Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP00040075 | ||
Relator: | ERNESTO NASCIMENTO | ||
Descritores: | ABUSO DE CONFIANÇA | ||
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Nº do Documento: | RP200702280646074 | ||
Data do Acordão: | 02/28/2007 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REC PENAL. | ||
Decisão: | ALTERADA A DECISÃO. | ||
Indicações Eventuais: | LIVRO 253 - FLS. 95 | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | O agente que levanta para apropriação, o capital de uma conta bancária de que é co-titular, pertencendo esse capital por inteiro a outro co-titular, comete, não um crime de furto, mas um crime de abuso de confiança. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em audiência, na 2ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto I. Relatório I. 1. Na .ª Vara Criminal da Comarca do Porto, foi B………., submetido a julgamento, em processo comum com a intervenção do Tribunal Colectivo, acusado pelo MP, em autoria material, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 203º/1 e 204º/2 alínea a), ambos do Código Penal, na sequência do que veio a ser condenado na pena de 2 anos de prisão, cuja execução foi suspensa pelo período de 18 meses, com a condição de pagar ao assistente a quantia de € 20 400.00, no prazo de 12 meses. Foi ainda condenado a pagar ao assistente, a título de indemnização, pelos danos patrimoniais, o valor de € 20 400.00, acrescido de juros de mora à taxa legal de 4%, desde a data da notificação até efectivo e integral pagamento e ainda a quantia de € 500.00, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais. Inconformado com o acórdão, dele interpôs o arguido, recurso, que motivou, concluindo nos seguintes termos: 1. impugna-se a decisão proferida sobre a matéria de facto, no que respeita aos pontos acima enunciados, uma vez, que nenhuma prova foi produzida no sentido positivo e, a valoração dos documentos contraria o disposto no artigo 355º C P Penal, por nem todos terem ido objecto de exame em audiência de julgamento. 2. Aceita-se que as testemunhas indicadas pelo assistente e arguido se limitaram a revelar o que cada um daqueles lhe diziam, pelo que, a prova reduz-se prática e essencialmente aos depoimentos de cada um dos sujeitos processuais, o que determina o benefício da dúvida para o arguido. 3. E, com todo o respeito pelo Tribunal a quo, não se aceita que na valoração da prova, o depoimento do assistente tivesse sido mais credível do que o do arguido. 4. Desde logo não podemos deixar de salientar a incoerência e contradição do assistente que, ora afirma que o arguido se apropriou da quantia que lhe pertencia, para logo afirmar que tudo não passou de alguma confusão motivada pela sua avançada idade. 5. Por outro lado, não podem passar em claro os subterfúgios e ziguezagues do assistente, sempre com o exclusivo intuito de manter vantagens patrimoniais. No inventário por óbito da mãe do arguido procurou omitir bens a partilhar, como se veio a comprovar na partilha adicional, por agora de um jazigo. 6. Agora, alega que pretendia evitar que a sua esposa se apropriasse de quantias em dinheiro. 7. Por sua vez, o arguido, nunca agiu com propósitos materialistas, mantendo sempre uma conduta ética e moralmente correcta para com o assistente que, apesar dos constantes conflitos que este provoca, não impediram aquele de lhe prestar apoio nas sucessivas crises conjugais. 8. Entendeu sempre o arguido que a abertura da aludida conta bancária, correspondeu apenas à reposição de parte de um direito que ainda lhe assiste e, que é o de receber a sua quota-parte na herança aberta por óbito da sua mãe e, que ainda está a tempo de exigir. 9. Portanto, não se pode afirmar que o arguido teve a intenção de se apropriar da mencionada quanta em dinheiro ou, pelo menos, representou globalmente os elementos do tipo do crime que lhe é imputado. 10. Efectivamente, o arguido teve sempre a firma convicção que tal montante lhe pertence, pelo que, também não se encontra preenchido o tipo subjectivo de ilícito, tendo agido sempre com o carácter próprio com que representou a importância depositada. 11. Sendo certo que, o assistente também não demonstrou que a importância em causa fosse da sua exclusiva propriedade, sendo insuficiente a demonstração de que tal montante saiu de uma outra conta de que aquela também era titular. 12. Ainda que assim não se entenda, o consentimento e o acordo do assistente, reconhecido expressamente no seu depoimento e o resultante do contrato de depósito, para a movimentação da conta bancária são formas límpidas e transparentes a mostrarem quer a exclusão do ilícito, quer a própria inexistência do preenchimento do tipo, conforme o previsto no artigo 38º C Penal. 13. O arguido não cometeu o ilícito criminal que lhe é imputado e mantém a legítima expectativa de que o acórdão recorrido será revogado quanto à constituição do tipo de crime, mas, por mera cautela, sempre se terá de considerar que a condição imposta ao arguido para a suspensão da pena aplicada não é razoável de lhe exigir, atenta a situação económica que já se encontra demonstrada nos autos, tendo o acórdão recorrido efectuado errada interpretação e aplicação do disposto no nº. 2 do artigo 51º C Penal. 14. Face a tudo o que se alega, fica directa e necessariamente prejudicado o pedido cível, uma vez que, este está dependente do ilícito penal. 15. Ora, não subsistindo aquele, deixa de existir obrigação de indemnização. Na 1º Instância respondeu quer o MP, quer o assistente, pronunciando-se ambos, pelo não provimento do recurso. II. Neste Tribunal, o Exmo. Procurador Geral Adjunto, concordando coma posição assumida pelo MP na 1ª instância, suscita, no entanto a questão de que os factos dados como provados, não consubstanciarão a prática do crime de furto, pelo qual o recorrente foi condenado, antes, integrarão o crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205º/1 e 4 alínea b) C Penal, devendo a decisão recorrida ser mantida, negando-se provimento ao recurso, não obstante a moldura penal abstracta diversa, sendo que a pena concreta não vem colocada em causa. No cumprimento do artigo 417º/2 C P Penal, nada foi adiantado. Foram colhidos os vistos legais. Procedeu-se a julgamento com observância do legal formalismo. Cumpre decidir. III. Fundamentação III. 1. Como é por todos consabido, são as conclusões, resumo das razões do pedido, extraídas pelo recorrente, a partir da sua motivação, que define e delimita o objecto do recurso, artigo 412º/1 C P Penal. No caso presente, de harmonia com as conclusões apresentadas, suscita o recorrente para apreciação, as seguintes questões: impugnação da matéria de facto; qualificação jurídica dos factos; saber se existe alguma causa de exclusão da ilicitude; saber se é razoável a condição imposta para a