Acórdão do Tribunal dos Conflitos | |
Processo: | 0253/22.3BELLE-A-CP |
Data do Acordão: | 09/20/2024 |
Tribunal: | CONFLITOS |
Relator: | TERESA DE SOUSA |
Descritores: | CONSULTA DE JURISDIÇÃO CONTRATO DE TRABALHO EM FUNÇÕES PÚBLICAS |
Sumário: | Compete à Jurisdição Administrativa e Fiscal conhecer de acção em que se pedem determinados montantes no âmbito de um contrato qualificado como “contrato de trabalho em funções públicas”. |
Nº Convencional: | JSTA000P32625 |
Nº do Documento: | SAC202409200253 |
Recorrente: | AA |
Recorrido 1: | AGÊNCIA PARA A MODERNIZAÇÃO ADMINISTRATIVA, IP |
Votação: | UNANIMIDADE |
Área Temática 1: | * |
Aditamento: | |
Texto Integral: | Consulta Prejudicial nº 253/22.3BELLE-A Acordam no Tribunal dos Conflitos Por despacho da Sra. Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé (doravante TAF de Loulé), de 23.01.2024, foi decidido suscitar a consulta prejudicial deste Tribunal dos Conflitos, ao abrigo do artigo 15.º, n.º 1, da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro, por se haver entendido que a questão da jurisdição competente para conhecer da causa suscita fundadas dúvidas. Resulta da certidão que constitui os presentes autos que AA instaurou no TAF de Loulé “ação comum emergente de contrato de trabalho em funções públicas” contra AGÊNCIA PARA A MODERNIZAÇÃO ADMINISTRATIVA, IP, sendo pedida a condenação da Ré a: “a) reconhecer o direito da A. a receber o suplemento remuneratório abono para falhas desde ../../2009 a 01.07.2017, no valor de €9.491,90” e “b) proceder ao pagamento dos valores em dívida a título de abono para falhas, bem como dos juros vencidos e vincendos”. Alega, em síntese, que está em causa uma relação jurídica estabelecida entre as partes que resulta da celebração de contrato de trabalho em funções públicas, onde o núcleo dos direitos e deveres das partes se encontra definido por lei. Por isso, a atribuição do abono para falhas apenas depende da verificação do preenchimento dos pressupostos e não da discricionariedade da Administração (artigo 30º da PI). Pretende o reconhecimento do direito a receber o suplemento remuneratório “abono para falhas” desde a data em que iniciou a sua actividade com manuseamento de valores até ao dia em que começou a auferir o referido abono e a condenação da Ré no respectivo pagamento. A Ré contestou defendendo-se por excepção, suscitando a incompetência material dos Tribunais Administrativos, e por impugnação. Em resposta, a Autora pugnou pela improcedência dessa excepção defendendo que, por força das Leis nºs 12-A/2008, de 27 de Fevereiro e 59/2008, de 11 de Setembro, o contrato celebrado é um contrato de trabalho em funções públicas e, por isso, a competência para apreciar os litígios a seu respeito pertence à jurisdição administrativa. Remetidos os autos a este Tribunal dos Conflitos, nos termos ao nº 1 do art. 15º da Lei 91/2019, face ao pedido de consulta prejudicial, foi dado cumprimento ao disposto no nº 3 do art. 11º daquele diploma. A Exma. Procuradora Geral Adjunta pronunciou-se no sentido de dever ser emitida decisão que atribua ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé a competência material para conhecer da presente acção. Vejamos. Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas “que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” [artigos 211º, nº 1, da CRP; 64.º do CPC; e 40.º, n.º 1, da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas “emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” [artigos 212º, nº 3, da CRP e 1º, nº 1, do ETAF]. A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no artigo 4º do ETAF com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4). Importa neste caso ter em atenção o nº 4 do art. 4º, cuja alínea b) excluí do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios “decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público”. Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o Autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta. Como se disse no Ac. deste Tribunal de 08.11.2018, Proc. 020/18, disponível em www.dgsi.pt, “A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável - ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência…»”. Ora, aquilo que a Autora vem pedir é o reconhecimento do direito ao suplemento remuneratório, com fundamento em disposições de direito administrativo aplicáveis ao vínculo laboral estabelecido com a Ré, que qualifica como “contrato de trabalho em funções públicas”. Assim, não podem subsistir dúvidas de que a Autora caracteriza o vínculo jurídico entre si e a Ré como uma relação laboral de direito público. Em situação paralela, decidiu-se neste Tribunal dos Conflitos, Acórdão de 24.02.2021, Proc. 03143/19.3T8GMR.S1, disponível em www.dgsi.pt, que: «(…), saber como se qualifica a relação laboral invocada pela autora, e se os efeitos que a autora pretende são ou não fundamentados, são questões que respeitam ao mérito da causa e à procedência ou improcedência da acção; interpretar o contrato invocado e retirar dessa interpretação consequências quanto à identificação do tribunal competente significa inverter a relação pressupostos/questão de fundo. (…) a autora configura o vínculo estabelecido com a ré como uma relação laboral de direito público, alicerçando os seus pedidos nessa alegação; pede, desde logo, que se reconheça que esse vínculo é de emprego público. Tanto basta para que a apreciação desta acção caiba no âmbito da jurisdição administrativa, como, sem necessidade de maiores justificações, resulta do disposto na al. b) do n.º 4 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e do artigo 12.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho.» E, em situação simétrica, o Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 01.10.2015, Proc. 08/14, disponível em www.dgsi.pt, considerou que: «perante a pretensão expressa do Autor de reconhecimento da existência de um contrato individual de trabalho e não de uma relação de trabalho em funções públicas, não pode resolver-se a questão da competência em razão da matéria caracterizando tal relação como de contrato de trabalho em funções públicas em função da interpretação da evolução do regime jurídico em sentido contrário ao pretendido pelo Autor (sendo alheia ao objecto da presente decisão, repete-se, qualquer apreciação do acerto dessa solução).É certo que o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência, pelo menos numa situação como a presente em que a causa de pedir e o pedido vão dirigidos ao reconhecimento dos efeitos resultantes de uma relação laboral de direito privado. Para a apreciação desta questão o que releva é a alegação do Autor de que está ligado à Ré através do regime contrato individual de trabalho e de que é esse contrato de direito privado o fundamento da pretensão de ver reconhecidos direitos que a lei estabelece para os trabalhadores vinculados por contratos desse tipo e que não seriam, porventura, suportados pelo regime do contrato de trabalho em funções públicas. Isto é, o Autor tem direito a que seja apreciado se tem ou não o direito que se arroga, emergente do contrato individual de direito privado que defende vinculá-lo à Ré.» Significa isto que o Tribunal dos Conflitos, em pronúncias sobre litígios decorrentes de contratos de trabalho celebrados com entidades públicas, tem de forma reiterada considerado determinante a configuração da relação material controvertida tal como definida pelos autores para atribuir a competência material. Nos casos em que a competência foi atribuída aos tribunais do trabalho da jurisdição comum, os autores tinham alegado uma relação decorrente de contratos individuais de trabalho e não de emprego público (cfr., por último, o Ac. de 18.04.2023, Proc. 028/22, disponível em www.dgsi.pt). Deste modo, tem de concluir-se que, atendendo à relação material controvertida tal como configurada pela Autora, são os tribunais administrativos os competentes para conhecer a presente acção. Pelo exposto, e nos termos do disposto no artigo 17º da Lei nº 91/2019, de 4 de Setembro, acordam em emitir pronúncia no sentido de que cabe à Jurisdição Administrativa e Fiscal, no caso ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, conhecer da presente acção. Lisboa, 20 de Setembro de 2024. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Nuno António Gonçalves. |