Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:488/18.3BEBJA
Secção:CT
Data do Acordão:09/18/2025
Relator:ANA CRISTINA CARVALHO
Descritores:IRS
INSOLVÊNCIA
ACRÉSCIMO PATRIMONIAL
SUJEITO PASSIVO
ISENÇÃO
LEI INTERPRETATIVA
INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA
RETROACTIVIDADE
PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA
Sumário:I – Apesar de os insolventes não poderem dispor livremente do seu património após a declaração de insolvência, por se tratar de uma medida de protecção dos credores impeditiva da dissipação do património que será liquidado para satisfação dos créditos da insolvência, não deixam de ser os titulares dos direitos reais sobre os imóveis que integram a sua esfera jurídica;
II – O produto da alienação dos bens na fase da liquidação não deixa de integrar a sua esfera jurídica patrimonial, pelo que, o sujeito passivo de imposto devido pelos ganhos provenientes da venda de imóveis em processo de insolvência de pessoas singulares que constituam mais-valias são os insolventes;
III - O acréscimo de rendimento resultante da diferença entre o valor por que foi adquirido o imóvel e o valor pelo qual que foi alienado constitui uma vantagem patrimonial para efeitos da incidência do IRS no regime vigente à data dos factos;
IV – A alteração legislativa que, entretanto, isentou da tributação tais mais valias não tem natureza interpretativa, não sendo de aplicação retroactiva, nem em alternativa se impõe a interpretação extensiva.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção Tributária Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a Subsecção Tributária Comum da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

I - RELATÓRIO

Os Impugnantes E… e N…., inconformados com a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja, que julgou improcedente a impugnação judicial por eles intentada, em virtude do indeferimento de reclamação graciosa apresentada contra a liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) n.º 20175005327285, referente ao exercício de 2016, no valor global de €14 607,09, dela vieram interpor recurso formulando, para o efeito, as seguintes conclusões:

«1. Ficou provado nos autos que os Impugnantes foram declarados insolventes, em sentença proferida em 02.04.2012, no processo n.° 588/11.OTBETZ, que correu termos no tribunal judicial de Estremoz, e a qual, além do mais, nomeou o administrador da insolvência, e determinou a apreensão, e entrega àquele administrador, de todos os bens dos insolventes, nomeadamente, daquele prédio urbano a que se reportam os autos;

2. Ficou provado que em 26.02.2016, o administrador da insolvência, em nome da massa insolvente daquele processo n.° 588/11.OTBETZ, vendeu à C…, aquele prédio urbano inscrito sob o artigo 2… na matriz predial urbana da União das Freguesias de Estremoz, pelo preço de € 149 250,00

3. Assim, está provado que o referido imóvel fazia parte integrante da massa insolvente dos ora Recorrentes;

A fase da liquidação num processo de insolvência destina-se à conversão do património que integra a massa insolvente numa quantia pecuniária que constitui rendimento da massa insolvente;

Os rendimentos da massa insolvente destinam-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da celebração de insolvência, bem como, todos os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo, nos termos dos artigos 46.° e 172.° do CIRE; Num processo de insolvência, compete sempre ao Administrador de Insolvência os poderes de administração e de disposição dos bens que integram a massa insolvente;

Após a declaração de insolvência, os Insolventes deixam de poder dispor livremente do seu património;

Foi a massa insolvente, através do seu liquidatário judicial, que alienou o património (o imóvel), fixou e recebeu o preço, sem qualquer intervenção ou contrapartida para os ora Recorrentes;

A mais valia gerada no âmbito do processo de insolvência, por ato praticado pelo Administrador de Insolvência, em representação da massa insolvente, não pode ser tributada em sede de IRS na esfera pessoal dos Insolventes;

4. Na realidade e em concreto, a AT não logrou demonstrar que houve um acréscimo patrimonial efetivo do qual tenham os impugnantes, ora recorrentes, efetivamente beneficiado.

