Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | MARIA DO ROSÁRIO SILVA MARTINS | ||
Descritores: | HOMICÍDIO QUALIFICADO DESCOBERTA DA VERDADE MATERIAL OMISSÃO DE DILIGÊNCIAS ESSENCIAIS | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 05/19/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
Sumário: | I-A procura da verdade material, tendo em vista a realização da justiça, constitui o fim último do processo penal. A lei atribui ao tribunal o poder dever de ordenar, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova que entenda necessários à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, o que constitui a consagração, no nosso sistema, do princípio da investigação ou da oficialidade; II-O C.P.P. estabelece no artigo 340.º os princípios gerais em matéria de produção de prova na audiência, encontrando-se vários outros critérios de admissibilidade de prova dispersos noutros preceitos do mesmo diploma, com recurso a expressões como, entre outras, essencial, indispensável, necessário, previsivelmente necessário, absolutamente necessário, útil. Discute-se, por vezes, se o poder conferido pelo artigo 340.º do C.P.P. é um poder discricionário ou, pelo contrário, é sindicável, questionando-se se é recorrível a decisão de indeferimento de um requerimento de prova apresentado, na fase de julgamento, ao abrigo do preceituado no artigo 340.º do C.P.P.: II- O exercício do poder de apreciação do condicionalismo legal inscrito no n.º1 do artigo 340º do Código de Processo Penal, isto é, o juízo de necessidade ou desnecessidade da diligência de prova requerida parece insindicável por via de recurso directo: a omissão de diligências que possam reputar-se essenciais para a descoberta da verdade acarreta, antes, uma nulidade relativa (sanável) prevista no artigo 120.º, n.º2, alínea d), do CPP, a arguir antes que o acto esteja terminado” (art. 120.º, n.º3, al. a), que servirá de eventual fundamento de recurso (cfr. art. 410.º, n.º3 do CPP). Contudo, se o poder conferido pela norma do n.º 1 do artigo 340.º for actuado, em sentido negativo ou positivo, fora do condicionalismo legal, isolando outro para fundamentar a decisão respectiva, então aí, na medida em que há violação da lei, a opção tomada pelo tribunal é já susceptível de recurso; III- A violação do art. 340.º, n.º 1 do C. Processo Penal e por via dela, a violação do princípio da investigação, na sequência do indeferimento da renovação de prova pericial, só pode originar uma nulidade sanável, a enquadrar na alínea d), do n.º 2, do art. 120.º do C. Processo Penal, e sujeita ao regime de arguição previsto no n.º 3 do mesmo artigo. Tendo o arguido e o seu advogado/defensor estado presentes na audiência de julgamento em que foi proferida a decisão e não tendo reagido até ao termo da mesma arguindo o vício, nem tendo recorrido atempadamente da decisão, sanou-se o vício o que, juntamente com o caso julgado formal entretanto verificado, impede que no recurso interposto do acórdão condenatório se conheça do acerto do ali decidido. Assim o indeferimento de requerimento de produção de meios de prova apresentado em audiência, se essenciais para a descoberta da verdade, faz incorrer na nulidade prevista no artigo 120.º, n.º2, al. d), do C.P.P., a arguir no prazo legal, não sendo susceptível de recurso directo; IV-Existem assim duas situações distintas: -O indeferimento de diligência de prova requerida em audiência pelo recorrente nos termos do artigo 340º do C.P.P. – a audição de um indivíduo presente no local, e a omissão de diligências probatórias que o recorrente entende serem essenciais para a descoberta da verdade que não foram por si requeridas em audiência de julgamento, como seja “in casu” a reinquirição da testemunha AA e a solicitação das imagens transmitidas na CMTV e o seu visionamento. Quanto à primeira situação não tendo o recorrente interposto recurso no prazo legal do despacho de indeferimento, conformou-se com a decisão em causa, que entretanto transitou em julgado, não podendo o Tribunal Superior sindicar o indeferimento da diligência requerida. Na segunda situação, estamos perante uma nulidade sanável nos termos previstos no artigo 120º, n.º 2, al. d) do C.P.P. (no caso de se entender que as diligências omitidas seriam essenciais para a descoberta da verdade) e que não tendo sido arguida pelo recorrente até ao final da audiência de julgamento nos termos do artigo 120.º, n.º3, alínea a) do C.P.P., vindo a fazê-lo apenas perante o tribunal superior, se terá de considerar a mesma e a ter efectivamente ocorrido, como sanada. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordaram, em conferência, os Juízes Desembargadores da 9ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa: I- RELATÓRIO I.1. Por acórdão proferido em 01.02.2022 o arguido AA foi condenado pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, alíneas c) e d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, por referência aos artigos 2.º, n.º 1, alíneas p), v), aad), e n.º 3, alínea a), 3.º, n.º 1, alínea l), e 4.º, n.º 1, do mesmo diploma e aos artigos 10.º, n.º 1, 14.º, n.º 1, 26.º, 30.º, n.º 1, e 77.º do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão, de um crime de coacção, p. e p. pelo artigo 154.º, n.º 1, do Código Penal, agravado nos termos do disposto nos artigos 131.º e 155.º, n.º 1, alínea a), do citado diploma, na pena de 14 meses de prisão, um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.º 1 e n.º 2, alíneas e) e j), do Código Penal, na pena de 18 anos de prisão e de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 145º nº1 al. a) e nº2 do C. Penal, por referência ao art. 132.º, n.º 1 e n.º 2, alínea e), do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, tendo sido fixada a pena única de 23 (vinte e três) anos de prisão. * I.2. Recurso da decisão O arguido AA interpôs recurso da sentença, apresentando as seguintes conclusões (transcrição integral): “2. Salvo o devido respeito e melhor opinião, pensamos que as Meritíssimas Juízes do Tribunal "a quo", no seu Douto Acórdão, deliberaram, condenando o arguido, em preterição dos princípios, para a descoberta da verdade material dos factos, em sede de livre convicção e dever de fundamentação; 3. Ora, da matéria probatória da acusação, toda ela, praticamente, tem por suporte a “Informação”, a que o Senhor Inspector da Polícia Judiciária, encarregue da investigação, comunica por escrito ao Senhor Coordenador da Investigação Criminal, num total de 44 (quarenta e quatro) páginas; 4. Não só investiga em profundidade, como qualifica, como sugere, como manifesta a sua opinião, mesmo chegando a aflorar para possíveis indemnizações aos ofendidos e suas famílias; 5. No Relatório de Inspecção Judiciária, que antecede àquela comunicação a que se refere o artigo 12.