suspensão da execução da pena; reflexo de tudo isto, no tocante ao pedido cível. III. 3. Passemos agora aos fundamentos do recurso. Vejamos primeiro, a matéria de facto definida pelo Tribunal recorrido: Factos Provados o arguido é filho do assistente. Em 12 de Abril de 2002, o assistente possuía a quantia monetária de 20.903,04€, a qual já havia depositado anteriormente na conta à ordem com o número ………….., aberta na agência da C………., sita em ………., no Porto, em nome próprio e da sua mulher D………. . Todavia e em virtude de se ter desentendido com a sua mulher, o assistente acordou com o arguido, em abrirem na mesma agência bancária a conta conjunta com o número ………….., para onde o assistente, no mesmo dia, veio a transferir o referido dinheiro, a fim de evitar que a sua mulher se viesse a apoderar do mesmo contra a sua vontade. Nessa altura, assistente e arguido acordaram também que a abertura daquela conta apenas visava aquele fim e que o dinheiro pertencia ao assistente. Porém, no dia 27 de Abril de 2002, o arguido dirigiu-se à mesma agência bancária e, daquela conta bancária, procedeu ao levantamento da quantia de 20.400€, a qual integrou no seu património e fez coisa sua, nunca mais a tendo devolvido ao assistente, não obstante as várias interpelações por este feitas. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, com o propósito concretizado de fazer sua a referida quantia monetária de 20.400€, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal. Bem sabia também que o dinheiro não lhe pertencia e que o assistente apenas transferiu tal dinheiro para aquela conta em virtude da confiança derivada da sua relação de parentesco e para acautelar a sua eventual apropriação pela sua mulher. O arguido não tem quaisquer antecedentes criminais. É reputado pelas pessoas que consigo convivem como pessoa séria educada e respeitadora. É casado, tendo 3 filhos. Exerce a profissão de gerente comercial, pela qual aufere a quantia de 500€ mensais. Vive em casa própria pagando cerca de 500€ mensais de empréstimo bancário. Estudou até ao 7.º ano de escolaridade. Com a conduta do arguido, o assistente ficou preocupado, ansioso e triste, sentimentos esses que se exacerbaram em virtude de tais factos terem sido praticados por um filho. Factos não provados Não resultaram provados outros factos com interesse para a decisão da causa, designadamente que a quantia em causa fizesse parte do acervo hereditário por morte da mãe do arguido e cônjuge do assistente. Porque tal matéria releva igualmente para a apreciação do recurso interposto, importa conhecer a fundamentação que justifica aquela decisão sobre a matéria de facto. O Tribunal formou a sua convicção na apreciação crítica do conjunto da prova produzida, designadamente: através da análise de todos os documentos juntos aos autos; na livre apreciação de todos os depoimentos produzidos em audiência de julgamento, principalmente as declarações do arguido e do assistente; na conjugação dos documentos com os depoimentos prestados. Assim e desde logo as testemunhas inquiridas apenas demonstraram um conhecimento indirecto dos factos, somente sabendo aquilo que assistente ou arguido lhe diziam. Não obstante tal facto, foram importantes para este Tribunal poder aferir do modo como o arguido é reputado pelas pessoas que consigo convivem, testemunhas de defesa, bem como o modo como o assistente ficou após tais factos, testemunhas de acusação. Já quanto aos depoimentos do assistente e do arguido os mesmos divergiram totalmente, tendo o assistente deposto do modo como os factos foram dados como provados, enquanto que o arguido afirmou peremptoriamente que o seu pai lhe tinha dado esse dinheiro, dizendo que era por conta das partilhas. Além disso, o arguido ainda afirmou ter vários créditos sobre o seu pai, referentes não só às partilhas por morte de sua mãe, bem como provenientes de vários outros motivos. No entanto e quando questionado acerca do montante dessas dívidas, o arguido não os soube precisar, apenas referindo que a sua mãe, quando morreu, tinha cerca de 18 mil contos em dinheiro, além de imóveis, que nunca foram partilhados, apesar de várias vezes ter insistido com o seu pai nesse sentido. Acrescentou ainda que o seu pai sempre se recusou a fazê-lo alegando que ainda queria voltar a casar-se e que, para esse efeito, teria que ter e aparentar uma boa situação económica a fim de conferir alguma estabilidade ao relacionamento. Além destas declarações, analisadas de acordo com o princípio da imediação e da livre apreciação da prova, houve vários documentos juntos aos autos, bem como explicações para o seu teor, dadas pelo arguido e pelo assistente, que nos levaram a concluir da forma como o fizemos. Desde logo e arrogando o arguido créditos sobre o assistente seria normal e plausível lembrar-se do seu valor. Além disso, a conta em questão foi uma conta conjunta aberta em nome dos 2, tendo ambos poder para a movimentar. Ora, se fosse intenção do assistente dar aquele dinheiro ao arguido, como este o afirmou, seria mais normal e óbvio transferi-lo directamente para uma conta do arguido, ou simplesmente dá-lo em mão, não sendo necessário abrir uma nova conta. A contrastar com tal facto, está a explicação dada pelo assistente para este facto que nos parece verdadeira e mais consentânea com a realidade. Com efeito, alegou este que se zangou com a sua mulher e que transferiu o dinheiro para outra conta, em que esta não figurasse como titular, para assim evitar que a mesma se apropriasse do referido dinheiro. Quanto ao facto de a conta ser conjunta, também nos acreditamos na versão do assistente, que referiu que assim o fez para o caso de morrer o seu filho poder levantar e ficar com o dinheiro, pois que tal é um procedimento normal das pessoas com idade avançada como já tem o assistente. A abonar a versão dos factos apresentada pelo assistente está também o documento junto aos autos a fls. 34, onde as assinaturas constantes do mesmo foram reconhecidas notarialmente, em que o arguido e a sua esposa declararam que já tinham recebido tudo relativamente à herança aberta por óbito de Maria de Lurdes Oliveira Bessa, mãe do arguido e esposa do assistente, referindo que mais nada tinham a receber. Ora, este facto, descredibiliza ainda mais a versão do arguido, de que ainda tinha contas a ajustar com o seu pai em relação à herança aberta por óbito de sua mãe. Com efeito, também não é minimamente crível, como argumentou o arguido, de que o conteúdo de tal documento não seja verdadeiro e que apenas tenha assinado tal documento para o pai o mostrar aos amigos, podendo assim demonstrar que nada devia ao seu filho. Tal explicação completamente ilógica, não acolheu qualquer merecimento neste Tribunal, tanto mais que após a prática dos factos que aqui estão em causa, o arguido requereu a partilha