Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2568/24.7T8GMR-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PINTO DOS SANTOS
Descritores: QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
OBRIGAÇÃO DE MANTER A CONTABILIDADE ORGANIZADA
FIXAÇÃO DO PERÍODO DE INIBIÇÕES
FIXAÇÃO DA INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RP202509302568/24.7T8GMR-B.P1
Data do Acordão: 09/30/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIAL
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Existe incumprimento em termos substanciais da obrigação das sociedades comerciais manterem contabilidade organizada – art. 186º nº 2 al. h) do CIRE – quando os termos em que tal obrigação foi cumprida, ou incumprida, inviabilizam ou são suscetíveis de afetar e comprometer, de modo sério e relevante, a concretização do resultado visado com aquela obrigação, ou seja, quando a contabilidade não fornece uma imagem compreensível, completa, fiável e real da situação financeira da empresa.
II - A verificação fáctica desta situação implica necessariamente a qualificação da insolvência como culposa, sem necessidade de demonstração de culpa ou da existência de nexo causal com a criação ou agravamento da situação de insolvência e independentemente das razões, motivações ou intenções que estiveram subjacentes ao comportamento que deu origem a essa situação.
III - Os deveres de apresentação e de colaboração a que se reporta a al. i) do nº 2 do referido art. 186º são apenas os que constam do art. 83º do mesmo Código e não quaisquer outros. A falta de apresentação à insolvência [ainda que prolongada no tempo] não integra o elenco das situações-tipo enquadráveis na previsão de tal alínea.
IV - A fixação do período adequado das inibições previstas nas als. b) e c) do nº 2 do art. 189º do CIRE deve assentar no grau do juízo de censurabilidade do comportamento do requerido e na sua contribuição para a criação ou agravamento da insolvência da sociedade.
V - A fixação da indemnização prevista no mesmo art. 189º nºs 2 al. e) e 4, deve ter com conta as circunstâncias do caso concreto, com enfoque no grau de culpa e na gravidade da ilicitude do comportamento do requerido/afetado [mais nesta que naquele, já que aquele é sempre elevado porque lhe subjaz atuação dolosa ou gravemente negligente – nº 1 do art. 186º] e na dupla função de tal condenação [funções ressarcitória e sancionatória da indemnização], devendo, ainda, ser proporcional a estes pressupostos e não ir além do montante máximo dos créditos não satisfeitos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 2568/24.7T8GMR-B.P1 – 2ª Sec. (apelação)
Relator: Pinto dos Santos
Adjuntos: João Proença
João Diogo Rodrigues
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Acordam nesta secção cível do tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:

Nestes autos de qualificação da insolvência que correm por apenso ao processo em que foi declarada a insolvência de A..., Unipessoal, Lda., o Ministério Público requereu a abertura do incidente de qualificação da insolvência como culposa, com afetação do gerente da insolvente, AA, por tal qualificação, com fundamento em factos enquadráveis no art. 186º nºs 1, 2 al. h) e 3 als. a) e b) do CIRE.

Declarado aberto o incidente, o Sr. Administrador da Insolvência [abreviadamente, AI] emitiu parecer pugnando pela qualificação da insolvência como culposa, com afetação do gerente da insolvente, AA, nos termos das disposições legais atrás indicadas e, ainda, da al. i) do nº 2 daquele art. 186º.
O Ministério Público aderiu aos fundamentos invocados pelo AI.

O requerido, AA, deduziu oposição, alegando que não agiu com culpa, imputou a situação económica da sociedade insolvente a fatores externos decorrentes da pandemia Covid-19 e pugnou pela não verificação dos pressupostos da qualificação da insolvência como culposa, por não terem sido alegados factos integradores quer da culpa quer do nexo causal entre a atuação do gerente e a criação ou o agravamento da situação de insolvência da devedora.

Foi proferido despacho saneador e identificado o objeto do litígio, e foram fixados os temas de prova, sem reclamação das partes.

Realizou-se a audiência final e foi depois proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«DECISÃO:
Face ao exposto, decido:
a) Qualificar a insolvência da devedora A... Unipessoal, Lda, como culposa;
b) Declarar afetado por tal qualificação o Requerido AA.
c) Decretar a inibição do Requerido para administrar patrimónios de terceiros e para o exercício do comércio, para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa pelo período de 4 (quatro) anos;
d) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelo Requerido e condenar o mesmo a restituir os bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos;
e) Condenar o Requerido a indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até ao limite de €316.471,42 (trezentos e dezasseis mil, quatrocentos e setenta e um euros e quarenta e dois cêntimos).
Custas do incidente a cargo do Requerido – cfr. art.º 527.º, n.s 1 e 2 do CPC e art.s 301.º e 303.º do CIRE.
O valor da causa já se mostra fixado no despacho saneador (€30.000,01)
Registe e notifique.
Após trânsito, dê-se cumprimento ao disposto no art. 189.º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.»

Inconformado com o sentenciado, interpôs o requerido o presente recurso de apelação [admitido com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo], cujas alegações culminou com as seguintes conclusões:
(…)

O Ministério Público apresentou contra-alegações em que pugna pela improcedência do recurso e confirmação da decisão recorrida.
Foram colhidos os vistos legais.
* * *
II. Questões a decidir:

Face às conclusões das alegações da recorrente – que fixam o thema decidendum deste recurso, de acordo com o estabelecido nos arts. 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 als. a) a c) do CPC [salvo o surgimento de questões de conhecimento oficioso] – as questões a decidir consistem em saber:
- Se existe(m) fundamento(s) para a qualificação da insolvência como culposa ou se, pelo contrário, a mesma deve ser considerada fortuita;
- Se a inibição fixada ao recorrente é merecedora de censura;
- Se o «quantum» indemnizatório deve ser alterado.

Importa esclarecer que o dever de apreciar/decidir todas as questões suscitadas pelo recorrente, a que se refere o nº 2 do art. 608º, aqui aplicável ex vi do art. 663º nº2, ambos do CPC, não compreende, nem se confunde, com o dever de responder a todos os argumentos, motivos ou razões jurídicas por ele invocados, pois estes nenhum vínculo comportam para o Tribunal, conforme decorre do estabelecido no nº 3 do art. 5º do CPC [neste sentido, i. a., António Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª ediç. atualiz., 2022, Almedina, pg. 136 e Antunes Varela e outros, in Manual de Processo Civil, 2ª ed., pgs. 677-688 (neste caso, ao abrigo dos equivalentes arts. 660º nº 2 e 664º do CPC revogado pela Lei nº 41/2013), bem como a unanimidade da jurisprudência dos tribunais superiores, de que são exemplo os Acórdãos do STJ de 03.07.2024, proc. 3832/21.2T8VLG.P1.S2, de 23.11.2023, proc. 779/20.3T8VFR.P1.S1 e de 08.10.2020, proc. 361/14.4T8VLG.P1.S1, disponíveis in www.dgsi.pt/jstj e Acórdão do Tribunal Constitucional de 20.12.2022, proc. 645/2022-1ª S, disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc].
* * *
III. Matéria de facto:

