Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:0142/24.7BEFUN
Data do Acordão:09/20/2024
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
BENS ESSENCIAIS
COMUNICAÇÕES ELECTRÓNICAS
Sumário:Compete aos tribunais da jurisdição comum conhecer de um litígio emergente de um contrato de fornecimento de comunicações electrónicas em que o fornecedor pede o pagamento de determinadas quantias relacionadas com a prestação desse serviço.
Nº Convencional:JSTA000P32624
Nº do Documento:SAC202409200142
Recorrente:A... S.A.
Recorrido 1:SERVIÇO DE SAÚDE DA REGIÃO AUTÓNOMA DA MADEIRA - SESARAM, E.P.E.
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral:
Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
A... S.A., requereu, junto do Balcão Nacional de Injunções, uma injunção contra o Serviço de Saúde da Região Autónoma da Madeira EPE pedindo o pagamento da quantia de 82.704,03€ (posteriormente reduzida para 77.634,35€ - fls. 20 e segs.), acrescida do pagamento de juros de mora vencidos e vincendos, até efectivo e integral pagamento.
Alegou que, no âmbito da sua actividade, o Réu tem vindo a celebrar contratos com a Autora, para que lhe sejam prestados serviços, designadamente de fornecimento, de aquisição e prestação de serviços. Tais serviços foram prestados, mas o Réu não pagou as respectivas facturas.
O Réu deduziu oposição e os autos foram remetidos ao Tribunal Judicial da Comarca da Madeira e distribuídos ao Juízo Central Cível do Funchal - Juiz 3 [proc. n.º 18411/23.1YIPRT]. Naquele Tribunal foi suscitada oficiosamente a incompetência em razão da matéria e ordenada a notificação das partes para exercício do contraditório.
Em resposta, a Autora pugnou pela improcedência da excepção de incompetência absoluta defendendo que o presente litígio emerge de uma relação de consumo relativa à prestação de um serviço público essencial, o serviço de comunicações electrónicas, regulado pela Lei nº 23/96, de 26 de Julho, alterada pela Lei nº 12/2008, de 1 de Setembro, e que o mesmo se encontra excluído do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal ao abrigo da alínea e) do n.º 4 do artigo 4º do ETAF.
Por sentença de 18.01.2024, foi declarada a incompetência absoluta do Juízo Central Cível do Funchal - Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, em razão da matéria, com a absolvição do Réu da instância.
Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal (TAF do Funchal), também este Tribunal, por decisão proferida em 21.03.2024, se considerou incompetente em razão da matéria por conhecer do objecto dos autos e, em consequência, determinou a absolvição do Réu da instância.
Suscitada oficiosamente a resolução do conflito pelo TAF do Funchal, foi o processo remetido ao Tribunal dos Conflitos.
Neste Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 11.º da Lei nº 91/2019.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de dever ser atribuída a competência material para apreciar a presente acção à jurisdição comum.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os constantes do relatório.

3. O Direito
A questão a decidir nos autos é o conflito de jurisdição negativo entre o Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, Juízo Central Cível do Funchal, Juiz 3, e o Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal.
Entendeu o Juízo Central Cível do Funchal, Juiz 3, que sendo o Réu “uma sociedade de capitais exclusivamente públicos com finalidade de interesse público, cuja atuação se rege também pelas normas de direito público aplicável, uma vez que beneficia de prerrogativas de direito público” encontra-se sujeito à disciplina aplicável à contratação pública regulamentada pelo Código dos Contratos Públicos. Acrescenta que “a contratação em causa foi sujeita a prévio procedimento de contratação pública” e que “para se poder conhecer o alegado incumprimento se mostra necessário aferir dos termos contratados (…) bem como a outras normas de direito administrativo, eventualmente aplicáveis ao procedimento em causa”. Concluiu que a competência para dirimir o presente litígio cabe aos Tribunais Administrativos, concretamente ao Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, por força do disposto nos artigos 1º e 4º, al. e) do ETAF.