judicial dos bens da sua mãe, nunca tendo invocado qualquer montante em dinheiro para partilhar. Nesse inventário, cujo requerimento deu entrada a 1 de Setembro de 2003, já houve decisão transitada em julgado, quanto aos bens a partilhar, apenas nela se incluindo um jazigo e não dois imóveis como pretendia o arguido. Assim sendo e como se vê, o arguido não tinha a receber qualquer montante do assistente, sendo que, na altura da prática dos factos, apenas poderia subsistir a dúvida quanto à partilha de bens imóveis, pelo que não era lícito ao arguido, nem actuava ao abrigo de qualquer causa de exclusão de ilicitude apropriar-se de dinheiro do assistente, quando, na sua convicção, havia apenas bens imóveis ainda a partilhar, bem o sabendo que estava em tempo para requerer essa partilha, como aliás o fez. Por fim, o arguido juntou aos autos uma declaração assinada pelo assistente e cuja intenção era dirigir ao Juiz Presidente deste julgamento, em que o signatário, em traços gerais, afirma que este processo não passa de uma confusão por si gerada, devida à sua avançada idade, pois que autorizou o filho a movimentar aquela conta. Ora, em audiência de julgamento, o assistente confirmou ter preenchido tal documento, mas reiterou que o mesmo não corresponde à verdade, sendo que apenas o preencheu e assinou, porque o filho lhe prometeu que lhe devolveria o montante em causa nestes autos e também pelo facto de poder vir a sentir remorsos se o seu filho viesse a ser condenado. Tal explicação, mereceu novamente total acolhimento neste Tribunal porque lógica e consentânea com a realidade, já que é usual, nos nossos tribunais e quanto se trata de pai e filho, um dos dois, quando se aproxima a data do julgamento, dar-se o dito por não dito, só para não ver o seu parente próximo condenado, mesmo que ainda não estejam de boas relações. No caso em epigrafe, o assistente fez isso, assinando tal documento. No entanto e como o filho não lhe devolveu, entretanto, o dinheiro em causa, o assistente veio a juízo defender a 1.ª versão por si apresentada, a qual pelos motivos já referidos, consideramos ser a verdadeira. III. 3. De harmonia com o disposto no artigo 428°/1 C P Penal, “As Relações conhecem de facto e de direito”. No caso sub judice, tendo-se procedido à gravação da prova produzida em audiência, este tribunal conhece de facto e de direito, nos termos das posições conjugadas dos artigos 364°/1 e 428°/1 e 2, este “a contrario”, ambos do C P Penal. Vejamos, então, agora se se pode concluir pela afirmação de que existam pontos de facto incorrectamente julgados. Porém, antes de avançarmos na consideração mais aprofundada desta temática, justifica-se fazer um breve parêntesis aos poderes conferidos às Relações em termos de modificação da matéria de facto apurada em 1.ª instância. É que não se tratam, como à primeira vista poderia resultar de uma leitura mais imediata dos correspondentes preceitos processuais, de poderes que traduzam um conhecimento ilimitado dessa mesma factualidade. Para isso concorre, essencialmente, a concepção adoptada no nosso ordenamento adjectivo que concebe os recursos como “remédio jurídico” para os vícios de julgamento, ou se se quiser, o seu entendimento como juízos de censura crítica e não como “novos julgamentos”, bem como ainda, as decorrências do princípio da livre apreciação da prova, artigo 127.º C. P Penal e bem assim o natural privilegiamento que compreensivelmente se há-de conferir à decisão que foi proferida numa relação de maior imediação e proximidade com a sua própria produção. Por via de regra, o tribunal de recurso não vai à procura de uma convicção autónoma fundada na sua própria interpretação da prova, mas antes verificar se a factualidade definida na decisão em apreciação se mostra adequadamente ancorada na análise crítica efectuada das provas. Da mesma maneira, a alteração solicitada em recurso de um qualquer facto só é de proceder, quando de forma clara e convincente o juízo alternativo apresentado sobre a sua definição como provado ou não provado, evidencie o seu melhor fundamento em relação ao apresentado pela instância. Sobre a apreciação da matéria de facto, pelo Tribunal de segunda instância, cabe aqui referir que “o Tribunal de segunda jurisdição não vai à procura de uma nova convicção (…), mas à procura de saber se a convicção expressa pelo Tribunal “a quo” tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (…) pode exibir perante si”, cfr. Ac RC de 3.10.2000, in CJ, IV, 28. Quando o recurso incida sobre a matéria de facto o recorrente deve especificar, artigo 412º/3 C P Penal, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, alínea a), as provas que impõem decisão diversa da recorrida, alínea b) e as provas que devem ser renovadas, alínea c). E acrescenta o n.º 4 deste preceito legal, que quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição. “Quando, em recurso para a Relação, seja impugnada matéria de facto e as especificações previstas nas alíneas a), b) e c) do nº 3 do artigo 412º, do Código de Processo Penal, não constem da motivação de recurso nem das respectivas conclusões, não há lugar a qualquer convite de aperfeiçoamento, tornando-se, desde logo e sem mais, legalmente vedada a pretendida alteração da matéria fáctica apurada na 1ª instância”, cfr. A RE de 4.7.2006 in site da DGSI. Se atentarmos ao recurso interposto pelo arguido, este não especifica, por referência aos suportes técnicos, as provas que na sua perspectiva impõem decisão diversa. “Não localizando nas gravações, onde se iniciam e terminam as partes dos depoimentos que transcrevem, para o Tribunal da Relação poder sindicar a decisão da matéria de facto não pode este Tribunal modificar a matéria de facto por reapreciação da prova produzida no julgamento e aí gravada”, Ac. da RC de 30.1.2002, in CJ, I, 45. “Se o recorrente não cumpre os deveres dos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do Código de Processo Penal, não é exigível ao Tribunal Superior que se lhe substitua e tudo reexamine”, Ac. STJ de 24.10.2002, processo n.