Sentença de Julgado de Paz
Processo: 754/2004-JP
Relator: PAULA PORTUGAL
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL - POR DANO DE CANÍDEO - DIREITOS DE PERSONALIDADE
Data da sentença: 04/28/2005
Julgado de Paz de : VILA NOVA DE GAIA
Decisão Texto Integral: SentençA


I – Identificação Das Partes
Demandantes: A e B, residentes na Rua ..........., Vila Nova de Gaia;
Demandados: C e D, com residência na Rua ..... Vila Nova de Gaia.

II – Objecto Do Litígio
Os Demandantes vieram propor contra os Demandados, a presente acção declarativa enquadrada na alínea h) do n.º 1 do Art.º 9º da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho, pedindo a condenação destes a levar a cabo as diligências necessárias de forma a evitar que o canídeo faça barulho durante a noite e urine por cima de quem passa no acesso à habitação daqueles e a respeitarem o período de descanso consagrado legalmente, durante o qual não se pode fazer barulho; a ter cuidado na forma como lavam a varanda e as escadas tendo como referência o zelo que um “homem médio” emprega; a pagar uma indemnização por danos não patrimoniais sofridos durante todos estes anos no montante de € 1.000,00; e ainda a suportar as custas da presente acção.

Para tanto alegam, em síntese, que desde há cerca de 32 anos que são vizinhos dos Demandados em casas geminadas em que existe uma parte que é comum aos imóveis; que desde há alguns anos que se têm deparado com enormes problemas causados pelos Demandados, que constituindo uma clara violação dos seus direitos, nomeadamente o do descanso, lhes têm causado enormes transtornos ao nível da sua saúde e bem-estar, como por exemplo os ruídos perpetrados pelos Demandados a horas de descanso e ainda os do cadeado do canídeo que durante a noite se ouve de forma estridente a arrastar de um lado para o outro, o que origina a que não consigam dormir, estando neste momento a Demandante mulher a tomar calmantes dado o seu estado de tensão, cansaço físico e psicológico; que já por duas vezes o canídeo dos Demandados urinou para cima desta, a última das quais em 20.11.04, na altura em que passava por baixo da varanda onde aquele se encontra e que é precisamente local de acesso à sua habitação, tendo sido grande a sua humilhação e repugnância; que a varanda e as escadas são lavadas de forma descuidada e despropositada no emprego da água e detergentes, dada a quantidade e a forma de serem lançados o que já levou a que roupa ficasse danificada por causa de lixívia; que no dia 8 de Dezembro de 2004, viram que o parapeito da janela do quarto estava todo salpicado de uma substância escura parecida com tinta, tendo na data chamado a GNR de Canidelo que tomou conta da ocorrência; que os Demandados insistem em perturbar a rotina diária dos Demandantes que são pessoas pacíficas, respeitadas e respeitadoras; que apesar de interpelados a alterar estas situações, os Demandados persistem nestes comportamentos que deterioram e prejudicam a qualidade de vida dos Demandantes, furtando-se ao diálogo e à tentativa de resolução voluntária dos problemas, como comprova o não recebimento da carta registada com aviso de recepção que lhes foi enviada.
Juntaram documentos.

Os Demandados devidamente citados, apresentaram Contestação, onde alegam, em síntese, que vivem naquele local há pelo menos 39 anos; que sempre tiveram em sua casa um canídeo; que já passaram pela casa dos Demandantes diversos inquilinos; que nunca tiveram problemas com qualquer vizinho; que o canídeo não está e nunca esteve acorrentado, estando sempre dentro de casa e aí dormindo, saindo apenas para satisfazer as suas necessidades acompanhado por um dos Demandados; que se o canídeo fizesse ruído os primeiros atingidos seriam os Demandados, uma vez que durante a noite dorme no quarto destes; que fazem a lavagem da varanda normalmente em horas que não prejudiquem qualquer vizinho; que a roupa dos Demandantes é estendida nas traseiras da casa; que envernizaram os parapeitos das janelas em madeira, admitindo que tenha caído alguma pinga de verniz mas que não prejudicaram os Demandantes; que contestam o valor da indemnização e que os Demandantes sempre se lhes dirigiram com provocações impróprias e até ameaças de morte.
Realizadas duas sessões de Mediação não lograram as partes chegar a Acordo.

O Julgado de Paz é competente em razão da matéria, do território e do valor.
O processo não enferma nulidades que o invalidem totalmente.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias.
Não há excepções ou nulidades que obstam ao conhecimento do mérito da causa.