º supra, a Polícia Judiciária apenas se basta com a entrega de uma Pen Drive, entregue pelo proprietário do estabelecimento comercial denominado pela firma “Snack-Bar ...” (doravante “Snack-Bar ...”), sito à Rua …, Funchal, onde constam as imagens de videovigilância daquele estabelecimento comercial, daí extraindo-se, “visualização e extracção das imagens de videovigilância do restaurante”, ou seja, constante de 19 (dezanove) fotografias, nos segundos que antecederam os disparos e nos segundos depois dos mesmos; 6. É preciso ter presente que o arguido, ofendido e outros, à data dos factos, 20 de Novembro de 2020, pelas 22h, encontravam-se no interior daquele estabelecimento comercial, a “ingerir bebidas alcoólicas”, sendo que o crime se verificou, pelas 23h15m, em que é patente, pela imagem do fotograma 6, a pessoa do arguido a disparar, e encontrando-se dentro do balcão a sua funcionária, BB, ouvida nos autos e em audiência de discussão e julgamento, e fora do balcão, um indivíduo vestido com uma bata branca, (que se supõe ser funcionário do Snack-Bar ..., que não foi ouvido nos autos nem em audiência de discussão e julgamento; 7. Ora, no decurso da audiência de discussão e julgamento, várias foram as vezes em que a defesa falou no sentido de serem visualizadas as imagens gravadas pela videovigilância do Snack-Bar ..., uma vez que, as referidas imagens eram totalmente redutoras, em tudo aquilo que seria importante compreender e perceber a razão de ser da atitude do arguido e do ofendido, que veio a falecer; 8. Nesse sentido, importa antes demais perceber se a investigação que considerou desnecessário as restantes imagens, de todo o tempo que mediou entre a entrada do arguido e dos demais acompanhantes no Snack-Bar ... e, a fatalidade que se veio a verificar, investigação essa à qual, o Senhor Inspector Titular do Processo veio prestar o seu depoimento na audiência de discussão e julgamento; 9. - pese embora, o mesmo tivesse sido dispensado pela Digna Magistrada do Ministério Público, aquando da sua chamada para prestar declarações -, a pedido da defesa, porquanto se veio a revelar que o investigador não conhecia o local dos factos e, não tinha achado necessário efectuar a reconstituição dos factos no local com o arguido e os demais intervenientes, não soube explicar o disparo que veio provocar a ofensa corporal ao segundo ofendido, ou seja, CC, partindo do princípio que o arguido o queria atingir mortalmente; 10. não soube explicar como é que era possível atingir este ofendido quando o mesmo se encontrava junto à parede do Snack-Bar ..., encostado com o seu braço esquerdo e de frente para o ofendido que veio a falecer, encontrando-se a sua esposa e filha sentados nas cadeiras ao seu lado, lado este em que surgiu o arguido a empunhar o revólver, pelo que, seria impossível proceder a semelhante disparo, já que o ofendido se encontrava sentado com as duas pernas debaixo da mesa; 11. tendo sido atingido na perna esquerda pela segunda bala, bala esta que disparou em direcção ao chão, quando o arguido terá reparado na criança que se encontrava ao seu lado esquerdo e daí ter ocorrido um ricochete para a parede onde o mesmo se encontrava; 12. Em sede de audiência de discussão e julgamento, o Tribunal veio a considerar de interesse para a descoberta da verdade a visualização das imagens de videovigilância, o que veio a acontecer; 13. Da referida visualização, durante um lapso de tempo que antecedeu o crime de homicídio, é visível o ofendido que veio a falecer, com o seu ombro esquerdo encostado à parede do estabelecimento, ladeado pelo seu lado esquerdo, pelo arguido aí sentado com um pequeno cão ao colo e, durante um grande lapso de tempo, de forma constante e persistente; 14. instava o arguido com o seu dedo indicador direito, de tal forma que fez com que a funcionária do Snack-Bar ..., BB, saísse de dentro do balcão e fosse ao encontro do ofendido, colocando-se por detrás do mesmo e afagando-o pelos ombros com as suas mãos, pensamos que no sentido de o acalmar e terminar a insistência com que instava o arguido; 15. Pouco tempo depois, é possível visualizar o ofendido a levantar-se em direcção à rua onde se encontrava o proprietário do Snack-Bar ..., o Senhor DD. O arguido manteve-se sempre sentado no local onde se encontrava com o cão ao colo; 16. O ofendido voltou a entrar e dirigiu-se ao balcão, tendo pouco tempo depois regressado à mesa onde se encontrava tendo aí permanecido de pé, gesticulando insistentemente com o arguido, situação esta que levou a que este se afastasse do ofendido sentando-se na cadeira seguinte do mesmo lado. Esta situação continuou a verificar-se, pela persistente instância e gesticulação do ofendido com o arguido com o dedo indicador da mão direita em riste; 17. Pouco tempo depois, a funcionária do Snack-Bar ..., BB, regressou à mesa onde o arguido, o ofendido e demais se encontravam, tendo levado novas bebidas alcoólicas. O ofendido continuou a gesticular em direcção ao arguido, levando a que este, num primeiro momento, se levantasse em direcção ao balcão, e depois, num segundo momento, se ausentasse do Snack-Bar ... tendo parado à entrada e voltado novamente para o interior do mesmo, sempre a ser instado pelo ofendido; 18. Em face do supra exposto, o arguido ausentou-se do Snack-Bar ..., tendo o ofendido permanecido no local em que se encontrava, altura em que a funcionária do Snack-Bar ..., BB, saiu, uma vez mais, do balcão e dirigiu-se à mesa onde se encontrava o ofendido com o intuito de – pensamos – acalmá-lo; 19. Neste sentido, após o arguido ter abandonado o Snack-Bar ..., o indivíduo de bata branca que se encontrava fora do balcão em conversa com a funcionária, BB, tal indivíduo em pé começou a instar com o seu braço e dedo indicador da mão direita em riste contra o ofendido, de forma sucessiva e insistente, altura em