Sentença de Julgado de Paz
Processo: 356/2019-JPFNC
Relator: DANIELA CERQUEIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL TRANSITÁRIO-TRANSPORTADOR
Data da sentença: 02/08/2021
Julgado de Paz de : FUNCHAL
Decisão Texto Integral: Processo n.º 356/2019 – JP

Sentença

Demandante: P, Lda…Funchal.
Demandada: V – Seguros, S.A., Lisboa.


I - Relatório
A Demandante intentou contra a Demandada melhor identificados a fls. 2, a presente acção declarativa de condenação, nos termos do requerimento inicial constante de fls. 1 a 15 dos autos, que aqui se considera integralmente reproduzido, pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de global de € 3 732,20 (três mil, setecentos e trinta e dois euros e vinte cêntimos). Para tanto, alegou, em síntese:
1. Ter celebrado um contrato de seguro obrigatório pelo qual transferiu a responsabilidade civil da sua actividade de operadora transitária titulado pela apólice nº 11017845;
2. No exercício dessa actividade celebrou um contrato de trânsito com a S S.A. pelo qual assumiu a expedição, recepção, verificação, armazenamento e entrega de uma caixa automática ATM de Lisboa à agência bancária sita na Rua Latino Coelho nº 38, no Funchal.
3. No dia 09.07.2018 a referida ATM chegou ao porto do Caniçal em perfeitas condições.
4. Nesse mesmo dia transportou-a em viatura própria até ao seu local de destino onde iniciou as operações de descarga para entrega na agência a que se destinava;
5. Criado um perímetro de segurança e observadas todas as regras de segurança, a ATM nº de série 60063 foi colocada na plataforma elevatória iniciando-se a sua descensão;
6. Sem que nada o fizesse prever, a plataforma começou a desnivelar acabando por provocar a queda da referida ATM no chão, resultando, para a ATM os danos descritos a fls. 38 a 43.
7. A ATM teve de voltar a Portugal continental para reparação e regressar à Madeira para efectiva entrega;
8. A Demandante participou o sinistro à Demandada.
9. E viu-se obrigada a pagar à Urbanos Suplly Chain SA, a quantia por esta facturada no valor de € 3 732,20.
10. A Demandante enquadra o sinistro na previsão das cláusulas gerais 2 e 3 e 1ª das especiais da apólice contratada com a Demandada;
11. Entende que o acto de transporte rodoviário já havia cessado, tendo em conta que o sinistro ocorreu quando o transporte já estava concluído.
12. Considera ainda que o acto material de descarga se enquadra na sua actividade transitária.
13. A Demandada em 17.09.2018 veio declarar este sinistro excluído da sua apólice, não assumindo a responsabilidade pelos danos dele decorrentes;
14. Alegando que a Demandante actuava enquanto transportadora rodoviária e não transitária, estando o sinistro excluído nos termos da Cláusula 2ª e 4ª l) da referida apólice.
Concluiu pela procedência da acção e juntou documentos de fls. 16 a 44 e procuração.
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II - Tramitação:
Regularmente citada a fls. 52, a Demandada contestou a fls. 53 a 59 dos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidos, defendendo-se por impugnação e por excepção, alegando que:
a) A Demandante é uma empresa transitária, titular do Alvará 8009/2015-M
b) Não foi junto aos autos qualquer comprovativo que nos permita saber a que título é que a Demandante interveio neste transporte, como impõe o nº 3 do DL 255/299 de 7.7
c) Sendo que o regime legal é distinto, consoante estejamos perante uma actuação de transitário ou de transportador público rodoviário (DL 238/2003)
d) As empresas transitárias têm de possuir um seguro obrigatório nos termos dos artº 7 do DL 255/99 e Regulamento 26/2007 (norma 2/2007-R) de 28.12 – 2ª série.
e) O seguro celebrado entre a Demandante e Demandada foi contratado no âmbito do DL 255/99 e entrou em vigor em 28.04.2015, por um ano, renovável
f) Decorre do artº 9 do Regulamento 26/2007 que está excluída a cobertura do seguro, sempre que o segurado actue como transportador público rodoviário de mercadorias,
g) Só garantindo os bens ou mercadorias quando em armazém ou em manuseamento nas instalações da empresa. – artº 3 do Regulamento
h) A execução material de transporte de mercadorias não faz parte da actividade transitária e não está incluída no âmbito da actividade segura.
i) Além do mais, os alegados danos terão ocorrido numa operação de manuseamento da carga com vista à sua entrega no destino, quando já se encontravam numa Rua do Funchal.
Concluiu pela improcedência da acção, juntou procuração forense e documentos de fls. 60-70

Notificada ao abrigo dos artºs 3º nº 3 e 6º do CPC do teor da contestação e da possibilidade de responder a eventuais excepções suscitadas, a Demandante veio a fls. 82-83, pugnar pela sua actuação enquanto operadora transitária, enquadrando os danos na alínea s) do citado Regulamento, juntando a fls. 87 a 122, os documentos que considerou pertinente juntar e que aqui se dão por integralmente reproduzidos.

Foi agendada a audiência e adiada a pedido da Demandada, que invocou justo impedimento, aproveitando para juntar mais um documento a fls. 146-150.
Reagendada a audiência para 22.10.2020, foi a mesma iniciada com a exploração de todas as possibilidades de acordo, (cfr. art.º 2.º, e n.º 1, do art.º 26.º, ambos da LJP), o que não logrou conseguir-se, tendo a Demandada considerado estar apenas em causa uma questão de Direito.
Frustrada a tentativa de conciliação, prosseguiu a audiência, com a observância das normas de processo, conforme resulta da acta de fls. 160-162.
Tal como foi prévia e consensualmente acordado entre as partes e este Tribunal, finda a prova e cumprido o contraditório das partes, foram as partes convidadas para alegar por escrito, atentas as restrições agravadas de Saúde Pública, motivadas pela 2ª vaga da Pandemia Covid-19, tendo cada uma delas apresentado as respectivas alegações finais a fls. 188-209, seguidas de alegações complementares que ambos fizeram e que aqui se dão por reproduzidas, constantes a fls. 238-243.
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Estão reunidos os pressupostos da estabilidade da instância. O Julgado de Paz é competente em razão do valor, da matéria e do território. Não existem nulidades que invalidem o processado. As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas. Não se verificam excepções que cumpra conhecer ou que obstem ao conhecimento da causa.