Procedeu-se ao Julgamento com observância das legalidades formais como da acta se infere.

Cumpre apreciar e decidir.

III – Fundamentação
Da prova carreada para os autos, resultaram provados os seguintes factos:
a) Desde há cerca de 32 anos Demandantes e Demandados são vizinhos, respectivamente no Rés-do-Chão e 1º Andar de uma casa de dois pisos, em que existe uma parte que é comum aos imóveis;
b) Pelo menos uma vez o canídeo dos Demandados urinou para cima da Demandante na altura em que esta passava por baixo da varanda onde aquele se encontra e que é precisamente local de acesso à sua habitação, tendo sido grande a sua humilhação e repugnância;
c) O supra referido cão que é um rafeiro de pequeno porte ladrava e uivava durante a noite, tendo no entanto, de há uns tempos para cá, deixado de ser ouvido;
d) Os Demandados atiram baldes de água para lavagem das escadas e varanda atingindo quem por ali circula.

Não ficou provado que:
I. Os Demandados têm vindo a perpetrar a ruídos a horas de descanso juntamente com os do cadeado do canídeo que durante a noite se ouve de forma estridente a arrastar de um lado para o outro, o que origina a que não consigam dormir, estando neste momento a Demandante mulher a tomar calmantes dado o seu estado de tensão, cansaço físico e psicológico;
II. A lavagem das escadas e varanda já levou a que roupa dos Demandantes ficasse danificada por causa de lixívia.

Motivação dos factos provados:
O facto acima descrito na alínea A) considerou-se admitido por acordo – n.º 2 do
art.º 490º do C .P. Civil.
Para a prova dos factos B), C) e D) tiveram-se em conta os depoimentos das testemunhas. E, vizinho das partes que declarou estar presente numa altura em que a urina do cão terá caído na cara da Demandante; que é habitual a Demandada atirar baldes de água para lavar as escadas; que o cão ladra de noite, embora tenha vindo a melhorar.
F, mora perto das partes, frequentando o café que se situa em frente à casa das mesmas, tendo assistido numa altura em que o cão lhe urinou na cabeça.
G, filha dos Demandantes, referiu ter assistido a uma das vezes em que o cão urinou por cima da sua mãe; que dormiu algumas vezes em casa dos pais, ouvindo-se o arrastar do cadeado do cão pelo soalho e pela tijoleira; que a Demandada atira baldes de água para lavar as escadas, molhando quem está em baixo.
H, vizinha das partes, referiu ter assistido ao cão a urinar atingindo a cabeça da Demandante; que a Demandada atira baldes de água que molham inclusivamente os vidros da sua casa; que o cão ladrava e uivava durante a noite, tendo deixado de o ouvir por completo.
I, genro dos Demandantes, referiu ter dormido em casa destes algumas vezes nas férias e que ouvia o barulho do cadeado do cão em cima; que o cão fazia barulhos muito incomodativos; que a Demandada atira baldes de água; que esta situação tem afectado profundamente a Demandante.

Motivação da matéria de facto não provada:
Resultou da ausência de mobilização probatória credível, que permitisse ao Tribunal aferir da veracidade dos factos, após a análise de todos os documentos juntos pelas partes e da inquirição de todas as testemunhas arroladas.
Estes os factos.

IV – Do Direito
Quanto ao cão…
O art.º 1.º do Decreto n.º 13/93 em consonância com a al. a) do art.º 2º do Decreto-Lei n.º 276/2001, de 17 de Outubro, define como animal de companhia “qualquer animal possuído ou destinado a ser possuído pelo homem, designadamente em sua casa, para seu entretenimento e enquanto companhia”. No mesmo sentido, o art.º 8º da Lei n.º 92/95, de 12.09, considera animal de companhia “qualquer animal detido ou destinado a ser detido pelo homem, designadamente no seu lar, para seu prazer e como companhia”.

Por outro lado,
Dispõe o art.º 502º do C. Civil que “Quem no seu próprio interesse utilizar quaisquer animais responde pelos danos que eles causarem, desde que os danos resultem do perigo especial que envolve a sua utilização.” Sendo certo que a palavra “utilização” usada neste artigo não significa apenas obtenção do proveito imediato, mas também potencial que pode ser material ou meramente recreativo.
No caso vertente, provou-se que o cão que os Demandados detém na sua habitação sita no 1º andar se encontra por vezes na varanda exterior que se situa logo em cima do pátio que dá acesso à entrada da habitação dos Demandantes situada no rés-do-chão, tendo já, pelo menos uma vez, a sua urina atingido a Demandante que se encontrava por baixo no acesso à sua fracção, o que foi presenciado por vizinhos e familiares e que lhe causou sentimentos de repugnância, indignação e humilhação e ainda que o mesmo é causador de barulhos sobretudo durante a noite, em consequência do seu latir, não obstante terem as testemunhas referido que tal situação se tem vindo a ultrapassar.