A liquidação de IRS sub judice, resultante de alegada mais-valia não recebida e no decorrer de uma insolvência, é ilegal e viola flagrantemente princípios constitucionais como o princípio da tributação de acordo com o rendimento real e o princípio da capacidade contributiva previstos no artigo 104.° da Constituição da República Portuguesa;

5. A venda em causa foi um ato da massa insolvente e a dívida fiscal resultante dessa venda é uma dívida também ela da massa insolvente; O artigo 268.° n.° 1 do CIRE, na sua redação atual, isenta expressamente de IRS, os ganhos resultantes da venda de bens imóveis, em processo de insolvência; O espírito do legislador, mesmo com a redação inicial do artigo 268.° n.° 1 do CIRE, foi sempre a de conferir ao devedor insolvente um benefício fiscal, em sede de IRS, aquando da venda de bens imóveis em processo de insolvência;e o de evitar que os ganhos gerados pela venda de um bem imóvel pela massa insolvente influenciassem o resultado tributável dos insolventes; Por isso o legislador prevê, também, em caso de venda de bens imóveis, no âmbito de uma insolvência, isenções em sede de Imposto do Selo e de IMT, nos termos dos artigos 269.° e 270.° do CIRE;

Os ganhos da venda não deveriam ter influenciado o resultado tributável dos Recorrentes, face ao espírito, sistemática e lógica das isenções fiscais conferidas pelo legislador aos insolventes em caso de venda de imóveis, no seio de uma insolvência;

6. A situação dos presentes autos, de apreensão de um bem imóvel com vista ao pagamento dos credores, sendo ainda por cima adquirida por um dos credores com garantia hipotecária que, por via dessa sua condição apenas pagou 20% do preço, configura um manifesto ato de dação em cumprimento ou cessão de bens aos credores, devendo assim beneficiar da isenção prevista pelo artigo 268° do CIRE,

7. A interpretação extensiva é permitida (artigo 10° do Estatuto dos Benefícios Fiscais).

8. Ao contrário do defendido na douta sentença sub judice, o legislador disse menos do que aquilo que quis dizer (minus dixit quam voluit), quando na anterior redação do preceito apenas mencionou a dação em cumprimento ou a cessão de bens e direitos.

9. A nova redação do preceito legal citado veio esclarecer e resolver os problemas e dúvidas interpretativos a que a norma de isenção sujeitara o intérprete no passado, declarando expressamente que também a compra e venda de bens ou direitos dos credores em processo de insolvência estão isentos de IRS e não concorrem para a determinação da matéria coletável do devedor.

10. Segundo o artigo 9o, n° 1 do Código Civil (CC), a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

11. Estabelece o artigo 13° do CC que a lei interpretativa integra-se na lei interpretada, ficando salvos, porém, os efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença passada em julgado, por transação, ainda que não homologada, ou por atos de análoga natureza.

12. A razão para a “lei interpretativa” ser aplicável a situações e factos anteriores, está no facto de ela vir consagrar e fixar uma das interpretações possíveis da lei antiga, com a qual Os interessados podiam e deviam contar, não violando assim expectativas seguras e legitimamente fundadas

13. O espírito do legislador, mesmo com a redação inicial do artigo 268.° n.° 1 do CIRE, foi o de conferir ao devedor insolvente um benefício fiscal, em sede de IRS, aquando da venda de bens imóveis em processo de insolvência e o de evitar que os ganhos gerados pela venda de um bem imóvel pela massa insolvente influenciassem o resultado tributável dos insolventes; Com efeito, legislador prevê, também, em caso de venda de bens imóveis, no âmbito de uma insolvência, isenções em sede de Imposto do Selo e de IMT, nos termos dos artigos 269.° e 270.° do CIRE.

14. A norma pode ser interpretativa mesmo que não qualificada como tal pelo legislador.

15. A norma do 268° do CIRE não é uma norma criadora de impostos, nem a alteração que deu origem à sua atual redação importa a criação de impostos.

16. Não está em causa a criação retroativa de um imposto ou de norma que imponha deveres ao sujeito passivo do imposto, em colisão com o princípio da proteção da confiança dos cidadãos e com o princípio da segurança jurídica.

17. O Tribunal a quo errou no seu julgamento, ao ter feito uma apreciação e valoração inapropriada e incorreta dos factos e do direito aqui aplicáveis, valoração essa que deveria ter conduzido a uma decisão diversa da encontrada, designadamente, à revogação da decisão de indeferimento ora impugnada e à anulação da liquidação oficiosa de IRS n.° 2013.5005235475, referente ao ano de 2012.