i) A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:
1. Em 15/04/2024 A..., Unipessoal, Lda, Pessoa Coletiva n.º ..., com sede na Rua ..., n.º ..., 3º esquerdo, Porto apresentou-se à insolvência, que foi declarada por sentença proferida em 08/05/2024, transitada em julgado.
2. A..., Unipessoal, Lda tinha como objeto social “Transportes públicos em veículos automóveis pesados de passageiros, de âmbito nacional ou internacional. Transportes coletivos de crianças e jovens até aos 16 anos”.
3. A sociedade foi constituída em 18/09/2017 (AP. ...) com o Capital Social de €100.000,00 (cem mil euros).
4. AA, contribuinte fiscal n.º ..., foi nomeado gerente da sociedade por deliberação de 14/09/2017.
5. Aquando da realização do relatório a que alude o art.º 155.º do CIRE, o Sr. administrador da insolvência deslocou-se ao local da sede da insolvente, verificando que aí se encontra instalada a empresa “B...”.
6. Foi-lhe transmitido que esta sociedade terá celebrado um contrato de arrendamento de espaço de trabalho com a insolvente, sem exibição de qualquer documento/contrato ou recibo de pagamento de rendas.
7. Através de e-mail datado de 13/05/2024 o Sr. administrador da insolvência notificou o Requerido, através da Ilustre Mandatária da insolvente, solicitando:
1. IES referentes aos anos de 2021 e 2022;
2. Extratos Contabilísticos, Balancete Geral e Razão (acumulados) em formato pdf, dos anos de 2022, 2023 e 2024;
3. Mapas de imobilizado (Ativos-Depreciações e Abates discriminado por ativo) dos anos de 2022, 2023 e 2024, em formato pdf;
4. Cópia dos extratos bancários dos últimos 6 meses de atividade;
5. Saft da contabilidade;
6. Cópia dos contratos em vigor, eventualmente contrato de arrendamento;
7. Localização da viatura com matrícula ..-IE-.., da marca Volvo;
8. Mapa de Pessoal;
9. Número da Segurança Social da insolvente e senhas de acesso à Segurança Social e Portal da Autoridade Tributária;
10. Identificação do(a) Contabilista Certificado(a) em funções (nome, morada e contacto), à data da declaração de insolvência e localização física da contabilidade da insolvente.
8. Através de e-mail datado de 17/05/2024, dirigido ao Sr. administrador da insolvência, a Ilustre Mandatária da insolvente respondeu:
Tal como consta da inicial a sociedade insolvente não apresentou IES de 2021 e 2022.
No que tange aos elementos contabilísticos, balancete geral e razão, saft da contabilidade a sociedade não detém esses elementos, indicando, de todo o modo, que a contabilidade da sociedade era feita pela empresa C..., com sede na Rua ..., nº ..., R/C Direito, ... Porto.
Em relação aos extratos bancários a insolvente não movimenta a referida conta há muito tempo, indicando que a sua conta era do Banco 1..., com agência na freguesia ..., concelho de Vila Nova de Famalicão.
No que toca à localização da viatura com matrícula ..-IE-.. a mesma foi vendida pela sociedade antes da pandemia.
Quanto ao seu último email no que concerne à viatura de matrícula ..-BL-.., da marca volvo a insolvente já não possui a viatura há muito tempo em virtude do incumprimento do pagamento da mesma, tendo procedido à entrega da mesma à sociedade vendedora na altura, D..., S.A.
9. Através de e-mail datado de 21/06/2024 o Sr. administrador da insolvência notificou o Requerido, através da Ilustre Mandatária da insolvente, nos seguintes termos:
O facto de a sociedade não ter apresentado junto da Administração Fiscal a IES, não justifica a ausência de arquivo/documentos de suporte à contabilidade.
Nessa medida, venho solicitar a V/ colaboração no sentido de remeterem por esta via, os documentos de venda (faturas emitidas pela insolvente) e comprovativo de recebimento do preço das viaturas com as matrículas ..-IE-.. e ..-BL-...
Mais solicito que informem a data efetiva em que a sociedade deixou de exercer a sua atividade.
10. Através de e-mail datado de 04/06/2024, dirigido ao Sr. administrador da insolvência, a Ilustre Mandatária da insolvente respondeu:
Na sequência do seu email cumpre-me referir o seguinte:
Relativamente à contabilidade/arquivo de documentos de suporte à contabilidade remeto para o email anterior com a indicação do contabilista da insolvente.
No que tange às viaturas conforme já referido a viatura com a matrícula ..-IE-.. foi vendida pela sociedade em período anterior à pandemia, sendo certo que a sociedade sempre acreditou que o comprador havia procedido ao seu efetivo registo, dado que era uma venda para nacionalidade estrangeira e segundo a insolvente o comprador destinava o veículo para exportação.
Já quanto à viatura de matrícula ..-BL-.. foi entregue à sociedade que o havia vendido anteriormente à insolvente, que por sua vez havia permanecido com reserva de propriedade. O valor da referida viatura não foi totalmente pago pela insolvente em virtude das dificuldades financeiras que assombraram a atividade da mesma, razão pela qual não teve outra solução que não fosse a da entrega da viatura, junto da credora, constando essa mesma credor na lista dos credores da então insolvente.
11. Através de e-mail datado de 21/06/2024 o Sr. administrador da insolvência notificou o Requerido, através da Ilustre Mandatária da insolvente, nos seguintes termos:
Acuso a receção da informação prestada infra.
Todavia, continua por esclarecer qual a data concreta do encerramento da atividade da insolvente.
Paralelamente, considerando que ainda não foi possível obter qualquer documento junto da sociedade insolvente, tendo apenas indicado entidade responsável pela contabilidade da sociedade insolvente, solicito os S/ bons ofícios junto do gerente da sociedade, no sentido de remeter documentos contabilísticos que tenha em sua posse, nomeadamente, os já identificados no email de 13/04/2024, atentas as obrigações do gerente da insolvente, nos termos do disposto nos arts 36º e 83º do CIRE:
1. Extratos Contabilísticos, Balancete Geral e Razão (acumulados) em formato pdf, dos anos de 2022, 2023 e 2024;
2. Mapas de imobilizado (Ativos-Depreciações e Abates discriminado por ativo) dos anos de 2022, 2023 e 2024, em formato pdf;
3. Cópia dos extratos bancários dos últimos 6 meses de atividade;
4. Número da Segurança Social da insolvente e senhas de acesso à Segurança Social e Portal da Autoridade Tributária;
5. Comprovativo de venda da viatura ..-IE-..;
Mais se solicita:
6. Justificação para ausência de depósitos de contas anuais.
7. Justificação para o atraso na apresentação à insolvência, sendo conhecido o
incumprimento da sociedade juntos dos credores.
12. A sociedade “C..., Lda” foi notificada, através de carta registada, para proceder à entrega dos elementos contabilísticos da insolvente (cfr. docs 15 a 19 juntos com o parecer do Sr. AI).
13. Em resposta, veio a sociedade “E..., Lda”, dar conhecimento de que o Contabilista Certificado da insolvente era o Sr. Dr. BB, pelo que, não dispunham de qualquer informação contabilística (cf. doc 20 juntos com o parecer do Sr. AI).
14. Notificado o Sr. Dr. BB, o mesmo confirmou ter sido Contabilista Certificado da insolvente até 04/11/2021, altura em que renunciou, tendo ainda afirmado que todos os documentos do histórico contabilístico da sociedade insolvente se encontravam na posse da sociedade “E..., Lda” (cf. docs 21 a 25 juntos com o parecer do Sr. AI).
15. Novamente interpelada a sociedade “E..., Lda” para proceder ao envio da documentação, veio a mesma remeter os elementos contabilísticos dos anos de 2018, 2019 e 2020, nomeadamente, o balancete geral do ano de 2020 (cf. docs 26 a 28 e docs 29 a 34 juntos com o parecer do Sr. AI).
16. Desde a data da sua constituição até à data da declaração de insolvência, a sociedade nunca procedeu ao depósito de contas junto da Conservatória do Registo Comercial.
17. Da consulta às Informações Empresariais Simplificadas disponíveis, nos anos de 2018, 2019 e 2020, a sociedade apresentava capital próprio e resultado líquido negativo:
2018 2019 2020
Capital Próprio -9 986,89€ -34 682,09€ -59 752,89€
Resultado Líquido -9 497,46€ -24 695,20€ -25 070,80€
18. O contrato de compra e venda a prestações com reserva de propriedade celebrado com a sociedade “D..., S.A.” estava em incumprimento, por parte da insolvente, desde o mês de junho de 2019.
19. A insolvente regista incumprimento perante o Instituto da Segurança Social, I.P. com valores em dívida relativos a contribuições do período de julho de 2018 a fevereiro de 2020 e perante a Autoridade Tributária, resultante de incumprimento perpetrado desde finais de 2018.
20. Foram reconhecidos créditos sobre a insolvência no total de €316.471,42:
- Autoridade Tributária e Aduaneira - Direção de Finanças do Porto, no valor de €262.271,45, sendo o valor de €2.273,68 de natureza privilegiada (IVA e juros); o valor de €220.708,67 de natureza comum (IVA, IRC, Taxas de Portagem; Coimas; Juros e Custas); e o valor de € 39.289,10 de natureza comum (Taxas de Portagem; Custos Administrativos, Coimas e Juros);
- Instituto da Segurança Social, I.P. - Centro Distrital ..., no valor de €4.847,14, de natureza comum (Contribuições, quotizações, juros, custas);
- D..., S.A., no valor de €49.352,83, de natureza comum (letras de câmbio).

ii) … E considerou não provados os seguintes factos:
1. As consequências da pandemia Covid-19, agravadas pela posterior crise desencadeada pela guerra na Ucrânia alteraram completamente a dinâmica da atividade da sociedade insolvente.
2. Os serviços requisitados à sociedade insolvente foram praticamente todos cancelados.
3. O aumento “descontrolado” nos custos dos combustíveis tornou a sociedade insolvente, por força da sua pequena dimensão, uma empresa incapaz de proporcionar preços concorrentes e apelativos ao mercado.
* * *
IV. Apreciação das questões indicadas em II:

1. Se existe(m) fundamento(s) para a qualificação da insolvência como culposa.
1.1. O recorrente começa por pôr em causa a qualificação da insolvência como culposa. E, dentro da sua impugnação, pretende, em primeiro lugar, demonstrar que tal qualificação não pode assentar no disposto na al. h) do nº 2 [com referência ao nº 1] do art. 186º do CIRE. Isto porque, na sua ótica, além de não estar provado que a sociedade insolvente soubesse da quebra da prestação de serviços do contabilista que assegurava a contabilidade daquela, «não se pode retirar a conclusão de que com a falta da apresentação de contas e de contabilidade organizada tenha pretendido o Recorrente “enganar” terceiros, fazendo transparecer uma realidade da empresa distinta da realidade e/ou fictícia, (…) uma vez que tal relação com terceiros jamais existira», além de não resultar dos autos «que a sociedade tenha nos seus quadros quaisquer trabalhadores», também não resulta «que houvesse financiadores a conceder-lhe créditos à data», nem «que os fornecedores continuassem a fornecer bens por via dessa falta de publicidade» [cfr. conclusões 4 a 24 das alegações].
A sentença recorrida considerou verificado o pressuposto da al. h) do nº 2, com referência ao nº 1, do art. 186º do CIRE.
Vejamos.
Segundo o nº 1 deste art. 186º, a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
Definem-se neste nº 1 os pressupostos gerais da qualificação da insolvência como culposa, nos seguintes termos:
- Em primeiro lugar, o que se qualifica é a atuação do devedor ou dos seus administradores/gerentes [de direito ou de facto] na criação ou agravamento do estado de insolvência.
- Em segundo lugar, exige-se que essa atuação seja dolosa ou, pelo menos, integradora do conceito de culpa grave, devendo estes conceitos ser entendidos [como ensinam Carvalho Fernandes e João Labareda, no citado Código Anotado, pg. 610, anotação 4] nos termos gerais do Direito Civil, consistindo o dolo no conhecimento e vontade de realização do facto por parte do agente, podendo revestir três modalidades – direto, necessário e eventual –, ao passo que a culpa [stricto sensu] ou negligência pode ser consciente ou inconsciente, ocorrendo a primeira quando o agente prevê como possível a produção do resultado, mas, por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria acredita na sua não verificação e não toma as providências necessárias para o evitar, enquanto na segunda, por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, não prevê sequer a possibilidade de verificação/realização do facto, embora pudesse prevê-lo e evitar a sua verificação se usasse da diligência devida; numa outra perspetiva, a culpa/negligência pode ser grave, leve ou levíssima, sendo que a primeira se traduz no facto do agente não fazer o que faz a generalidade das pessoas, em não observar os cuidados que todos, em regra, observam, que a segunda se verifica quando é omitida a diligência normal e que na terceira são omitidos cuidados especiais que só as pessoas mais prudentes observam [sobre estas figuras e modalidades, cfr. i. a. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, vol. I, 9ª ed., pgs. 590 a 594 e 598, nota 1 e Meneses Cordeiro, in Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo III, 2010, pgs. 470 a 477].
- Em terceiro lugar, a verificação de um nexo de causalidade adequada entre as condutas do devedor ou do administrador/gerente e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.
- Em quarto lugar, fixa-se uma limitação temporal às condutas que podem relevar para a qualificação da insolvência como culposa: só são tidas em conta as dos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
Além disso, as als. a) a i) do nº 2 do mesmo artigo descrevem, ainda, vários comportamentos/atuações do devedor ou dos seus administradores/gerentes que o legislador considera que são sempre culposos, por estabelecerem verdadeiras presunções juris et de jure [inilidíveis] dessa culpabilidade, que acarretam, necessariamente, a qualificação como culposa da própria insolvência, ao passo que as duas alíneas do nº 3 consagram apenas meras presunções juris tantum [ilidíveis] de culpa grave do devedor ou dos seus administradores/gerentes [jurisprudência e doutrina vêm entendendo, maioritariamente, que o nº 2 do art. 186º estabelece uma presunção inilidível de que a verificação de algum dos comportamentos taxativamente indicados nas suas alíneas importa a existência de culpa e do nexo causal entre a atuação daqueles e a criação ou o agravamento do estado de insolvência, enquanto no nº 3 se prevê apenas uma presunção ilidível de culpa grave dos administradores, mas não também da verificação do nexo causal entre as condutas nele apontadas e a criação ou o agravamento da insolvência, havendo, nos casos aí indicados, necessidade de prova deste pressuposto para que a insolvência seja declarada culposa – neste sentido pronunciaram-se, i. a., os Acórdãos desta Relação do Porto de 20.02.2024, proc. 1872/22.3T8AMT-C.P1, de 29.09.2022, proc. 2367/16.0T8VNG-H.P1, de 12.10.2010, proc. 243/09.1TJPRT-G.P1, de 11.11.2010, proc. 1447/08.0TBVFR-A.P1 e de 25.11.2010, proc. 814/08.3TBVFR-F.P1, todos disponíveis in www.dgsi.pt/jtrp, da Relação de Guimarães de 25.05.2023, proc. 4006/20.5T8GMR.G1, disponível in www.dgsi.pt/jtrg e da Relação de Coimbra de 14.06.2022, proc. 4114/19.5T8LRA-C.C1, disponível in www.dgsi.pt/jtrc; na doutrina, por ex., Maria do Rosário Epifânio, in Manual de Direito da Insolvência, 8ª ed., 2022, Almedina, pgs. 157-162, fazendo comparação com a lei espanhola sobre insolvências, que foi fonte de inspiração direta do nosso CIRE, conclui que a presunção inilidível abrange a culpa grave e o nexo causal e que “a única forma de escapar à qualificação da insolvência como culposa será a prova, pela pessoa afetada, de que não praticou o ato”; idem, Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2008, Quid Juris, pgs. 610-612 e in A Qualificação da Insolvência e a Administração da Massa Insolvente pelo Devedor, Colectânea de Estudos Sobre a Insolvência, 2009, Quid Juris, pgs. 261 a 263].
A propósito das alíneas do nº 2, há quem distinga as das als. a) a g) das duas restantes – as h) e i) –, considerando que as primeiras “correspondem a presunções (absolutas) de insolvência culposa”, enquanto as als. h) e i) “mais parecem ser ficções legais – dado que a factualidade descrita não é de molde a fazer presumir com segurança o nexo de causalidade entre o facto e a insolvência, que é, a par da culpa (dolo ou culpa grave), o requisito fundamental da insolvência culposa, segundo a cláusula geral do nº 1 do art. 186º” [cfr., i. a., Catarina Serra, in Lições de Direito da Insolvência, 3ª ed., 2025, Almedina, pg. 384, Acórdão do Tribunal Constitucional nº 570/2008, de 26/11, disponível in www.tribunalconstitucional.pt e Acórdãos do STJ de 17.01.2023, proc. 14604/18.1T8LSB-A.L2.S1, disponível in www.dgsi.pt/jstj e desta Relação do Porto (e Secção) de 20.02.2024, atrás citado e de 28.01.2025, proc. 5891/21.9T8VNG-B.P1, disponível in www.dgsi.pt/jtrp].
Finalmente, o nº 4 do mesmo preceito estende o disposto nos n.ºs 2 e 3 à atuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, com as necessárias adaptações.
Feito este introito, vejamos então se o caso dos autos se reconduz à situação-tipo prevista na al. h) do nº 2 do aludido normativo, como considerou a sentença recorrida.
Estabelece esta alínea que se considera sempre culposa a insolvência do devedor quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham «[i]ncumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor».
A fundamentação da sentença recorrida, quanto ao preenchimento de tal alínea, foi a seguinte [transcreve-se o segmento relevante]:
«A propósito do preenchimento da presunção ‘iuris et de iure’ prevista na alínea h) do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE (na parte que ao caso presente importa) - Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada … - o uso da expressão “em termos substanciais” significa que a obrigação de manter a contabilidade organizada foi violada em termos tais que não é possível indicar, com segurança, a causa da insolvência e dos seus responsáveis [em nota (4) de rodapé, invoca em sustento desta afirmação o estudo de Rui Estrela de Oliveira, “Uma brevíssima incursão pelos incidentes de qualificação da insolvência”, Revista Julgar, nº 11- 2010, pág. 242]. Não é, assim, qualquer incumprimento ou irregularidade contabilística que preenche esta presunção: terá que ser um incumprimento ou irregularidade com influência na perceção que uma tal contabilidade transmite sobre a situação patrimonial e financeira do insolvente, e que deve ser aferida em face das obrigações que o Código das Sociedades Comerciais, nomeadamente o seu artigo 65.º faz impender sobre os gerentes.
O artigo 65.º Código das Sociedades Comerciais sob epígrafe “Dever de relatar a gestão e apresentar contas” dispõe que:
“1 - Os membros da administração devem elaborar e submeter aos órgãos competentes da sociedade o relatório de gestão, incluindo a demonstração não financeira ou o relatório separado com essa informação, ambos referidos nos artigos 66.º-B e 508.º-G, quando aplicáveis, as contas do exercício, bem como os demais documentos de prestação de contas previstos na lei, relativos a cada exercício anual.
(…)
5 - O relatório de gestão, o relatório separado com a informação não financeira, quando aplicável, as contas do exercício e demais documentos de prestação de contas devem ser apresentados ao órgão competente e por este apreciados, salvo casos particulares previstos na lei, no prazo de três meses a contar da data do encerramento de cada exercício anual, ou no prazo de cinco meses a contar da mesma data quando se trate de sociedades que devam apresentar contas consolidadas ou que apliquem o método da equivalência patrimonial.”
Na alínea h), do n.º2 do art.º 186.º do CIRE, o que está em causa, mais do que o incumprimento da obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, ou de as submeter à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial - circunstancialismo que é relevante para o preenchimento da al. b), do n.º 3 do mesmo artigo – é a própria obrigação de manter a contabilidade organizada [em nota de rodapé (5), chama à colação o entendimento de Maria Elisabete Ramos, “Insolvência da Sociedade e Efetivação da Responsabilidade Civil dos Administradores”, Boletim da FDUC, Vol. LXXXIII, 2007, pág. 481]. A contabilidade tem de transmitir uma imagem verdadeira e apropriada da realidade económica e financeira da sociedade e tem de ser compreensível para o conjunto de entidades com as quais se relaciona, nomeadamente, investidores, empregados, mutuantes, fornecedores, clientes, Estado e outros.
No caso dos autos, como resulta da factualidade provada, apenas foram disponibilizados elementos contabilísticos dos anos de 2018, 2019 e 2020; apenas foram entregues as declarações de IES até ao ano de 2020; e o Contabilista Certificado da sociedade cessou funções em 04/11/2021.
Verifica-se, pois, a circunstância prevista na alínea h) do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE, tendo a sociedade insolvente incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, o que impede o conhecimento da realidade económica e financeira da sociedade, e estabelece uma presunção de culpa iuris et de iure de insolvência culposa, que afeta os seus administradores, de direito ou de facto, no caso dos autos, o Requerido.».
Está, portanto, em questão o segmento da dita al. h) relativo ao «incumprimento em termos substanciais da obrigação da sociedade ora declarada insolvente manter contabilidade organizada» nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, ou seja, no período que se situou entre 15.04.2021 e 15.04.2024 [data do início do processo de insolvência].
Quanto ao preenchimento dos elementos integradores de tal segmento da al. h) seguimos o entendimento dominante na jurisprudência, que considera que a obrigação das sociedades comerciais manterem contabilidade organizada constitui um instrumento destinado a dar a conhecer, de forma completa, rigorosa e fiável, a situação patrimonial e financeira das mesmas e que existe incumprimento em termos substanciais dessa obrigação “quando os termos em que foi cumprida – ou incumprida – inviabilizam ou são susceptíveis de afetar e comprometer, de modo sério e relevante, a concretização do resultado que se pretende obter com essa obrigação, ou seja, quando a contabilidade – nos termos que foi organizada – não fornece uma imagem compreensível, completa, fiável e real da situação financeira da empresa, seja porque os termos em que foi organizada não permitem ou dificultam, de modo relevante, a exata interpretação e compreensão da situação financeira que ali se pretendeu retratar, seja porque induz à perceção de uma situação financeira e patrimonial que não coincide com a real situação da empresa”. Como tal, a verificação fáctica [factos provados] dessa situação, descrita na citada alínea, “implica necessariamente a qualificação da insolvência como culposa, sem necessidade de demonstração de culpa ou da existência de nexo causal com a criação ou agravamento da situação de insolvência e independentemente das razões, motivações ou intenções que estiveram subjacentes ao comportamento que deu origem a essa situação” [assim, Acórdão da Relação de Coimbra de 14.03.2023, proc. 1937/21.9T8CBR-A.C1, disponível in www.dgsi.pt/jtrc; no mesmo sentido, entre muitos outros, Acórdãos desta Relação do Porto (e Secção) de 28.01.2025, atrás citado, de 09.04.2024, proc. 663/22.9T8AMT-A.P1 e de 16.01.2024, proc. 7319/18.2T8VNG-D.P1, estes disponíveis in www.dgsi.pt/jtrp].
Por isso, não acompanhamos o entendimento do recorrente constante das conclusões 16 e 23 que considera que para preenchimento do referido segmento da al. h) seria necessário que tivesse ficado provado que o recorrente [gerente da sociedade agora insolvente] pretendeu enganar terceiros, fazendo transparecer uma realidade distinta da real e/ou que pretendeu ocultar, modificar ou omitir a realidade contabilística da sociedade, tendo em vista o prejuízo patrimonial e financeiro de terceiros [assim, Acórdão da Relação de Coimbra de 14.03.2023, atrás citado, que refere que “é totalmente irrelevante – para efeitos de verificação da situação descrita e da consequente qualificação da insolvência como culposa – que não existam factos provados que sustentem a conclusão de que as irregularidades da contabilidade tivessem tido por finalidade a ocultação da situação patrimonial da empresa ou que visasse impedir o apuramento das causas da insolvência ou seu agravamento (…). Com efeito, se é certo que, (…), a verificação da situação prevista na citada alínea h) não exige e não pressupõe que, com o incumprimento ou irregularidades aí referidas, se tenha pretendido ocultar a realidade financeira da empresa a terceiros ou impedir que as causas da insolvência ou do seu agravamento fossem do cabal conhecimento de quem analisa a contabilidade da empresa – o preenchimento da previsão normativa basta-se com a verificação objetiva do incumprimento ou das irregularidades aí mencionadas, nos termos acima referidos –, também é certo que a verificação dessa situação é suficiente para determinar a qualificação da insolvência como culposa sem necessidade de demonstrar a existência de culpa ou nexo de causalidade em relação à criação ou agravamento da situação de insolvência”; idem, Acórdãos do STJ de 28.01.2025, proc. 7920/19.7T8VNF-A.G1.S1 e de 19.10.2021, proc. 421/19.5T8GMR-A.G1.S1, disponíveis in www.dgsi.pt/jstj e desta Relação do Porto de 28.01.2025 e de 09.04.2024, atrás citados].
Antes de avançarmos impõe-se uma breve referência ao que o recorrente refere nas conclusões 6, 7, 10 e 14.
