Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | ARTUR DIONÍSIO OLIVEIRA | ||
Descritores: | REGULAÇÃO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS INQUISITÓRIO ARTICULADO SUPERVENIENTE PRAZO | ||
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Nº do Documento: | RP202507103032/22.4T8FNC-J.P1 | ||
Data do Acordão: | 07/10/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA A DECISÃO | ||
Indicações Eventuais: | 2. ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I – O reforço do princípio do inquisitório (e o consequente recuo do princípio do dispositivo) no âmbito dos processos de jurisdição voluntária atenua de forma significativa os limites dos poderes de cognição do tribunal em matéria de facto decorrentes do ónus da alegação consagrado no artigo 5.º do CPC. Mas não corresponde a uma pura dispensa deste ónus de alegação e, muito menos, a uma proibição de alegação. Por conseguinte, não serve de fundamento de inadmissibilidade de algum articulado, inclusivamente de um articulado superveniente (sem prejuízo dos requisitos específicos de admissibilidade do articulado em causa). II – Apesar da flexibilidade processual preconizada no artigo 986.º, n.º 2, do CPC, nada nesta ou em qualquer outra norma legal permite concluir que o legislador pretendeu afastar, in limine, a faculdade de apresentação de articulados supervenientes nos processos de jurisdição voluntária em geral e nos processos tutelares cíveis em particular. Pelo contrário, tal possibilidade decorre da leitura conjugada dos artigos 12.º e 33.º, n.º 1, do RGPTC e dos artigos 549.º, n.º 1, e 588.º e seguintes, do CPC. III – São requisitos da admissibilidade do articulado superveniente: - A pertinência dos novos factos aí alegados, o que pressupõe que estes ainda não tenham sido alegados e que constituam factos essenciais para a decisão da causa; - A superveniência (objectiva ou subjectiva) desses factos; - A tempestividade da apresentação daquele articulado. IV – Do artigo 588.º, n.º 2, do CPC decorre que a superveniência se deve aferir por referência aos prazos previstos na lei para a apresentação dos articulados pelas partes, ou seja, por referência aos prazos legalmente estabelecidos para as partes exporem por escrito os factos em que baseiam as suas pretensões. Transpondo este critério para o processo especial de regulação das responsabilidades parentais, a superveniência terá de ser aferida por referência aos prazos fixados aos progenitores para apresentarem as alegações previstas no artigo 39.º, n.º 4, do RGPTC, por ser, em princípio, a última peça escrita em que aqueles podem expor os factos que consideram relevantes. V – Não havendo lugar a audiência prévia, o prazo para oferecimento do articulado superveniente só pode ser o previsto na al. b) ou na al. c), do n.º 3, do artigo 588.º. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Proc. n.º 3032/22.4T8FNC-J.P1 Acordam no Tribunal da Relação do Porto I. Relatório AA, residente na Rua ..., ..., ..., ... ..., intentou contra BB, residente no Largo ... ..., ... ..., a presente acção especial de regulação do exercício das responsabilidades parentais relativa ao menor CC, nascido em ../../2017. Foi realizada a conferência a que se refere o artigo 35.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC) no dia 15.03.2023, na qual compareceram ambos os progenitores. Não tendo sido possível obter o acordo destes, foi fixado regime provisório de regulação das responsabilidades parentais e determinada a remessa daqueles para audição técnica especializada. Em 03.04.2023 foi junta aos autos cópia de uma queixa crime apresentada pela mãe do menor. O requerido pronunciou-se sobre esta queixa no requerimento que apresentou em 19.04.2023. Em 12.07.2023 foi junta aos autos informação da CPCJP do .... O requerido viria a pronunciar-se sobre essa informação (bem como sobre os factos que determinaram a abertura do processo de promoção e protecção em apenso e sobre o desenrolar deste processo, designadamente sobre a realização dos convívios paterno-filiais com supervisão, no Espaço Família da Segurança Social) no requerimento que apresentou no dia 14.11.2023. Entretanto, finda a audição técnica especializada e mostrando-se inviável a obtenção de um acordo, as partes foram notificadas para apresentarem alegações e prova, nos termos previstos no artigo 39.º, n.