III - Valor: atribuo à causa o valor de € 3 732,20 (três mil, setecentos e trinta e dois euros e vinte cêntimos). Cfr., normas conjugadas dos artigos 306.º, n.º 1; 297.º, n.º 1; e 299.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi, art.º 63.º da LJP.
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IV - Questões a decidir:
- Se as operações de transporte, carga e descarga de mercadorias estão ou não abrangidas pela actividade transitária e, pelo contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil?
- Se o sinistro em causa, está ou não, coberto pela apólice nº 11017845 junto da Demandada?
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Nos termos do art.º 60.º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 78/2001, de 13/07, alterada pela Lei n.º 54/2013, de 31/07 (LJP), a sentença inclui uma sucinta fundamentação, sendo que – atento o valor e a circunstância desta jurisdição não prever gravação da prova, foi opção da signatária a sua transcrição.
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V - Fundamentação – Matéria de Facto:
Com interesse para a resolução da causa, tendo em conta as várias soluções jurídicas plausíveis, ficou assente por confissão que:
A. A Demandante é uma sociedade comercial que se dedica à prestação de serviços na área de logística e organização de transportes cfr. Certidão de matrícula de fls. 88-92 + e correspondência com a CAE nela indicada : https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_publicacoes&PUBLICACOESpub_boui=10376048&PUBLICACOESmodo=2;
B. A Demandante é uma empresa transitária, titular do Alvará 8009/2015-M e está desde 11.05.2015 a desenvolver a actividade de operadora transitária; - fls. 195 e 236
C. As empresas transitárias têm de possuir um seguro obrigatório nos termos dos artº 7 do DL 255/99 e Regulamento 26/2007 (norma 2/2007-R) de 28.12 – 2ª série.
D. Em 28.04.2015 e com a validade de 1 ano, renovável, foi celebrado entre as partes, um contrato de “seguro de responsabilidade civil – seguro obrigatório empresas transitárias” no âmbito do DL 255/99 e de acordo com a proposta a fls. 120-121 e apólice nº 110178545, a fls. 62-65, 94-109

Resultou ainda provado que:
1. A Demandante está também desde 28.05.2015, autorizada a desenvolver a actividade de transportes rodoviários de mercadorias por conta de outrem – cfr. Alvará de fls. 237.
2. A Demandante, no exercício da sua actividade de transitária, contratou com a S SA as operações necessárias para transporte e entrega de uma máquina de ATM nº 60063, de Lisboa até à agência bancária sita na Rua Latino Coelho nº 38 no Funchal.
3. No dia 09.07.2018 a Demandante transportou em viatura própria, ligeira de mercadorias Mitsubishi Canter de 2007, de matrícula EP, inferior a 2500Kg, a referida máquina desde o Porto do Caniçal até ao seu destino.
4. Chegado à Rua Latino Coelho nº 38, o motorista da Demandante criou um perímetro de segurança, iniciando as operações de descarga.
5. A máquina foi colocada sobre a plataforma elevatória e iniciada a descida.
6. A plataforma começou a desnivelar, fazendo com que a ATM tombasse e caísse no pavimento.
7. Do embate resultaram danos na ATM, melhor ilustrados nas fotos a fls. 38 a 41;
8. A reparação foi orçamentada e efectuada pela empresa G SA por solicitação da Sibs Foward Payment Solutions SA, no valor de € 3 034,31 – fls. 42
9. A participação do sinistro foi efectuada no dia 23.07.2018 (retificada no dia 26.07.2018) – fls. 114-115
10. No dia imediato, a Demandada recusou a cobertura por considerar que tal responsabilidade cabia ao transportador-transitário.
11. No dia 06.09.2018, o corretor de seguros encarregue pela Demandante de mediar a situação, insiste que este sinistro está coberto pela apólice de seguro de responsabilidade civil titulada pela Demandante enquanto transitária.
12. A 11.09.2018 a Demandada reiterou que, no momento do sinistro a Demandante estava a actuar enquanto transportadora e que essa circunstância a excluía da apólice 11017845. – fls. 112
13. Em 16.10.2018 o mesmo corretor de seguros solicitou a reanálise do processo, dando-lhes a conhecer o parecer da APAT – Fls. 110
14. A Demandada não solicitou quaisquer documentos, relatório pericial, não efectuou qualquer diligência de averiguação ou avaliação dos danos ou peritagem, recusando liminarmente qualquer cobertura demais contactos e no decorrer desta acção fls. 147
15. Em 31.01.2019 a S SA facturou à Demandante o valor dos danos materiais (reparação e transportes adicionais) decorrentes deste sinistro, pelo valor total de € 3 742,20 - fls. 44.
16. O pagamento foi efectuado por débito na contracorrente que a Demandante mantém com a cliente S SA.
17. Em 12.07.2019 a Demandante celebrou outro seguro, multirrisco empresarial – fls. 170-173

Factos não provados:
Não se provaram quaisquer outros factos alegados pelas partes com interesse para a decisão da causa, nomeadamente, que:
I- A Demandante, no dia e momento do sinistro, actuasse como transportador público rodoviário.
II- Que a cobertura da apólice 11017845 se restrinja aos sinistros ocorridos em operações logísticas e de organização de transporte ou de manuseamento, nas instalações da Demandante.
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Motivação da Matéria de Facto:
Foi ouvido o representante legal da Demandante em declarações de parte das quais resultou a seguinte assentada que não foi reclamada ou impugnada por nenhuma das partes.
Artº 1 a 5, 7 e 8 - Confirmou integralmente concretizando que a Demandante celebrou com a Demandada um contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil, sem o qual não poderiam desenvolver a sua actividade transitária;
Que o contrato de trânsito referido nos artºs 3 e 4 decorreu da seguinte forma: recolhemos a ATM em Lisboa, colocamo-la no contentor do barco que fretamos para o efeito; recolhemos a ATM no cais e transportamos a máquina para entrega no balcão contratado.
Artº 9 a 19º - Confirma, esclarecendo que não esteve presente no sinistro, mas acompanhou-o por fotografias e relatórios que lhe fizeram chegar. Sabe que o sinistro ocorreu junto ao Mercado dos Lavradores. A Sibs tem como cliente a “Urbanos” e estes subcontrataram-nos. “A Urbanos” - deixou a máquina nos nossos armazéns, carregamos no contentor para o barco e já na Madeira, fomos buscar a ATM ao cais com um camião-grua subcontratado que o descarregou do barco e carregou na nossa viatura, com colegas nossos nas operações. O sinistro ocorreu quando estavam a ser utilizados recursos e meios exclusivamente nossos. Ocorreu na parte final da operação, na entrega, com a queda da ATM da nossa plataforma basculante. Confirmou o teor das fotos de fls. 38 a 41, identificando o veículo, bem como a situação em que ficou a ATM.
Artº 20º - confirma o teor de fls. 41, bem como os documentos de fls. 42-44 que identificou como sendo o orçamento da SIBS para reparação e a factura dos danos que efectivamente foram suportados.
Artºs 21 a 23 – Confirmou na íntegra, esclarecendo que todos os dias fazemos serviços deste género; já transportamos máquinas ATM há anos e nunca tivemos qualquer problema.
Artº 24º a 26 - confirma na íntegra, concretizando que “a ATM foi para os nossos armazéns e só mais tarde foi enviada para Lisboa para o Cliente avaliar os danos e desencadeámos o processo para saber se a companhia assumia os danos ou não. Passei a gestão do sinistro para o nosso corretor de seguros e essa intervenção foi por ele tratada. Passadas umas semanas a ATM foi para a SIBS que avaliou os danos e apresentou o orçamento” (que já tinha identificado, a fls. 42).
Artºs 27 a 29. Confirma, esclarecendo que foi o Cliente que escolheu a empresa que procedeu às reparações que estão documentadas.
Artº 30 a 34 – Pessoalmente não fez qualquer contacto, pois entregou a gestão desse sinistro ao corretor; contudo sabe que foi pedido um parecer à APAT porque a companhia recusou assumir o mesmo; sabe que o pagamento dos danos bem como de outras despesas que foram cobradas, foi feito pela Demandante através do débito que a sua cliente fez na sua contracorrente.
Artº 35 – Confirma ter sido essa a posição da Demandada, mas sustenta que “o sinistro acontece no desenrolar da nossa actividade transitária com serviços de trânsito e carga, pressupondo esta não só o frete, como a entrega do bem. A nossa empresa é uma empresa de logística e distribuição, com o mais variado leque de serviços, para os quais temos vários alvarás (de transporte, de distribuição, etc). Alem disso, o sinistro acontece quando estamos a utilizar exclusivamente meios nossos para entrega do bem em trânsito e, portanto, está no âmbito da nossa actividade.
Artº6, 36 a 55 – matéria conclusiva e de Direito.”

