Acórdão do Tribunal dos Conflitos | |
Processo: | 0552/13.5BECTB |
Data do Acordão: | 11/27/2024 |
Tribunal: | CONFLITOS |
Relator: | TERESA DE SOUSA |
Descritores: | CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO RESPONSABILIDADE CIVIL COMPANHIA DE SEGUROS TRIBUNAIS JUDICIAIS |
Sumário: | É da competência dos Tribunais Judiciais conhecer de um litígio no qual particular demanda uma seguradora com fundamento em responsabilidade civil, uma vez que no momento da propositura da acção, face aos termos em que os autores configuram na petição inicial a causa de pedir, o pedido e o réu que demandam, está-se perante um litígio de natureza tipicamente civilística. |
Nº Convencional: | JSTA000P32861 |
Nº do Documento: | SAC202411270552 |
Recorrente: | AA |
Recorrido 1: | A..., S.A. (E OUTROS) |
Votação: | UNANIMIDADE |
Área Temática 1: | * |
Aditamento: | |
Texto Integral: | Acordam no Tribunal dos Conflitos 1. Relatório AA, BB e CC intentaram, no Julgado de Paz da Sertã, três acções de condenação para efetivação de responsabilidade civil extracontratual e/ou pedido de indemnização, emergente do mesmo acidente de viação, contra a Companhia de Seguros B..., SA [actualmente C..., SA] pedindo a condenação da Ré a pagar uma indemnização de 4.940,12€ à Autora AA, de 4.412,21€ ao Autor BB e de 2.724,81€ à Autora CC. A Ré contestou cada uma das acções e requereu, em todas, a intervenção principal provocada da A..., SA, da Câmara Municipal ... e das respectivas Seguradoras. Em face do incidente de intervenção principal provocada, a Juíza de Paz determinou em 20.09.2012 a cessação da competência do Julgado de Paz da Sertã e ordenou a remessa de cada uma das acções para o Tribunal Judicial da Comarca da Sertã (fls. 121, fls. 112 do apenso A e fls. 103 do apenso B), com aproveitamento dos actos já praticados. Já no Tribunal Judicial da Sertã os Autores apresentaram requerimento a pugnar pelo indeferimento da requerida intervenção provocada, defendendo que a sua admissão determinaria a incompetência do tribunal e que a intervenção daquelas entidades era alheia à forma como configuraram a acção. Naquele Tribunal, em 17.12.2012, , foi determinada a apensação dos três processos [ao processo n.º 587/12.... das acções que corriam termos sob os n.ºs 586/12.... e 588/12....] e, em 14.06.2013, foi admitida a intervenção principal provocada, ao lado da Ré, da A..., SA e do Município .... Na sequência, o Tribunal declarou-se incompetente em razão da matéria para conhecer das acções. A pedido dos Autores, foram os autos remetidos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco (TAF de Castelo Branco). O TAF de Castelo Branco em 29.11.2013 declarou-se materialmente incompetente para conhecer das acções intentadas. Inconformados, os Autores interpuseram recurso para o Tribunal Central Administrativo Sul que, por acórdão proferido em 19.03.2024, negou provimento ao recurso e confirmou a decisão recorrida. Suscitada a resolução do conflito no TAF de Castelo Branco foram os autos remetidos a este Tribunal dos Conflitos. Neste Tribunal dos Conflitos, as partes foram notificadas para efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 11.º da Lei n.º 91/2019, tendo os Autores vindo pugnar pela resolução do conflito de jurisdição “de modo a que a presente acção possa ser conhecida e decidida”. A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de ser competente para apreciar a acção o Tribunal Judicial da Comarca da Sertã. 2. Os Factos Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório. 3. O Direito O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial da Sertã e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco. Entendeu o Tribunal Judicial da Sertã que: “No caso sub judice, estamos perante uma situação susceptível de gerar a obrigação de indemnizar os autores por danos decorrentes de um acidente de viação cuja responsabilidade se discute poder ser da ré, da A..., SA ou do Município .... Ora, o Município ... é, como se sabe, uma pessoa colectiva de direito público. Por sua vez, a A..., S.A. é, desde a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 374/2007, de 7.11, uma sociedade anónima de capitais públicos à qual se aplica, por força do disposto no artigo 3.º daquele diploma, o regime jurídico do sector empresarial do Estado, consagrado no Decreto-Lei nº 558/99, de 17.12, tendo por objecto, nos termos do disposto no artigo 4.º, a concepção, projecto, construção, financiamento, conservação, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional. Assim, conforme dispõe o artigo 18.º Decreto-Lei nº 558/99, de 17.12, trata-se de uma sociedade equiparada a entidade administrativa para efeitos de competência para julgamento de litígios, designadamente referentes a actos executados e contratos celebrados no âmbito dos poderes de autoridade a que se refere o artigo 14.º, de entre os quais se prevê a utilização, protecção e gestão das infra-estruturas afectas ao serviço público. Pelo que não resta senão concluir que estamos no âmbito de aplicação da alínea g) do artigo 4.º do ETAF, por versar o objecto desta acção sobre uma questão atinente à eventual responsabilidade civil de uma pessoa colectiva prossecutora do interesse público, concretamente encarregue da gestão da rede rodoviária nacional, e expressamente equiparada a um ente administrativo. Acresce ainda que o facto de serem demandados também outras pessoas, de natureza privada, não retira essa competência aos tribunais administrativos, já que o artigo 10.