º 2124/02, da 5ª Secção, in WWW.stj.pt. De todo o modo sempre diremos, pois que “quod abundat no nocet”, apenas e tão, só, no sentido do convencimento do recorrente, quanto à impugnação da matéria de facto, o seguinte, por manifesto e patente: no caso vertente, o recorrente defende, que falta prova, pessoal, que permita concluir pela verificação dos elementos constitutivos, objectivos e subjectivo, do tipo, sendo que a valoração dos documentos juntos viola o artigo 355º C P Penal, por nem todos terem ido objecto de exame em audiência de julgamento; que as testemunhas se limitaram a revelar o que, quer o assistente, quer ele próprio, lhes diziam, pelo que, a prova se reduz, na prática e essencialmente, às suas declarações e às do assistente, o que determina o benefício da dúvida em seu favor; não aceitar que na valoração da prova, o depoimento do assistente tivesse sido mais credível do que o seu; para tanto, salienta a incoerência e contradição do assistente que, ora afirma que o arguido se apropriou da quantia que lhe pertencia, para logo afirmar que tudo não passou de alguma confusão motivada pela sua avançada idade; que nunca agiu com propósitos materialistas, tendo entendido sempre, que a abertura da aludida conta bancária, correspondeu apenas à reposição de parte de um direito que ainda lhe assiste e, que é o de receber a sua quota-parte na herança aberta por óbito da sua mãe e, que ainda está a tempo de exigir, donde se não pode afirmar que tivesse intenção de se apropriar da mencionada quanta em dinheiro ou, pelo menos, representasse globalmente os elementos do tipo do crime que lhe é imputado, pois que sempre teve a firme convicção que tal montante lhe pertence; que também não se demonstrou que a importância em causa fosse da sua exclusiva propriedade, sendo insuficiente a demonstração de que tal montante saiu de uma outra conta de que aquela também era titular. Conclui, então, que o consentimento e o acordo do assistente, reconhecido expressamente no seu depoimento e o resultante do contrato de depósito, para a movimentação da conta bancária são formas límpidas e transparentes a mostrarem quer a exclusão do ilícito, quer a própria inexistência do preenchimento do tipo. No que concerne à credibilidade das declarações do assistente, que é o que verdadeiramente aqui constitui a essência da questão, passamos a citar, com a devida vénia, o Ac. RC de 9.2.2000, in CJ, I, 54/5: “ultrapassada a fase histórica da plenitude da prova tarifada, é manifesto que, hoje, a convicção do Tribunal apenas terá que obedecer ao requisito de ser recondutível a critérios objectivos e, portanto, susceptível de motivação e controlo. Tal critério objectivo reconduz-se a uma perspectivação de apreciação da prova produzida de acordo com as regras da experiência que são verdades intuitivas par ao cidadão comum. Efectivamente o princípio da livre apreciação da prova tem 2 vertentes. Na negativa, significa que na apreciação, valoração, graduação da prova, a entidade decisória não deve obediência a quaisquer cânones legalmente pré-estabelecidos. Tem o poder-dever de alcançar a prova dos factos e de a valorar livremente, não existindo qualquer pré-fixada tabela hierárquica elaborada pelo legislador. Do lado positivo, significa que os factos são dados como provados, ou não, de acordo com a íntima convicção que a entidade decisória gerar em face do material probatório validamente constante do processo, quer provenha da acusação, quer da defesa, quer da iniciativa do próprio. Princípio que está consagrado no artigo 127º C P Penal, que dispõe que “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”. Tal convicção objectivável e motivável é o núcleo da questão proposta. Numa primeira perspectiva, é evidente que a ausência de qualquer regra predeterminada leva a considerar como inócua em relação ao depoimento, qualquer outra consideração exógena que não o valor do depoimento enquanto tal. Assim, o facto de o mesmo não ter corroboração de outra fonte no que respeita aos factos ocorridos, não tem qualquer influência pois que o velho brocardo romano “testis unus testis nullus”, expoente da prova tarifada, há muito que deixou de ser aceite como regra pelo sistema processual penal. A consagração de um efectivo duplo grau de jurisdição em matéria de facto, pode vir a transformar o julgamento na 2ª instância, num jogo de palavras vazio do pulsar da vida, da percepção dos sentidos e sentimentos. Na verdade, não podemos esquecer que, ao apreciar a matéria de facto, o Tribunal da 2ª instância está condicionado pelo facto de não ter com os participantes do processo, aquela relação de proximidade comunicante que lhe permite obter uma percepção própria do material que há-de ter como base da sua decisão. Só os princípios da oralidade e da imediação permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade, cfr. Figueiredo Dias, in Princípios Gerais do Processo Penal, 160. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais contritamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. Tal relação estabeleceu-se com o Tribunal de 1ª instância e daí que a alteração da matéria de facto fixada em decisão colegial, deverá ter como pressuposto a existência de elemento que, pela sua irrefutabilidade, não possa ser afectado pelo funcionamento do princípio da imediação”. Da conjugação do exposto, com a análise critica da prova feita na decisão recorrida, conclui-se que não merece qualquer reserva a fundamentação ali exarada, no que concerne ao não relevo atribuído às declarações do arguido, no que se reporta à questão nuclear, do seu direito ou não sobre o dinheiro que movimentou. A versão trazida aos autos pelo recorrente é desmentida pormenorizada, circunstanciada e motivadamente, pela do assistente, sendo, esta, ainda suportada, pela prova documental produzida nos autos. A este propósito, uma vez que o recorrente invoca a violação do artigo 355º C P Penal, diga-se, que vem sendo, unanimemente decidido pelos Tribunais, designadamente superiores, que tratando-se de prova documental, constante do processo, ainda que não tenha sido lida, nem examinada em audiência de julgamento, nada obsta a que possa servir para formar a convicção do Tribunal, cfr., entre muitos outros, Ac. STJ de 23.2.2005, in CJ, S, I, 210, Ac. RE de 30.3.2004, in CJ, II, 262 e Ac. RC de 19.9.2001, in CJ, IV, 50. De resto, o Tribunal Constitucional decidiu já através do Ac. 87/99 não ser inconstitucional a interpretação da norma contida no artigo 355º C P Penal, segundo a qual os documentos juntos ao processo valem como meio de prova, independentemente da sua leitura na audiência de julgamento. Assim, o Tribunal de 1ª instância, em situação absolutamente privilegiada, para apreciar os factos e valorar as provas, não deu como provada a versão do recorrente. Lendo a sentença, na sequência da acusação pública e cotejando a prova produzida, fácil é reconstruir o percurso que o tribunal trilhou para alcançar a convicção que depois veio a expor em termos de matéria de facto, dando prevalência à versão do assistente, não tendo sido produzida prova, de natureza refutável, que imponha a este Tribunal conclusão, diversa, no caso a prevalência da tese do arguido em detrimento da daquele. Estamos, pois, no reino da livre apreciação da prova, artigo 127º C P Penal, feita pela 1ª instância, com todas as vantagens que detém, nessa matéria, sobre apreciação que possa ser feita pelo Tribunal de recurso. Não será caso de erro notório na apreciação da prova, que sempre seria do conhecimento oficioso do Tribunal, artigo 410º/2 alínea c) C P