Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1270/23.1BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:09/11/2025
Relator:JOANA COSTA E NORA
Descritores:DOCUMENTOS ADMINISTRATIVOS
DOCUMENTOS INTERNOS
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Sumário:I - São documentos administrativos, para efeitos da LADA e conforme o disposto no seu artigo 3.º, n.º 1, alínea a), subalínea i), os documentos referentes a procedimentos internos da AIMA, I.P., com vista à emissão de autorizações de residência.
II - Respeitando os documentos pretendidos a orientação interna para a decisão dos procedimentos administrativos de concessão de autorização de residência, sempre os mesmos deveriam ser publicitados por iniciativa da AIMA, nos termos do artigo 10.º, n.º 1, alínea c), subalínea iii), da LADA, pelo que, também por maioria de razão, qualquer pessoa poderá requerer a emissão de certidão de tais documentos.
III - Consistindo o pedido na emissão de certidão de documentos, a instância só seria inútil se tivesse sido emitida a certidão, não assumindo qualquer relevância no âmbito dos presentes autos de intimação para a passagem de certidões a circunstância de tais documentos respeitarem a informação de serviço revogada, uma vez que não está em causa a aplicação de informação de serviço a uma qualquer situação individual e concreta, antes apenas o acesso a documentos administrativos.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção Administrativa Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO

Acordam, em conferência, os juízes da subsecção comum da secção administrativa do Tribunal Central Administrativo Sul:


I – RELATÓRIO

M… intentou intimação para a prestação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões, contra a AGÊNCIA PARA A INTEGRAÇÃO, MIGRAÇÕES E ASILO, I.P.. Pede a intimação da entidade demandada a emitir as certidões “do Despacho do Exmo. Sr. Diretor Regional da DRLVTA que ordena que em todos os pedidos de concessão de autorização de residência apresentados nos termos dos artigos 88.º e 89.º da Lei 23/2007, e em todos os casos” e “do Parecer Jurídico 761/2022, do Gabinete Jurídico do SEF”.
Pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa foi proferida sentença a intimar a entidade demandada a “emitir e disponibilizar à requerente certidão: (i) do despacho do Diretor Regional da DRLVTA que ordena que em todos os pedidos de concessão de autorização de residência apresentados nos termos dos artigos 88.º e 89.º da Lei 23/2007 e em todos os casos em se se verifique a simples existência de uma Indicação SIS os pedidos sejam indeferidos; (ii) do parecer jurídico n.º 761/2022.”
A entidade demandada interpôs o presente recurso de apelação, cujas alegações contêm as seguintes conclusões:
“1. A ora recorrida intentou intimação para prestação de informações, consulta de processos e passagem de certidões pedindo a intimação da entidade demandada na “emissão de certidões, quer do despacho do Exmo. Sr. Diretor Regional da DRLVTA, quer do supra aludido Parecer”;
2. Por sentença do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, datada de 08/11/2023, o Tribunal a quo intimou a “Entidade Requerida (atualmente AIMA, IP) a, no prazo de 10 dias, contados nos termos do artigo 87.º do CPA, emitir e disponibilizar à requerente certidão; (i) do despacho do Diretor Regional da DRLVTA que ordena que em todos os pedidos de concessão de autorização de residência apresentados nos termos dos artigos 88.º e 89.º da Lei 23/2007 e em todos os casos em se se verifique a simples existência de uma Indicação SIS os pedidos sejam indeferidos; (ii) do parecer jurídico n.º 761/2022.”
3. O artigo 268º, nº 1 da Constituição da República (CRP) prevê que “Os cidadãos têm o direito de ser informados pela Administração, sempre que o requeiram, sobre o andamento dos processos em que sejam diretamente interessados, bem como o de conhecer as resoluções definitivas que sobre eles forem tomadas.”, assim se consagrando o direito à informação procedimental;
4. Os artigos 82.º a 85.º CPA regulam e condensam o direito á informação administrativa, o qual inclui o direito à informação sobre o andamento dos procedimentos e o conhecimento das decisões, ou, conforme referido por Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha (Comentário ao CPTA, 4ª Edição, Almedina, p. 855), “o direito à informação procedimental reporta-se a factos, atos ou documentos que integram ou resultam de um concreto procedimento administrativo que se encontre ainda em curso.”
5. E, por outro lado, o direito de acesso aos arquivos e registos administrativos, sem prejuízo do disposto na lei em matérias relativas à segurança interna e externa, à investigação criminal e à intimidade das pessoas (cf. artigo 268.º n.º 2 da CRP, relativo ao designado direito à informação não procedimental);
6. Com o devido respeito, afigura-se que o pedido formulado pela ora recorrida extravasa o pedido de informação não procedimental, não estando a Entidade Demandada vinculada a providenciar os elementos solicitados.
7. Efetivamente, a amplitude com que o legislador estabeleceu o conteúdo do direito de informação não significa que todo e qualquer pedido de informação que seja formulado perante a entidade administrativa pelo interessado se mostre por ele abrangido e, por isso, tenha que ser satisfeito.
8. Afigura-se-nos que a ora recorrida pretende questionar a entidade demandada sobre a sua atuação, resultando, assim, da petição inicial apresentada que a mesma discorda da atuação do então SEF e das decisões tomadas no âmbito dos vários procedimentos;
9. Estão em causa procedimentos internos, não tendo o então SEF o ónus de elaborar informações sobre os seus procedimentos para os poder facultar aos interessados;
10. Com efeito, a ora recorrida pretende informação sobre procedimentos da Entidade Demandada, não tendo esta de explicar os seus procedimentos e as respetivas razões, nos termos pretendidos pelo ora recorrente, que dizem respeito ao seu funcionamento e modus operandi, o que ultrapassa, assim, o dever legal de informação;
11. É ainda de salientar que, face à alteração do quadro legal aplicável, foi revogada a aplicação da referida Informação de Serviço, visando a correta aplicação dos dispositivos legais aplicáveis;
12. Mais se refira que a referida revogação é do conhecimento da ora recorrida, constatando-se, ainda, não haver prévio pedido para emissão de certidão quanto à supra referida informação;
13. Face ao supra exposto, constata-se, assim, não se manter a utilidade na presente intimação, por falta de efeito da mesma.
14. Por conseguinte, atenta a factualidade e o enquadramento legal em que se movimenta o caso em análise, apresenta-se inequívoco que a sentença a quo padece dos erros de julgamento que lhe são assacados;
15. Pelo que, em conformidade, terá de ser concedido provimento ao presente recurso e revogar-se a sentença recorrida.”
A recorrida, notificada da interposição do recurso, não respondeu à alegação da recorrente.
O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado nos termos e para efeitos do disposto no artigo 146.º, n.º 1, do CPTA, pronunciou-se pela improcedência do recurso, nos termos da sentença recorrida.
Sem vistos dos juízes-adjuntos, por se tratar de processo urgente (cfr. n.º 2 do artigo 36.º do CPTA), importa apreciar e decidir.


II – QUESTÕES A DECIDIR

Face às conclusões das alegações de recurso – que delimitam o respectivo objecto, nos termos do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC -, a questão que ao Tribunal cumpre solucionar é a de saber se a sentença recorrida padece de erro de julgamento de direito.