º 4, do RGPTC, o que fizeram em 02.10.2023 (o pai) e 04.10.2023 (a mãe), tendo o pai exercido o contraditório relativamente às alegações apresentadas pela mãe (cfr. requerimento de 19.10.2023). Sob promoção do MP, foi designado o dia 13.12.2023 para audiência de julgamento, mas que veio a ser dada sem efeito, dada a pendência de um inquérito criminal, por suspeitas de abuso sexual por parte do progenitor, e da aplicação de uma medida provisória no já aludido processo de promoção e protecção. Dado a tempo entretanto decorrido e a estabilização da situação em termos processuais, foi designada nova conferência de progenitores para o dia 13.01.2025. Continuando a não ser possível o acordo dos progenitores, foi determinado que os autos aguardassem a junção dos elementos solicitados no processo de promoção e protecção, mantendo-se o regime provisório antes fixado. Por despacho de 10.03.2025 foi designado o dia 30.04.2025 para audiência de julgamento. Em 25.03.2025 o requerido apresentou articulado superveniente, ao abrigo do disposto no artigo 588.º do CPC, ex vi artigo 33.º, n.º 1, do RGPTC. A requerente apresentou resposta onde, para além do mais, pugna pela inadmissibilidade e pela intempestividade deste articulado. Foi então proferido o seguinte despacho: Relativamente ao chamado “articulado superveniente” no qual o progenitor alega factos ocorridos após a apresentação das suas alegações para julgamento cumpre notar que em sede de processos de jurisdição voluntária (como é o caso dos processos tutelares cíveis), assim denominados por oposição à jurisdição contenciosa, verifica-se uma diferente modelação de certos princípios e regras processuais. Assim, na jurisdição voluntária é mais forte a presença do princípio do inquisitório, e muito menos a atuação do princípio do dispositivo, na medida em que o julgador pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes, tendo o poder de só admitir as provas que julgue necessárias (art. 986.º CPC), de forma a atingir a solução mais adequada ao caso concreto e que melhor solucione o litígio em que é chamado a intervir. Por outro lado e independentemente de alegação das partes podem ser considerados todos os factos ocorridos até à prolação da decisão, que vierem a ser demonstrados e considerados pertinentes para a decisão a proferir. De salientar ainda que a generalidade dos factos agora alegados como “supervenientes” constam já dos autos (ou do apenso de promoção e proteção), podendo e devendo vir a ser considerados pelo tribunal independentemente da sua alegação pela parte. Pelo exposto não se admite o articulado apresentado como “superveniente”, determinando-se o seu desentranhamento e devolução ao apresentante. Quanto às provas suplementares agora requeridas, no decurso da audiência de julgamento o tribunal apreciará da sua pertinência e necessidade ou não para a decisão a proferir Notifique DN * Inconformado, o requerido apelou desta decisão, concluindo assim a sua alegação: «I. O presente recurso tem como objeto o despacho proferido pelo Tribunal a quo a 9 de abril de 2025 no qual foi decidido não admitir “o articulado apresentado como “superveniente”, determinando-se o seu desentranhamento e devolução ao apresentante”. II. Articulado superveniente esse que o recorrente apresentou, ao abrigo do disposto no artigo 588º do Código de Processo Civil (ex vi artigo 33.º, n.º 1, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível), tendo em atenção que “depois de apresentadas as alegações – em 2 de Outubro de 2023 – diversos factos ocorreram ou advieram ao conhecimento do progenitor com relevância para a decisão a proferir acerca do regime de regulação do exercício das responsabilidades parentais que melhor se adequa à promoção do interesse do CC”. III. Nos processos de jurisdição voluntária, o Tribunal, nas medidas a tomar, não está sujeito a critérios de legalidade estrita, podendo adotar as soluções que julgue mais convenientes e oportunas em face dos concretos interesses carentes de regulação e que são objeto da decisão a ser proferida – cfr. artigo 12º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível e artigo 986º e seguintes do Código de Processo Civil. IV. No âmbito do processo de regulação das responsabilidades parentais, em que, todo ele está informado e visa acautelar o superior interesse do menor, o aludido juízo de conveniência e oportunidade encontra sempre no interesse concreto desse menor a sua razão de ser e o seu limite legal, por isso se afirmando que a discricionariedade do Juiz é vinculada, exatamente ao interesse concreto do menor, da criança ou jovem em causa. V. Não é, por isso, um processo onde existe um verdadeiro conflito de interesses, mas sim um conflito de opiniões sobre o mesmo interesse, sendo que no caso das regulações “qualquer dos pais procura defender a situação que melhor servirá, na sua opinião, o interesse do filho. Embora o interesse a defender seja o mesmo – o bem estar do filho de ambos – as opiniões de cada um dos progenitores, no sentido de alcançar esse bem estar, são divergentes entre si.” VI. Assim, e por não se tratar de um processo de partes, o princípio do dispositivo – pedra basilar