Foram ouvidas as testemunhas da Demandante, não tendo a Demandada apresentado qualquer prova testemunhal.


Foi ouvido F que se identificou como sendo motorista há quase 3 anos, estando a trabalhar para a Demandante há cerca de 1 ano. Confirmou ser o condutor do carro, confirmando a matrícula, o modelo Canter, a categoria de ligeiro de mercadorias, por ser o carro com que costuma trabalhar.
Confrontado com as fotos de fls. 38 a 41 disse “Nesse dia, estacionei, coloquei um perímetro de segurança e quando estava a retirar a máquina, a rampa caiu e a máquina caiu. Fui com um colega que já cá não está na empresa. Pedi ajuda para a voltar a carregar. A plataforma estava um pedacinho inclinada e já no momento em que estava com o porta-paletes e no momento em que estava descer, caiu. Essa plataforma tinha sido utilizada várias vezes, para iguais mercadorias; a rampa não partiu, quando a máquina tombou, ela voltou ao normal. Foi um acidente.”

De seguida foi ouvido R que se identificou como corretor de seguros, declarando que trabalha com a Demandante há anos. Não teve qualquer intervenção na contratação desta apólice, nem sabe o que foi dito pelo mediador. “Estive na gestão de risco e quando recebi a carteira – desde 2016 – analisei esta apólice e expliquei que esta apólice era muito difícil de fazer; não mais encontram uma melhor. Confrontado com o teor de fls. 110-122 confirmou tratar-se de correspondência por si trocada. Esclareceu que “a participação foi feita logo que houve o sinistro. A Victoria excluiu o sinistro porque entendeu que não se enquadrava na responsabilidade civil dos transitários. Os corretores, são corretores, são equidistantes entre as clientes e as seguradoras. Nós, prestamos todo o apoio técnico ao nosso cliente; como a seguradora não reconheceu a nossa posição, estamos aqui hoje. Este tipo de apólices gera muitos conflitos porque têm muito por onde fugir. Depois de tomar conta desta apólice e da carteira, nós conversámos. Esta apólice integra um seguro obrigatório. As companhias, nos seguros obrigatórios, não podem fugir como nos voluntários e neste caso, está a fugir. Quando contratamos uma apólice deste tipo, seguramos tudo, toda a sua responsabilidade, decorrente de toda a sua actividade. Esta empresa faz este serviço há anos. Houve um sinistro na fase final do serviço, meramente acidental e a seguradora não o considera enquadrado. A APAT tem juristas especialistas nesta área de transportes e emitiu um parecer a considerar que a apólice cobria o sinistro. Tenho uma excelente relação com a Victoria e estas questões são de mero desacordo com a interpretação. Para interpretar as apólices não as podemos levar à literalidade. Nestes casos temos de perceber dos danos reais. Esta empresa também tem um seguro de exploração que foi contratada um ano depois do sinistro. A apólice que foi sempre accionada foi a de responsabilidade civil.
Confrontado com os documentos a fls. 97-106 disse “integram outro tipo de seguro ou de apólice que não tem nada a ver com a que está em causa neste processo. Na altura do sinistro consideravam que a apólice de responsabilidade civil bastava.”

Na sequência deste depoimento, foi ainda requerida pela Demandante, a junção aos autos da apólice do seguro de exploração multirrisco, para demonstrar que a única apólice existente à data dos factos, era a de seguro obrigatório de responsabilidade civil , que juntou a fls. 169-173. Por sua vez a Demandada veio requerer que a Demandante juntasse aos autos os alvarás da sua actividade de operadora transitária e de transportadora de mercadorias para melhor aferir do que as distingue. Após algumas vicissitudes (reclamação de despacho de admissão), os alvarás foram juntos a fls. 234-237 e a fls. Apólice.

Os factos provados resultaram da conjugação ponderada dos factos admitidos ou não especificamente impugnados pelas partes, com os documentos juntos e prova testemunhal, tendo em conta o princípio da livre apreciação da prova previsto no artigo 607º, nº 5 do CPC, aplicável subsidiariamente por força do disposto no artigo 63º da Lei nº 78/2001, de 13 de julho e no artigo 396º do Código Civil (CC). Foi considerada relevante a participação do acidente efectuada bem como a conduta da Demandada, enquanto seguradora, que a sucedeu; Relevaram ainda as declarações de parte do representante legal da Demandante – que a Demandada aceitou sem qualquer reclamação - na forma clara e coerente como descreveu a relação transitária estabelecida com a sua cliente “Urbanos SA” desde as obrigações contratuais assumidas enquanto transitária, à assunção dos danos materiais que aquela facturou, permitindo encontrar os pontos convergentes e divergentes da versão por si trazida a juízo
Foi ainda relevante a prova testemunhal apresentada apenas pela Demandante, que apresentando o testemunho directo de quem interveio no acidente, permitiu comprovar os factos de tempo, modo e lugar que rodearam o sinistro.
A Demandante limitou a sua defesa à impugnação não concretizada dos factos (artº 26º da contestação), alegando um desconhecimento generalizado dos mesmos, nomeadamente daqueles que lhe cumpria ter conhecido, logo que o sinistro lhe foi participado, tendo sido valorada não só a posição de total alheamento por si manifestada aquando da participação do acidente, como a obstinada defesa de uma exclusão de um sinistro cuja dinâmica só veio a conhecer no Tribunal, daí que, os factos não provados resultem também da ausência de outros elementos, que permitam formar convicção positiva sobre os mesmos.