18. A douta decisão a quo violou os preceitos constantes dos artigos104° e 13° da CRP, 10° do CIRS, 471 da LGT, 1o, 36°, 51°, 172 e 268° do CIRE.

Termos em que, dando-se provimento ao presente recurso e com o douto suprimento de V. Exas., deve a douta sentença recorrida ser revogada por V. Exas., com todas as consequências legais, assim se fazendo a tão acostumada JUSTIÇA!»


*


A Recorrida fazenda pública não apresentou contra-alegações.

*

O Ministério Público, junto deste Tribunal Central, emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.

*

Com dispensa dos vistos legais, vem o processo submetido à conferência para apreciação e decisão.

*

II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Atento o disposto nos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas pelos recorrentes no âmbito das respectivas alegações, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.

Importa assim, decidir se a sentença recorrida:

i) Incorreu em erro de julgamento na medida em que a AT não provou que os recorrentes tiveram um acréscimo patrimonial;

ii) Efectuou errado julgamento de direito por violação dos princípios da tributação segundo o rendimento real e da capacidade contributiva uma vez que a mais valia gerada com a venda efectuada no âmbito de processo de insolvência não foi recebida pelos recorrentes;

iii) Efectuou errado julgamento de direito ao julgar que a alteração efectuada ao artigo 268.º do CIRE não tem natureza interpretativa e, no limite, por não efectuar interpretação extensiva do referido regime de isenção.


*

III - FUNDAMENTAÇÃO

III – 1. De facto

É a seguinte a decisão sobre a matéria de facto constante da sentença recorrida:

«a) Em 13.01.1993, a Impugnante E…, adquiriu, por doação de seus pais, o prédio urbano sito na Q…, freguesia de E… (Santa Maria), descrito no registo predial sob o n.º 0…/0…, e inscrito na matriz predial urbana da mesma freguesia, então sob o artigo 4…, e posteriormente, na matriz predial da União de Freguesias de E…, sob o art.º 2…; Cfr doc de fls 131 e 132 e 143 do processo administrativo,

b) Os Impugnantes foram declarados insolventes, em sentença proferida em 02.04.2012, no processo n.º 588/11.0TBETZ, que correu termos no tribunal judicial de Estremoz, e a qual, além do mais, nomeou o administrador da insolvência, e determinou a apreensão, e entrega àquele administrador, de todos os bens dos insolventes, nomeadamente, daquele prédio urbano; admitido por acordo, documento junto pelos Impugnantes com o requerimento de fls 283

c) Em 26.02.2016, o administrador da insolvência, em nome da massa insolvente daquele processo n.º 588/11.0TBETZ, vendeu à C…, aquele prédio urbano inscrito sob o artigo 2… na matriz predial urbana da União das Freguesias de E…, pelo preço de € 149 250,00; Admitido, cfr doc 1 junto à petição inicial, e documento constante do processo administrativo instrutor

d) A venda foi realizada através de documento com o teor que consta de documento 1 junto à petição inicial e de fls 134 a 138 do processo administrativo, o qual aqui se dá por integralmente reproduzido, dele constando, nomeadamente, que o administrador da insolvência recebeu do adquirente, “ o valor correspondente a vinte por cento do preço, ou seja, vinte e nove mil oitocentos e cinquenta euros, da qual ficou dispensada do pagamento da parte restante atenta a sua qualidade de credora hipotecária nos termos do n.º 1 do artigo 815.º do Código de Processo Civil.” Cfr doc 1 junto à petição inicial e documento de fls 134 a 138 do processo administrativo instrutor.