Penal, uma vez que a discordância do recorrente se situa apenas e tão só, na forma como o Tribunal recorrido apreciou a prova produzida em audiência e o erro apenas será qualificado como notório, quando, contra o que resulte de elementos que constem dos autos, cuja força probatória não seja infirmada ou de dados do conhecimento generalizado, se emite um juízo sobre a verificação ou não de certa matéria de facto e se torne incontestável a existência de tal erro de julgamento sobre a prova produzida, cfr. Ac. STJ de 10.7.96, in CJ, S, II, 229. Assim definitivamente assente está a matéria de facto coligida pelo Tribunal de 1ª instância, pois que do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, não se vislumbra a ocorrência de qualquer dos vícios constantes do artigo 410º/2 C P Penal, nem insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nem contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, nem finalmente, erro notório na apreciação da prova. III. 4. Defende o recorrente, ainda que o consentimento e o acordo do assistente, reconhecido expressamente no seu depoimento e resultante do contrato de depósito, para a movimentação da conta bancária são formas límpidas e transparentes a mostrarem quer a exclusão do ilícito, quer a própria inexistência do preenchimento do tipo, conforme o previsto no artigo 38º C Penal. Esta conclusão é desmentida pela evidência ostensiva dos factos provados, onde consta que o arguido bem sabia que o dinheiro não lhe pertencia e que o pai apenas o havia transferido para aquela conta em virtude da confiança que em si depositava, para acautelar a sua eventual apropriação pela sua mulher, tendo aquele actuado com a intenção de fazer sua tal quantia, como fez, ao proceder ao seu levantamento. III. 5. Aqui chegados importa, então apreciar a questão suscitada pelo Sr. Procurador Geral Adjunto, qual seja a de que os factos apurados serão susceptíveis de integrar, não o tipo legal de furto, entendimento sufragado na 1ª instância, antes, o tipo legal de abuso de confiança. Vejamos então: dispõe o artigo 203º C Penal que, quem com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia é punido, como autor de um crime de furto. Por sua vez o artigo 205º, ainda do C Penal, dispõe que, quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel que lhe tenha sido entregue por título não translativo de propriedade, será punido como autor de um crime de abuso de confiança. Elementos constitutivos do tipo de furto são: a subtracção ilegítima; de coisa móvel alheia; com intenção de apropriação para si ou para outrem. Elementos constitutivos do tipo legal de abuso de confiança, são assim: a apropriação ilegítima; de coisa móvel; entregue por título não translativo de propriedade. A apropriação é o agente fazer sua, coisa alheia. Difere do furto porque neste caso a apropriação acompanha a posse ou detenção da coisa, enquanto que no abuso de confiança, a apropriação sucede à posse ou detenção. Aqui o agente recebe validamente a coisa, passando a possui-la ou a detê-la licitamente, a título precário ou temporário, mas, posteriormente, altera, inverte, arbitrariamente, o título de posse ou detenção, passando a dispor da coisa “ut dominus”. Citando Nelson Hungria, Simas Santos e Leal Henriques, em anotação ao artigo 205º C Penal, dizem que “para que esta apropriação indébita se apresente é indispensável que a negativa a omissão seja precedida ou acompanhada de circunstâncias que inequivocamente revelem o arbitrário “animus rem sibi habendi”, ou que não haja, de todo, qualquer fundamento legal ou motivo razoável para a recusa ou omissão”. A consumação, no crime de furto, acontece no momento em que a coisa deixa de estar sob o poder de detenção ou guarda do sujeito passivo e se transfere para a esfera jurídica do agente e, no de abuso de confiança, ocorre, em princípio com o acto de inversão do título de posse, sendo o momento da consumação, o da negativa da restituição, quando o agente, devidamente solicitado, se recusa a devolver a coisa possuída ou detida em nome alheio. Constitui a prática de um crime de abuso de confiança, o levantamento, para apropriação, do capital de uma conta solidária feita por um dos seus co-titulares, quando se demonstre que a inclusão do seu nome nessa conta não corresponde a qualquer compropriedade do dinheiro e sim, apenas, a um mero possibilitar da movimentação de tal conta, no exclusivo interesse e ou, por ordem de outro, ou dos titulares dela, cfr. Ac. RE de 19.7.84, in CJ, IV, 304. A apropriação no abuso e confiança realiza-se pela inversão do título e posse ou detenção, consumando-se, pois, no momento em que o agente passa a dispor da coisa animo domino. O que ocorre quando o arguido transfere a quantia, que havia sido colocada em depósito bancário, na sua disponibilidade, para uma conta exterior à titularidade do co-titular daquele e passa a proceder como dono exclusivo da mesma, cfr. Ac. STJ de 26.3.92, in processo nº. 42413. Comete o crime de abuso de confiança o agente que, sendo co-titular de uma conta bancária de cujo dinheiro não era dono, nem sequer parcialmente e de que apenas podia dispor quando isso lhe fosse autorizado pelo outro co-titular, dono do dinheiro, se apropria dele sem o conhecimento ou autorização deste, cfr. Ac. STJ de 14.4.94, no processo 46449. Assim, cremos bem que o recorrente ao proceder ao levantamento da quantia que existia na conta de que era co-titular com o pai, bem sabendo que lhe não pertencia, que nenhum direito sobre ela tinha, pois que o pai constitui com ela aquela conta, porque tinha confiança no filho e tentava evitar que a esposa se viesse a apropriar daquele dinheiro, fazendo-o seu e não o restituindo, não obstante para isso interpelado pelo pai, incorreu, enquanto autor material, na forma consumada, na prática de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 202º alínea b) e 205º/1 e 4 alínea b) C Penal, a que corresponde em abstracto a moldura penal de prisão de 1 a 8 anos. Isto dado que o valor em causa, à data dos factos, ano de 2002, era superior ao correspondente a 200 UC’s, então, equivalente a € 15 962.00. A qualificação jurídica feita pelo Tribunal Colectivo não vincula o tribunal da Relação que, sem prejuízo, naturalmente, da proibição da reformatio in pejus, tem liberdade de julgar de direito, seja de qualificar juridicamente os factos, mesmo divergindo da qualificação operada pelo Tribunal a quo e ainda, que tal qualificação não venha colocada em causa no recurso. (Liberdade que no entanto, a fim de assegurar de forma cabal as garantias da defesa, no tocante ao exercício do contraditório, sempre terá que ser precedida do cumprimento do estatuído no artigo 358º/3 C P penal. No caso tal foi cumprido.) Estamos assim, perante uma alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação e do acórdão