Trata-se de factualidade que não consta do elenco dos factos provados. Para que passasse a constar de tal elenco, o recorrente teria que impugnar a decisão da matéria de facto [constante da sentença], nos termos impostos pelo art. 640º do CPC, ou seja, especificar (i) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados – al. a) do nº 1 –, (ii) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida – al. b) – e (iii) a decisão que, no seu entender, deveria ser proferida sobre as questões de facto impugnadas – al. c). Além disso, estando em causa meios probatórios que se reportam a provas gravadas [pelo menos no caso da conclusão 6], teria, ainda, o recorrente que indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso – al. a) do nº 2. A falta de cumprimento destes ónus – principalmente dos ónus primários das três alíneas do nº 1 daquele artigo – determinam a imediata rejeição da impugnação da matéria de facto, não havendo lugar a convite ao aperfeiçoamento.
Contudo, o recorrente não cumpriu nenhum destes ónus [quer os primários, quer o secundário da al. a) do nº 2], quer na motivação [corpo das alegações], quer nas conclusões, sendo que algumas das referidas especificações bastava constarem da motivação [casos das als. b) do nº 1 e a) do nº 2], enquanto outras [as das als. a) e c) do nº 1] tinham que constar obrigatoriamente da motivação e das conclusões. Aliás, em parte alguma das alegações e das conclusões o recorrente anuncia sequer a intenção de impugnar a matéria de facto fixada na sentença recorrida, pelo que é inequívoco que não a impugna. Caso tivesse o propósito de a impugnar, para que lhe fossem aditados os factos que constam das assinaladas conclusões, então a impugnação teria que ser rejeitada por inobservância dos referidos ónus [pelo menos dos primários].
Deste modo, não atentaremos no que consta das referidas conclusões.
Voltando à apreciação dos requisitos da al. h) do nº 2 do art. 186º do CIRE, resulta dos factos provados nºs 8, 15 e 16 que a sociedade A..., Unipessoal, Lda., agora insolvente, não dispõe de quaisquer elementos contabilísticos, balancete geral, razão e saft da contabilidade relativos ao período de três anos atrás referido [que antecederam o início do processo de insolvência], não apresentou IES durante tal período e nunca procedeu ao depósito das contas junto da Conservatória do Registo Comercial.
Ora, como bem nota a Exma. Magistrada do Ministério Público nas contra-alegações que apresentou, «[a]s normas que impõem, aos comerciantes em geral, e às sociedades comerciais em particular, a obrigação de manter escrituração comercial, dar balanço e prestar contas visam defender os interesses da própria sociedade, dos sócios, dos credores relacionados com a sociedade, especialmente dos trabalhadores e do Estado (António Menezes Cordeiro, “Código das Sociedades Comerciais Anotado”, 4ª ed., Almedina, pág. 332, nota 7), na medida que se está perante uma ferramenta de gestão, que tem como finalidade fornecer informações relevantes sobre o património da empresa e dos negócios, permitindo aos comerciantes e aos seus administradores e decisores ter um conhecimento realista sobre a situação económica e financeira, minimizando falhas e erros de gestão. (…) Quanto aos terceiros, a escrituração comercial dá a conhecer aos trabalhadores e aos fornecedores e financiadores ou potenciais fornecedores e financiadores do comerciante a saúde patrimonial, económica e financeira deste, a fim de se inteirarem dos riscos que correm caso com ele estabeleçam ou continuem a estabelecer relações contratuais de que resulte a aquisição da sua qualidade de credores em relação ao comerciante. Quanto ao Estado, é com base na escrituração comercial que este liquida os impostos ao comerciante devidos em consequência dos eventuais lucros que essa atividade lhe proporciona, fiscaliza o cumprimento ou incumprimento por este das normas tributárias e, bem assim, colhe informação sobre o evoluir da economia em geral, a fim de adotar as políticas económicas que entenda pertinentes com vista a prosseguir determinadas finalidades. Daí que as normas que impõem aos comerciantes a obrigação de manterem escrituração comercial, dar balanço e prestar contas, nos termos fixados na lei, com vista a retratar a verdadeira situação patrimonial e comercial daqueles e o evoluir dessa situação prossigam interesses particulares (nomeadamente, do próprio comerciante, dos terceiros, designadamente, seus trabalhadores, potenciais fornecedores e financiadores, dos próprios sócios, quando se trate de sociedade comercial), mas também públicos (nomeadamente, de cobrança pelo Estado de tributos, mas também interesses gerais da economia e da segurança no tráfico jurídico e económico em geral).(J. Pires Cardoso, “Noções de Direito Comercial”, págs. 113 e segs.: “A utilidade e obrigatoriedade da escrituração mercantil assentam no interesse do próprio comerciante, das pessoas que com ele contratam e no interesse do público geral do público”.)”.
E não há dúvida que a sociedade ora insolvente, através do aqui recorrente, seu gerente, infringiu reiteradamente as normas legais que a obrigavam a manter escrituração comercial, dar balanço e prestar contas. Desde logo, como se refere na sentença recorrida, o estabelecido nos nºs 1 e 5 do art. 65º do CSC, que dispõem, respetivamente, que «[o]s membros da administração devem elaborar e submeter aos órgãos competentes da sociedade o relatório de gestão, (…), as contas do exercício, bem como os demais documentos de prestação de contas previstos na lei, relativos a cada exercício anual» – nº 1 – e que «[o] relatório de gestão, (…), as contas do exercício e demais documentos de prestação de contas devem ser apresentados ao órgão competente e por este apreciados, salvo casos particulares previstos na lei, no prazo de três meses a contar da data do encerramento de cada exercício anual, ou no prazo de cinco meses a contar da mesma data quando se trate de sociedades que devam apresentar contas consolidadas ou que apliquem o método da equivalência patrimonial» - nº 5. Também não foi cumprido o disposto no art. 42º nº 1 do Cód. Reg. Comerc., relativamente ao depósito de contas relativamente aos anos de 2021, 2022 e 2023. E não foi, igualmente, cumprido o fixado no art. 2º nº 1 do DL 8/2007, de 17.01, relativo às informações empresariais simplificadas [IES], que compreende, entre outras, as obrigações legais de: entrega da declaração anual de informação contabilística e fiscal prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 117º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas – al. b); registo da prestação de contas, nos termos previstos na legislação do registo comercial – al. c); prestação de informação relativa a dados contabilísticos anuais para fins estatísticos ao Banco de Portugal, de acordo com o estabelecido na respetiva lei orgânica, incluindo a que decorre da participação do Banco de Portugal no Sistema Europeu de Bancos Centrais – al. e).
Porque o recorrente, sobre quem impedia a observância de todas estas obrigações, fez absoluta tábua rasa das mesmas durante o triénio aqui em apreço, apresenta-se para nós inequívoco que estamos perante incumprimento que influenciou de modo relevante/substancial – não só no que concerne à sociedade e seus clientes e fornecedores, como também no que diz respeito ao Estado – a perceção da situação patrimonial e financeira da sociedade de que era gerente único [a agora insolvente] e que, contrariamente ao que aquele parece sustentar, não se tratou apenas de um qualquer incumprimento ou irregularidade contabilística [como se diz no Acórdão da Relação de Coimbra de 01.06.2020, proc. 5831/18.2T8VIS-A.C1, disponível do sítio da dgsi já indicado, [o]rganizar a contabilidade em termos substanciais é organizá-la de maneira a que ela mostre fielmente a situação patrimonial e financeira da empresa e os resultados da mesma”]. E não colhe o que o mesmo alegada nas conclusões 6 a 10, nas quais tenta atirar a responsabilidade pela falta dos elementos contabilísticos para a sociedade de contabilidade que aí indica, desconhecendo-se os termos desse contrato de prestação de serviços e se e quando lhe foi posto termos.
Mostra-se, pois, verificada a previsão da al. h) do nº 2 do art. 186º: o recorrente incumpriu em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada da sociedade de que era gerente.
Nesta parte a sentença recorrida não é merecedora de censura.