dos processos de natureza contenciosa – é superado pelo princípio do inquisitório, que tem prevalência sobre aquele. VII. O reforço dos poderes do juiz em termos instrutórios ou de livre investigação não significa a atribuição de poderes discricionários ou arbitrários, mas de poderes orientados, vinculados, pela prossecução do fim último do processo, a melhor, mais adequada e conveniente (re)solução para aquela concreta criança. VIII. Conforme decorre da leitura dos doutos Acórdãos parcialmente transcritos nas alegações recursivas supra, a circunstância de um processo judicial se enquadrar no âmbito da jurisdição voluntária não significa, nem pode significar, um esvaziamento, desconsideração ou desrespeito das regras legais e processuais aplicáveis. IX. Ora, a circunstância de no Regime Geral do Processo Tutelar Cível não ser efetuada expressa menção à admissibilidade de articulado superveniente, tal não significa que o mesmo não seja admissível, tanto mais quando dispõe o artigo 33º desse diploma legal que, “nos casos omissos são de observar, com as devidas adaptações, as regras de processo civil que não contrariem os fins da jurisdição de menores”. X. Com efeito, faz parte da tramitação processual a existência de alegações pelas partes (o juiz notifica as partes para apresentarem alegações- nº 4 do art. 39 do RGPTC), sendo este um direito processual das partes e não uma mera faculdade que o juiz pode ou não respeitar ou cumprir. XI. Volvido cerca de um ano e meio sobre a apresentação das alegações pelo progenitor requerido, e verificados factos que, na sua perspetiva, ocorreram ou foram conhecidos e que têm pertinência para a decisão a proferir, não existe norma adjetiva, nem princípio legal que impeça a apresentação de um articulado superveniente, isto é, que impeça o progenitor de alegar esses factos, de sobre eles produzir prova e de sobre eles ver ser proferida decisão sobre serem considerados provados ou não provados. XII. A circunstância de existir “predomínio, quanto ao objeto do processo, do princípio do inquisitório sobre o dispositivo, dado que “o tribunal pode (..) investigar livremente os factos”(art. 986 nº 2), não estando limitado aos factos articulados pelas partes, como sucede, em regra, no processo contencioso (art. 5 nº 1)”, não colide, restringe ou impede o direito de as partes poderem alegar factos, quer inicialmente, quer posteriormente à apresentação das alegações quando a superveniência dos mesmos ou do seu conhecimento se verificar. XIII. “Essa característica dos processos de jurisdição voluntária deve ser vista em ligação com o critério da decisão (art. 987): é porque o juiz decide segundo critérios de discricionariedade que lhe são atribuídos poderes inquisitórios.” XIV. Assim, a alegação das partes não limita o juiz nos poderes que a lei lhe confere de investigar livremente, mas esses poderes não limitam as partes no direito de alegarem os factos que entendem pertinentes. XV. No caso concreto, e como resulta dos autos, não existia à data da apresentação das alegações pelo progenitor nenhum facto que contendesse com um possível abuso do seu filho CC, muito menos, perpetrado pelo próprio Pai, aqui recorrente, pois a recorrida não o alegou no requerimento inicial, não o referiu na Conferencia de progenitores, não o invocou em nenhum ato ou termo processual ocorrido até à apresentação das alegações e não o articulou nas alegações que apresentou. XVI. Toda a factologia referente ao invocado abuso sexual imputado pela progenitora ao progenitor, aqui recorrente, ocorreu após a apresentação das alegações previstas no nº 4 do artigo 39º da Lei Geral do Processo Tutelar Cível, quer os supostamente ocorridos em momentos anteriores, quer os posteriores. XVII. Assim como também ocorreu, por imperativo lógico, toda a factologia que é consequência dessa imputação ou que com ela se relaciona e/ou a “justifica”, ainda que maldosa e infelizmente. XVIII. Duvidas não existem quer da superveniência dessa factologia, quer da necessidade e essencialidade de a considerar na decisão a proferir sobre o projeto de vida desta criança, do CC, especialmente em relação à fixação da sua residência, e à competência, responsabilidade, adequação e altruísmo de cada um dos progenitores, ou o contrário, à incompetência, à irresponsabilidade, inadequação e egoísmo de cada um deles, em relação ao CC. XIX. Tais factos são absolutamente essenciais para a decisão a proferir, porquanto os alegados pelo progenitor no articulado superveniente apresentado, se demonstrados, permitirão, sem dúvida, ao Tribunal fixar a residência desta criança com o progenitor, e não com a progenitora, tendo em atenção o seu comportamento e as consequências que dele advieram para a criança, para o CC. XX. E a livre