP, 64º do CPC e 40º, nº 1, da Lei nº 62/2013, de 26/8 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» (artigos 212º, nº 3, da CRP e 1º, nº 1, do ETAF).
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no art. 4º do ETAF (Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro), com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o Autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta.
Como se afirmou no Acórdão deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. 08/14, “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”.
No caso, com fundamento em responsabilidade civil, veio o Autor propor a acção pedindo a condenação do Réu Município no pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, que invoca ter sofrido com a divulgação não autorizada de uma fotografia sua em evento realizado pelo Réu, o que nos remete para a submissão do litígio à previsão do disposto no art. 4º, nº 1, alínea f) do ETAF, nos termos do qual se atribui aos tribunais da jurisdição e fiscal a apreciação de litígios que respeitam a questões sobre “Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo;
Como já se disse, a competência do tribunal fixa-se “no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente” – cfr. art. 5º, nº 1 do ETAF e igualmente o artigo 38º da LOSJ.
Ora, sendo o Réu uma pessoa colectiva de direito público e constatando-se que a este são imputadas acções no “exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo”, como estipulam os nºs 1 e 2 do art. 1º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, a situação dos autos enquadra-se na citada alínea f) do nº 1 do art. 4º do ETAF.
Por outro lado, a acção não foi inicialmente proposta contra a associação “A...”, mas a sua natureza como pessoa colectiva pública ou privada é irrelevante no caso, já que, no momento da propositura da acção, face aos termos em que o Autor configurou na petição inicial a causa de pedir, o pedido e o Réu que demandou, não há dúvida de que a relação controvertida é uma relação jurídica administrativa ou litígio enquadrável no art. 4º, nº 1, alínea f) do ETAF.
Como expendem Mário Aroso de Almeida e C.A. Fernandes Cadilha, in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 5ª ed., Almedina, pág. 27: “Compete, assim, à jurisdição administrativa apreciar todas as questões de responsabilidade civil extracontratual dos órgãos da Administração Pública, independentemente da questão de saber se essa responsabilidade emerge de uma atuação de gestão pública ou de uma atuação de gestão privada: a distinção não tem, pois, relevância processual, para o efeito de determinar a jurisdição competente, que é, em qualquer caso a jurisdição administrativa”.
Em sentido semelhante, se tem pronunciado este Tribunal dos Conflitos, v. g., nos acórdãos de 23.01.2008, Proc. 017/07, de 04.05.2017, Proc. 035/16, e de 08.11.2022, Proc. 011/20.
Deste modo, a competência material para conhecer a presente acção cabe aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.
Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o TAF de Sintra.

Sem custas.

Lisboa, 27 de novembro de 2024. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Nuno António Gonçalves.