que o arguido retornou ao Snack-Bar ... e procedeu ao disparo contra ao ofendido; 20. Todos estes factos são extremamente importantes para se compreender a razão de ser da atitude do arguido, uma vez que, a gravação da videovigilância não tem som, a investigação em nada se pronuncia quanto a estes factos, a acusação nada refere quanto a estas circunstâncias; 21. a funcionária BB não foi confrontada com estes factos aquando do seu depoimento em audiência de discussão e julgamento, por forma a que esclarecesse a discussão que as imagens reproduzem do ofendido para com o arguido e o que o individuo de bata branca fora do balcão terá instado o ofendido sobre os mesmos factos, sendo certo que durante todo esse lapso temporal, nunca o arguido provocou qualquer discussão, tomou qualquer atitude e instou quem quer que seja. 22. De igual modo, verifica-se também que o indivíduo de bata branca, que se presume funcionário do Snack-Bar ... não foi chamado à investigação, não foi ouvido em sede de audiência de discussão e julgamento, afigurando-se importante a sua audição. Ora, logo após a visualização destas imagens, requereu-se ao Tribunal a audição quer da funcionária BB, quer do indivíduo de bata branca; 23. situação esta a que a Digna Magistrada do Ministério Público se opôs, tal como a Mma. Juiz Presidente, invocando para o efeito o artigo 340.º, n.º 1 do C.P.P.; 24. Contrariamente, a esta posição do Tribunal, pensamos ser da máxima importância ouvir semelhantes pessoas, pois só assim se pode ultrapassar a falta de audição das gravações de videovigilância, para se enquadrar a atitude quer do ofendido, quer do arguido, naquilo que em última instância constitui uma prova necessária para a descoberta da verdade e boa decisão da causa; 25. Tudo isto se vê em total prejuízo dos direitos da defesa do arguido, na medida em que o próprio acórdão é extensivo naquilo em que considera o arguido ter atuado por motivos torpes ou fúteis, como também ter agido com frieza de ânimo, nos termos do art. 132.º, n.º 2, al. e) e f) do C.P., razão pela qual, se requer que o Tribunal “ad quem” proceda à indicação do Tribunal “a quo”, de forma a ser ultrapassada essa não verificação da audição daquelas testemunhas de forma a melhor se quantificar a pena a aplicar ao arguido que não a que foi aplicada sem essa visualização e consequente audição dessas duas testemunhas, levando, assim, à alteração da medida da pena aplicada ao arguido pelo crime de homicídio; 26. No mesmo sentido se pugna também pelo facto de que o Douto Acórdão ora recorrido, faz referência ao que o arguido referenciou nas suas declarações em julgamento, de que o ofendido por duas vezes terá tentado “esganá-lo”, referindo que esses factos passaram em imagem na CMTV, pondo assim “em causa a fidelidade das imagens de videovigilância das quais foram retirados fotogramas”; 27. Na verdade, o recluso n.º 214/4096, EE, a cumprir pena de prisão no Estabelecimento Prisional, viu no canal CMTV, entre as 10h30 e as 11h do dia 21 de Novembro de 2020, dia imediatamente a seguir ao dia dos factos, o arguido ao ser atacado pelo ofendido, por três vezes, sendo que um quarto de hora depois, começou a aparecer em nota de rodapé que aquelas imagens tinham que ser bloqueadas pois estavam em segredo de justiça. As imagens passaram durante vários minutos; 28. Pensamos também que esta interpretação do Tribunal “a quo” representa a não aplicação do dispositivo da norma do art. 340.º do C.P.P., que devia tê-lo feito, o que se requere ao Tribunal “ad quem”, com as legais consequências, pois poderia ter solicitado àquela estação de televisão, no dia imediatamente a seguir aos factos, as imagens objecto do crime que tinha sido praticado e que entretanto tinha sido mandado bloquear pela polícia judiciária, a visualização dessas imagens pelo público em geral; 29. Por outro lado, no que concerne ao crime de coacção, nos termos da norma do art. 154º do C.P, pretende-se proteger com tal normativo o direito individual de liberdade de acção, sendo certo que a coacção é pois a imposição a alguém de uma conduta contra a sua vontade, no constrangimento ilegal de outrem por determinado meio e com vista a determinado fim; 30. pelo que constranger é obrigar alguém a assumir uma conduta que não depende da sua vontade, ou seja, é violar a liberdade de autodeterminação, e a violência constitui o acto de força, físico ou psíquico, que leva a alguém a actuar de determinada maneira, a ameaça que recaiu sobre determinada pessoa foi contra a sua vida tendo sido essa ameaça contra a sua vida mediante a utilização de uma arma que justificadamente o fez recear. 31. Dá-se aqui por integralmente reproduzido a matéria a que respeita o art. 73.º do presente articulado; 32. Perante essa atitude do arguido, a testemunha tentou que os ânimos se acalmassem, não havia necessidade para essa circunstância, tendo o arguido tentado guardar a arma que tirou do bolso das calças só que, não o conseguindo, aquela acabou por cair no chão. A testemunha tentou dar um pontapé na arma só que deixou de o fazer, voltando a tentar que eles se acalmassem. Posteriormente, a testemunha voltou a falar com o arguido, tendo este pedido que se fosse embora, que não tinha nada a ver com aquilo; 33. Da leitura e ponderação do depoimento da testemunha sobre o qual foi o ora arguido condenado de um crime de coacção, p.e p. pelo art.154º, nº 1, do código penal, agravado, pensamos que o seu depoimento afastou o elemento subjectivo do crime, razão pela qual o facto não é punível, por não censurável, uma vez que todo o seu depoimento, ao longo da sua intervenção perante o que verificou entre o arguido e a sua companheira, foi sempre no sentido de evitar males maiores, conformar a situação dos dois; 34. de forma acabar a desunião entre os mesmos, não dando por isso qualquer atenção ao que foi confrontado com a atitude do arguido, desmerecendo qualquer resultado negativo para a sua própria pessoa, pois tentava evitar qualquer situação gravosa entre os dois; 35. não dando importância ao facto de aquele lhe ter apontado uma arma, fundamento pelo qual a atitude do arguido subsequente viu-se que não tinha qualquer intenção de praticar qualquer prejuízo à pessoa da testemunha, mas, apenas fazer com que ele fosse embora. Assim foi porque, manteve-se sempre por perto, de forma a