recorrido. O que importando uma outra moldura penal abstracta, mais favorável, pois que a do furto qualificado é de prisão de 2 a 8 anos. Na determinação da medida concreta da pena há que recorrer aos critérios orientadores fornecidos pelo artigo 71º do Código Penal. De acordo com esse preceito legal, a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção geral e especial, devendo ter-se sempre em conta todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o arguido. A culpa consiste num juízo de censura dirigido ao arguido em virtude de uma conduta desvaliosa, porquanto este, podendo e devendo agir conforme o direito, não o fez. Toda a pena tem de ter como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta do arguido, o que significa que não há pena sem culpa, mas também que a culpa decide os limites mínimo e máximo para a pena que, em caso algum, podem ser ultrapassados. Dentro destes limites e para fixar a medida concreta da pena intervêm os demais fins da pena, designadamente a prevenção geral e prevenção especial. Com efeito e segundo o disposto no artigo 40º/1 C Penal, a aplicação de uma pena visa “a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. Protecção de bens jurídicos essa que se consubstancia na denominada prevenção geral, enquanto que a reintegração do agente na sociedade se reporta à denominada prevenção especial. A prevenção geral, dita de integração, prende-se com as exigências comunitárias da contenção da criminalidade e da defesa da sociedade, decorrentes da necessidade de reafirmar as expectativas da comunidade na validade e vigência de uma norma, bem como da tutela do bem jurídico por ela defendido e assume a “função de fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite é dado, no máximo, pela medida óptima da tutela dos bens jurídicos, dentro do que é consentido pela culpa e, no mínimo, fornecidos pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico”. Por sua vez, a prevenção especial está ligada à neutralização do agente e à necessidade de reinserção social do delinquente, da sua conformação com o quadro de valores vigentes na sociedade, especialmente aqueles que tutelam o bem jurídico atingido e que aquela norma visava proteger, cabendo-lhe “encontrar o quantum exacto da pena, dentro dessa função, que melhor sirva às exigências da socialização”. Assim sendo e dentro destas duas balizas fixadas pela culpa, a medida da pena deve considerar o quantum indispensável para manter a crença da comunidade na validade e eficácia da norma e, por essa via, a confiança nas instituições, bem como as exigências de prevenção especial que ao caso se fazem sentir. Nunca podendo, porém, a pena “ultrapassar em caso algum a medida da culpa”, artigo 40º/2 C Penal. Na decisão recorrida, valorou-se as circunstâncias seguintes: a ilicitude, mediana, não tendo o arguido devolvido o dinheiro ao assistente; as necessidades de prevenção especial são diminutas, atenta a ausência de antecedentes criminais do arguido; as necessidades de prevenção geral são muito elevadas, atenta a grande incidência deste tipo de crimes. Nesta conformidade e tendo em conta as molduras penais abstractamente aplicáveis consideramos ser de aplicar a pena de 2 anos de prisão ao arguido. Dever-se-á ponderar, ainda a normal intensidade dolosa, a nível de dolo directo e não mitigado por qualquer circunstancialismo. Julgamos assim, que a pena concreta não deve coincidir com o mínimo da moldura penal abstracta, entendemos que a mesma deste limite se afaste, ainda que de forma ligeira. Temos, então, como justa equilibrada e adequada, a pena de 18 meses de prisão. III. 6 Defende, finalmente o recorrente que a condição imposta para a suspensão da pena que lhe foi aplicada não é razoável de exigir, atenta a situação económica patenteada nos autos, donde extrai a conclusão de que o acórdão recorrido interpretou e aplicou, de forma errada, o disposto no nº. 2 do artigo 51º C Penal. Na decisão recorrida, decidiu-se, com efeito, nos termos do artigo 50º C Penal, suspender a execução da pena de prisão aplicada, pelo período de 18 meses, com a condição de nos primeiros 12, o arguido restituir a quantia de que se apropriou, tendo-se entendido para o justificar que não havia dúvidas que se pode fazer um juízo de prognose favorável ao arguido. O regime geral do instituto da suspensão da execução da pena, vem regulado no artigo 50º C Penal, dispondo o nº. 1, do citado preceito legal que “o tribunal suspende de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos se, atendendo à personalidade o agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e ameaça da prisão, realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”, estabelecendo o nº. 5, do mesmo normativo que o período de suspensão da pena de prisão, é fixado entre 1 a 5 anos a contar do trânsito em julgado. A suspensão da execução da pena de prisão, constitui uma pena de substituição e depende, então, da verificação cumulativa de dois pressupostos: um formal, outro material. O primeiro de ordem formal, exige que a pena aplicada seja de prisão e não exceda três anos. O pressuposto material consiste num juízo de prognose segundo o qual o Tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do caso, conclui que a simples censura do facto e a ameaça da prisão bastarão para afastar o delinquente da criminalidade, satisfazendo as exigências mínimas da prevenção geral. Surge, assim, o instituto da suspensão da execução da pena como uma autêntica medida penal, susceptível de servir tão bem, ou tão eficazmente, quanto a efectividade das sanções, aos desideratos da prevenção geral positiva, com a acrescida vantagem de, do mesmo passo, satisfazer aos da prevenção especial. No entendimento do Prof. Figueiredo Dias, “o C Penal vigente parece recusar-se, à partida, fornecer um critério ou cláusula geral de escolha ou de substituição da pena. A questão é a de saber se, por baixo da aparente multiplicidade e diversidade de critérios legais se consegue ainda divisar um critério geral de escolha e de substituição da pena. Uma resposta afirmativa impõe-se. Um tal critério é, em toda a sua simplicidade, o seguinte: o tribunal deve preferir à pena privativa de liberdade uma pena alternativa ou de substituição sempre que, verificados os respectivos pressupostos de aplicação, a pena alternativa ou a de substituição se revelem adequadas e suficientes à realização das finalidades da punição. O que vale logo por dizer que são finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação da culpa, que justifiquem e impõem a preferência por pena alternativa ou por uma pena de substituição e a sua efectiva aplicação. Efectivamente ao pressuposto de ordem material, na base da decisão da suspensão da pena deverá estar uma prognose social favorável ao réu, como lhe chama JESCHECK, ou seja