e) Em 30.05.2017, na sequência da sua primeira declaração de rendimentos referentes a 2016, foi emitida em nome dos Impugnantes a liquidação de IRS n.º 2017 5004624551, com o teor que consta do documento de fls 52 do processo administrativo, o qual aqui se dá por integralmente reproduzido, e na qual foi apurado um valor de imposto a pagar de € 401,82; Cfr doc de fls 52 do processo administrativo

f) Através de documento escrito datado de 01.06.2017, com o teor que consta de fls 51 do processo administrativo e o qual aqui se dá por integralmente reproduzido, a Directora de Serviços do IRS, comunicou ao Impugnante que a sua primeira declaração de rendimentos do ano de 2016, havia sido selecionada para análise, com base na seguinte situação: “Alienação de imóveis não declarada ou necessidade de comprovação das despesas, valor de alienação, data de aquisição dos imóveis alienados ou afetação a atividade profissional; Outros” Cfr doc de fls 51 do processo administrativo

g) Posteriormente, ainda em Junho de 2017, o serviço de finanças de Estremoz enviou ao Impugnante ofício com o seguinte teor:


«Imagem em texto no original»


Cfr doc de fls 75 e 76 do processo administrativo

h) Em 24.07.2017, os Impugnantes apresentaram via internet, a declaração de rendimentos de 2016, com a identificação 0906-J…-6, constituída pelo modelo 3, por um anexo A, um anexo B, um anexo G, e um anexo H; cfr documento de fls 18 a 28 do processo administrativo,

i) O teor do quadro 4 desse anexo G, é o seguinte:


«Imagem em texto no original»


Cfr doc de fls 24 do processo administrativo

j) Em 29.07.2017, com base nessa declaração de rendimentos, foi emitida a liquidação de IRS n.º 2017 5005327285, com o seguinte teor:




Cfr doc 4 junto à petição inicial e documento constante do processo administrativo

k) Em 27.11.2017, os Impugnantes apresentaram no serviço de finanças de Estremoz, reclamação graciosa daquela liquidação, que viria a ser tramitada sob o n.º 0906201704000609;

l) O Impugnante foi notificado para exercer o direito de audição sobre o projceto de indeferimento daquela reclamação graciosa, com o teor que consta de fls 145 a 148 do processo administrativo, que aqui se dá por integralmente reproduzido; doc 6 junto à petição inicial, fls 145 a 148 do processo administrativo, confessado pelos próprios Autores

m) Os Impugnantes exerceram do seu direito de audição sobre aquele projecto de decisão de indeferimento, cuja análise foi reflectida no teor da informação que sustentou a decisão final, nos seguintes termos:

(…)


«Imagem em texto no original»


(…)

Cfr doc de fls 150 a 154 do processo administrativo

n) Aquela reclamação graciosa, viria a ser indeferida através de despacho do Director de Finanças de Évora de 17.03.2018; Cfr doc 6 e 7 junto à petição inicial, e de fls 145 a 150 do processo administrativo

o) Com data de 11.10.2017, o administrador da insolvência remeteu aos Impugnantes, carta com o seguinte teor:


«Imagem em texto no original»


Cfr doc 9 junto à petição inicial
*
Em sede de fundamentação da matéria de facto consignou-se que:
«A convicção do Tribunal sobre toda a matéria de facto resultou da análise crítica aos documentos juntos aos autos pelos Impugnantes, conjugados com os que constam do processo administrativo, tal como se fez referência em cada uma das alíneas da matéria de facto provada.»
*

III – 2. De Direito

Os recorrentes não se conformam com a sentença que julgou improcedente a impugnação, na qual pretendiam que o tribunal declarasse que os rendimentos de IRS da categoria G que foram tributados na liquidação impugnada estavam isentos.

Manifestam o seu inconformismo, alegando que a sentença incorreu em erro de julgamento por não ter tido em conta que a AT não provou que existiu um acréscimo patrimonial efectivo de que tenham beneficiado.

No entanto, não lhes assiste razão como bem decidiu o Tribunal recorrido.

Conforme decorre dos pontos c) e d) da matéria de facto provada, foi vendido o imóvel, ali melhor identificado e foi dessa venda que resultaram as mais valias.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 9.º e alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do CIRS, os ganhos obtidos com a alienação onerosa de direitos reais sobre bens constituem incrementos patrimoniais quando estatui que: «[c]onstituem incrementos patrimoniais, desde que não considerados rendimentos de outras categorias:

a) As mais-valias, tal como definidas no artigo seguinte

O n.º 1 alínea a) do artigo 10.º do mesmo código dispõe o seguinte:

«1 - Constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de:

a) Alienação onerosa de direitos reais sobre bens (…);».