Há assim ofensa aos direitos de personalidade que o art.º 70º do Código Civil visa proteger, pois a presença do cão afecta o direito que os habitantes do prédio em causa têm enquanto permanecem em casa, ao repouso, à saúde e a um ambiente sadio Neste sentido, Acórdão da R.L.,de 26.06.2001, publicado in C.J., III, p. 124..

Ora, as normas que proíbem qualquer actividade que lese interesses alheios, se violadas, geram ilicitude e se verificados os demais requisitos do art.º 483º, n.º 1, do Código Civil geram o dever de indemnizar que compreende danos patrimoniais e não patrimoniais.

Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito: art.º 496º, n.º 1 do C. Civil, quer isto dizer que não são quaisquer incómodos que justificam uma indemnização (por danos morais).

Ora, no caso vertente, o facto de a urina do cão que os Demandados detém na sua fracção ter atingido pelo menos uma vez a Demandante na cabeça, causou nesta sentimentos de repugnância, indignação e humilhação, que constituem danos merecedores da tutela do Direito. Convenhamos que não é de todo agradável estarmos no local de acesso à porta da nossa casa e sentirmos a escorrer pela cabeça abaixo urina do cão que se encontra na varanda de cima, sendo tal situação susceptível de causar irritação, apreensão e receio de cada vez que se tem que sair ou entrar por aquela porta.
Quanto aos barulhos causados pelo ladrar e uivar do cão e pelo arrastar do cadeado, referiram as testemunhas que os mesmos já cessaram, pelo que a problemática parece estar assim ultrapassada, sendo certo tratar-se de uma casa com muitos anos de construção e como tal com deficiente insonorização e que a Demandante não logrou provar que o seu estado de ansiedade e depressão atestado pelo seu médico se deve a tais barulhos, não obstante ser inquestionável que uma pessoa que sofra de uma patologia deste tipo possa ver piorado o seu estado perante tal ocorrência.
Os cidadãos têm direito a viver num ambiente sadio, livre de ruídos, cheiros e quaisquer circunstâncias que afectem a sua qualidade de vida, o seu repouso, sossego assim como a viver com higiene e tranquilidade.
E se o valor formulado pelos Demandantes - € 1.000 – se apresenta manifestamente exagerado, a indemnização a atribuir deve ser de um valor que por um lado compense os Demandantes, mormente a Demandante que foi atingida pela urina do sofrimento em causa e, por outro lado, recrimine a actuação dos Demandados.
Assim, condena-se os Demandados a pagar aos Demandantes a quantia de € 200,00.

Por outro lado, ambas as partes são arrendatárias de habitações contíguas, os Demandantes no Rés-do-Chão e os Demandados no 1º andar ao qual têm acesso por meio de escadas. Ora os Demandados ao procederem à lavagem das escadas ou mesmo da varanda devem proceder com a diligência necessária de forma que as pessoas que circulem em baixo não sejam afectados por salpicos de água e/ou detergentes. Tal decorre dos limites impostos pelo direito de propriedade mas também das regras da boa convivência social, mormente tratando-se de relações de vizinhança, sendo certo que tal comportamento não resulta da “utilização normal do prédio de que emanam”.
Não nos esqueçamos que a liberdade de cada um acaba quando começa a liberdade dos outros...

V – Decisão
Face a quanto antecede, julgo parcialmente procedente a presente acção, e, por consequência, condeno os Demandados a:
a) levar a cabo as diligências necessárias de forma a que o cão não faça barulho durante a noite nem urine na varanda com o consequente risco de atingir alguém que se encontre em baixo;
b) ter cuidado na forma como lavam a varanda e as escadas, de forma a não serem atingidas as pessoas que por ali circulem ou afectados outros bens que ali se possam encontrar;
c) a pagar aos Demandantes uma indemnização por danos não patrimoniais no montante de € 200,00.
Custas na proporção de 1/3 a suportar pelos Demandantes e 2/3 pelos Demandados. Cumpra-se o disposto nos artigos 8º e 9º da Portaria n.º 1456/2001 de 28 de Dezembro.

Registe. Notifique.

Vila Nova de Gaia, 28 de Abril de 2005
A Juiz de Paz
(Paula Portugal)