VI - Fundamentação – Matéria de Direito:
De acordo com a factualidade alegada pela Demandante, esta celebrou um contrato de trânsito que supunha o planeamento, coordenação e a direcção das operações relacionadas com a expedição, recepção, armazenamento e entrega de uma caixa ATM desde Lisboa a até uma agência bancária sita na Rua latino Coelho, nº 38 no Funchal.
A Demandante não juntou o contrato de trânsito por si celebrado com a Urbanos Supply Chain S.A. mas logrou demonstrar sem qualquer oposição da Demandada, os concretos factos que o constituíram. Por sua vez, a Demandada, ilustremente representada por mandatário, não o requereu, não o contestou, aceitando nas suas alegações não existirem dúvidas quanto “às circunstâncias de tempo, lugar e modo como ocorreu o sinistro”, focando a sua impugnação na controversa questão de se apurar da cobertura ou não, da apólice - que reconheceu ter sido contratada e na questão acessória de saber se as operações de carga e descarga estão ou não abrangidas na actividade transitária. Não vale como impugnação a alegação de desconhecimento generalizado de factos que o devedor não pode nem deve desconhecer – artº 574º nº 1 e 3 do CPC – como sucede com os factos que esta deveria ter diligenciado e averiguado logo que lhe foi participado o sinistro, como veremos adiante – era sua obrigação legal. – Cláusula 11ª – ponto 1.2 da apólice.

Comecemos por enquadrar a situação concreta dentro do regime que lhe for aplicável.
Avulta dos autos que a Demandante obrigou-se, por um lado, a organizar as operações de transporte marítimo da mercadoria de Lisboa para a Madeira, assumindo, por outro, o encargo de colocar o bem no seu exacto destino, mediante transporte terrestre.
O contrato de expedição ou trânsito define-se como o contrato pelo qual uma parte (transitário) se obriga perante a outra (expedidor) a prestar-lhe certos serviços – que tanto podem ser actos materiais ou jurídicos – ligados a um contrato de transporte e também a celebrar um ou mais contratos de transporte em nome e em representação do cliente.
Em sentido estrito, este tipo de contrato é um mandato representativo e em sentido lato, um contrato de prestação de serviços, que poderá abranger a prática quer de operações materiais, quer de actos jurídicos, ligados a um contrato de transporte. Escreve Luís Lima Pinheiro: “O transporte de mercadorias surge na grande maioria dos casos associado a uma operação económica mais ampla, normalmente uma venda de mercadorias. Com frequência, a operação económica inclui uma deslocação da mercadoria por dois ou mais meios de transporte de natureza diferente (…). Tradicionalmente, salvo quando um dos segmentos é encarado como meramente complementar, são celebrados contratos juridicamente independentes para cada um dos segmentos do transporte. (…)”
A Demandante logrou demonstrar dedicar-se prioritariamente a actividades próprias de um transitário – cfr. decorre do seu objecto social (matrícula) e CAE principal - tendo – neste caso concreto - ido para além do que é considerada a actividade típica do transitário: obrigação de celebrar um contrato de transporte com um transportador, em nome próprio ou do expedidor, mas sempre por conta deste, assumindo também a obrigação de prestar ao expedidor serviços de natureza logística e operacional que assegurem a deslocação da mercadoria.
O DL 255/99, de 07.07 é o diploma regulador da actividade transitária e não proíbe estas empresas de celebrarem e executarem contratos de transporte de mercadorias, directamente ou com recurso a terceiros, podendo até assumir a realização do transporte pretendido pelo interessado.
Pouco importará que a Demandante exerça a actividade transitária, o que releva é que assumiu a realização do transporte integral, tratando da parte logística e operacional e recorrendo aos seus próprios meios para garantir a deslocação da mercadoria desde a carga e descarga por mar, até ao definitivo ponto de entrega, por via terrestre.

No contrato de transporte a obrigação principal do transportador reside na deslocação dos bens de um local para outro; por outro, no contrato de trânsito o transitário é o intermediário entre o expedidor e transportador. O estatuto de transitário não o impede de exercer funções de transportador. Alude-se, neste contexto, à figura do transitário-transportador.” In JOÃO VALBOM BAPTISTA, “O Contrato de Expedição”, cit., p. 296

Vejamos a Jurisprudência que vem sendo produzida sobre a actividade das empresas transitárias:
Ac. RPorto Procº 0621802 de 13.06.2006
“Por sua vez o artigo 1º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 255/99, de 7 de Julho, define a actividade transitária, como a actividade que consiste “na prestação de serviços de natureza logística e operacional que inclui o planeamento, o controlo, a coordenação e a direcção das operações relacionadas com a expedição, recepção, armazenamento e circulação de bens ou mercadorias, desenvolvendo-se nos seguintes domínios de intervenção: a) gestão de fluxos de mercadorias; b) mediação entre expedidores e destinatários, nomeadamente através de transportadores com quem celebre os respectivos contratos de transporte; c) execução dos trâmites ou formalidades legalmente exigidos inclusive no que se refere à emissão do documento de transporte unimodal ou multimodal”.
Estabelecendo os n.ºs 1 e 2 do artigo 13º, do mesmo Dec. Lei n.º 255/99 que as empresas transitárias podem praticar todos os actos necessários ou convenientes à prestação dos seus serviços, podendo celebrar contratos com terceiros, em nome próprio, por conta do expedidor ou do dono da mercadoria. (…)Pelo facto da Autora ser uma empresa transitária, o citado Dec. Lei n.º 255/99, de 7 de Julho, diploma regulador da actividade das empresas transitárias, não veda a estas a celebração de contratos de transporte, para serem executados directamente ou com o recurso a terceiros.”

Ac. STJ – Procº 2896/04.TBSTB.L2.S1 de 14.01.2014

I. A actividade transitária vem definida no artigo 1º, nº2 do DL 255/99 de 7 de Julho como sendo aquela que «consiste na prestação de serviços de natureza logística e operacional que inclui o planeamento, o controlo, a coordenação e a direcção das operações relacionadas com a expedição, recepção, armazenamento e circulação de bens ou mercadorias,(…)».

II. Esta actividade engloba, assim, uma complexidade de actuações, as quais poderão passar não só pela realização de actos jurídicos, mas também, pela realização de operações materiais, sendo estas as de recebimento da mercadoria e a sua entrega aos transportadores, recepção, verificação e entrega da mercadoria ao seu destinatário, bem como a celebração dos contratos de seguro e cumprimento das formalidades administrativas e alfandegárias

III. As empresas transitárias respondem perante os clientes que consigo contratam, como se fossem elas próprias as transportadoras que tivessem incorrido em incumprimento, empresas estas por si contratadas para efectuarem o transporte, sem prejuízo do direito de regresso que poderão accionar, nos termos do artigo 15º, nº1 e 2 do supra enunciado DL.

Ou seja:

A. A actividade de transitária, engloba uma complexidade de actuações, as quais poderão passar não só pela realização de actos jurídicos de planeamento, contratação de terceiros, etc… mas também, pela realização de operações materiais, de entrega efectiva dos bens, através de transporte por si exercido ou através do recurso a terceiros. (vide ainda) Francisco Costeira da Costa, O Contrato De Transporte De Mercadorias, 2000, 77.