Importa ainda ter presente que, nos termos do artigo 18.º, n.º 3 da LGT, o sujeito passivo é a pessoa singular ou colectiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte direto, substituto ou responsável.

Ora, com a declaração de insolvência não se extingue a pessoa singular: Mantém-se a personalidade jurídica do insolvente, pelo que, a massa insolvente não é um sujeito passivo distinto do insolvente.

Tendo ainda presente que a relação jurídica tributária se constitui com o facto tributário, conforme decorre do disposto no n.º 1 do artigo 36.º da LGT, impõe-se concluir que, independentemente da data em que ocorra o facto tributário, seja ele anterior ou posterior à data da declaração da insolvência, o sujeito passivo dos impostos não deixa de ser o insolvente.

Não restam dúvidas que o imóvel integrava a massa insolvente porquanto resulta da matéria de facto provada que os recorrentes foram declarados insolventes, por sentença proferida em 02/04/2012.

Apesar de os insolventes não poderem dispor livremente do seu património, após a declaração de insolvência, como alegam, por se tratar de uma medida de protecção dos credores impeditiva da dissipação do património que será liquidado para pagamento das dívidas, não deixaram de ser os proprietários dos direitos reais sobre o imóvel alienado e o produto da venda não deixou de integrar a sua esfera jurídica patrimonial.

Como se afirma na sentença recorrida: «a diferença positiva entre o valor dessa alienação, e o valor da sua aquisição pelo insolvente, ainda que não tendo sido directamente recebida por este, é destinado à redução do montante do passivo pelo qual ele, e o seu património eram responsáveis.

E foi isto o que aconteceu na situação em apreço.

Em termos simples, se o imóvel foi adquirido em 1993 pela Impugnante pelo valor de € 41 460,00, e se em 2016 ele foi alienado pelo valor de € 149 250,00, essa alienação gerou uma mais valia que é tributada em IRS em 50% do seu valor. (Cfr alíneas a), f), e i) da matéria de facto provada).

Se todo aquele valor de realização foi destinado ao pagamento de dívidas dos impugnantes, a respectiva mais valia constituiu um acréscimo patrimonial na sua esfera jurídica, não por via do aumento do valor do seu activo, mas por via da redução do seu passivo. (Cfr alíneas c) d) e o) da matéria de facto provada)».

Lançando mão do Acórdão do STA de 21/11/2019, tirado no processo n.º 01646/13.2BELRS, citado na sentença recorrida, «(…) o acréscimo de rendimento tributado resulta da diferença entre o valor por que foi adquirido o imóvel e o valor por que foi alienado (…), assim constituindo uma vantagem patrimonial para efeitos da incidência do I.R.S. E tal mais valia, embora não tenha entrado material e fisicamente na posse dos recorrentes, não deixou de entrar na sua (dos apelantes) esfera jurídica, a qual foi destinada à diminuição do respectivo passivo, pela sua adjudicação aos fins do processo executivo em que foi operada a alienação do imóvel. (…) o produto da venda foi distribuído pelos credores. Não estamos, pois, perante qualquer rendimento ficcionado, mas perante uma vantagem patrimonial efectiva, directamente subsumível na previsão do identificadoartº.10, nº.1, al. a), do C.I.R.S., o que arreda, igualmente, a possibilidade de procedência da argumentação de inconstitucionalidade da liquidação impugnada, devido a violação do dito princípio constitucional da capacidade contributiva e da igualdade tributária

Improcede, pois, a alegação dos recorrentes.

Os recorrentes alegam ainda que a mais valia gerada no âmbito do processo de insolvência, por acto praticado pelo administrador da insolvência em representação da massa insolvente não pode ser tributada na esfera pessoal dos insolventes.

Sobre a questão, o Tribunal recorrido decidiu o seguinte: «saber se quem deve pagar esse valor são os insolventes enquanto sujeitos passivos do imposto, ou a massa insolvente enquanto património autónomo responsável pelas dívidas decorrentes da sua administração e da sua liquidação com vista à satisfação das dívidas dos insolventes, é questão que ultrapassa o âmbito da impugnação judicial e que em nada colide com a validade do acto tributário.