III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença recorrida fixou os seguintes factos, que considerou provados:
“1. Em 21.03.2023 foi remetida mensagem de correio eletrónico por M…, tendo como destinatário o endereço eletrónico “DRLVTA.DRED@sef.pt” e “Info.DRLVTA@sef.pt”, na qual pode ler-se, além do mais, o seguinte: [cfr. documento n.º 1 junto com o R.I.]
“Exmo. Senhor Chefe do DRED É-lhe, pelo presente, solicitado que dê cumprimento ao pedido de emissão de certidões, no tempo previsto por Lei; certidões que essa DRLVTA tem negado sob pretextos/argumentos de dúbia legalidade:
a) Certidão do Despacho do Exmo. Sr. Diretor Regional da DRLVTA que ordena que em todos os pedidos de concessão de autorização de residência apresentados nos termos dos artigos 88.º e 89.º da Lei 23/2007, e em todos os casosem se se verifique a simples existência de uma Indicação SIS, e sem se aferir da sua validade e bondade da mesma, e em violação da Lei, os pedidos são SEMPRE (!), “para indeferir”.
b) Certidão do Parecer Jurídico 761/2022, do Gabinete Jurídico do SEF.
Essa DRLVTA tem evitado – de forma ilegal – a emissão das referidas certidões; e que se reportam a documentos que afectam de forma grave os direitos, liberdades e garantias dos Utentes, e em matérias que lhes dizem diretamente respeito, usando do pretexto que se tratam de documentos internos.
Ora, não estão em causa documentos confidenciais, ou matérias de Estado.
O que temos é tão só e apenas o evitar por parte dessa DRLVTA de procedimentos transparentes; como o reclama a Lei.
E, em última análise, o que está em causa é afastar a aplicação da Lei, em prol de direções, instruções e comandos internos; que NÃO podem e NÃO prevalecem sob a Lei. O Exmo. Sr. Diretor Regional da DRLVTA não é legislador. Nem lhe cabem poderes para afastar a Lei.”
2. Até à presente data não foram emitidas as certidões requeridas [acordo].”


IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A sentença recorrida intimou a entidade demandada a “emitir e disponibilizar à requerente certidão: (i) do despacho do Diretor Regional da DRLVTA que ordena que em todos os pedidos de concessão de autorização de residência apresentados nos termos dos artigos 88.º e 89.º da Lei 23/2007 e em todos os casos em se se verifique a simples existência de uma Indicação SIS os pedidos sejam indeferidos; (ii) do parecer jurídico n.º 761/2022.” Para o efeito, considerou que está em causa o direito à informação não procedimental, e que, não tendo sido alegado nem resultando dos autos qualquer facto que permita concluir que os documentos pretendidos não existem e/ou que a certidão requerida esteja abrangida por quaisquer das restrições de acesso consagradas no artigo 6.º da LADA, e tratando-se de documentos que traduzem orientações genéricas aos serviços, relativos a procedimentos que têm em vista a emissão de atos administrativos, terão os mesmos, ao abrigo do direito de acesso e do princípio da administração aberta, de ser fornecidos à requerente, devendo ser emitida a respectiva certidão.
Contra o assim decidido, insurge-se a recorrente, alegando que o pedido extravasa o direito à informação não procedimental, em virtude de os documentos em causa respeitarem a procedimentos internos.