As operações acessórias ao contrato de trânsito, consistem em todos aqueles actos complementares da prestação principal e que garanta a entrega do bem em trânsito. “A título de exemplo são enunciadas as seguintes operações acessórias: “prospeção de mercado e posterior escolha de um transportador, celebração de contratos de seguro; celebração de contratos de depósito com terceiros, o depósito efetuado pelo próprio transportador, a grupagem da mercadoria, a receção da mercadoria no ponto de destino e colocação à disposição do destinatário, escolha de meios de transporte e rotas, coordenação e articulação de diferentes transportes, controlo da mercadoria, consolidação e desconsolidação, carregamento e descarregamento, estiva.” Cf. JOÃO VALBOM BAPTISTA,“O Contrato de Expedição”, cit., p. 285


B - O facto da Demandante ter assegurado pelos seus próprios meios, o transporte e entrega do bem em trânsito, não autonomiza esta operação como um contrato de transporte, não altera a qualidade, nem transforma a operação desenvolvida pela Demandante, numa actividade estranha à sua actividade de transitária, quando muito teremos um transitário-transportador. Neste sentido, para além da jurisprudência citada, JOÃO VALBOM BAPTISTA, “O Contrato de Expedição”, cit., p. 296, entre outros.

Portanto e como primeiras conclusões:

I – Quanto à questão de saber se as operações de transporte, carga e descarga de mercadorias estão ou não abrangidas pela actividade transitária, temos de forçosamente concluir que sim!

II – Quanto à definição do regime aplicável à situação vertente, temos de concluir que:

- Embora não expressamente qualificado na Lei, como tal, é opinião unânime da doutrina que os contratos de trânsito pertencem à categoria ampla de contratos de prestação de serviços e de resultado. (neste sentido Ferreira de Almeida, Contratos II, 164 e Menezes Cordeiro, manual de Dt.º Comercial, I, 527 ss.)

Ac STJ Procº 08B3946 de 5.03.2009 Prestação de serviços “(transitários), em que a transitária age por conta da expedidora, mas em nome próprio (ficando directamente obrigada com as pessoas com quem contrata, como se o negócio fosse seu…– artº 268º do C. Com.)- sendo-lhe aplicável o regime dos artigos 266º e seg.s do Código Comercial e 1154º, 1180° a 1184º do Código Civil ( artº 267º do C. Com.).

A Demandante, enquanto transitária, na sua actividade está vinculada ao regime do DL255/99, consolidado com as alterações introduzidas pela Lei 5/2013, no qual se dispõe que:

Artigo 13º - Intervenção no Comércio Jurídico

1. As empresas transitárias podem praticar todos os actos necessários ou convenientes à prestação de serviços, bem como assumir em nome próprio ou em nome do cliente ou do destinatário dos bens, toda e qualquer forma legítima de defesa dos interesses correspondentes.
2. De acordo com o disposto no número anterior, podem ainda celebrar contratos com terceiros em nome próprio, por conta do expedidor ou do dono da mercadoria, bem como receber em nome próprio ou por conta do seu cliente, as mercadorias que lhe são entregues pelo transportador e actuar como gestor de negócios.
3. A legitimidade da intervenção do transitário perante terceiros, entidades públicas ou privadas, aferir-se-á pelo título ou declaração que exiba.
4. Quando intervenha como gestor de negócios a empresa transitária será havida como dona dos bens ou mercadorias e responderá como tal perante terceiros.

De acordo com o


De acordo com o artigo 20.º das Condições Gerais da Prestação de Serviços pelas Empresas Transitárias (a fls. 195v) estas não constituirão lei de aplicação geral e imediata nem de aplicação automática a todos os contratos de serviços transitários. Serão meras cláusulas contratuais gerais, cuja aplicação tem que ser convencionada pelas partes, como decorre quer do art. 17.º do Decreto-Lei n.º 255/99, de 07/07. Não tendo sido junto aos autos qualquer versão escrita do contrato de trânsito celebrado pela Demandante, que nos permita aferir se foram convencionadas ou afastadas, só as citaremos por terem sido referidas e para delas retirar os conceitos que releva aqui fixar, nomeadamente os de “mercadorias, serviços de transitário, transitário e transportador”:

E aqui chegados, vejamos a responsabilidade que decorre deste tipo de contratos.

Responsabilidade do transitário-transportador: Como vimos, é possível que o transitário exerça funções de transportador, fenómeno que “animou” a doutrina na questão de saber se nas situações em que o transitário celebre um contrato de transporte e posteriormente venha a assumir funções de transportador de mercadorias deverá conservar a posição de transitário (ficando submetido ao regime de responsabilidade do transitário e do transportador) ou se pelo contrário passará a responder apenas nos termos do transportador. Julgamos que a assunção de funções de transportador de per si não pode constituir um obstáculo à imputação da responsabilidade do transitário pelo incumprimento das obrigações acessórias, sendo preferível a cumulação de regimes de responsabilidade, na medida em que exercem funções distintas – isto sem prejuízo de ser o mesmo “sujeito”. JOAO VALBOM afirma neste sentido que o transitário deverá responder nos termos do artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 255/99 pelo incumprimento das obrigações acessórias. Vide “A RESPONSABILIDADE CIVIL DO TRANSPORTADOR NO TRANSPORTE MULTIMODAL DE MERCADORIAS” - Mónica Marques da Silva Vitto – 2016

Voltemos ao regime específico destes contratos: o DL 255/99, consolidado com as alterações introduzidas pela Lei 5/2013:
Artigo 7º
Seguro Obrigatório
As empresas transitárias devem possuir um seguro destinado a garantir a responsabilidade civil por danos causados no exercício da actividade a clientes ou a terceiros, cujo montante não pode ser inferior a 20 milhões de escudos .

Artigo 15º
Responsabilidade das Empresas Transitárias
1. As empresas transitárias respondem perante o seu cliente pelo incumprimento das suas obrigações, bem como pelas obrigações contraídas por terceiros com quem hajam contratado, sem prejuízo do direito do direito de regresso.
2. À responsabilidade emergente dos contratos celebrados no âmbito deste diploma aplicam-se os limites estabelecidos, por lei ou convenção, para o transportador a quem seja confiada a execução material do transporte, salvo se outro limite for convencionado pelas partes.

Ora, parece líquido que as empresas transitárias respondem perante os clientes que consigo contratam, sem prejuízo do direito de regresso que poderão accionar. E, é precisamente neste pressuposto da responsabilidade que se compreende a obrigatoriedade de contratarem um seguro de responsabilidade civil, para exercerem a sua actividade. Ora, o contrato de seguro celebrado entre a Demandante e a Demandada opera nestas situações em que a empresa transitária, é chamada a assegurar os danos ocorridos durante os serviços por si prestados, ainda que esses serviços incluam o transporte por si garantido ou contratado com um terceiro. De resto, a obrigação da seguradora – quando titular de um seguro obrigatório, será – na dúvida – reparar os danos junto dos terceiros lesados e se considerar que os mesmos não devem ser por si cobertos, sempre poderão acionar elas mesmas, o direito de regresso contra o seu segurado e discutir nessa sede a questão de Direito que a que tão prontamente se limitou.