evitar qualquer acto tresloucado; 36. Ou seja, a testemunha não configurou em si próprio, com a sua atitude presente e persistente qualquer acto criminoso que o arguido poderia desferir sobre a sua pessoa, pese embora qualquer receio, mas o que é certo é que a testemunha manteve-se sempre por perto e à ilharga do arguido e da companheira, o que significa que não conjecturou qualquer acto que pudesse vir a causar qualquer tipo de coacção nos termos da norma do art. 154º do C.P.; 37. Acresce a estes factos que, a testemunha, igualmente, não configurou qualquer tipo de crime do arguido para com ele, não só pela forma como ele presta o seu depoimento em julgamento, Como também não deduziu qualquer pedido de indemnização cível, pelo facto de assim não entender que o arguido lhe terá provocado qualquer dano patrimonial ou não patrimonial, não vendo pois qualquer acto da parte do arguido como estando na eminência de lhe tirar a vida ou praticar qualquer mazela sobre o seu corpo; 38. Assim, pensamos que o crime pelo qual foi o ora arguido condenado, como crime de coacção, não tem a sua aplicabilidade, pelo que deve o mesmo ser absolvido, com as legais consequências; 39. Dá-se aqui por integralmente reproduzidos a matéria jurisprudencial a que se referem os arts 88.º a 91.º do presente articulado; 40. Desta forma, salvo o devido respeito e melhor opinião, pensamos que as Meritíssimas Juízes do Tribunal "a quo", no seu Douto Acórdão violaram as norma dos art.ºs acima referenciados e que aqui se dão por integralmente reproduzidos, pelo que o Douto Acórdão ora recorrido, deve ter em conta toda a matéria de facto vertida nos arts. 35.º a 49.º do presente articulado, bem como, a consequência resultante da matéria referenciada nos arts. 57.º e 60.º a 65.º do presente articulado, que aqui se dão por integralmente reproduzidos para os devidos e legais efeitos; 41. No mesmo sentido, pondo-se em causa o Douto Acórdão no que concerne ao crime de coacção a que o arguido foi condenado, sempre se deverá ter presente o exposto na matéria dos arts. 67.º a 73.º do presente articulado, que aqui se dão por integralmente reproduzidos para os devidos e legais efeitos, razão pela qual, deverá o arguido ser absolvido do crime de coacção.” Pugna pela absolvição do arguido pelo crime coacção de que foi condenado e pela diminuição das penas aplicadas aos crimes de homicídio qualificado e ofensa à integridade física grave. * I.3. Resposta do Ministério Público O Ministério Público na resposta ao recurso, pronunciou-se pela improcedência do recurso interposto pelo arguido, concluindo: “1. A fundamentação que o Tribunal a quo fez constar do acórdão recorrido é suficiente para satisfazer as exigências e finalidades contidas na lei, nos termos acima expostos, não havendo, pois, razões que determinem a verificação de qualquer nulidade, ainda que não suscitada nestes termos no recurso, mas implícita, mas que decorre da alegada falta de fundamentação, que assim deve improceder. 2. O tribunal pode ordenar a produção da prova requerida pelo arguido durante a audiência, ao abrigo do disposto no artigo 340.º, do Código de Processo Penal, se o seu conhecimento se lhe afigurar necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa. 3. O Tribunal a quo apoiou-se, conforme explicou na sua fundamentação, no depoimento das várias testemunhas, das quais, pessoas que se encontravam no grupo do arguido e dispôs da visualização integral das imagens colhidas pelo sistema de videovigilância do bar onde ocorreram os factos. 4. Tais imagens vídeo não apresentam quaisquer cortes, sendo evidente que não foram adulteradas. 5. Quer a prova testemunhal, que mereceu credibilidade, quer as referidas imagens, contrariam flagrantemente e sem margem para qualquer dúvida, a versão que o arguido veio trazer ao Tribunal de que se estaria a defender do malogrado FF e de que nunca se ausentou do snack bar. 6. Ora, tendo sido a prova testemunhal, recolhida num contexto de imediação e contraditório, a utilizada pelo Tribunal recorrido nos termos de uma sua avaliação crítica e racional para sustentar os factos que considerou como provados, para além de toda a demais prova, nada vislumbramos no sentido de a mesma poder ser considerada insuficiente, inepta ou inidónea para o efeito em apreço, pelo que se nos afigura inatacável a fixação positiva dos factos em crise operada no acórdão e desnecessária qualquer outra prova para confirmar a versão trazida aos autos pelo arguido. 7. No crime de coação o bem jurídico protegido é a liberdade de decidir e de atuar: liberdade de decisão (formação) e de realização da vontade. 8. O tipo objetivo de ilícito da coação consiste em constranger outra pessoa a adotar um determinado comportamento: praticar uma ação, omitir determinada ação, ou suportar uma ação. 9. Os meios de coação são a violência ou a ameaça com mal importante. 10. Atendendo aos factos provados – 5, 6, 7, 16, 17, 18 e 23 - entendemos que o arguido exerceu uma ameaça sobre o ofendido AA, isto é, anunciou-lhe um mal futuro, em termos adequados a constrangê-lo a abandonar o local. 11. O arguido atuou nestas circunstâncias com liberdade de ação e dolo direto. 12 Atendendo a que o arguido agiu com dolo direto, que o grau de ilicitude é intenso, que são elevadas as necessidades de prevenção geral, assim como as de prevenção especial, pois revelou qualidades particularmente desvaliosas e censuráveis e uma atitude profundamente distanciada em relação a uma determinação normal com os valores, uma atuação conjunta que se revelou extremamente censurável, temos que a pena de prisão em que foi condenado o arguido – pena única de 23 anos de prisão – realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.” * I.4. Parecer do Ministério Público Nesta Relação o Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso. * I.5. Resposta ao parecer Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, n.