Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:0971/18.0BESNT
Data do Acordão:06/20/2024
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
DIREITOS REAIS
TRIBUNAIS JUDICIAIS
Sumário:Compete aos Tribunais Judiciais conhecer de uma acção na qual a questão a decidir emerge de uma relação no âmbito do direito privado, de direitos reais – defesa do direito de propriedade -, e não de qualquer relação jurídica administrativa.
Nº Convencional:JSTA000P32414
Nº do Documento:SAC202406200971
Recorrente:AA E OUTROS
Recorrido 1:BANCO 1..., SA E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
AA e mulher BB intentaram no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Local Cível de Sintra, acção declarativa de condenação contra CC e mulher DD (no decurso da instância cível ocorreu o óbito desta e foi sucedida na mesma pelos seus filhos, EE, FF e GG); Banco 1..., SA; A... e Município de Sintra tendo, após apresentação de nova petição aperfeiçoada, formulado os seguintes pedidos:
1- Condenar-se os 1ºs RR. a demolirem, à sua custa, no prazo de 60 dias, a contar do trânsito em julgado da sentença, as obras referidas nos art. 8º, 20º e 22º desta petição e a não direccionarem para a vala referida no art. 22º desta petição as águas pluviais que caem nos prédios referidos nos arts. 2º e 3º desta petição, bem como quaisquer outras águas residuais produzidas nestes prédios;
2- e, a não exercerem no prédio identificado no art. 2º desta petição a actividade referida no art. 7º desta petição, ou autorizar que outros a exerçam, bem como a lançarem águas residuais dele provenientes para o prédio referido no art. 1º desta petição;
3 – e, a não exercerem ou autorizarem que outros a exerçam, no prédio referido no art. 3º desta petição a actividade referida no art. 9º desta petição, bem como lançarem as águas residuais dele provenientes para o prédio referido no art. 1º desta petição,
4 - Condenar-se o 3º R. e o 4º R. a não direccionarem para a vala referida no art. 22º desta petição, nem para o prédio referido no art. 2º desta petição, as águas pluviais que caem no prédio referido no art. 4º desta petição e no arruamento e passeio referido no art. 5º desta petição, respectivamente.
5 – Condenar-se os 1º, 3º, e 4º R.R. a construírem nos prédios de que são proprietários ou locatário financeiro e referidos nos arts. 2º a 5º desta petição, à sua custa, no prazo de 120 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, as estações elevatórias necessárias, que permitam escoar as águas pluviais dos prédios e arruamentos e passeio identificados nos art. 2º a 5º deste articulado, para o colector público, de modo a que o prédio referido no art. 1º desta petição não receba tais águas, tudo com as legais consequências”.
Em síntese, alegam que os prédios propriedade dos Réus se situam a uma cota mais alta do que o prédio dos Autores que, por essa razão, “está sujeito a receber águas, que naturalmente e sem obra do homem, decorram dos prédios superiores”.
Sustentam, porém, que as obras levadas a cabo naqueles prédios, “nomeadamente o muro, a vala, a asfaltagem, as edificações construídas, bem como os sumidouros e a tubagem efectuada, arruamento e passeio”, alteraram o escoamento natural das águas ou, pelo menos, agravaram-no. Alegam que essas águas, pluviais e residuais, ficam empoçadas no prédio dos Autores ou, quando atingem certo volume, principalmente no Inverno, quando chove, abrem, no mesmo prédio, sulcos/valas, por onde correm para a linha de água ali existente e provocam maus cheiros e grande quantidade de mosquitos e alteram a sua morfologia e configuração, criando também vegetação nefasta, que naturalmente ali cresce em grande abundância, obrigando à limpeza e corte permanente por parte dos Autores, para além da contaminação dos solos e aquíferos nele existentes (cfr. artigos 27º, 29º, 30º, 33º e 34º da p.i.).
Pedem, em suma, a demolição das obras, a cessação do lançamento de águas residuais e a construção de estações elevatórias que permitam o escoamento das águas pluviais para o colector público.
Por sentença proferida em 05.06.2018 o Juízo Local Cível de Sintra –Juiz 2 declarou-se incompetente em razão da matéria “para apreciar o pedido relativo ao 5º R., e, consequentemente (ETAF 4º/2), os demais pedidos - motivo por que, ao abrigo das regras do artigo 99º/ do CPC, se absolve todos os RR. da instância”.
Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, foi aí proferido saneador-sentença em 04.10.2023 a declarar a incompetência material da jurisdição administrativa para conhecer in totum do objecto da acção.
Suscitada a resolução do conflito negativo de jurisdição, foram os autos remetidos a este Tribunal dos Conflitos.
Neste Tribunal dos Conflitos, as partes foram notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do art. 11º da Lei nº 91/2019.
O Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da atribuição da competência aos tribunais da jurisdição comum, mais concretamente ao Juízo Local Cível de Sintra (Juiz 2), do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Local Cível de Sintra, e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra (Juízo Administrativo Comum).