1.2. O recorrente discorda também do entendimento, constante da sentença recorrida, que considerou verificada a al. i) do nº 2 do mesmo art. 186º. Defende que não violou qualquer dever de apresentação e de colaboração previstos no art. 83º [conclusões 25 a 27].
Nesta al. i) está em causa o incumprimento, de forma reiterada, pelo administrador de direito ou de facto, dos deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83º até à data da elaboração do parecer referido no nº 6 do art. 188º.
Na sentença exarou-se o seguinte sobre esta situação:
«No que diz respeito à circunstância prevista na al. i) - Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º até à data da elaboração do parecer referido no n.º 6 do artigo 188.º - a propósito do “Dever de apresentação à insolvência”, dispõe o artigo 18.º, CIRE que: “1. O devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no nº1 do artigo 3º ou à data em que devesse conhecê-la. (…) 3. Quando o devedor seja titular de uma empresa, presume-se de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na al. g) do nº1 do artigo 20º.”
Resulta destas normas que o prazo de apresentação à insolvência conta-se do conhecimento dessa situação ou, sendo anterior, do momento em que o devedor a devia conhecer. Para facilitar a prova de tal conhecimento, o n.º 3 do art.º 18.º prevê uma presunção inilidível do conhecimento da insolvência quando ocorra, há pelo menos três meses, o incumprimento generalizado de qualquer das obrigações referidas na al. g) do n.º1 do artigo 20.º.
As obrigações que se encontram previstas na al. g) do n.º 1 do artigo 20.º, são as seguintes: i) tributárias; ii) de contribuições e quotizações para a segurança social; iii) dívidas emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação; iv) rendas de qualquer tipo de locação, incluindo financeira, prestações do preço da compra ou de empréstimo garantido pela respetiva hipoteca, relativamente ao local em que o devedor realize a sua atividade ou tenha a sua sede ou residência.
O carater “inilidível” desta presunção (prevista no n.º 3 do art.º 18.º) tem por consequência que, uma vez demonstrado o facto base – incumprimento generalizado deste tipo de obrigações que se prolongue por mais de três meses – não pode o devedor alegar factos demonstrativos do desconhecimento da situação de insolvência.
No que diz respeito aos deveres de colaboração, dispõe o art.º 83.º do CIRE que: “1 - O devedor insolvente fica obrigado a: a) Fornecer todas as informações relevantes para o processo que lhe sejam solicitadas pelo administrador da insolvência, pela assembleia de credores, pela comissão de credores ou pelo tribunal; (…) c) Prestar a colaboração que lhe seja requerida pelo administrador da insolvência para efeitos do desempenho das suas funções. (…) 3 - A recusa de prestação de informações ou de colaboração é livremente apreciada pelo juiz, nomeadamente para efeito da qualificação da insolvência como culposa. 4 - O disposto nos números anteriores é aplicável aos administradores do devedor e membros do seu órgão de fiscalização, se for o caso, bem como às pessoas que tenham desempenhado esses cargos dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência.”
O que diferencia o campo de aplicação da norma do n.º 3 do art.º 83.º, em relação à norma da al. i) do n.º 2 do art.º 186.º, é a reiteração do incumprimento.
Enquanto uma violação esporádica e isolada daqueles deveres apenas pode ser objeto de livre apreciação por parte do juiz, nomeadamente para efeito da qualificação da insolvência como culposa, já a violação reiterada dos mesmos deveres determina sempre a qualificação da insolvência como culposa, nos termos da alínea i) do nº 2 do art.º 186.º, o qual, como referimos, consubstancia uma presunção inilidível da existência de insolvência culposa.
No que diz respeito ao incumprimento dos deveres de apresentação, no caso dos autos, resulta provado que o contrato de compra e venda a prestações com reserva de propriedade celebrado com a sociedade “D..., S.A.” estava em incumprimento, por parte da insolvente, desde o mês de junho de 2019. Resulta ainda provado que, nos anos de 2018, 2019 e 2020, a sociedade apresentava capital próprio e resultado líquido negativo, e registava incumprimento perante o Instituto da Segurança Social, I.P. com valores em dívida relativos a contribuições do período de julho de 2018 a fevereiro de 2020 e perante a Autoridade Tributária, resultante de incumprimento perpetrado desde finais de 2018.
Verifica-se, assim, uma densidade factual que preenche a circunstância prevista na al. i) do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE, quanto ao incumprimento reiterado do dever de apresentação à insolvência, uma vez que a sociedade apenas de apresentou à insolvência em 15/04/2024.
(…)
Já no que diz respeito ao incumprimento dos deveres de colaboração, em face da factualidade provada em 7 a 11, não se pode considerar que o Requerido tenha incumprido os seus deveres de colaboração previstos no artigo 83.º até à data da elaboração do parecer referido no n.º 6 do artigo 188.º de forma reiterada, pese embora existam questões que não foram esclarecidas.
A insolvência deve, pois, ser qualificada como culposa, por estarem verificadas as circunstâncias previstas no art.º 186.º, n.º 1, n.º 2, al.s h) e i) – esta quanto ao incumprimento do dever “reiterado” de apresentação à insolvência (…).».
Resulta deste excerto que a 1ª instância considerou verificada a previsão da dita al. i) pelo facto do recorrente ter incumprido [reiteradamente] o dever de apresentação à insolvência [no que concerne à sociedade de que era gerente], pois quanto à violação do dever de colaboração concluiu não haver factos que a preencham.
Nesta parte a decisão recorrida padece de um equívoco: considerou erradamente que a falta [que reputou reiterada] de apresentação à insolvência se reconduz e integra a previsão da referida al. i) do nº 2 do art. 186º, o que não corresponde à verdade.
Com efeito, segundo a al. i) do nº 2 do art. 186º, considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham «incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83º até à data da elaboração do parecer referido no nº 6 do artigo 188º». Ou seja, os deveres de apresentação e de colaboração a que a alínea se reporta são apenas os que constam do art. 83º e não quaisquer outros. Ora, este art. 83º refere-se aos deveres [a cargo dos administradores de direito e de facto da insolvente] de fornecimento de todas as informações relevantes para o processo [de insolvência e seus apensos] que sejam solicitadas pelo administrador da insolvência, pela assembleia de credores, pela comissão de credores ou pelo tribunal – al. a) do nº 1; de apresentação pessoal no tribunal, sempre que a apresentação seja determinada pelo juiz ou pelo administrador da insolvência [salva a ocorrência de legítimo impedimento ou expressa permissão de se fazer representar por mandatário] – al. b); e de prestação da colaboração que lhe seja requerida pelo administrador da insolvência para efeitos do desempenho das suas funções – al. c). Tudo, pois, deveres a cargo dos administradores de direito ou de facto da insolvente com o objetivo de facultar ao tribunal e aos órgãos da insolvência os necessários elementos para que o processo de insolvência e seus apensos sejam céleres e os órgãos da insolvência levem a cabo o adequado exercício das funções que lhe são conferidas no CIRE. Em parte alguma do art. 83º [nem na al. i) do nº 2 do art. 186º] se faz menção à falta de apresentação à insolvência, que está prevista no art. 18º.
Surge, assim, evidente que a falta de apresentação à insolvência [ainda que prolongada no tempo] não integra o elenco das situações-tipo enquadráveis na previsão da al. i) do nº 2 do art. 186º [neste sentido, Acórdão da Relação de Évora de 09.02.2023, proc. 1611/21.6T8STR-B.E1, disponível in www.dgsi.pt/jtre, também citado pelo recorrente]. E como se considerou na sentença que «em face da factualidade provada (…) não se pode considerar que o Requerido tenha incumprido os seus deveres de colaboração previstos no artigo 83.º até à data da elaboração do parecer referido no n.º 6 do artigo 188.º de forma reiterada», mostra-se cristalino que a qualificação da insolvência como culposa não podia ter assentado naquela alínea.
Nesta parte procede o recurso.