investigação pelo Tribunal não visa restringir ou substituir o direito dos progenitores a alegarem os factos pertinentes e essenciais para a decisão a proferir. XXI. O entendimento no sentido da admissibilidade de articulado superveniente em processos de jurisdição voluntária vem sendo sufragado pela melhor e mais recente jurisprudência pátria, como é caso do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 8 de outubro de 2020 e do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 18 de março de 2021. XXII. Mesmo que fosse considerado, o que não se concede, que no âmbito de processos de jurisdição voluntária o julgador tivesse poder discricionário de conformação das regras processuais, sempre o respeito pelos princípios orientadores do processo, e que norteiam e limitam qualquer poder discricionário no âmbito destes processos, impunham que fosse admitido o articulado superveniente em causa. XXIII. Com efeito, o recorrente apresentou o referido articulado superveniente por modo a poder deixar alegado, em complemento aos factos que já havia vertido nas suas alegações, tudo o que considerou, e considera, importante ser objeto de prova e de decisão do Tribunal por forma à boa decisão da causa e a assegurar o respeito pelo concreto interesse do menor CC. XXIV. Não sendo despiciendo assinalar, que o recorrente apresentou as suas alegações nos presentes autos em 2 de outubro de 2023, tendo decorrido desde então até ao agendamento da audiência de julgamento, período de cerca de um ano e meio. XXV. Tal circunstância, tendo em especial atenção o respeito pelo princípio da atualidade, justifica que o progenitor pretenda deixar alegados os factos que entende serem relevantes para a decisão da causa – artigo 4º da Lei de Proteção das Crianças e Jovens em Perigo ex vi artigo 4º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível. XXVI. E não se diga que, a circunstância de o Tribunal poder considerar todos os factos que considere pertinentes para a decisão a proferir, sem se encontrar vinculado aos factos alegados pelas partes, significa que os progenitores não têm o direito de alegar, entre o mais, as razões de facto que justificam a posição que entendem ser aquela que melhor respeita o concreto interesse do menor seu filho, neste caso a fixação da residência com o progenitor. XXVII. Veja-se a tal propósito que o disposto no artigo 39º, nº 4 do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, no sentido de que na falta de acordo o juiz notifica as partes para apresentarem alegações, constitui norma processual imperativa. XXVIII. Aliás, tendo em atenção o longo período de tempo decorrido entre as alegações dos progenitores e o agendamento para a realização da audiência de julgamento, considera o recorrente que o Tribunal se encontrava até constituído no poder-dever de convidar os progenitores a atualizarem as suas alegações, em respeito ao princípio da atualidade e ao superior interesse do menor CC, especialmente quando, como é o caso, ocorreram/foram invocados factos de extrema gravidade que impõe a possibilidade de sobre eles o recorrente se pronunciar, alegando a factologia que não só os ponha em causa, como permita aferir dos comportamentos, no mínimo, irresponsáveis e/ou incompetentes (se não dolosos), da progenitora, no exercício das responsabilidades parentais, os quais têm de relevar e de ser ponderados na decisão a proferir. XXIX. Resulta de tudo o acima exposto que, o Tribunal apenas poderia decidir não admitir o articulado superveniente apresentado caso o mesmo fosse extemporâneo ou quando caso fosse manifesto que os factos alegados não interessam à boa decisão da causa, nos termos do disposto no número 4 do artigo 588º do Código de Processo Civil, o que não sucede. XXX. Quanto à tempestividade do articulado superveniente apresentado, o mesmo foi apresentado dentro do prazo de 10 dias posteriores à notificação da data designada para a realização da audiência final, nos termos do disposto na alínea b) do número 3 do artigo 588º do Código de Processo Civil. XXXI. Quanto à consideração de que os factos alegados interessam à boa decisão da causa, tal resulta de forma manifestamente abundante do próprio articulado superveniente, para além de tal facto ter sido até considerado pelo Tribunal a quo no despacho em crise: “de salientar ainda que a generalidade dos factos agora alegados como “supervenientes” constam já dos autos (ou do apenso de promoção e proteção), podendo e devendo vir a ser considerados pelo tribunal independentemente da sua alegação pela parte”. XXXII. Ainda que, tal só seja parcialmente correto, pois há outros factos alegados, no articulado superveniente, que não constam dos autos, nem destes, nem dos de promoção e proteção apensos, como é o caso, a título de