A Demandante, ainda que intervindo na qualidade de transitário-transportador, não está isenta da responsabilidade pelos danos que resultarem do incumprimento (ou risco pelo cumprimento) das obrigações acessórias - nos termos dos artigos 7 e 15.º do Decreto-Lei n.º 255/99

Não se percebe pois, como é que a Demandada formulou tão de imediato o raciocínio em que se fundamenta, já que este seguro obrigatório tem como objecto específico, a actividade de Operadora Transitária, sendo certo que – como se vê da vasta doutrina e jurisprudência - essa actividade abarca, em certas e determinadas situações, a sua responsabilidade directa perante os clientes, sendo precisamente para salvaguardar esta e outras situações que os seguros de responsabilidade civil mormente os obrigatórios, são acordados, pois se assim não fosse, ficariam os mesmos esvaziados de conteúdo e sem sentido a sua obrigatoriedade.

Por conseguinte
C - Quanto à questão de saber se as operações acessórias de transporte, carga e descarga de mercadorias devem estar ou não abrangidas pelo seguro de responsabilidade civil obrigatório para as empresas transitárias, a resposta tem de ser manifestamente afirmativa

D – Quanto à questão de saber se este sinistro em concreto está abrangido pela concreta apólice celebrada entre as partes.

18. Vejamos então a Apólice 11017845 a fls. 112 (versão junta aos autos pela própria Demandada:

Foi contratada em 28.04.2015 – fls. 120-122 e 93 tendo como objecto o risco de empresa transitária.

Âmbito territorial – “Instalações do segurado e diversos” (fls. 120) e “Portugal” – fls. 108, 149

Inicio do contrato : Na Cláusula 6 das Condições Gerais:“a cobertura das garantias inicia-se no momento em que os objectos seguros são carregados no meio de transporte e termina com a entrega dois mesmos ao destinatário.

Direitos e deveres da Seguradora: Cláusula 11ª - 1.2 – “Em caso de sinistro, a Victoria obriga-se a proceder com diligência e prontidão a todas as averiguações e peritagens indispensáveis para a correcta regularização dos sinistros e avaliação dos danos.”

Para além das condições contratadas, a apólice está sujeita ao regime da Norma Regulamentar 2/2007 (Regulamento 26/2007) do Instituto de Seguros de Portugal, com a redacção que lhe foi dada pela Norma Regulamentar n.º 6/2009-R – publicada no Diário da República, 2.ª série — N.º 88 — 7 de Maio de 2009. Esse Regulamento no seu preâmbulo estabelece o seguinte:

Considerando que o artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 255/99, de 7 de Julho, circunscreve a obrigatoriedade de celebração de um contrato de seguro por parte das empresas transitárias, em montante não inferior a Euro 99 759,58, tendo exclusivamente por fim a protecção dos interesses de clientes ou terceiros em matéria de responsabilidade civil por eventuais danos causados pelo transitário no exercício da sua actividade;

2 - O contrato de seguro de responsabilidade civil a que se refere o artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 255/99, de 7 de Julho, tem por objecto, quanto ao âmbito abaixo definido, a garantia da responsabilidade civil emergente da actividade do segurado, na sua qualidade de empresa transitária, por actos ou omissões dos seus representantes ou das pessoas ao seu serviço.

3 - O contrato de seguro deve garantir os danos causados a bens ou mercadorias de clientes ou terceiros quando em armazém e ou objecto de manuseamento nas instalações da empresa transitária, quando imputáveis a esta ou a pessoa por quem esta seja civilmente responsável.

4 - O contrato de seguro cobrirá os danos causados por sinistros ocorridos durante a vigência da apólice desde que reclamados até 10 meses a contar da data da conclusão da prestação de serviço contratada.”

Alega a Demandada que nos termos do artº 9 daquele Regulamento 26/2007 “O contrato de seguro não cobre a responsabilidade decorrente da actividade do segurado quando este actue como transportador público rodoviário de mercadorias”.

Primeiro importará saber de que falamos, quando falamos de “Transportador público rodoviário de mercadorias”. Vejamos o preâmbulo do DL 257/2007- Diário da República, 1.ª série — N.º 135 — 16 de Julho de 2007 na redacção dada pelo DL 136/2009 de 05.06:

“Considerando que se tem verificado uma tendência de crescimento de empresas que, com recurso exclusivo a veículos ligeiros de mercadorias, efectuam transportes públicos ou por conta de outrem, sem que tenham de se sujeitar a quaisquer condições de acesso à actividade ou de mercado, o que subverte as condições de concorrência, mostra-se aconselhável que estes transportes sejam submetidos a regras idênticas às aplicáveis aos restantes transportes já submetidos a licenciamento. Ficam, no entanto, excluídos deste regime os transportes efectuados em veículos de mercadorias de peso bruto inferior a 2500 kg, pela irrelevância da sua capacidade de carga.”

E assim definido o “transportador público rodoviário de mercadorias” a que se refere o tal artº 9 do Regulamento 26/2007, na senda do que já vinha sendo o espírito do sistema, no DL que revogou (DL 43/83):

“b) «Transporte por conta de outrem ou público» o transporte de mercadorias realizado mediante contrato, que não se enquadre nas condições definidas na alínea seguinte;

c) «Transporte por conta própria ou particular» o transporte realizado por pessoas singulares ou colectivas em que se verifiquem cumulativamente as seguintes condições:

i) As mercadorias transportadas sejam da sua propriedade, ou tenham sido vendidas, compradas, dadas ou tomadas de aluguer, produzidas, extraídas, transformadas ou reparadas pela entidade que realiza o transporte e que este constitua uma actividade acessória no conjunto das suas actividades;

ii) Os veículos utilizados sejam da sua propriedade, objecto de contrato de locação financeira ou alugados em regime de aluguer sem condutor;

iii) Os veículos sejam, em qualquer caso, conduzidos pelo proprietário ou locatário ou por pessoal ao seu serviço. “

Ora, tal como a Demandada reconhece a fls. 192-193 das suas doutas alegações - foi intenção EXPRESSA do legislador (no nº 3 do artº 41 do DL 257/2007) afastar da classificação de transportador público aqueles que realizem o transporte de mercadorias como acessório à sua actividade, utilizando os seus próprios veículos (ligeiros de mercadorias), conduzidos por si ou pelos seus funcionários. Intenção essa que não se compreende como é que não lhe há-de ser aplicável, se o DL 257/2007 continua em vigor (alterado) e, como qualquer lei, rege para futuro! – artº 12 do CC.