1.3. Não se conforma, ainda, o recorrente com a qualificação da insolvência como culposa ao abrigo da al. a) do nº 3 do art. 186º [conclusões 28 a 39]. Entende, basicamente, que não resulta da factualidade dada como provada «que na data em que a sociedade procedeu à entrega de um autocarro à credora, a mesma devia apresentar-se à insolvência e muito menos a existência do referido nexo causal entre a omissão e a criação e/ou agravamento da situação de insolvência».
Dispõe-se na al. a) do nº 3 daquele artigo que «[p]resume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido (…) o dever de requerer a declaração de insolvência».
Neste caso presume-se unicamente a existência de culpa grave, o que significa que cabe ao autor do incidente de qualificação da insolvência – no caso, cabia à massa insolvente – a prova de que o incumprimento do dever de requerer a declaração de insolvência foi a causa da criação ou do agravamento da situação de insolvência, como é entendimento unânime da jurisprudência, ou, dito de outro modo, a existência daquela presunção juris tantum de culpa grave não prescinde de um juízo de causalidade entre o facto fundamentador da presunção e a criação ou agravamento da situação de insolvência [assim, i. a., Acórdãos desta Relação do Porto (e Secção) de 17.06.2025, proc. 2353/22.0T8VNG-A.P1 e de 07.02.2023, proc. 49/22.2T8AMT-A.P1 e da Relação de Coimbra de 06.10.2020, proc. 3422/19.0T8VIS-B.C1 e de 12.07.2017, proc. 370/14.3TJCBR-A.C, disponíveis nos sítios da dgsi já referenciados].
A sentença recorrida fundamentou o preenchimento in casu da al. a) do nº 3 do art. 186º do seguinte modo:
«No que diz respeito ao incumprimento dos deveres de apresentação, no caso dos autos, resulta provado que o contrato de compra e venda a prestações com reserva de propriedade celebrado com a sociedade “D..., S.A.” estava em incumprimento, por parte da insolvente, desde o mês de junho de 2019. Resulta ainda provado que, nos anos de 2018, 2019 e 2020, a sociedade apresentava capital próprio e resultado líquido negativo, e registava incumprimento perante o Instituto da Segurança Social, I.P. com valores em dívida relativos a contribuições do período de julho de 2018 a fevereiro de 2020 e perante a Autoridade Tributária, resultante de incumprimento perpetrado desde finais de 2018.
(…)
(…) verifica-se a circunstância prevista na al. a) do n.º 3 do art.º 186.º do CIRE, uma vez que se verifica o nexo de causalidade entre o incumprimento desta obrigação e a situação de insolvência ou o seu agravamento: note-se que desde os anos de 2018, 2019 e 2020, a sociedade foi aumentando o capital próprio negativo (-9 986,89€; -34 682,09€; -59 752,89€) e o resultado líquido negativo (-9 497,46€; -24 695,20€; -25 070,80€), o que não teria ocorrido se tivesse cumprido o dever de apresentação à insolvência.».
Não concordamos, com o devido respeito, com esta fundamentação.
Que a obrigação de apresentação à insolvência foi protelada no tempo não há qualquer dúvida, já que tal apresentação devia ter acontecido dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, presumindo-se, de forma inilidível [presunção juris et de jure], que quando o devedor é titular de uma empresa, como no caso, o conhecimento de tal situação acontece decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na al. g) do nº 1 do art. 20º - nºs 1 e 3 do art. 18º. Como o incumprimento generalizado da al. g) do nº 1 do art. 20º compreende, entre outras, as dívidas tributárias, as dívidas de contribuições e quotizações para a segurança social, as dívidas por rendas de qualquer tipo de locação, incluindo financeira, e se mostra provado que desde finais de 2018 havia dívidas perante a Autoridade Tributária, que desde 2020 havia dívidas perante o ISS, IP e que havia incumprimento do contrato de compra e venda indicado em 18 dos factos provados desde junho de 2019, apresenta-se evidente que a apresentação à insolvência devia ter ocorrido muito antes do que aconteceu.
A situação de insolvência existia, portanto, pelo menos desde finais de 2020, pelo que não foi o atraso na apresentação à insolvência que esteve na sua origem. Resta então a possibilidade de o atraso na apresentação à insolvência ter sido causa de agravamento daquela situação, relevando tão-só o que aconteceu nos três anos que precederam o início do processo de insolvência.
A sentença recorrida não faz referência a quaisquer factos ocorridos neste período que possam ter contribuído para o agravamento da situação de insolvência da devedora.
É verdade que o Ministério Público, nas contra-alegações, refere que «resulta dos factos provados que foram reconhecidos créditos no valor global de €316.471,42, cfr. sentença proferida no apenso A; vista a lista de créditos reconhecidos e das reclamações de créditos juntos ao apenso C decorre que, no período de relevante, entre (…) 15/04/2021 e 15/04/2024, a omissão do dever de apresentação à insolvência agravou a situação de insolvência, não só pelo avolumar dos juros, mas também pela constituição de novas dívidas, como sejam as dívidas de IVA vencidas a 04/02/2023 e 01/04/2023 e dívidas de taxas de portagem e coimas e custos associados vencidos até 22/04/2024 pela utilização dos veículos de matrículas ..-BL-.., ..-FS-.., ..-FT-.. e ..-IE-..». Contudo, o simples avolumar dos juros não releva para este efeito, como há muito defende a jurisprudência. E quanto ao mais, exceção feita ao montante dos créditos reconhecidos no apenso A [cfr. facto provado nº 20], a factualidade que ali se indica, por referência à lista de créditos junta ao apenso C, não consta do elenco dos factos provados da sentença recorrida. Para que tal factualidade pudesse ser aqui tomada em conta necessário seria que o MP tivesse lançado mão do que permitem os nºs 1 e 2 do art. 636º do CPC e tivesse requerido a ampliação do âmbito do recurso, o que não aconteceu, e que, nesse âmbito, tivesse impugnado a matéria de facto fixada na sentença, nos termos e com observância do estabelecido no art. 640º nº 1 als. a) a c) do mesmo corpo de normas, o que também não fez.
Em conclusão, por inexistência de factos provados demonstrativos do agravamento da situação de insolvência da devedora durante os três anos que antecederam o início do processo de insolvência, impõe-se concluir pela não verificação da situação prevista na al. a) do nº 3 do art. 186º.
Como tal, o recurso também procede nesta parte.
Quanto à qualificação da insolvência como culposa, declarada na sentença recorrida, confirma-se, por isso, apenas o segmento relativo à verificação da situação-tipo da al. h) do nº 2 do mesmo art. 186.
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2. Se a inibição fixada ao recorrente é merecedora de censura.
O recorrente insurge-se, ainda, contra o período de inibição que lhe foi fixado na sentença – 4 anos. Entende que os factos provados não suportam tal sanção, a qual, por isso, é manifestamente desproporcional aos objetivos visados pela lei e entende que não deve ser condenado a qualquer período de inibição [cfr. conclusões 40 a 43].
As als. b) e c) do nº 2 do art. 189º do CIRE estabelecem para tal inibição um prazo/período que varia entre o mínimo de dois anos e o máximo de dez anos e, da sua conjugação com o que dispõe a parte final da al. a) dos mesmos número e preceito, resulta que a sua fixação depende do grau de culpa ou da contribuição causal do afetado na criação ou agravamento da situação de insolvência do/a devedor/a [Catarina Serra, obr. cit., pgs. 184-185, alerta que pressupondo a insolvência culposa “sempre o dolo ou a culpa grave, ou seja, um comportamento especialmente censurável, ponderar o grau de culpa dos sujeitos (…) é, (…), menos útil do que pode parecer: todos terão agido de forma particularmente reprovável, sendo as diferenças no plano da imputação subjetiva inevitavelmente insignificantes”, pelo que, por via disso, propõe que [e]m vez do grau de culpa, deverá ter relevância a contribuição causal (…)”].
A sentença recorrida fundamentou o período de inibição fixado ao ora recorrente do seguinte modo:
«No caso dos autos, partindo do limite mínimo e máximo estabelecido na lei, e tendo em conta os factos provados, subsumíveis à qualificação culposa da insolvência, entendo ser de inibir o Requerido para administrar patrimónios de terceiros e para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa pelo período em 4 anos, por se julgar adequado à gravidade dos factos, concretamente ao período temporal do incumprimento do dever de apresentação à insolvência que sobre o mesmo impendia, enquanto gerente da sociedade A... Unipessoal, Lda, assim como ao incumprimento da obrigação de manter contabilidade organizada, que inviabilizou o conhecimento da real situação económica e financeira da sociedade insolvente, havendo ainda algumas questões que ficaram por esclarecer. Note-se que só há elementos contabilísticos (alguns) até 2020.».
O achamento do período adequado da inibição deve assentar no grau do juízo de censurabilidade do comportamento do requerido e na sua contribuição para a criação ou agravamento da insolvência da sociedade de que era gerente [de direito].
Como factos relevantes para o efeito, temos que na base declaração da insolvência como culposa esteve o incumprimento de deveres estabelecidos na al. h) do nº 2 do art. 186º [o incumprimento dos deveres da al. i) do nº 2 e da al. a) do nº 3 não resultou demonstrado, como explanado em 1.2 e 1.3 do item 1 deste ponto IV], incumprimento que o legislador considera particularmente grave, a tal ponto que faz presumir iuris et de iure a existência de culpa grave e o nexo de causalidade da insolvência, sem possibilidade de prova do contrário. Como tal, o juízo de censurabilidade do comportamento do requerido é elevado. E também não deixa de ser relevante a sua contribuição causal, pois era sobre ele que recaía o dever de manter contabilidade organizada da empresa de que era gerente.
Daí que, contrariamente ao que defende o recorrente, haja necessariamente lugar à fixação de período de inibição para os efeitos das als. b) e c) do nº 2 do art. 189º.
Mas, como já decidimos no Acórdão desta Relação de 10.07.2025 [proc. 1707/24.2T8STS-B.P1, disponível in www.dgsi.pt/jtrp], num caso em que a insolvência culposa também radicou na verificação da al. i) do nº 2 do art. 196º [falta de contabilidade organizada], consideramos que, face à factologia provada, se mostra mais adequado um período de inibição de 3 (três) anos em vez dos 4 (quatro) anos fixados na sentença recorrida [no mesmo sentido, cfr. Acórdão do STJ de 05.07.2022, proc. 15973/18.9T8SNT-A.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt/jstj, que, num caso em que a sociedade insolvente nunca providenciou pela manutenção da contabilidade, tendo existido à margem do cumprimento de tal obrigação legal, decidiu que “é ajustado fixar em 3 anos o período de inibição do afetado gerente para o exercício do comércio”].