(…) Neste sentido, veja-se, por exemplo, o acórdão do STA de 21.11.2019, tirado no processo n.º 01646/13.2BELRS, no qual se pode ler, designadamente, que “Em sede de impugnação judicial da liquidação de um imposto apenas pode conhecer-se da legalidade desse acto e já não da responsabilidade pelo pagamento da dívida por ele originada, matéria que apenas poderá ser discutida em sede de oposição à excução fiscal.”

Portanto, desde que verificados os pressupostos de incidência objectiva e subjectiva da mais valia, enquanto categoria G do IRS, a liquidação terá que ser efectuada de acordo com essas normas, sendo ilegal se violar essas normas.»

Efectivamente, saber a quem deve ser exigido o imposto, como bem se observa na sentença recorrida, releva da exigibilidade da dívida, podendo a discussão da questão ser suscitada no processo de oposição ao processo de execução fiscal, não pode ser objecto de conhecimento em sede de impugnação.

Acresce o facto de na insolvência se constituir a massa insolvente separada, não tem como consequência que ela passe a ser sujeito passivo de impostos. Tal autonomia visa exclusivamente determinar que dívidas podem ser pagas pelo administrador da insolvência, por constituírem a garantia do seu pagamento, não deixando de integrarem a propriedade dos insolventes até à venda.

O facto de a venda ter sido efectuada pelo administrador da insolvência também em nada altera o que se deixou dito, na medida em que agiu no exercício das suas funções de liquidador das dívidas, praticando actos de liquidação da massa insolvente e não em nome próprio. Nem se vislumbra sequer, que lhe fosse exigível que retivesse o imposto na fonte por não deter a qualidade de substituto tributário prevista no artigo 20.º da LGT, pelo que, não lhes assiste razão.

Neste sentido v.g. o Acórdão proferido pelo STA no processo n.º 0499/20.9BEBRG, datado de 20/12/2023 e toda a jurisprudência aí citada: «O sujeito passivo de imposto devido pelos ganhos provenientes da venda de imóveis em processo de insolvência de pessoas singulares e que constituam mais-valias é o insolvente

Alegam ainda os recorrentes que a mais-valia não recebida e no decorrer de uma insolvência, é ilegal e viola flagrantemente princípios constitucionais como o princípio da tributação de acordo com o rendimento real e o princípio da capacidade contributiva previstos no artigo 104.° da Constituição da República Portuguesa.

Tal alegação constitui a reiteração do que foi invocado na petição inicial, sendo que o que importava nesta sede era a alegação de como consideram os recorrentes que a decisão recorrida se constituiu na violou de tais princípios. No entanto, sempre se dirá, que atendendo ao que supra se deixou dito, no sentido de estarmos em presença de acréscimo patrimonial tributável ainda que tenha sido afecto ao pagamento de dúvidas dos recorrentes aos seus credores e nessa medida constitui uma vantagem patrimonial efectiva.

Neste sentido v.g. os Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 18/11/2020, Processo 01194/15.6BEBRG «II - A diferença entre o valor de aquisição e de venda dos bens imóveis, ainda que esta se faça em processo de insolvência e o respectivo produto fique afecto à satisfação dos credores da insolvência, não deixa de ser um rendimento obtido pelo insolvente

Deste modo, improcedem as alegações apreciadas.

Alegam ainda os recorrentes que o artigo 268.º do CIRE, na sua redacção actual, isenta expressamente de IRS, os ganhos resultantes da venda de bens imóveis, em processo de insolvência e que o espírito do legislador, mesmo com a redação inicial do artigo 268.° n.° 1 do CIRE, foi sempre a de conferir ao devedor insolvente um benefício fiscal, em sede de IRS, aquando da venda de bens imóveis em processo de insolvência evitando que os ganhos gerados pela venda de um bem imóvel pela massa insolvente influenciassem o resultado tributável dos insolventes porquanto o legislador prevê, também, em caso de venda de bens imóveis, no âmbito de uma insolvência, isenções em sede de Imposto do Selo e de IMT, nos termos dos artigos 269.° e 270.° do CIRE pretendendo invocar com tal argumentação que a situação dos presentes autos deve também beneficiar de tal isenção por interpretação extensiva permitida pelo artigo 10.º do EBF.