a esperança de que o réu sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime. O Tribunal deverá correr um risco prudente, uma vez que a esperança não é seguramente certeza, mas se tem sérias dúvidas sobre a capacidade do réu para compreender a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, a prognose deve ser negativa. Nessa prognose deve atender-se à personalidade do réu, às suas condições de vida, à conduta anterior e posterior ao facto punível às circunstâncias deste, ou seja, devem ser valoradas todas as circunstâncias que tornam possíveis na conclusão sobre a conduta futura do réu, atendendo somente às razões de prevenção especial. Bem decidiu, o Tribunal a quo, em suspender a pena de prisão aplicada ao arguido, entendimento que aqui se subscreve, sendo certo, no entanto que, dada a proibição da reformatio in pejus, mesmo que não concordássemos com tal entendimento, não o poderíamos alterar, dado que apenas o arguido recorreu e não podia, por esse facto, ver a sua posição agravada. Questão diversa surge agora quanto à legalidade da obrigação que condiciona a suspensão. Nos termos do artigo 51º C Penal, a suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente, a de pagar a indemnização devida ao lesado, dentro de certo prazo, no todo ou em parte que o Tribunal considerar possível, ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea, nº. 1 alínea a). Nos termos do nº. 2, os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir. Conforme ensinamento do Prof. Figueiredo Dias, in As consequências Jurídicas do Crime, 337 e ss., existe uma dupla limitação que forçosamente há-de sofrer a imposição de deveres e regras de conduta: a de que, em geral, eles sejam compatíveis com a lei, nomeadamente com todo o asseguramento possível dos direitos fundamentais do condenado e a de que, além disso, o seu cumprimento seja exigível no caso concreto, ibidem § 533. Especificamente, quanto aos deveres de conteúdo económico o análogo, defende o mesmo autor, ibidem, que dúvidas não podem suscitar-se no que toca à correlacionação entre este dever e o pedido de indemnização civil, seja ele deduzido no processo penal, seja no processo civil. Parece ser, em geral, de sufragar a ideia de que aquele terá de limitar-se, em toda a medida possível, quer no seu “se”, quer no seu “como”, quer no seu “quanto”, aos pressupostos do pedido, podendo ficar aquém dele, sem que isso coloque em causa a validade jurídica da indemnização que venha a ser fixada mas não ultrapassá-lo. Por isso não se vê que possa ter sentido a imposição de um tal dever quando, por exemplo, a obrigação civil já prescreveu. Do que se trata em suma, neste dever de indemnizar, é da sua função adjuvante da realização da finalidade da punição, não de reeditar a tese do carácter penal da indemnização civil, proveniente de crime que o artigo 129 C Penal, quis postergar. Do texto da lei, resulta, então que, as condições concretas da subordinação da suspensão da execução da pena ao pagamento de indemnização, hão-de ser orientadas por 2 critérios nucleares: a realização das finalidades da punição, por um lado e, a razoabilidade do quantum, do tempo e do modo de cumprimento. Este dever a que se pode subordinar a suspensão da execução da pena, trata, assim, da função adjuvante da realização da finalidade da punição, ibidem, 353. O cumprimento deste dever, na medida em que representa um esforço ou implica, mesmo, um sacrifício para o arguido, no sentido de reparar as consequências danosas da sua conduta, funciona não só como reforço do conteúdo reeducativo e pedagógico da pena de substituição, mas ainda, como elemento pacificador, neutralizando o efeito negativo do crime a apresentando-se como meio idóneo para dar satisfação suficiente às finalidades da punição, respondendo, nomeadamente, à necessidade de tutela dos bens jurídicos e estabilização das expectativas da comunidade, cfr. Ac. STJ de 13.10.1999, no processo 665/99. A obrigação deve responder à ideia de exigibilidade ao princípio da proporcionalidade que são conceitos básicos do Estado de direito. Na Comissão de Revisão do C Penal, o Prof. Figueiredo Dias referiu que no Código Alemão se acolheu a ideia de que o arguido deve proceder ao pagamento segundo aquilo que puder e de acordo com as suas forças, cfr. Actas e Projecto da Comissão de Revisão, Rei dos Livros, 48. O chamado princípio da razoabilidade tem sido entendido pela jurisprudência como pretendendo significar que a imposição de deveres condicionadores da suspensão da pena deve ter na devida conta as forças dos destinatários, de modo a não frustrar, à partida, o efeito reeducativo e pedagógico que se pretende extrair da medida, sem contudo se cair no extremo de tudo se reconduzir e submeter às possibilidades financeiras oferecidas pelos proventos certos e conhecidos do condenado, sob pena de se inviabilizar, na maioria dos casos, o propósito que lhe está subjacente, de dar ao arguido margem de manobra suficiente para que possa desenvolver diligências que lhe permitam obter recursos indispensáveis à satisfação da condição, cfr. Ac. STJ de 2.4.2003, no processo 608/03 da 3ª secção. Chamado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade do condicionamento da suspensão da execução da pena ao pagamento de uma indemnização, quando este não ocorresse, pois que, alegadamente, estaríamos perante uma prisão por dívidas, o Tribunal Constitucional, concluiu pela conformidade constitucional, com o argumento de que nesse caso, a prisão, a ser cumprida, seria por força da condenação, feita pelo Tribunal, ao determinar o cumprimento da pena, cfr. Ac de 2.11.1987, in BMJ 371º, 178. Por outro lado, para que o tribunal fixe o dever, total ou parcial, de indemnizar não é necessário que o lesado tenha deduzido essa pretensão, como da mesma forma, não é impeditivo da fixação desse dever que o lesado tenha deduzido essa pretensão. Neste último caso, que é o dos autos, não fica constituída uma obrigação de indemnização civil em sentido estrito. Este dever vale apenas e tão só, no seio do instituto da suspensão da execução da pena, sendo a sanção pelo não cumprimento, a que deriva das regras próprias da suspensão. Ao lado da suspensão da execução da pena de prisão sujeita ao referido dever, pode surgir uma obrigação de indemnização, em sentido técnico, constante da decisão sobre o pedido cível, com a conexa condenação do sujeito passivo, sendo esta, aquela que se refere o artigo 129º C Penal. É obvio que o dever de indemnizar, enquanto componente da suspensão da execução da pena, não se pode cumular com o dever de indemnizar constante da decisão sobre o pedido cível, quando se verifiquem as 2 situações. Nesse caso, o que o julgador pode e deve fazer é subordinar a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento de toda ou de parte da indemnização arbitrada na decisão civil, cfr. Ac STJ de 27.5.1998, sumariado na obra citada, 676. A razoabilidade deve ser aferida essencialmente pelas condições pessoais e económicas do arguido. Ao fazer depender a suspensão da execução da pena de uma qualquer condição, deve-se ter em conta um juízo de viabilidade dessa condição, sob pena de se impor o cumprimento de uma obrigação irrazoável ou desproporcionada, cfr. Ac STJ de 17.6.2004, in CJ, S, II, 230. Sobre esta questão, o tribunal recorrido deu como provado que o arguido é casado e tem 3 filhos, que exerce a profissão de gerente comercial, pela qual aufere a quantia de € 500.00 mensais; que vive em casa própria pagando cerca de € 500.00 mensais de empréstimo bancário e que estudou até ao 7.