O que manifestamente resulta excluída, é a Demandante e este sinistro, do âmbito do “Transportador público rodoviário de mercadorias”, como pretende a Demandada.

Outro argumento que não se compreende, é o que refere deter a Demandante, 2 alvarás e um deles ser de transportadora, daí retirando a Demandada a imediata confirmação da sua actuação como transportadora neste contrato. Não podemos concordar com essa sua conclusão, por tudo o que foi dito e que aqui resumidamente reiteramos: “O facto da Demandante ter assegurado pelos seus próprios meios, o transporte e entrega do bem em trânsito, não autonomiza esta operação como um contrato de transporte, não altera a qualidade, nem transforma a operação desenvolvida pela Demandante, numa actividade estranha à sua actividade qualidade de transitária, quando muito teremos um transitário-transportador. “Neste sentido, para além da jurisprudência citada, JOÃO VALBOM BAPTISTA, “O Contrato de Expedição”, cit., p. 296, entre outros.

Portanto e retomando a questão que a própria Demandada considera central:
“O sinistro em causa, está ou não, coberto pela apólice nº 11017845 junto da Demandada?
Temos por certo que sim, porque:
a) Das condições gerais e particulares do Contrato de Seguro celebrado com a Demandante resulta que este contrato abrange o risco da actividade transitária da Demandante, tal como está definida no seu objecto social, no art.º 1° do DL 255/99 de 7 de Julho e no Regulamento acima citado;
b) Essa cobertura – de acordo com a cláusula 6ª das Condições Gerais - inicia-se no momento em que os objectos seguros são carregados no meio de transporte e termina com a entrega dos mesmos ao destinatário. Logo aqui, a dita apólice assume que a transitária possa não se limitar apenas a “pôr em trânsito”, mas também a transportar!

c) Obviamente que sendo este o amplexo a coberto da apólice, nunca a mesma se poderia cingir ao “manuseamento dentro das instalações” como defende também a Demandada.

d) A alia do risco da actividade do transitário é apanágio do exercício multifuncional desenvolvido pelas empresas dessa actividade e a obrigatoriedade de a segurar que a Lei lhe impõe, só pode ter por intenção garantir que aqueles que a exerçam, tenham a capacidade de responder efectivamente pelos danos decorrentes de eventuais sinistros que ocorram desde o momento em que os objectos seguros são carregados no meio de transporte até à efectiva entrega dos mesmos ao destinatário, quer por transporte de terceiro, quer pelos seus próprios meios.

e) A circunstância da Demandante deter também alvará de transportadora, só nos confirma que – estando habilitada para esse tipo de serviço acessório – não violou qualquer cláusula de exclusão que a impedisse de concretizar em segurança e sem violar a dita apólice;

f) Apesar de não terem sido requeridos ou juntos, por nenhuma das partes, o contrato de trânsito ou a guia do transporte, este Tribunal também disso não fez questão por - não só resultar do objecto da Demandante a actividade transitária, como actividade principal, como nada impedir que esse contrato tenha sido informal, tendo em conta a relação comercial duradoura que a Demandante demonstrou ter com a sua Cliente.
g) É pacífico na doutrina e jurisprudência que essa actividade transitária compreende actos de organização logística, bem como acessoriamente, actos de execução material como os de carga, descarga e entrega das mercadorias ao seu destinatário, sem que a Demandante se transforme em “transportador público rodoviário de mercadorias”.
h) Nos termos do n.º2 do art.º1 do D.L.255/99 de 7/07 o âmbito da atividade de transitário não envolve o transporte público de mercadorias mas também não está impedido de o fazer.
i) O serviço da Demandante enquanto transitária é juridicamente qualificado como um comissário do transporte e a sua responsabilidade é alargada, respondendo nos termos do artº 7 e 15 do DL 255/99, pelos seus atos pessoais, como pelas pessoas de que se sirva para o cumprimento da sua obrigação a quem incumba a efetivação material do transporte.
j) A Demandante, um ano após o sinistro, celebrou apólice de seguro voluntário “multirriscos empresarial “ que tem como objecto o recheio das instalações e outras coberturas com elas associadas. (fls. 170-173), que em nada se confundem ou colidem com a apólice aqui em causa e mesmo que colidisse, não existia à data do sinistro, não podendo ser accionada.

Acresce ainda referir que a Demandada, em franca violação da Cláusula 11 da apólice contratada, incumpriu as suas obrigações legais e contratuais de diligência e cuidado, optando por decretar uma exclusão sumária, sem efectuar qualquer tipo de averiguação, apesar de lhe ter sido solicitada,.

Ora, o regime legal do Direito Comum previsto no Código Civil, estabelece no seu artº 342º que “àquele que invocar um direito, cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”
Se a parte contrária, a quem cabe fazer a contraprova, conseguir torna-los duvidosos, a questão decide-se contra a parte onerada com o dever de provar – artº 346 do CC.
A Demandante alegou e logrou demonstrar ter celebrado um contrato de trânsito, que na sua base, é um contrato de prestação de serviços regulado especialmente nos termos do DL 255/99 e genericamente, pelos art.º 1154 e sgs do C.C., o qual pode ser celebrado por escrito ou verbalmente.” (Ferreira de Almeida, in Contratos II, 164 e também Menezes Cordeiro, in Manual de Dt.º Comercial, I, 527 e sgs).

Por sua vez, a Demandada não impugnou as circunstâncias concretas que rodearam o contrato, o sinistro, nem a dinâmica do mesmo, nem orçamento para reparação dos danos, nem a empresa que efectuou essas reparações, nem mesmo a factura que veio a titular os direitos peticionados pela Demandante, cumprindo-lhe esse ónus, não só no processo de averiguações que deveria ter aberto e instruído, como no desenrolar da sua defesa neste processo – artº 346º do CC e artº 574º nº 1 e 3 do CPC + cláusula 6º e 11ª da apólice

DA RESPONSABILIDADE CONCRETA
A própria obrigação de indemnizar exige que se verifiquem os respectivos pressupostos, ou seja, a autonomização de um facto (culposo), a imputação desse facto a um agente, a culpa deste, o dano e nexo de causalidade adequada à produção do dano. Estes pressupostos são cumulativos e sequenciais, o que significa que, a falta de um deles obsta à procedência do pedido de condenação das demandadas na obrigação de indemnizar (aqui entendida como compensação, reembolso).
Nos termos gerais (cfr., artigos 342.º, e 483.º, ambos do CC), incumbe ao lesado provar os factos essenciais constitutivos dos referidos pressupostos da responsabilidade civil, designadamente, que o facto aconteceu e foi culposo.