º 2 do CPP, não tendo sido apresentada resposta ao parecer do Ministério Público. * I.6. Por despacho proferido em 06.05.2022 (referência 18415041) foi apreciada a questão prévia suscitada no parecer do MP desta Relação – envio do recurso para o S.T.J.. Após, foram colhidos os vistos e realizada a conferência. * II- FUNDAMENTAÇÃO II.1- Questões a decidir Conforme jurisprudência constante e assente, é pelas conclusões apresentadas pelo recorrente que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior (cfr. Acórdão do STJ, de 15/04/2010, acessível em www.dgsi.pt: “Como decorre do artigo 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões (…)”, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95). Assim, face às conclusões apresentadas pelo recorrente AA as questões a apreciar e decidir são as seguintes: 1ª Omissão de diligências essenciais à descoberta da verdade nos termos do artigo 340º do C.P.P. quanto aos crimes de homicídio e ofensa à integridade física grave – reinquirição de uma testemunha; inquirição de uma outra testemunha e visionamento de outras imagens; 2ª Impugnação da decisão sobre a matéria de facto em relação ao elemento subjectivo do crime de coacção. ** II.2- Acórdão recorrido (que se transcreve parcialmente nas partes relevantes) “1. Matéria de facto provada. A) Da acusação (…) 5.ºPelas 23h15m, na Rua …………… no Funchal, o ofendido AA avistou o arguido e XX, sua conhecida, a falarem alto e abordou-os, para saber o que se passava. 6.º Nesse momento, o arguido retirou do bolso das calças o revólver acima descrito e apontou-o na direcção do ofendido AA e disse-lhe, em tom sério e exaltado, «Vá embora ou dou-lhe um tiro!», declaração que o inquietou e lhe causou receio de que o arguido pudesse actuar conforme declarara, fê-lo temer pela sua vida e pela sua integridade física, abalou as suas liberdades de decisão e de acção e o seu sentimento de segurança. 7.º Por temer pela sua vida e pela sua integridade física, o ofendido AA abandonou o local. (…) 16.º O arguido previu, quis e logrou actuar nos termos descritos em 6.º, supra, com o propósito concretizado de anunciar ao ofendido AA que, caso ele não se fosse embora do local, lhe daria um tiro, provocando-lhe a morte ou ferindo-o gravemente, bem sabendo que tal declaração, porque proferida com foros de seriedade, era idónea a inquietá-lo, como inquietou, a amedrontá-lo, como amedrontou, e a fazê-lo temer, como temeu, pela sua vida e pela sua integridade física e a abalar, como abalou, o seu sentimento de segurança e as suas liberdades de decisão e de acção, resultados que pretendeu e alcançou. 17.º O arguido previu, quis e logrou actuar nos termos descritos em 6.º, supra, com o propósito concretizado de, através do receio e da inquietação causados ao ofendido AA com esse comportamento, o intimidar, constranger e determinar a ausentar-se do local, contra a sua vontade, resultado que pretendeu e alcançou. (…) 22.º O arguido previu, quis e logrou actuar nos termos descritos em 6.º, em 9.º e em 11.º, supra, bem sabendo que para o efeito utilizava o revólver e os projécteis acima descritos. 23.º O arguido actuou sempre livre, deliberada e consciente, com plena capacidade de determinação segundo as legais prescrições, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente punidas. (…) * Da Motivação Fáctica (…) O Tribunal fundou-se, pois, nas regras de experiência e na ponderação de toda a prova, quer junta aos autos quer produzida em audiência, e no juízo sobre a certeza e a verdade material dos factos, que resultou, sobretudo, dos seguintes meios de prova abaixo descritos. (…) O arguido prestou declarações (…). Tão-pouco se recorda dos factos que lhe são imputados relativamente a AA. (…) No que respeita ao facto descrito em 6º da acusação, o Tribunal fundou a sua convicção no depoimento do ofendido ………….. que relatou circunstanciadamente o que sucedeu, tendo-o feito com rigor e isenção, tendo o seu depoimento merecido total credibilidade.” * II.3- Apreciação do recurso II.3.1. Omissão de diligências essenciais à descoberta da verdade O recorrente sustenta que pelo tribunal a quo não foram realizadas as seguintes diligências essenciais à descoberta da verdade nos termos do artigo 340º do C.P.P. que levariam à alteração da medida da pena aplicada ao arguido pelo crime de homicídio. 1- A reinquirição da testemunha BB após a visualização das imagens de videovigilância; 2- A inquirição do individuo de bata branca que presume ser funcionário do snack-bar “...” e que aparece nas imagens de videovigilância; 3- O visionamento das imagens transmitidas pelo canal televisivo CMTV no dia seguinte aos factos devendo para tal terem sido solicitadas ao respectivo canal de televisão. Vejamos. Estabelece o artigo 340.º do C.P.P.: “1 - O tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa. 2 - Se o tribunal considerar necessária a produção de meios de prova não constantes da acusação, da pronúncia ou da contestação, dá disso conhecimento, com a antecedência possível, aos sujeitos processuais e fá-lo constar da acta. 3 - Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 328.º, os requerimentos de prova são indeferidos por despacho quando a prova ou o respectivo meio forem legalmente inadmissíveis. 4 - Os requerimentos de prova são ainda indeferidos se for notório que: a) As provas requeridas já podiam ter sido juntas ou arroladas com a acusação ou a contestação, excepto se o tribunal entender que são indispensáveis à descoberta da verdade e boa decisão da causa; b) As provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas; c) O meio de prova é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa; ou d) O requerimento tem finalidade meramente dilatória.” A procura da verdade material, tendo em vista a realização da justiça, constitui o fim último do processo penal. A lei atribui ao tribunal o poder/dever de ordenar, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova que entenda necessários à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, o que constitui a consagração, no nosso sistema, do princípio da investigação ou da oficialidade. O C.P.P. estabelece no artigo 340.º os princípios gerais em matéria de produção de prova na audiência, encontrando-se vários outros critérios de admissibilidade de prova dispersos noutros preceitos do mesmo diploma, com recurso a expressões como, entre outras, essencial, indispensável, necessário, previsivelmente necessário, absolutamente necessário, útil. Discute-se, por vezes, se o poder conferido pelo artigo 340.º do C.P.P. é um poder discricionário ou, pelo contrário, é sindicável, questionando-se se é recorrível a decisão de indeferimento de um requerimento de prova apresentado, na fase de julgamento, ao abrigo do preceituado no artigo 340.