Vejamos.
O direito de acesso aos arquivos e registos administrativos (direito à informação não procedimental) está regulado na Lei n.º 26/2016, de 22 de Agosto, a Lei de Acesso aos Documentos Administrativos (LADA), em cujo artigo 5.º se estabelece que todos, sem necessidade de enunciar qualquer interesse, têm direito de acesso aos documentos administrativos, o qual compreende os direitos de consulta, de reprodução e de informação sobre a sua existência e conteúdo, constando do artigo 6.º as restrições ao direito de acesso. Para efeitos da LADA, considera-se “Documento administrativo”, qualquer conteúdo, ou parte desse conteúdo, que esteja na posse ou seja detida em nome dos órgãos e entidades às quais se aplica tal lei, incluindo, designadamente, os documentos relativos a procedimentos de emissão de actos administrativos - cfr. artigo 3.º, n.º 1, alínea a), subalínea i).
Antes de mais, não está em causa, no caso em apreço, a existência dos documentos cuja certidão a requerente pretenda que seja emitida (despacho e parecer jurídico), como, aliás, resulta das conclusões 6 (na qual refere que não está "vinculada a providenciar os elementos solicitados"), 11 e 13 (nas quais afirma que a presente intimação perdeu utilidade por ter sido revogada a "informação de serviço", correspondente ao despacho cuja certidão é peticionada), alegando a recorrente que tais documentos cuja emissão a requerente pretende se referem a procedimentos internos dos seus serviços, e que essa natureza interna dos procedimentos afasta o dever de emitir certidão de tais documentos.
Ora, tanto o despacho do Director Regional da DRLVTA que ordena que em todos os pedidos de concessão de autorização de residência apresentados nos termos dos artigos 88.º e 89.º da Lei 23/2007 e em todos os casos em se se verifique a simples existência de uma Indicação SIS os pedidos sejam indeferidos, como o parecer jurídico n.º 761/2022, são documentos administrativos para efeitos da LADA. Com efeito, ainda que tais documentos se refiram a procedimentos internos, como alega a recorrente, não deixam os mesmos, por isso, de ser documentos administrativos, pois que, nos termos da norma acima referenciada, são-no também os documentos “internos” que respeitem aos procedimentos de emissão de actos administrativos. Assim, referindo-se os documentos pretendidos ao procedimento de concessão de autorização de residência, são os mesmos documentos administrativos e, deste modo, acessíveis a todos nos termos da LADA.
Ademais, de acordo com o disposto no artigo 10.º, n.º 1, alínea c), subalínea iii), da LADA, os órgãos e entidades a quem se aplica tal lei publicitam nos seus sítios na Internet, de forma periódica e actualizada, no mínimo semestralmente, a informação cujo conhecimento seja relevante para garantir a transparência da actividade relacionada com o seu funcionamento, pelo menos, todos os documentos, designadamente despachos normativos internos, circulares e orientações, que comportem enquadramento estratégico da actividade administrativa. Ou seja, respeitando o despacho e o parecer jurídico pretendidos a orientação interna para a decisão dos procedimentos administrativos de concessão de autorização de residência – como alega a recorrente -, sempre os mesmos deveriam ser publicitados por iniciativa da AIMA, pelo que, também por maioria de razão, qualquer pessoa poderá requerer a emissão de certidão de tais documentos.
Assim sendo, improcede o invocado erro de julgamento.

Mais alega a recorrente que é inútil o presente processo porque a informação de serviço em causa foi revogada.
Nos termos do artigo 277.º, alínea e), do CPC, a inutilidade superveniente da lide é uma das causas de extinção da instância. Como ensina Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida (in Direito Processual Civil, Volume I, 2.ª Edição, Almedina, p. 626), “A instância tornar-se-á inútil quando se evidencie que, por qualquer causa processual ou extraprocessual, o efeito jurídico pretendido através do meio concretamente utilizado foi já plenamente alcançado, isto é, quando a actividade processual subsequente redunde em puro desperdício para as partes processuais envolvidas.”
Assim, no caso em apreço, consistindo o pedido na emissão de certidão de documentos, a instância só seria inútil se tivesse sido emitida a certidão, o que não aconteceu. Diferentemente, a circunstância de os documentos cuja emissão de certidão se pretende respeitarem a informação de serviço revogada não assume qualquer relevância no âmbito dos presentes autos de intimação para a passagem de certidões, os quais nada têm a ver com a aplicação de informação de serviço a uma qualquer situação individual e concreta, antes apenas com o acesso a documentos administrativos. Deste modo, a presente instância mantém a sua utilidade.
*
Vencida, é a recorrente responsável pelo pagamento das custas, nos termos dos artigos 527.º do CPC, aplicável ex vi artigo 1.º do CPTA.


V – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes da Subsecção comum da Secção administrativa do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso interposto.


Custas pela recorrente.

Lisboa, 11 de Setembro de 2025

Joana Costa e Nora (Relatora)
Marta Cavaleira
Mara de Magalhães Silveira