A questão seguinte, a decidir por este tribunal, prende-se com apurar se existe ou não obrigação de indemnização (artigo 562º e segs. do mesmo diploma legal), por parte da Demandada enquanto seguradora do alegado responsável pelo acidente.
O artigo 483º do Código Civil estabelece o princípio geral da responsabilidade civil extracontratual.
Deste preceito legal pode concluir-se que a responsabilidade civil depende da verificação cumulativa de cinco requisitos: o facto, a ilicitude, a culpa, os danos e o nexo de causalidade entre o facto ilícito e estes últimos. No caso, o facto é o sinistro, a ilicitude decorre da violação do direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios; o dano é o prejuízo causado ao património do titular desse direito: custos materiais; a imputabilidade do agente (a capacidade de entender e querer o sentido da sua actuação), que é aferida com recurso ao estabelecido no art. 488º do C.C. - a culpa (dolo ou negligência): Pode definir-se como juízo de censura ou reprovação que o Direito tem para com o lesante por ter este agido ilicitamente, quando podia e devia ter agido com observância formal e material do preceituado na norma. A culpa ser apreciada em abstracto, no sentido em que o padrão normativo (art. 487º nº 1 do C.C.) não é a diligência habitual do agente lesante, mas a conduta de uma pessoa diligente, se colocada nas circunstâncias precisas em que actuou o lesante; o nexo de causalidade entre o facto e o dano (sendo que apenas são indemnizáveis os danos provocados pela acção ou omissão do agente).
Ocorrendo a violação das normas de perigo abstracto, tendentes a proteger determinados interesses alheios, estão automaticamente preenchidos os pressupostos da ilicitude e da culpa, uma vez que resultam da caracterização do acto praticado. Estamos perante um acto ilícito porque praticado com violação da lei destinada a proteger interesses alheios, e perante um acto culposo porque, seria exigível ao agente que tivesse actuado em conformidade com os comandos da norma violada.
Estamos ainda perante um tipo de responsabilidade civil objectiva ou pelo risco, que “emerge de danos provocados independentemente de culpa”, e que visa “a eliminação de danos estranhos à ideia de violação de normas jurídicas(Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 1980, 2º, ps. 271 e 272), pelo que a obrigação de indemnizar “nasce do risco próprio de certas actividades e integra-se nelas, independentemente de dolo ou culpa(Pires de Lima e Antunes Varela, C.C. Anotado, 2ª Ed., 1º, p. 439).

Resultou provado - desde logo por ter sido alegado, não especificamente impugnado e suficientemente demonstrado pelos doc.s 9 e 10 do R.I. bem como pelas declarações de parte não impugnadas - que a Demandante suportou – através de operação de débito em conta-corrente com o lesado - o pagamento das despesas de reparação e de transporte adicional que lhe foram facturadas pela lesada, nos termos do artº 15º do DL 255/99 de 7.7.
O mesmo artº 15º nº 1 in fine, prevê a possibilidade da Demandante exercer o seu direito de regresso sobre a seguradora para quem transmitiu a responsabilidade pelos riscos próprios da sua actividade transitária.
Confirmados que estão os pressupostos da obrigação de indemnizar que levaram a Demandante a assumir os prejuízos materiais decorrentes do sinistro ocorrido no desenrolar da sua actividade principal e estando a responsabilidade pelos seus riscos próprios, transmitida, por contrato de seguro obrigatório, para a Demandada, está a seguradora (com ela vinculada), obrigada restituir o valor por esta assumido, reconstituindo ela mesma, a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obrigou à reparação e – se a seguradora tivesse – como é sua obrigação contratual – Cláusula 11 1.2, 1.3 da apólice - diligenciado prontamente por todas as diligências necessárias à resolução imediata e directa dos danos deste sinistro. Não o tendo feito, não resulta por isso desonerado de o fazer, devendo essa reconstituição repor a situação patrimonial que a Demandante teria, se não tivesse sido obrigada a suportar por si os danos cuja responsabilidade contratou transferir para a Demandada. (art.º 562 e 566 ambos do C.C.). Por sua vez, a Demandada não logrou demonstrar que o incumprimento das suas obrigações contratuais, não procederam de culpa sua.
Foram violadas as normas dos arts. 7º e 15º do DL 255/99, o artº 483º, 798º, 799º e 562º do CC, bem como a cláusula 11ª da apólice por si mesma junta aos autos a fls. 102.

A Demandante, para além do direito de regresso que detém, relativamente ao valor que pagou a título de indemnização ao lesado, requer juros vencidos e vincendos desde a data da citação.
A cláusula 11, 1.4 estabelece que o incumprimento dos deveres e obrigações da Demandada importa a sua constituição em mora. Conforme resulta do artigo 805.º, n.º 1 do Código Civil o devedor fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para pagar.

DECISÃO
Em face de tudo quanto vem exposto:
Julgo a presente acção totalmente procedente por provada, e consequentemente condeno a Demandada V a restituir à Demandante P, a quantia por esta suportada a título de indemnização por danos patrimoniais causados na caixa ATM 60063, decorrentes do sinistro de 9.07.2018, no Funchal, no valor de € 3 732,20 (três mil setecentos e trinta e dois euros e vinte cêntimos) acrescido de juros vencidos desde a data da citação (08.01.2020) e vincendos até integral pagamento.

As custas serão suportadas integralmente pela Demandada, por ter sido julgada parte vencida no presente processo. (Portaria 342/2019 de 1 de Outubro).
A Demandada já pagou € 35,00 aquando da apresentação da contestação.
Emita DUC no valor de € 35,00 em nome da Demandada e anexe-o à notificação desta sentença com as advertências legais quanto ao prazo e cominações legais para o atraso e falta de pagamento (prazo de 3 dias úteis, a contar da notificação desta sentença, sob pena de uma sobretaxa diária de € 10,00 (dez euros) por cada dia de atraso).

Findo o prazo legal de pagamento sem que se mostre efectuado, calcule a sobretaxa e extraia certidão para execução fiscal pelo Serviço de Finanças competente.

Devolva ao Demandante o valor da taxa de justiça por si paga.

Advirta as partes de que apesar da suspensão dos prazos ditada pela Lei 4-B/2021 de 1.02, nada obsta
a que seja proferida decisão final nos processos e procedimentos em relação aos quais o tribunal e demais entidades referidas no n.º 1 entendam não ser necessária a realização de novas diligências, caso em que não se suspendem os prazos para interposição de recurso, arguição de nulidades ou requerimento da retificação ou reforma da decisão.” – artº 6º B nº 5 d)
Sendo que não se consideram suspensos os prazos de recurso, as custas, nesta jurisdição são fixadas na decisão que põe fim ao processo. (Portaria 342/2019 de 1.10).

Face às restrições de segurança e de prevenção de contágio previstas para os Tribunais e secundando as recomendações do próprio Conselho dos Julgados de Paz, não se procedeu à audiência para leitura da sentença, optando por remeter a mesma via postal, conforme oportunamente comunicado ao Demandante e Ilustre mandatária, no termo da audiência de julgamento.

Registe e notifique.
Após trânsito, arquivem-se os autos.
Julgado de Paz, 08 de Fevereiro de 2021
A Juiz de Paz,

(Daniela Cerqueira)