º do C.P.P. No acórdão do TRG de 27.04.2009 (acessível em www.dgsi.pt.) podemos ler: “O exercício do poder de apreciação do condicionalismo legal inscrito no n.º1 do artigo 340º do Código de Processo Penal, isto é, o juízo de necessidade ou desnecessidade da diligência de prova requerida parece-nos insindicável por via de recurso directo: a omissão de diligências que possam reputar-se essenciais para a descoberta da verdade acarreta, antes, uma nulidade relativa (sanável) prevista no artigo 120.º, n.º2, alínea d), do CPP, a arguir “antes que o acto esteja terminado” (art. 120.º, n.º3, al. a), que servirá de eventual fundamento de recurso (cfr. art. 410.º, n.º3 do CPP). Contudo, se o poder conferido pela norma do n.º 1 do artigo 340.º for actuado, em sentido negativo ou positivo, fora do condicionalismo legal, isolando outro para fundamentar a decisão respectiva, então aí, na medida em que há violação da lei, a opção tomada pelo tribunal é já susceptível de recurso (cfr. neste sentido os Acs. do STJ de 4 de Dezembro de 1996, BMJ n.º 462, pág. 286 e de 9 de Outubro de 2003, proc.º n.º 1670/03-5ª, in SASTJ n.º74, 170 e o Ac. da Rel. de Lisboa de 16-12-2004, proc.º n.º 8971-4ª, rel. Ana Brito, in www.pgdlisboa.pt).” Ainda relativamente ao meio de reacção ao indeferimento de produção de meios de prova em sede de audiência de julgamento, no acórdão do TRC de 01.12.2012 (acessível em www.dgsi.pt) exarou-se: “A violação do art. 340.º, n.º 1 do C. Processo Penal e por via dela, a violação do princípio da investigação, na sequência do indeferimento da renovação de prova pericial, só pode originar uma nulidade sanável, a enquadrar na alínea d), do n.º 2, do art. 120.º do C. Processo Penal, e sujeita ao regime de arguição previsto no n.º 3 do mesmo artigo. Tendo o arguido e a sua defensora estado presentes na audiência de julgamento em que foi proferida a decisão e não tendo reagido até ao termo da mesma arguindo o vício, nem tendo recorrido atempadamente da decisão, sanou-se o vício o que, juntamente com o caso julgado formal entretanto verificado, impede que no recurso interposto do acórdão condenatório se conheça do acerto do ali decidido.” Dos arestos ora citados extrai-se o entendimento de que o indeferimento de requerimento de produção de meios de prova apresentado em audiência, se essenciais para a descoberta da verdade, faz incorrer na nulidade prevista no artigo 120.º, n.º2, al. d), do C.P.P., a arguir no prazo legal, não sendo susceptível de recurso directo. Diferente entendimento é seguido no Ac. do TRL de 26.02.2019 (acessível em www.dgsi.pt) onde se pode ler: “Como defende o Conselheiro Oliveira Mendes (Comentário ao Código de Processo Penal, Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, 2016, 2.ª edição, p. 1049), a decisão do tribunal de produção ou não produção de prova, “obviamente que é recorrível, designadamente com o fundamento de que foi proferida fora das condições legais, posto que a sua irrecorribilidade não está prevista - art. 399.º.” A omissão de produção de meio de prova necessário, no sentido de essencial para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa constitui nulidade relativa, nos termos da alínea d) do n.º2 do artigo 120.º. Se a produção do meio de prova não tiver sido requerida, o interessado na sua produção – que o tribunal deveria ter ordenado oficiosamente - deve arguir a nulidade até ao encerramento da audiência, nos termos do artigo 120.º, n.º3, alínea a), sob pena de sanação. No caso de não obter deferimento, cabe recurso da decisão. Porém, se a produção do meio de prova tiver sido requerida e o tribunal indeferir por despacho tal requerimento, a impugnação deve ser feita por via de interposição de recurso desse despacho, não havendo razão para impor ao interessado a prévia arguição de vício. É o que defende o Conselheiro Oliveira Mendes (ob. cit.) e o que é sustentado no acórdão da Relação de Coimbra, de 7/10/2015 (Processo 174/13.0GAVZL.C1), onde podemos ler: “1. O despacho que no decurso da audiência de discussão e julgamento indefere, na sequência de requerimento só então apresentado, expressa ou implicitamente a coberto do artigo 340.º do CPP, a audição, na qualidade de testemunha, de uma pessoa é sindicável por via de recurso – pois que corresponde ao exercício de um poder vinculado, que não discricionário, não se mostrando legalmente excluída a respetiva recorribilidade, colhendo, assim, aplicação o princípio geral enunciado no artigo 399.º do CPP - e não já por intermédio da arguição da nulidade do artigo 120.º, n.º 2, alínea d) do CPP; 2. Se o sujeito processual interessado, na sequência de tal despacho de indeferimento, do mesmo nunca recorre, limitando-se a arguir a respectiva nulidade [artigo 120º, n.º 2, alínea d) do CPP], deixando-o transitar, por via do caso julgado, entretanto formado, fica o tribunal de recurso impedido de o sindicar; (…).” Da jurisprudência ora transcrita a posição defendida (que sufragamos inteiramente) distingue duas situações distintas: A primeira situação – a omissão de uma diligência probatória essencial para a descoberta da verdade constitui uma nulidade sanável do artigo 120º, n.º 2, al. d) do C.P.P., e não tendo a diligência de prova sido requerida, deve a nulidade ser arguida até ao final da audiência de julgamento nos termos do artigo 120.º, n.º 3, alínea a), sob pena de sanação. No caso de não obter deferimento, cabe recurso da decisão; A segunda situação – se o sujeito processual tiver requerido a diligência de prova na audiência nos termos do artigo 340º do C.P.P. e a mesma tiver sido indeferida, deverá o mesmo interpor recurso do respectivo despacho de indeferimento, sob pena de se ter conformado com a decisão e o tribunal superior não poder sindicar o indeferimento da diligência requerida (veja-se, no mesmo sentido, P.P. Albuquerque em Comentário do Código de Processo Penal, 4ª ed. actualizada, pág. 881 e a jurisprudência nele citada). No caso vertente, constatamos que na audiência de julgamento realizada no dia 09.12.2021, após a visualização das imagens captadas de videovigilância do local onde ocorreram os factos, o Il. mandatário do arguido requereu a audição de um indivíduo visualizado nas imagens (cfr. respectiva acta de julgamento de 09.12.2021 e gravação do respectivo requerimento