Por sua vez, o TAF do Funchal considerou que a “Autora pretende condenação do Serviço de Saúde da Região Autónoma da Madeira no pagamento de quantias relacionadas com prestação de serviços de comunicações eletrónicas – que consubstanciam um serviço público essencial, nos termos do artigo 1.º, n.º 2, alínea d), da Lei n.º 23/96, de 26 de julho – pelo que o objeto dos presentes autos se encontra subtraído à apreciação dos tribunais administrativos, por força do disposto no artigo 4.º, n.º 4, alínea e), do ETAF, sendo competentes para dele conhecer os tribunais judiciais”.
Vejamos.
O âmbito da jurisdição dos tribunais judiciais é constitucionalmente definida por exclusão, sendo-lhe atribuída em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais (art. 211º, nº 1, da CRP).
Por seu turno, a jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais é genericamente definida pelo nº 3 do art. 212º da CRP, em que se estabelece que «compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no art 4º do ETAF, com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4). Deste preceito importa reter o disposto na alínea e) do nº 4 que excluí do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal os litígios «emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva» (redacção introduzida pela Lei n º 114/2019, de 12.09).
Na Exposição de Motivos que acompanhou a Proposta de Lei nº 167/XIII, que deu origem à referida Lei nº 114/2019, consta o seguinte:
«A necessidade de clarificar determinados regimes, que originam inusitadas dificuldades interpretativas e conflitos de competência, aumentando a entropia e a morosidade, determinaram as alterações introduzidas no âmbito da jurisdição. Esclarece-se que fica excluída da jurisdição a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais. Da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo.» (disponível em https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=43155).
A Lei nº 23/96, de 26 de Julho, (Lei dos Serviços Públicos) dispõe no seu art. 1º:
1 - A presente lei consagra regras a que deve obedecer a prestação de serviços públicos essenciais em ordem à protecção do utente.
2 - São os seguintes os serviços públicos abrangidos: (…)
d) Serviço de comunicações electrónicas; (…)
3 - Considera-se utente, para os efeitos previstos nesta lei, a pessoa singular ou colectiva a quem o prestador do serviço se obriga a prestá-lo.
4 - Considera-se prestador dos serviços abrangidos pela presente lei toda a entidade pública ou privada que preste ao utente qualquer dos serviços referidos no n.º 2, independentemente da sua natureza jurídica, do título a que o faça ou da existência ou não de contrato de concessão.
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário pacífico, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a mesma é proposta.
Na presente acção, a Autora pretende a condenação do Serviço de Saúde da Região Autónoma da Madeira no pagamento de quantias relacionadas com a prestação de serviços no âmbito da sua actividade de comunicações electrónicas (cfr. facturas onde se refere serviços de “voz fixa”, “voz móvel”, “cartões de banda larga”, etc).
Assim, o litígio em apreciação tem por base uma relação de consumo referente à prestação de um serviço público essencial - serviço de comunicações electrónicas -, nos termos da alínea d) do nº 2 do art. 1º da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho.
No dia em que a Autora apresentou o requerimento de injunção – 16.02.2023 – já há muito se encontrava em vigor a mais recente versão do art. 4º do ETAF (introduzida pela Lei nº 114/2019 e que entrou em vigor em 11.11.2019) com o expresso afastamento, na al. e) do seu nº 4, da competência dos tribunais administrativos e fiscais para apreciar “litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva” (cfr. em casos paralelos os acórdãos deste Tribunal dos Conflitos de 18.01.2022, Proc. 02941/21.2T8ALM.S1, de 23.03.2022, Proc. 031/21, de 08.11.2022, Proc. 018/22 e de 17.04.2024, Proc. 2587/23.0T8SXL.S1).
Pelo exposto, e atento o disposto na alínea e) do n.º 4 do artigo 4.º do ETAF, na redacção da Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, acordam em julgar competentes para apreciar a presente acção os Tribunais Judiciais [Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, Juízo Central Cível do Funchal, Juiz 3].
Sem custas.

Lisboa, 20 de Setembro de 2024. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Nuno António Gonçalves.