Sobre a questão decidiu o tribunal recorrido o seguinte:

«Lei interpretativa é “aquela que intervém para decidir uma questão de direito cuja solução é controvertida ou incerta, consagrando um entendimento a que a jurisprudência, pelos seus próprios meios, poderia ter chegado.”2

Ora, percorrendo a jurisprudência sobre o art.º 268.º n.º 1 do CIRE naquela, não se encontra controvérsia relevante que não tenha sido resolvida pela própria jurisprudência dos tribunais superiores, sobre o alcance daquela isenção.

É essa mesma jurisprudência, que aqui acompanhamos, que continua a não admitir qualquer interpretação extensiva do preceito, de maneira a isentar as mais valias decorrentes das vendas de bens em processos de insolvência, até essa isenção vir a ser introduzida no art.º 268.º n.º 1 do CIRE, através da alteração introduzida pela Lei 114/2017 de 31.12.

Como se pode ler no sumário do acórdão do STA de 06.06.2018. tirado no processo n.º 01136/17, “Na redacção anterior à que resulta da Lei do OE para 2018, o n.º 1 do art.º 268.º do CIRE apenas previa a isenção das mais-valias resultantes da dação em cumprimento ou cessão de bens do insolvente aos credores no âmbito do processo de insolvência, e não também no caso da venda, nada fazendo crer (designadamente para efeitos de aplicação extensiva da norma a esta última situação) que o legislador tenha dito menos que pretendia)”

“A interpretação extensiva pressupõe que, por via interpretativa, se conclua que o legislador minus dixit quam voluit, que o legislador disse menos do que aquilo que se pretendia dizer… ou seja, que quando isentou de IRS as mais-valias resultantes da dação em cumprimento de bens do devedor aos credores ou da cessão de bens aos credores pretendia igualmente abranger no âmbito da isenção as mais-valias realizadas com a venda a terceiros desses bens, pelo menos na parte em que o produto dessa venda fosse utilizado no pagamento aos credores. Mas, salvo o devido respeito, qualquer que seja o juízo sobre a bondade da opção legislativa, não pode é sustentar-se que o legislador pretendia também abranger na isenção prevista no n.º 1 do art. 268.º do CIRE as mais-valias resultantes da venda de bens do devedor. Na verdade, a ser assim, por certo o teria dito expressamente (cfr. art. 9.º, n.º 3, do CC), tanto mais que as situações de venda serão mais vulgares que as de dação em pagamento ou cessão de bens aos credores. Por outro lado, nada permite concluir designadamente a ratio legis, que o legislador quisesse aplicar às situações em que há venda de bens (transferência de bens do insolvente para terceiros) tratamento idêntico àquele em que há uma transferência directa de bens da esfera patrimonial do insolvente para a dos credores, sendo legítimo concluir que pretendeu estimular este modo de extinção das dívidas do insolvente.”

No mesmo sentido, podem ver-se, por exemplo, os acórdãos do mesmo STA de 24.04.2019, no processo n.º 0260/15.2BEFUN, fr 11.10.2017, no processo n.º 0504/17, e de 10.05.2017, no processo n.º 0669/15.

Assim, a nova redacção do art.º 268.º n.º 1 não tem natureza interpretativa, e a antiga redacção, aplicável à situação em apreço, não é susceptível de interpretação extensiva e, por isso, não isentava de imposto as mais valias obtidas com a venda de bens em processo de insolvência.»

O mesmo é dizer que as mais valias resultantes da alienação do imóvel em causa não estavam isentas de IRS, e, por isso, nenhum vício de violação de lei, designadamente por violação daquela art.º 268.º n.º 1, pode ser imputado à liquidação impugnada, nem ao acto de indeferimento da reclamação graciosa, que acabou por manter a liquidação.»

E assim é. Com efeito, apenas se poderia configurar que a alteração legislativa a que supra se fez alusão teria a natureza de lei interpretativa, se existisse dúvidas na interpretação geradora de controvérsia sobre a norma vigente até então e fosse possível retirar uma interpretação que pudesse incluir no seu sentido os casos da venda de imóveis, o que não sucede no caso, sob pena de colocar em causa a validade da interpretação e estarmos perante a criação de uma nova isenção em sede de IRS, sendo de resto o entendimento de que se trata antes de norma inovadora reiterado unanimemente na jurisprudência conforme se deu nota na sentença recorrida.