que escutamos). As demais diligências probatórias especificadas no requerimento de recurso não foram requeridas pelo recorrente junto do tribunal a quo. A este propósito, cumpre esclarecer que, pese embora o recorrente alegue no ponto 55º da sua motivação que logo após a visualização das imagens requereu a audição da funcionária AA, tal não sucedeu (conforme requerimento transcrito na respectiva acta de 09.12.2021 e gravação do requerimento que escutamos). Assim, estamos perante duas situações distintas: 1ª O indeferimento de diligência de prova requerida em audiência pelo recorrente nos termos do artigo 340º do C.P.P. – a audição de um indivíduo presente no local; 2ª A omissão de diligências probatórias que o recorrente entende serem essenciais para a descoberta da verdade que não foram por si requeridas em audiência de julgamento – a reinquirição da testemunha AA e a solicitação das imagens transmitidas na CMTV e o seu visionamento. Por conseguinte, quanto à primeira situação não tendo o recorrente interposto recurso no prazo legal do despacho de indeferimento, conformou-se com a decisão em causa, que entretanto transitou em julgado, não podendo este tribunal sindicar o indeferimento da diligência requerida. Quanto à segunda situação, estamos perante uma nulidade sanável nos termos previstos no artigo 120º, n.º 2, al. d) do C.P.P. (no caso de se entender que as diligências omitidas seriam essenciais para a descoberta da verdade) e que não foi arguida pelo recorrente até ao final da audiência de julgamento nos termos do artigo 120.º, n.º3, alínea a) do C.P.P., vindo a fazê-lo apenas perante o tribunal superior, pelo que, temos que considerar a mesma (a ter ocorrido) sanada. Nestes termos, improcede, nesta parte, o recurso. * II.3.2. Impugnação da matéria de facto A pretensão do recorrente consiste numa impugnação da decisão sobre a matéria de facto. Como é sabido a matéria de facto pode ser sindicada de duas vias, a saber: - a chamada “revista ampliada” que abrange os vícios previstos no artigo 410º, n.º 2 do C.P.P.; - a chamada impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412º, n.ºs 3, 4 e 6 do CPP. Nos termos do artigo 428º do CPP, as Relações conhecem de facto e de direito e de acordo com o artigo 431º “Sem prejuízo do disposto no artigo 410º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada, nos termos do n.º 3, do artigo 412º; ou c) Se tiver havido renovação da prova”. Por sua vez, o artigo 412º, n.º 3 dispõe que “Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas.” E, o seu n.º 4 estabelece que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”. A impugnação da matéria de facto por o Tribunal a quo ter efectuado uma incorrecta apreciação da prova produzida em sede de audiência de julgamento, não pode confundir-se com discordância na apreciação da prova que invada o espaço da livre apreciação da prova plasmado no artigo 127º do C.P.P., que é de estrito domínio do julgador. Assim, verifica-se que o legislador consagrou no Código de Processo Penal o principio da livre apreciação da prova que consubstancia, por um lado, em inexistirem critérios ou cânones legais pré-determinados no valor a atribuir à prova e, por outro lado, em não haver uma apreciação discricionária ou arbitrária da prova produzida. Tal liberdade está intimamente ligada quer ao dever de tal apreciação assentar em critérios objectivos de motivação, quer ao dever de perseguir a verdade material. Por isso, quando se refere que a valoração da prova é segundo a livre convicção da entidade competente (in casu, o juiz), a convicção há de ser pessoal, objectivável e motivável, logo, vinculada e, assim, capaz de conseguir a adesão razoável da comunidade pública. Donde resulta que tal existirá quando e só quando o Tribunal se tenha convencido, com base em regras técnicas e de experiência, da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável (cf. Figueiredo Dias in Direito Processual Penal, Vol. I, Coimbra Editora, 1981, págs. 198-207). Do exposto resulta que o juiz deve apreciar a prova testemunhal segundo os critérios de valoração racional e lógica, tendo em conta as regras normais de experiência, julgando segundo a sua consciência e convicção. Assim, o juiz é livre, no sentido mencionado de formar a sua convicção com base no depoimento de uma testemunha (ainda que familiar do arguido ou do ofendido) em detrimento de testemunhos contrários (v.g. de pessoas sem quaisquer ligações ao arguido ou ao ofendido). Daí que, de acordo com a jurisprudência, a convicção do julgador só pode ser modificada pelo tribunal de recurso, quando a mesma violar os seus momentos estritamente vinculados (obtida através de provas ilegais ou proibidas, ou contra a força probatória plena de certos meios de prova) ou então quando afronte, de forma manifesta, as regras de experiência comum ou o principio in dúbio pro reo. O princípio in dúbio pro reo, emanação da injunção constitucional da presunção de inocência do arguido, na vertente de prova (artigo 32º, n.º 2 da CRP), constitui, pois, um limite do principio da livre apreciação da prova na medida em que impõe nos casos de dúvida fundada sobre os factos que o Tribunal decida a favor do arguido. Como pode ler-se no Ac. do TRP de 17.09.2003 (processo 0312082, disponível em www.dgsi.pt) “(…) o recurso da matéria de facto não se destina a postergar o principio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no artigo 127º do C.P.P. A decisão do Tribunal há-de ser sempre uma “convicção pessoal” – até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva, mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais” (cf. Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Vol. I, ed. 1974, pág. 204). Por outro lado, a livre apreciação da prova é indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em primeira instância. Como ensinava o Prof. Alberto dos Reis “a oralidade, entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a actuação do principio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema da prova legal” (Código Processo Civil Anotado, Vol. IV, págs. 566 e ss. (…)”. O artigo 127º do C.P.P. indica-nos um limite à discricionariedade do julgador: as regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Isto equivale a dizer que, sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador. A impugnação da matéria de facto prevista no citado artigo 412º, n.