exemplo, dos alegados em 70, 157 a 169 e 247 a 251 do articulado superveniente apresentado. XXXIII. E, mesmo em relação aos que “constam” dos autos de promoção e proteção apensos e já arquivados, não só não “constam” da forma que se deixaram alegados no articulado superveniente, pois neste foram seriados e alegados os essenciais, como não estão demonstrados muitos deles e, por isso, se torna necessária a sua alegação ordenada e criteriosa para que o Tribunal depois permita a produção de prova e decida sobre eles, em termos de os considerar provados ou não. XXXIV. Por tudo o exposto, e por menos feliz interpretação da Lei e do Direito aplicável, o despacho recorrido violou o disposto nos artigos 588º e 986º e seguintes do Código de Processo Civil (ex vi artigo 33º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível), artigo 4º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível e artigo 4º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo. Assim, deverá o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que admita o articulado superveniente apresentado pelo progenitor, assim se fazendo JUSTIÇA!» * A requerente respondeu à alegação do recorrente, concluindo assim essa resposta: «I. O articulado superveniente é inadmissível formal e processualmente, face ao artigo 588º CPC. II. Os factos nele alegados não são supervenientes. III. O articulado superveniente é extemporâneo. IV. A apresentação extemporânea do articulado constitui preclusão processual, violando os princípios da concentração da atividade e da boa-fé processual. V. O requerimento configura uma tentativa dilatória de reabrir a fase de alegações, com efeitos perturbadores na celeridade e estabilidade do processo. VI. O articulado superveniente não contém factos novos nem supervenientes. VII. O despacho recorrido aplicou corretamente o artigo 588.º do CPC, em conjugação com os princípios da economia e estabilidade processual. VIII. A jurisprudência dos Tribunais Superiores rejeita a admissibilidade de articulados que reabram artificialmente fases processuais. IX. A conduta do recorrente, pela sua extensão e desnecessidade, revela uso abusivo do processo e tentativa de perturbação do regular andamento dos autos. X. O articulado é inútil por factos nele invocados já constarem dos apensos do processo. XI. Nos processos de jurisdição voluntária relativos a menores, deve o Tribunal atender à totalidade dos elementos constantes dos autos, incluindo os processos apensos, como o de promoção e proteção, que contêm factos essenciais à correta apreciação do superior interesse da criança. Tal exigência decorre do princípio da investigação oficiosa (art. 986.º do CPC) e do primado do superior interesse da criança, consagrado nos arts. 1905.º e ss. do Código Civil e no art. 3.º da Convenção sobre os Direitos da Criança." XII. O recurso interposto não merece provimento, devendo manter-se integralmente o despacho recorrido». * II. Fundamentação O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do CPC, não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal). A única questão a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelo recorrente, consiste em saber se o articulado superveniente por este apresentado deve ser admitido. * A decisão recorrida baseou o indeferimento do articulado superveniente apresentado pelo recorrente na diferente modelação de certos princípios e regras processuais no âmbito dos processos de jurisdição voluntária, mais concretamente no reforço dos poderes inquisitórios do tribunal, tanto no que respeita à indagação dos factos relevantes como no que respeita à produção da prova. De acordo com aquela decisão, a circunstância de o tribunal poder e dever considerar todos os factos ocorridos até à prolação da decisão que vierem a ser demonstrados e considerados pertinentes, independentemente da sua alegação pelas partes, torna desnecessário o articulado superveniente e, nessa medida, justifica o seu indeferimento. Não podemos secundar esta argumentação. O reforço do princípio do inquisitório – e o consequente recuo do princípio do dispositivo – no âmbito dos processos de jurisdição voluntária (entre os quais se incluem os processos tutelares cíveis, nos termos do artigo 12.º do RGPTC), previsto no artigo 986.º, n.º 2, do CPC, atenua de forma significativa os limites dos poderes de cognição do tribunal em matéria de facto decorrentes do ónus da alegação consagrado no artigo 5.º do CPC. Mas o reforço daqueles poderes inquisitórios não corresponde a uma pura dispensa deste ónus de alegação e, muito menos, a uma proibição de alegação. Por conseguinte, não serve de fundamento de inadmissibilidade de algum articulado, inclusivamente de um articulado superveniente (naturalmente sem prejuízo dos requisitos específicos de admissibilidade do articulado em causa). Neste sentido, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2.