Procede, assim, em parte este segmento do recurso.
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3. Se o «quantum» indemnizatório deve ser alterado.
Finalmente, nas conclusões 44 a 51, o recorrente insurge-se contra o decidido na alínea e) da parte decisória da sentença recorrida, contrapondo que, por inexistência de elementos de facto, não deve ser condenado em qualquer indemnização, além de que a sentença não concretiza os critérios que levaram à fixação do quantum indemnizatório que dela consta.
Está em causa a exigência prescrita na al. e) do nº 2 do art. 189º, que estabelece que, na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve «[c]ondenar as pessoas afetadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças dos respetivos patrimónios, sendo tal responsabilidade solidária entre todos os afetados.». E acrescenta o nº 4 do mesmo normativo que «[a]o aplicar o disposto na alínea e) do n.º 2, o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas ou, caso tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos, os critérios a utilizar para a sua quantificação, a efetuar em liquidação de sentença.».
A propósito desta alínea, na sua redação atual [dada pela Lei nº 9/2022, de 11.01], ensina Catarina Serra [obr. cit., pgs. 196 e segs.] que “já não é possível fazer prevalecer o critério do montante dos créditos não satisfeitos”, pois este determina “só o montante máximo da indemnização”, ou, dito de outro modo, “o montante dos créditos não satisfeitos deixa de poder ser utilizado como ponto de partida ou como padrão para o cálculo da indemnização, passando o (novo) critério, disponibilizado no art. 189º, nº 4, a ser o montante dos prejuízos sofridos”, restando ao montante dos créditos não satisfeitos a função “de limitar o montante da indemnização” [montante máximo]. E depois [pgs. 199-200] alerta que pressupondo a insolvência culposa “sempre o dolo ou a culpa grave, ou seja, um comportamento especialmente censurável, ponderar o grau de culpa dos sujeitos para o efeito de limitar a indemnização não só não é muito coerente com o disposto na lei (cfr. art. 494º do CC) como não é muito útil: todos terão agido de forma particularmente reprovável, sendo as diferenças no plano da imputação subjetiva inevitavelmente insignificantes”, acrescentando ainda que [t]ão-pouco faz sentido valorizar-se a referência legal às forças dos patrimónios, designadamente interpretando-a como significando o dever de ponderar a situação patrimonial dos sujeitos”, pois a “substituição, pela Lei nº 9/2022, de 11 de janeiro, da menção «até às forças dos respetivos patrimónios» pela menção «considerando as forças dos respetivos patrimónios» não parecem, de facto, alterar alguma coisa”, concluindo que “com ela se visou simplesmente evitar a repetição da preposição «até», usada para a fixação do montante máximo”, continuando, por isso, “a não ser de atribuir à referência mais significado do que o de retirar o que já resulta (…) do disposto no art. 601º do CC (o devedor responde com todo o seu património pelas suas obrigações)”, além de que a “possibilidade de fazer repercutir a situação patrimonial ou económica do lesante no montante da indemnização está prevista na lei civil (…) apenas para o caso de a responsabilidade se fundar na mera culpa (cfr. art. 494º do CC) – o que, (…), não é o que acontece aqui”, na medida em que a qualificação da insolvência como culposa assenta em atuação dolosa ou gravemente negligente do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto [sendo que a negligência grave se aproxima da figura do dolo, mais concretamente do dolo eventual], o que afasta a possibilidade de recurso à previsão do art. 494º do CCiv..
Por sua vez, o acórdão do STJ de 22.06.2021 [proc. 439/15.7T8OLH-J.E1.S1, disponível in www.dgsi.pt/jstj], depois de afirmar que a indemnização prevista na al. e) do nº 2 do art. 189º do CIRE não pode ser imposta automaticamente, “sem quaisquer limites e fora de quaisquer exigências ou controlo de proporcionalidade (ou de não desproporcionalidade)”, acrescenta, no seu sumário, que: “(…) no caso de indemnização consagrada no art. 189.º, n.º 2, al. e), do CIRE, será atendendo e apreciando as circunstâncias do caso (tudo o que está provado no processo: o que levou à qualificação e o que o afetado alegou e provou em sua “defesa”) que o juiz pode/deve fixar as indemnizações em que condenará as pessoas afetadas. (…) E entre as circunstâncias com relevo para apreciar a proporcionalidade ou desproporcionalidade da indemnização a fixar encontram-se os elementos factuais que revelam o grau de culpa e a gravidade da ilicitude da pessoa afetada (da contribuição do comportamento da pessoa afetada para a criação ou agravamento da insolvência): mais estes (os elementos respeitantes à gravidade da ilicitude) que aqueles (os elementos respeitantes ao grau de culpa), uma vez que, estando em causa uma insolvência culposa, o fator/grau de culpa da pessoa afetada não terá grande relevância como limitação do dever de indemnizar, sendo o fator/proporção em que o comportamento da pessoa afetada contribuiu para a insolvência que deve prevalecer na fixação da indemnização. (…) Não perdendo o juiz de vista, na fixação das indemnizações, que a responsabilidade consagrada no art. 189.º, n.º 2, al. e), do CIRE (sobre as pessoas afetadas pela qualificação da insolvência como culposa) tem uma função/cariz misto, ou seja, sem prejuízo da sua função/cariz ressarcitório, tem também uma dimensão punitiva ou sancionatória (da pessoa afetada/culpada na insolvência), pelo que a observância do princípio da proporcionalidade não exige que a indemnização a impor tenha que ser avaliada como justa, razoável e proporcionada, mas sim e apenas, num controlo mais lasso, que a indemnização a impor não seja avaliada como excessiva, desproporcionada e desrazoável.” [em idêntico sentido, ainda os acórdãos do STJ de 28.01.2025, proc. 7920/19.7T8VNF-A.G1.S1, de 12.12.2023, proc. 3146/20.5T8VFX-B.L1.S1 e de 06.09.2022, proc. 291/18.0T8PRG-C.G2.S1 e os acórdãos desta Relação do Porto de 10.07.2024, proc. 1234/23.5T8AMT-B.P1, de 10.07.2024, proc. 2755/20.7T8OAZ-D.P1 e de 26.09.2022, proc. 3475/16.2T8STS-B.P1, disponíveis nos citados sítios da dgsi].
A Mma. Julgadora a quo estribou o quantum indemnizatório em que o requerido, ora recorrente, foi condenado na seguinte fundamentação [transcreve-se a parte relevante]:
«Resulta da matéria de facto provada nos autos que, desde os anos de 2018, 2019 e 2020 a sociedade foi aumentando o capital próprio negativo (-9 986,89€; -34 682,09€; -59 752,89€) e o resultado líquido negativo (-9 497,46€; -24 695,20€; -25 070,80€); o contrato de compra e venda a prestações com reserva de propriedade celebrado com a sociedade “D..., S.A.” estava em incumprimento, por parte da insolvente, desde o mês de junho de 2019; a insolvente regista incumprimento perante o Instituto da Segurança Social, I.P. com valores em dívida relativos a contribuições do período de julho de 2018 a fevereiro de 2020 e perante a Autoridade Tributária desde finais de 2018. Perante esta factualidade verifica-se o nexo causal entre os comportamentos culposos do Requerido, que não cumpriu o seu dever de apresentação da sociedade à insolvência, e os concretos danos sofridos pelos credores, correspondentes ao valor dos créditos reconhecidos, no total de €316.471,42. Considerando os comportamentos que, provados, determinam a culpa do Requerido, entende-se que este deverá responder pelo montante dos créditos não satisfeitos, até ao limite de €316.471,42 (trezentos e dezasseis mil, quatrocentos e setenta e um euros e quarenta e dois cêntimos).».
Como resulta do que acima ficou exarado [ensinamentos doutrinais e jurisprudenciais], o quantum indemnizatório a fixar tem de atentar nas circunstâncias do caso concreto, com enfoque no grau de culpa e gravidade da ilicitude do comportamento do requerido/afetado [mais nesta que naquele] e na dupla função de tal condenação [funções ressarcitória e sancionatória], devendo, ainda, ser proporcional a estes pressupostos e não pode ir além do montante máximo dos créditos não satisfeitos.
Começando pela censurabilidade do comportamento do requerido/recorrente, consideramos que o mesmo é merecedor de elevada censura porque fez absoluta tábua rasa dos seu deveres ao manter a empresa de que era gerente sem qualquer elemento de contabilidade durante os três anos que precederam o início do processo de insolvência. Como decorre do que dissemos no item anterior, é também elevado o seu grau de culpa na criação e manutenção da situação financeira que levou à insolvência da sociedade. E de considerável gravidade são, ainda, os prejuízos causados pela atividade [e manutenção da atividade] da empresa, na medida em que em menos de sete anos de atividade [desde a sua constituição em 18.09.2017 até se apresentar à insolvência em 15.04.2024], conseguiu endividar-se, perante fornecedores e o Estado [ATA e ISS], num montante relevante de 316.471,42€, dos quais 262.271,45€ à Autoridade Tributária e Aduaneira [cfr. factos provados nºs 30, 31 e 32].
Perante este circunstancialismo e tendo em conta que a dívida se mantem na íntegra [os credores não lograram pagamento algum, por insuficiência da massa insolvente para satisfação das custas do processo e das restantes dívidas da massa insolvente – cfr. sentença de 04.11.2024, no processo principal], consideramos que a decisão recorrida não merece censura neste ponto, não havendo desproporcionalidade entre o quantum fixado a as circunstâncias imputáveis ao requerido/recorrente que levaram à criação e manutenção da situação de insolvência da sociedade.
Improcede, por conseguinte, o recurso nesta parte.

Pelo decaimento parcial de ambas as partes, as custas deste recurso ficam a cargo do recorrente e da massa insolvente, na proporção de 2/3 para o primeiro e de 1/3 para a segunda – arts. 527º nºs 1 e 2, 607º nº 6 e 663º nº 2 do CPC e 303º do CIRE.
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Síntese conclusiva:
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V. Decisão:

Face ao exposto, os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação do Porto acordam em:
1º) Julgar o recurso parcialmente procedente e alterar a sentença recorrida no que concerne à qualificação da insolvência como culposa, considerando-se verificada apenas a situação-tipo da al. h) do nº 2 do art. 186º do CIRE, e reduzindo o período de inibição do recorrente, decretado ao abrigo das als. b) e c) do nº 2 do art. 189º do CIRE, para 3 (três) anos, confirmando-se o mais que nela foi decidido.
2º) Condenar o recorrente e a massa insolvente nas custas deste recurso, pelo decaimento parcial de ambos, na proporção de 2/3 para o primeiro e de 1/3 para a segunda.

Porto, 30.09.2025
Pinto dos Santos
João Proença
João Diogo Rodrigues