º ano de escolaridade. Na parte da fundamentação de direito, nada disse a propósito de qualquer consideração sobre as possibilidades de o recorrente poder satisfazer a obrigação imposta como condicionante da suspensão da execução da pena. Para se avaliar se o sacrifício imposto ao arguido respeita ou não os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, independentemente de os deveres poderem ser modificados, artigo 51º/3 C Penal, terá que se fazer uma compatibilização entre o montante, o modo e o tempo de cumprimento. Perante o quadro consignada na decisão recorrida, a fixação da obrigação da pagamento do montante equivalente a € 20.400.00, a pagar em 12 meses, o que representaria o valor de € 1 700.00, mensalmente, mais do triplo do rendimento mensal do recorrente, todo consumido, de resto, segundo o apurado, na amortização do empréstimo para habitação, que contraiu, constitui um sacrifício que não se contém dentro dos referidos critérios de proporcionalidade, relativamente às finalidades da punição e de razoabilidade, no que diz respeito às suas condições económicas. Perante esta situação, tomando como boa, adequada às finalidades da punição, a opção de condicionar a suspensão da execução da pena, ao cumprimento do dever de pagamento indemnização civil, defrontamo-nos agora com 4 opções: ou revogamos sem mais, esta parte da decisão, por falta de prova dos factos concretos de que depende a aferição dos critérios da razoabilidade e da proporcionalidade; ou fixamos nós outro valor, fazendo apelo aos ditos critérios, dentro do que é consentido e possível pelo quadro fáctico apurado; ou entendemos que se não mostrar observado o comando constante do artigo 374º/2 C P Penal, que exige na parte da fundamentação conste uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, o que no caso não foi feito, o que importa a nulidade desse segmento da decisão, que deixou de se pronunciar sobre questões que devi ater apreciado, artigo 379º/1 alínea a) C P Penal, do conhecimento oficioso, nº. 2 da mesma norma, opção tomada no Ac. STJ de 17.6.2004, in CJ, S, II, 229; ou entendemos estar perante uma situação de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, artigo 410º/2 alínea a) C P Penal, vício que é do conhecimento oficioso e importa ao reenvio do processo, se não for possível decidir da causa. A 1ª opção, a mais fácil e óbvia, não atende, no entanto à adequação no caso concreto ao sentido ressocializador do instituto; Para adoptar a 2ª, o Tribunal carece em absoluto de elementos de facto, para tal, pois que os que existem, conduzem a uma manifesta impossibilidade de o recorrente, não só, poder satisfazer qualquer dever de carácter pecuniário, como, mesmo demonstra estar a viver no limiar da sobrevivência, a endividar-se necessariamente para conseguir o sustento para si e para o agregado familiar. Por sua vez, a 3ª opção, poderia não ser a adequada e suficiente, para uma cabal reapreciação da questão. Dada a apontada natureza, finalidade e critério que deve presidir à fixação da obrigação condicionante da suspensão da pena de prisão, tendo presente os parcos factos provados, cremos bem que no caso concreto, melhor se adequa, no sentido da pertinência em relação ao caso concreto e da eficácia e justeza da decisão, como solução, o entendimento de que o Tribunal a quo não indagou como devia, se o recorrente tinha condições para satisfazer a obrigação de pagamento, que lhe impôs. A materialidade provada não basta para alicerçar uma conclusão afirmativa e, já vimos que aquela condição só pode ser imposta, após a necessária ponderação, se a final se concluísse pela existência de condições para o seu cumprimento. A menos que, para garantir o pagamento, o recorrente tenha património bastante ou outra qualquer fonte, designadamente, esteja na posse da quantia objecto da apropriação, pertencente ao assistente, ou de património dela resultante, factos de que a decisão recorrida não fala. Mas para isso é necessário que o Tribunal o diga expressamente, depois de o ter averiguado. Não tendo procedido a tais indagações necessárias para suportar tal decisão, a matéria de facto enferma, claramente, do vício de insuficiência para a decisão, mormente por deixar indemonstrada a exigibilidade concreta do cumprimento da obrigação imposta, nessa ou em outra medida, que o recorrente entende, de resto, não ser razoável de lhe exigir, atenta a situação económica que já se encontra demonstrada nos autos. A verificação deste vício, do conhecimento oficioso, artigos 410º/2 alínea a), 426º/1 e 426º-A/1 e 2 C P Penal, implica a anulação do julgamento, para ampliação da base de facto da decisão sobre a matéria considerada em falta, pertinente para aferir das condições do recorrente para satisfazer a obrigação condicionante da suspensão da execução da pena, que lhe foi imposta, para finalmente, com base no que for apurado ou não, ser proferida nova decisão em conformidade. Para tanto impõe-se, previamente o reenvio do processo nos termos das disposições legais citadas, cfr. Ac STJ de 17.10.2002, in CJ, S, III, 207. IV. DISPOSITIVO Nestes termos e com os fundamentos mencionados, acorda-se, em 1. condenar o recorrente B………., enquanto autor material, na forma consumada, pela prática de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205º/1 e 4 alínea b) C Penal, na pena de 18 meses de prisão, cuja execução se suspende pelo período de 18 meses, assim se revogando a decisão recorrida nesta parte; 2. anular o julgamento, cuja repetição visará apenas o esclarecimento dos concretos pontos aflorados ou outros que resultem da discussão da causa e, ordenam o reenvio do processo; 3. manter a decisão recorrida, quanto ao mais. Condena-se o recorrente, pelo decaimento parcial, no pagamento da taxa de justiça, que se fixa no equivalente a 5 UC’s, artigos. 513º/1 C P Penal e 82º/1 e 87º/1 alínea b) C. das Custas Judiciais. Elaborado em computador. Revisto pelo Relator, o 1º signatário. Porto, 28 de Fevereiro de 2007 Ernesto de Jesus de Deus Nascimento Artur Manuel da Silva Oliveira Olga Maria dos Santos Maurício |