ª ed., Almedia, 2022, p. 459), escrevem o seguinte em anotação ao artigo 986.º do CPC: «O nº 2 prescreve a prevalência do princípio do inquisitório sobre o princípio do dispositivo, de modo que “os factos essenciais que constituam a causa de pedir não delimitam o âmbito de cognição do tribunal já que este pode considerar outros factos (complementares concretizadores, instrumentais, notórios, de que tenha conhecimento no exercício das suas funções ou que sejam constitutivos do desvio da função processual) para além daqueles que são alegados pelas partes” (António J. Fialho, ob. cit., p. 97), não estando dependente de nenhum ónus de alegação pelos intervenientes, na precisa medida em que pode conhecer oficiosamente os factos, quer por investigação própria, quer na sequência de alegação dos interessados. Todavia, esta prevalência do princípio do inquisitório não deve ser lida como uma dispensa do ónus da alegação da matéria de facto por parte dos intervenientes (porquanto persiste um princípio de autorresponsabilidade mitigada) e não os exime de fundamentar os pedidos formulados. A liberdade e iniciativa probatória do juiz tem como limite o objetivo prosseguido pelo processo especial em causa, bem como a adequação da medida a adotar à finalidade pretendida». Por outro lado, apesar da flexibilidade processual preconizada no referido artigo 986.º, n.º 2, nada nesta ou em qualquer outra norma legal permite concluir que o legislador pretendeu afastar, in limine, a faculdade de apresentação de articulados supervenientes nos processos de jurisdição voluntária em geral e nos processos tutelares cíveis em particular. Pelo contrário, tal possibilidade decorre da leitura conjugada dos artigos 12.º e 33.º, n.º 1, do RGPTC e dos artigos 549.º, n.º 1, e 588.º e seguintes, do CPC. Nestes termos, tudo está em saber se o articulado superveniente concretamente apresentado pelo recorrente cumpre todos os requisitos previstos nos artigos 588.º e seguintes do CPC. A decisão recorrida considerou que não, argumentando que «a generalidade dos factos agora alegados como “supervenientes” constam já dos autos (ou do apenso de promoção e proteção), podendo e devendo vir a ser considerados pelo tribunal independentemente da sua alegação pela parte», sendo precisamente este o segundo argumento esgrimido naquela decisão para fundamentar a rejeição do articulado superveniente. A admissibilidade dos articulados supervenientes está regulada no artigo 588.º do CPC, nos seguintes termos: «1. Os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que forem supervenientes podem ser deduzidos em articulado posterior ou em novo articulado, pela parte a quem aproveitem, até ao encerramento da discussão. 2. Dizem-se supervenientes tanto os factos ocorridos posteriormente ao termo dos prazos marcados nos artigos precedentes como os factos anteriores de que a parte só tenha conhecimento depois de findarem esses prazos, devendo, neste caso produzir-se prova da superveniência. 3. O novo articulado em que se aleguem factos supervenientes será oferecido: a) Na audiência prévia, quando os factos hajam ocorrido ou sido conhecidos até ao respectivo encerramento; b) Nos 10 dias posteriores à notificação da data designada para a realização da audiência final, quando não se tenha realizado a audiência prévia; c) Na audiência final, se os factos ocorreram ou a parte deles teve conhecimento em data posterior às referidas nas alíneas anteriores. 4. O juiz profere despacho liminar sobre a admissão do articulado superveniente, rejeitando-o quando, por culpa da parte, for apresentado fora de tempo, ou quando for manifesto que os factos não interessam à boa decisão da causa; ou ordenando a notificação da parte contrária para responder em 10 dias, observando-se, quanto à resposta, o disposto no artigo anterior. 5. As provas são oferecidas com o articulado e com a resposta. 6. Os factos articulados que interessem à decisão da causa constituem tema da prova nos termos do disposto no artigo 596.