Entendeu o Juízo Local Cível de Sintra que na presente acção a causa de pedir assenta em responsabilidade civil extracontratual e pelo “facto de ter sido pedida a condenação solidária de todos os RR. (pedido principal, e primeiro pedido subsidiário) significa que, para os AA. e da forma como configuraram a acção, existe um vínculo de “solidariedade” entre todos os RR.”, concluindo pela incompetência em razão da matéria para apreciar o pedido formulado relativamente ao Réu Município de Sintra e, “consequentemente (ETAF 4º/2), os demais pedidos - motivo por que, ao abrigo das regras do artigo 99/1 do CPC, se absolve todos os RR. da instância”.
Por sua vez o TAF de Sintra considerou que “(…) apesar de o presente conflito envolver ou, pelo menos, convocar para a demanda uma entidade de natureza pública, no caso o Município, o mesmo não se apresenta nos presentes autos munido de qualquer poder de autoridade ou em qualquer relação jurídica administrativa, mas tão e somente, como detentor de um arruamento asfaltado com passeios (cfr. artigo 5.º da PI), onde caem águas pluviais (cfr. artigo 24.º da PI), ou seja, numa relação de paridade com os demais entes privados na acção, não estando em causa na presente acção, o exercício da função administrativa, mas sim, o alegado o escoamento de águas, como de um qualquer ente privado se tratasse.
Entenda-se que, não é pelo simples facto de constar nos autos uma pessoa colectiva de direito público, no caso, o Município, demandada nos autos, que estamos perante um conflito que tenha por base uma relação jurídico-administrativa.
Por conseguinte, resulta claro que os Tribunais Administrativos e Fiscais não possuem competência material para o conhecimento da matéria em litígio. - Atentar ainda que, mesmo que se estivesse em causa uma típica acção de responsabilidade civil, o que, efectivamente, não se verifica – não se podendo confundir o regime de co-responsabilidade no escoamento de águas para o prédio dos autores, com o regime de solidariedade na produção de danos por factos ilícitos, designadamente no âmbito do exercício da actividade administrativa – a competência deste TAF ficaria limitada ao conhecimento respeitante ao ente público, porquanto, face à data da entrada dos autos no Tribunal Judicial – ano de 2011 - era aplicável, o ETAF sem as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º214-G/2015, de 2 de Outubro.”.

Vejamos.
O âmbito da jurisdição dos tribunais judiciais é constitucionalmente definida por exclusão, sendo-lhe atribuída em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais (artigo 211.º, n.º 1, da CRP). Disposição esta que, à data da propositura da acção, era reproduzida no artigo 18º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro) e, actualmente, no artigo 40º, nº 1, da LOSJ.
Por seu turno, a jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais é genericamente definida pelo nº 3 do artigo 212º da CRP, em que se estabelece que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
Na redacção anterior à que lhe foi conferida pelo DL nº 214-G/2015, de 2 de Outubro, que atendendo à data de propositura da acção – 12.07.2011 - é a que aqui releva, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro) replicava no artigo 1º, nº 1, essa genérica previsão que era concretizada no artigo 4º, com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nº 1) e negativa (nºs 2 e 3).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o Autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta. Como se afirmou no Acórdão deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. 08/14 “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”.
Analisados os pedidos e a causa de pedir, quer na petição inicialmente apresentada quer na petição que resultou do aperfeiçoamento, constata-se que a presente acção é uma acção de defesa do direito de propriedade.
Com efeito, a pretensão principal que os Autores enunciam na acção visa a defesa da sua propriedade relativamente à recepção de águas pluviais e residuais no seu prédio, que consideram indevida, e que terá sido causada pelas obras e actividades realizadas pelos Réus. Por isso, pedem a condenação dos Réus em demolição de obras e construção de estações elevatórias que permitam escoar as águas pluviais dos prédios, arruamentos e passeios, e em abstenção de lançamento de águas residuais, tudo de modo a fazer cessar o escoamento de águas que afecta a sua propriedade.
A presente acção não foi configurada pelos Autores como uma acção de responsabilidade civil extracontratual, nela não é invocada causa de pedir ou formulados pedidos susceptíveis de convocar o instituto da responsabilidade civil extracontratual. Mesmo relativamente ao Réu Município, contrariamente ao entendido na instância cível, resulta da petição inicial estarmos perante uma acção para defesa do direito de propriedade dos Autores, no âmbito de uma relação jurídica de direito privado e não perante uma acção de responsabilidade civil extracontratual.
Assim, tomando em consideração o pedido e a causa de pedir da presente acção, concluímos que, não estando em causa a responsabilidade civil extracontratual, a questão dos autos emerge de uma relação no âmbito do direito privado, de direitos reais, e não de qualquer relação jurídica administrativa (cfr., em situação paralela, os Acórdãos deste Tribunal dos Conflitos de 16.02.2005, Proc. 014/04, de 15.12.2021, Proc. 020/20, de 19.04.2022, Proc. 07/22.7YFLSB e de 14.07.2022, Proc. 027/21, disponíveis em www.dgsi.pt).
Deste modo, a competência material para conhecer a presente acção cabe aos tribunais judiciais.
Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Local Cível de Sintra, Juiz 2.
Sem custas.

Lisboa, 20 de Junho de 2024. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) - Nuno António Gonçalves.