º 3 do C.P.P. consiste na apreciação, tal como sustentou o Ac. do TRE, de 26.03.2019 (acessível in www.dgsi.pt) “que não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência de julgamento, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art.º 412º do C.P.Penal.” Como se diz no Ac. do TRL, de 29.03.2011 (acessível in www.dgsi.pt) “A ausência de imediação determina que o tribunal de 2ª instância, no recurso de matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida e não apenas se o permitirem [al. b) do n.º 3 do citado artigo 412º]”. Como salienta o STJ no Ac. de 12.06.2008 (acessível in www.dgsi.pt) a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações: - a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam; - a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações; - a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, restrita à indagação ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso; - a que tem a ver com o facto de ao Tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do n.º 3 do citado artigo 412º). Com efeito, o Ac. do TRP de 12.05.2021 (processo 6098/19.0JAPRT.P1, proferido no âmbito do processo 6098/19.0JAPRT que correu termos no JC Criminal de Vila Nova de Gaia-J2) escreveu que: “Impor decisão diversa da recorrida não significa admitir uma decisão diversa da recorrida. Tem um alcance muito mais exigente, muito mais impositivo, no sentido de que não basta contrapor à convicção do julgador uma outra convicção diferente, ainda que também possível, para provocar uma modificação na decisão de facto. É necessário que o recorrente desenvolva um quadro argumentativo que demonstre, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de factos impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade. É inequivocamente este o sentido da referida expressão, que consubstancia um ónus imposto ao recorrente. Não basta assim ao recorrente formular discordância quanto ao julgamento da matéria de facto para que o tribunal de recurso tenha que fazer “um segundo julgamento”, com base na gravação da prova. O poder de cognição do Tribunal da Relação, em matéria de facto, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento e faça tábua rasa da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação.” De facto, “o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstrem esses erros (cfr., neste sentido, Acs. do STJ de 15.12.2005 e de 09.03.2006, ambos acessíveis in www.dgsi.pt). Regressando ao caso vertente o recorrente entende que o elemento subjectivo do crime de coação (correspondente aos pontos 16º, 17º, 18º, 22º e 23º dos factos provados) não deve ser considerado provado. Como concretas provas que impunham decisão diversa quanto ao elemento subjectivo do crime de coação indica apenas o depoimento da testemunha …………………. O recorrente procedeu à indicação das concretas passagens das declarações do depoimento da testemunha referida em que funda a impugnação (artigo 412º, n.º 4 do C.P.P.), motivo pelo qual está este tribunal apto a apreciar a discordância manifestada de acordo com as regras infra estabelecidas. A decisão do julgador, na apreciação dos meios de prova, encontra-se supra descrita. A avaliação da prova em primeira instância, feita de forma directa, oral e imediata, obedece a uma forma de procedimento que coloca o juiz do julgamento em melhores condições para a decisão da matéria de facto do que a avaliação feita com base na audição do registo, meramente parcial (porque despido de expressões faciais, comportamentos físicos), de provas de produção pretérita. Reiteramos que a reapreciação da prova em recurso não pode e não deve, por isso, equivaler a um segundo julgamento. O duplo grau de jurisdição não assegura a sujeição da acusação a dois julgamentos em tribunais diferentes, mas apenas garante que o interessado pode obter do tribunal superior a fiscalização e controlo de eventuais erros da decisão da matéria de facto, através do reexame parcial da prova. Vejamos, então, se a formação da convicção do tribunal em relação ao apurado elemento subjectivo padece de erro. Escutamos integralmente o depoimento da referida testemunha e não encontramos, mesmo limitados por esta actividade de pura audição, qualquer motivo, plausível ou razoável, para dele não extrair o significado compreendido pelos julgadores. Dito de outra forma, porventura mais clara, apenas pelo depoimento em causa (despida de toda a contextualização visual, apenas perceptível pelos julgadores) não encontramos qualquer motivo susceptível de desmontar a valoração conferida em primeira instância. Assim, entendemos não merecer qualquer tipo de censura a valoração efectuada pelos julgadores do referido meio de prova. Por fim, quanto a este tipo específico de recurso (da decisão sobre a matéria de facto: cfr. artigo 412º, n.º 3 do C.P.P..) cumpre ainda esclarecer que “a censura” quanto à forma deformação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. “Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão” - acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004, de24.3.2004, DR, II Série, n.º 129, de2 de Junho. Ora, no caso vertente, o recorrente pretende impor a apreciação que ele próprio faz do depoimento da referida testemunha (compreensível e necessariamente parcial) sem que alegue outras provas concretas que impusessem decisão da matéria de facto distinta, oposta da que foi tomada pelos julgadores, isto é, que tornassem, face às regras da experiência comum e da lógica, insustentável a apreciação operada pelo Tribunal a quo. Por todo o exposto, o recorrente não logrou demonstrar que a convicção do tribunal de primeira instância sobre a veracidade dos factos descritos é inadmissível (não é sustentada em dados objectivos) e que os meios de prova impunham uma convicção diferente. Por isso, improcede também, nesta parte, o recurso. * III- DECISÃO Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso de AA e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida. Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 UCS (artigo 513º, nº 1, do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9 do RCP, com referência à Tabela III). * Lisboa, 19.05.2022 Maria do Rosário Silva Martins Lígia Maria da Nova Araújo Sá Trovão |