º nº7 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aprovado pela Lei nº 15/2002, de 22.02, permite que os particulares ou os concessionários, no quadro das relações jurídico-administrativas que estabeleceram com entidades públicas, sejam demandados conjuntamente com estes em situações de co-responsabilização”. Por sua vez, o TAF de Castelo Branco considerou que: “(…) atendendo ao pedido formulado pelos AA, em cada uma das acções (…) e aos factos alegados, a única conclusão que se pode tirar é que as mesmas dizem respeito a questões de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, o qual ocorreu entre dois veículos propriedade e conduzidos por particulares. (…) os AA consideram que o facto, alegadamente, ilícito, culposo e causador de lesões é exclusivamente imputado a ente privado, motivo pelo qual intentaram a acção contra a R. Ora, aos tribunais administrativos apenas é conferida competência para julgar litígios que tenham por objecto a responsabilidade civil de sujeito privados, quando a estes sujeitos lhes é aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público, o que manifestamente não é o caso - cf. artigo 4.º, n.º 1, alínea i), do ETAF. Exceptuando esta situação, os tribunais administrativos apenas são competentes para julgar acções de responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos - cf. artigo 4.º, n.º 1, alíneas g) e h), do ETAF. Assim, atendendo aos pedidos formulados pelos AA. e às causas de pedir alegadas nas petições iniciais, competente aos tribunais judiciais e não aos tribunais administrativos o julgamento das acções - cf. artigo 66.º do CPC61, em vigor no momento em que as acções foram propostas. Aliás, a decisão proferida pelo Tribunal Judicial da Sertã não põe em causa esta conclusão, resultando do despacho descrito no ponto 6), dos factos provados, que o motivo determinante que conduziu à decisão de incompetência material foi a admissão da intervenção principal provocada de dois entes públicos, aos quais a R. (e não os AA.) imputa a responsabilidade pelo acidente. Ora, a modificação subjectiva da instância não retira competência ao tribunal judicial.”. Vejamos. O âmbito da jurisdição dos tribunais judiciais é constitucionalmente definida por exclusão, sendo-lhe atribuída em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais (artigo 211.º, n.º 1, da CRP). Disposição esta que, à data da propositura das acções, era reproduzida no artigo 18.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro) e, actualmente, no artigo 40.º, n.º 1, da LOSJ. Por seu turno, a jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais é genericamente definida pelo n.º 3 do artigo 212.º da CRP, em que se estabelece que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”. Na redacção anterior à que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro (atendendo à data de propositura das acções é a que aqui releva), o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro) replicava no artigo 1.º, n.º 1, essa genérica previsão, que era concretizada no artigo 4.º, com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nº 1) e negativa (nºs 2 e 3). Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o Autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta. Como se afirmou no Acórdão deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. 08/14, «A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo». Os Autores intentaram as acções supra indicadas no Julgado de Paz da Sertã unicamente contra a Companhia de Seguros Ré pedindo a sua condenação no pagamento de uma indemnização pelos danos que sofreram em consequência de um acidente de viação que envolveu o veículo segurado na Ré, a cuja condutora imputam a culpa exclusiva no acidente, e o veículo conduzido pela Autora AA e no qual seguiam os outros Autores como passageiros. Ora, sendo a Ré um sujeito de direito privado e constatando-se que a esta não podem ser imputadas acções ou omissões no “exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo”, como estipula o n.º 5 do artigo 1.º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, não se pode enquadrar a situação dos autos na alínea i) do artigo 4.º do ETAF (na redacção aplicável à data da propositura das acções) que respeita a “Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público” de modo a atribuir competência aos tribunais administrativos para apreciar as acções propostas. Como já se disse a competência do tribunal fixa-se “no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente” – cfr. artigo 5.º, n.º 1 do ETAF e igualmente o artigo 22.º, n.º 1 da LOFTJ. As três acções foram inicialmente propostas unicamente contra a Companhia de Seguros. A admissão da intervenção da A... e do Município ... ocorre posteriormente à propositura das acções, através da intervenção principal provocada, ou seja, através de uma modificação de facto legalmente irrelevante para a fixação da competência, nos termos dos supra citados normativos. Assim, no momento da propositura das acções, face aos termos em que os Autores configuraram nas petições iniciais a causa de pedir, o pedido e o Réu que demandaram e sendo irrelevante para a fixação da competência a modificação do lado passivo por via da admissão da intervenção provocada da A..., SA e do Município ..., não há dúvida de que a relação controvertida é uma relação privada, e não uma relação jurídica administrativa ou litígio enquadrável no artigo 4.º do ETAF (cfr., em sentido semelhante, os acórdãos deste Tribunal dos Conflitos de 23.03.2022, Proc. 040/21, de 07.02.2024, Proc. 02/23-CP e de 18.04.2024, Proc. 01772/23.0BEBRG, disponíveis em www.dgsi.pt). Deste modo, a competência material para conhecer a acções cabe aos tribunais judiciais. Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar as acções o Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco, Secção de Competência Genérica da Sertã. Sem custas Lisboa, 27 de Novembro de 2024. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Nuno António Gonçalves. |