º». São, assim, requisitos da admissibilidade do articulado superveniente: - A pertinência dos novos factos aí alegados, o que pressupõe que estes ainda não tenham sido alegados e que constituam factos essenciais para a decisão da causa, ou seja, factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito em discussão; - A superveniência (objectiva ou subjectiva) desses factos; - A tempestividade da apresentação daquele articulado. No caso concreto, a análise do articulado superveniente revela que uma parte significativa do mesmo não contém a alegação de factos, mas a mera descrição de actos processuais – praticados nestes autos ou nos respectivos apensos, mormente no apenso de promoção e protecção – e da prova aí produzida – em especial os diversos relatórios juntos –, bem como a valoração dessa prova. Nesta medida, a alegação em causa não justifica a apresentação do articulado superveniente, acabando por se revelar prematura, pois são as alegações finais a sede própria para a avaliação da prova produzida. No que respeita aos factos concretos efectivamente alegados naquele articulado, salta à vista que a esmagadora maioria repete o que foi sendo alegado nos inúmeros articulados que os progenitores foram apresentando ao longo do tempo, não apenas nas alegações que apresentaram ao abrigo do disposto no artigo 39.º, n.º 4, do RGPTC, mas também nos muitos requerimentos que antecederam e que sucederam a essas alegações, frequentemente com «pedido de abertura de vista e conclusão urgente». De resto, facilmente se verifica que grande parte do conteúdo do articulado superveniente corresponde à reprodução ipsis verbis de partes destes requerimentos. Para justificar a necessidade do articulado superveniente que apresentou, o recorrente põe o acento tónico nos factos aí alegados a respeito do abuso sexual que a recorrida afirma ter sido perpetrado sobre o filho de ambos, que considera supervenientes na medida em não foram discutidos nos autos nem chegaram aos seu conhecimento antes da apresentação das alegações referidas no artigo 39.º, n.º 4, do RGPTC. Mas esquece que esses factos foram carreados para os autos e aí discutidos tanto antes como depois das referidas alegações, não apenas no apenso de promoção e protecção, mas também nestes autos principais, nomeadamente nos requerimentos apresentados pelo próprio recorrente em 19.04.2023 e em 14.11.2023. Para ilustrar esta afirmação, basta atentar no teor do artigo 57 do primeiro destes requerimentos, onde o ora recorrente conclui assim: «De tudo se concluindo que a queixa apresentada pela progenitora traduz-se na clara expressão do seu desajuste parental e mais não é do que um vil instrumento processual agora usado, e abusado, por ela na ânsia de, em crescendo de argumentos falsos, manter cristalizada no tempo a situação instalada por ela na vida da criança». Nesta medida, estando em causa a repetição de factos já antes alegados – em requerimentos que o progenitor não qualificou como articulados supervenientes, mas que não foram rejeitados pelo tribunal, foram sujeitos a contraditório e, por isso, deverão ser sopesados na decisão final – não está verificado o requisito da “pertinência dos novos factos” antes enunciado. Aliás, a forma repetitiva e prolixa com que os progenitores vêm expondo os seus argumentos em nada contribui para o bom andamento e para a boa decisão da causa – que terá de se basear em factos objectivos e no superior interesse da criança, não relevando o número de vezes que aqueles factos são alegados e reformulados –, servindo apenas para dificultar a identificação das questões de facto a apreciar. Sem prejuízo do exposto, é inegável que alguns factos foram agora alegados inovadoramente, o que o próprio Tribunal a quo parece reconhecer quando afirma na decisão recorrida que a generalidade dos factos agora alegados como “supervenientes” constam já dos autos, sem excluir, assim, a hipótese de alguns não constarem. Por sua vez, também o recorrente parece admitir que apenas um número muito residual dos factos alegados no articulado superveniente é verdadeiramente novo, referindo de forma expressa menos de 20 dos 258 artigos que integram aquele articulado, mais concretamente os artigos 70, 157 a 169 e 247 a 251 (embora alguns dos factos englobados neste último grupo já tivessem sido alegados anteriormente). Mas tanto bastava para que o tribunal devesse ter aferido a relevância destes novos factos, a sua superveniência objectiva e/ou subjectiva e a tempestividade do articulado em que os mesmos foram alegados, admitindo tal articulado quanto aos factos que respeitassem estes requisitos cumulativos. Cremos não suscitar dúvidas a relevância dos novos factos alegados no articulado superveniente, maxime dos descritos nos artigos 70 e 157 a 169, para a regulação definitiva das responsabilidades parentais relativas à criança CC, na medida em que tais factos dizem respeito às competências parentais dos respectivos progenitores, designadamente a sua capacidade e o seu empenho na criação das condições necessárias ao desenvolvimento equilibrado da criança, inclusivamente na manutenção dos laços afectivos entre esta e ambos os progenitores e respectivas famílias. É, igualmente, indiscutível a sua superveniência objectiva, visto que os factos agora alegados pela primeira vez ocorreram posteriormente a Outubro de 2023, ou seja, após a apresentação das alegações previstas no artigo 39.