Quanto à hipótese da interpretação extensiva, insurgem-se os recorrentes no que se refere ao entendimento do tribunal recorrido, de que o legislador disse menos do que pretendia.

No entanto, também aqui não lhes assiste razão.

Ainda que o artigo 10.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais permita a interpretação extensiva, ela só seria viável se se concluísse que o legislador disse menos do que pretendia.

Dito de outro modo, seria necessário que se pudesse inferir da norma que o legislador ao isentar de IRS as mais-valias resultantes da dação em cumprimento de bens do devedor aos credores ou da cessão de bens aos credores pretendia também incluir no âmbito de tal isenção as mais-valias realizadas com a venda aplicadas no pagamento a credores, o que como se viu não resulta da norma, nem se infere.

Ora, como se sabe, a criação de impostos bem como de isenções estão submetidos ao princípio da legalidade tributária, na sua vertente da tipicidade, daí que o legislador não tivesse referido que a alteração legislativa tivesse carácter interpretativo, por se tratar de uma inovação legislativa.

A considerar-se a interpretação extensiva preconizada pelos recorrentes estaríamos no âmbito da criação de uma nova isenção em sede de IRS em violação do princípio da legalidade, pelo que também quanto a esta questão não assiste razão aos recorrentes.

Neste sentido v.g. o Acórdão do STA de 10/03/2021, proferido no processo n.º 1123/15.7BEPRT,: «[n]a redacção anterior à que resulta da Lei do OE para 2018, o n.º 1 do art. 268.º do CIRE apenas previa a isenção das mais-valias resultantes da dação em cumprimento ou cessão de bens do insolvente aos credores no âmbito do processo de insolvência, e não também no caso da venda, nada fazendo crer (designadamente para efeitos da aplicação extensiva da norma a esta última situação) que o legislador tenha dito menos que pretendia.

O legislador pretendeu consagrar uma norma inovadora e, qua tale, não interpretativa do regime legal vigente, até porque, como já se deixou consignado, mais do que uma vez, a redacção da norma até à alteração legislativa não comportava, sem que fossem ultrapassados os limites de uma interpretação válida, a extensão da letra ao ponto de contemplar no âmbito do sentido jurídico-normativo da norma os casos de venda de imóveis, o que significa que não pode reconhecer-se natureza interpretativa ao artigo 287º nº 1 da Lei nº 114/2017, de 29-12, que conferiu nova redacção ao artigo 268º nº 1 do CIRE.»

Donde se conclui que o recurso improcede na sua totalidade.

A responsabilidade tributária do processo recai sobre os Recorrentes por terem sido vencidos (cf. artigo 527.º do Código de Processo Civil).


*

IV – CONCLUSÕES

I – Apesar de os insolventes não poderem dispor livremente do seu património após a declaração de insolvência, por se tratar de uma medida de protecção dos credores impeditiva da dissipação do património que será liquidado para satisfação dos créditos da insolvência, não deixam de ser os titulares dos direitos reais sobre os imóveis que integram a sua esfera jurídica;

II – O produto da alienação dos bens na fase da liquidação não deixa de integrar a sua esfera jurídica patrimonial, pelo que, o sujeito passivo de imposto devido pelos ganhos provenientes da venda de imóveis em processo de insolvência de pessoas singulares que constituam mais-valias são os insolventes;

III - O acréscimo de rendimento resultante da diferença entre o valor por que foi adquirido o imóvel e o valor pelo qual que foi alienado constitui uma vantagem patrimonial para efeitos da incidência do IRS no regime vigente à data dos factos;

IV – A alteração legislativa que, entretanto, isentou da tributação tais mais valias não tem natureza interpretativa, não sendo de aplicação retroactiva, nem em alternativa se impõe a interpretação extensiva.

V – DECISÃO

Termos em que, acordam os Juízes que compõem a Subsecção Tributária Comum da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso e manter a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 18 de Setembro de 2025.


Ana Cristina Carvalho - Relatora

Rui Ferreira – 1.º Adjunto

Sara Diegas Loureiro – 2.ª Adjunta