º, n.º 4, do RGPTC. Discordando da recorrida, não cremos que a superveniência se deva aferir por referência à conferência de progenitores realizada no dia 13.01.2025. Do artigo 588.º, n.º 2, do CPC decorre com clareza que a superveniência se deve aferir por referência aos prazos previstos na lei para a apresentação dos articulados pelas partes, ou seja, por referência aos prazos legalmente estabelecidos para as partes exporem por escrito os factos em que baseiam as suas pretensões. Transpondo este critério para o processo especial de regulação das responsabilidades parentais, a superveniência terá de ser aferida por referência aos prazos fixados aos progenitores para apresentarem as alegações previstas no artigo 39.º, n.º 4, por ser, em princípio, a última peça escrita (ou a mesmo a única, no caso do requerido) em que aqueles podem expor os factos que consideram relevantes. É certo que, por razões que não interesse aqui analisar, a tramitação deste processo afastou-se do figurino legal, tendo sido apresentados e, pelo menos implicitamente, admitidos diversos requerimentos escritos apresentados por ambos os progenitores (o que nos levou a confirmar a inadmissibilidade do articulado superveniente na parte em que reitera o teor destes requerimentos), tendo sido também agendada uma nova conferência de progenitores. Contudo, do despacho que designou esta conferência, datado de 28.11.2024, e da respectiva acta não se pode concluir que a mesma teve em vista facultar aos progenitores a possibilidade de alegarem factos supervenientes. Dessa acta consta apenas que foi tentada, mais uma vez sem sucesso, a obtenção de um acordo de regulação das responsabilidades parentais, não tendo sido dada a oportunidade aos progenitores de apresentarem novas alegações escritas (ou mesmo orais, o que apenas parece ter ocorrido na diligência realizada no mesmo dia no processo de promoção e protecção em apenso, por referência ao respectivo objecto). Em suma, apesar das vicissitudes que marcaram a tramitação dos presentes autos, não foi facultada aos progenitores a possibilidade de alegarem por escrito os factos que consideram relevantes após as alegações previstas no artigo 39.º, n.º 4, do RGPTC, pelo que é por referência a estas alegações que devemos aferir a superveniência dos factos alegados no articulado superveniente. Verificada tal superveniência, resta aferir a tempestividade do articulado, tendo em conta o disposto no artigo 588.º, n.º 3, do CPC. Não havendo lugar a audiência prévia, nem sendo esta equiparável à segunda conferência de progenitores realizada nestes autos, o prazo para oferecimento do articulado superveniente só pode ser o previsto na al. b) ou na al. c), daquele n.º 3: nos 10 dias posteriores à notificação da data designada para a realização da audiência final ou na audiência final, se os factos ocorreram ou a parte deles teve conhecimento em data posterior à referida na alínea anterior. Compulsados os autos, verifica-se que a notificação da data designada para a realização da audiência final foi efectuada por comunicação electrónica datada de 10.03.2025, pelo que se presume feita no dia 13.03.2025, por força do disposto no artigo 248.º, n.º 1, do CPC. Por conseguinte, o prazo de 10 dias previsto na referida al. b) terminou no dia 24.03.2025. O articulado superveniente em análise apenas foi apresentado no dia seguinte, 25.03.2025; porém, o recorrente lançou mão do mecanismo previsto no artigo 139.º, n.º 5, al. a), do CPC, tendo comprovado nos autos o pagamento da respectiva multa, pelo que deve ser admitida a prática do acto em causa. Por todas as razões expostas, importa revogar a decisão recorrida e admitir o articulado superveniente apresentado pelo ora recorrente, na parte em que nele se descrevem factos não antes alegados, nos termos antes expostos. Verificando-se que a recorrida já havia exercido o contraditório (cfr. artigo 588.º, n.ºs 4 e 5, do CPC) e que o processo em causa não comporta a enunciação dos temas da prova (cfr. n.º 6, do mesmo artigo), nada mais importa determinar, sem prejuízo dos novos factos deverem ser apreciados na audiência final, já iniciada, e na respectiva sentença. Na procedência da apelação, as respectivas custas serão suportadas pela recorrida (artigo 527.º do CPC). * Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC): …………………………………………………… …………………………………………………… …………………………………………………… * III. Decisão Pelo exposto, revoga-se a decisão recorrida e admite-se o articulado superveniente apresentado pelo recorrente, na parte em que aí se descrevem factos não antes alegados, nos termos supra expostos. Custas pela recorrida. Registe e notifique. * Porto, 10 de Julho de 2025 Relator: Artur Dionísio Oliveira Adjuntos: Alexandra Pelayo Anabela Andrade Miranda |