Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | PAULA GUERREIRO | ||
Descritores: | EXTINÇÃO DE SOCIEDADE COMERCIAL RELAÇÕES JURÍDICAS EXTINÇÃO DAS DÍVIDAS SOCIAIS SÓCIOS LIQUIDATÁRIOS | ||
![]() | ![]() | ||
Nº do Documento: | RP202503262531/16.1T9GDM-I.P1 | ||
Data do Acordão: | 03/26/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA) | ||
Decisão: | PROVIDO O RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO | ||
Indicações Eventuais: | 1. ª SECÇÃO CRIMINAL | ||
Área Temática: | . | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | I - Com a extinção de Sociedade Comercial, nos termos previstos no art. 160 nº2 do Código das Sociedades Comerciais, a sociedade perde a sua personalidade jurídica, mas as relações jurídicas de que a sociedade era titular não se extinguem, como flui do disposto nos artigos 162, 163 e 164 do Código das Sociedades Comerciais. II - Os interesses dos credores e do tráfico jurídico em geral opõem-se fortemente a que a extinção da sociedade acarrete a extinção das dívidas sociais. III - Na verdade, os sócios substituem a sociedade passando a ser partes nas lides e a responder pelo passivo social até ao montante recebido em partilha. IV - Os sócios liquidatários substituem a sociedade extinta, e se esta for demandada cível, gozam de posição processual equiparada à dos arguidos, como resulta do disposto artigos 73 e 74 nº3 do CPP. V - Não permitir que o advogado constituído de sócios liquidatários tenha intervenção em audiência de julgamento, implica violação do disposto no art.61 nº1 al. f) do CPP, e gera nulidade insanável de acordo com o art.119 al.c) do mesmo diploma. (Sumario da responsabilidade da relatora) | ||
Reclamações: | |||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Processo: 2531/16.1T9GDM-I.P1 Nos autos de Processo Comum, com julgamento perante Tribunal singular com o nº 2531/16.1T9GDM, de que os presentes autos são apenso após o conhecimento da demandada A..., Ldª, foi na ata da sessão de julgamento que teve lugar em 3/07/2023 declarado pela Juiz que presidia aos trabalhos que a ação cível enxertada neste processo terá que prosseguir contra a generalidade dos sócios na pessoa dos liquidatários que são considerados representantes legais daqueles para este efeito e ordenou que no prazo de cinco dias, os agora liquidatários venham aos presentes autos ratificar todo o processado sob pena de ficar sem efeito toda a sua intervenção. Em seguida pelo advogado dos ex-sócios da demandada extinta foi requerido que pudesse intervir na audiência na qualidade de mandatário dos mesmos que deixaram de ser meras testemunhas a inquirir. Mais invocou uma nulidade, ilegalidade e irregularidade uma vez que não lhe foi permitida até à presente data a consulta dos autos e a sua confiança. Sobre este requerimento recaiu o seguinte despacho: «Vem o Ilustre advogado aqui presente invocar a ocorrência de uma nulidade ou irregularidade por não ter sido admitido a intervir nos autos em representação dos ex-sócios e liquidatários da A..., Ld.ª. Ora, conforme resulta dos autos e salvo o devido respeito, para além do referido supra, e o que se decidiu relativamente à necessidade da junção de procuração em representação dos ex-sócios e nessa qualidade, verifica-se que a procuração forense junta aos autos a fls. 1680, foi outorgada apenas a favor de AA e BB a 13 de junho de 2023. Assim sendo, entende o tribunal não ter sido cometida nenhuma nulidade ou irregularidade e, por esse motivo, se mantém o teor do despacho proferido a 29 de junho de 2023. Relativamente à admissão de intervenção do Ilustre advogado nos presentes autos em representação dos ex-sócios e liquidatários, como já referido e no entendimento do tribunal apenas o poderá fazer após a notificação dos mesmos do despacho anteriormente proferido e da análise das consequências que poderão advir, caso os mesmos venham ou não a ratificar o processado. Assim sendo, entende o Tribunal não existir qualquer motivo para admitir nesta data a intervenção processual do Ilustre advogado que apenas poderá, como já referido anteriormente, estar presente para assistir ou prestar assistência às testemunhas a inquirir.» CC, DD, AA e BB vieram interpor recurso do supra transcrito despacho, proferido na ata da sessão de julgamento de 3/07/2023, o qual tem as seguintes conclusões: «1. Nos termos do disposto nos arts. 162º e 163º do Código das Sociedades Comerciais nas ações ou execuções em que seja parte uma sociedade comercial entretanto extinta na pendência da ação ou execução prosseguem os seus termos normais, sendo tal sociedade extinta então substituída pela generalidade dos sócios, representados pelos liquidatários, sem que haja lugar à suspensão da instância e habilitação da generalidade dos sócios, os quais respondem se e na medida do que tenham recebido da sociedade extinta, quando esta seja de responsabilidade limitada. 2. Extinta a sociedade demandada no pedido de indemnização civil, por ter sido dissolvida e registado o encerramento da liquidação, os seus sócios, aqui recorrentes, substituírem de forma automática e imediata a sociedade demandada. 3. Assim, os Recorrentes, através do seu mandatário podiam intervir nos autos na qualidade de demandados, em específico exercitar os seus direitos processuais, designadamente o de instar e contra-instar a testemunha inquirida na sessão de julgamento no dia 3 de julho de 2023. 4. No dia 3 de julho de 2023 já haviam sido juntas aos autos procurações forenses de todos os ex-sócios e ex-gerente da sociedade demandada, ao contrário do exarado no despacho recorrido, pelo que não existia qualquer falta, insuficiência ou irregularidade do mandato. 5. Ao proibir a intervenção do mandatário dos demandados na sessão da audiência de julgamento do dia 3 de julho de 2023, condicionando-a à apreciação das consequências da posição que eles viessem a tomar sobre o convite à ratificação do processado que lhes foi dirigido, violou o despacho recorrido o disposto nos arts. 133º e 348º do Cód. Proc. Penal, art. 20 da Constituição da República Portuguesa e 162º do Cód. das Sociedades Comerciais. 6. É direito constitucionalmente consagrado o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva através da participação em processo judicial mediante um processo equitativo, bem como a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade, nos termos previstos no art. 20º da Constituição da República Portuguesa que tem aplicabilidade direta. 7. Só existe processo equitativo, nos termos plasmados no nº 4 do art. 20º da CRP, em processo em que seja garantido, entre o mais: a observância do princípio do contraditório, o direito de intervenção no processo, o direito de defesa e o direito ao contraditório traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes invocar as razões de facto e de direito, oferecer provas controlar as provas da outra parte, pronunciar-se sobre o valor e resultado dessas provas. 8. O art. 162º do Código das Sociedades Comerciais é inconstitucional por violação do disposto no art. 20º da Constituição da República Portuguesa quando interpretado no sentido de que a substituição aí prevista para o caso de extinção de sociedade comercial não permite a intervenção da generalidade dos sócios representados pelos liquidatários, através de mandatário judicial em processo pendente, e em audiência de julgamento efetivamente realizada, enquanto não ratificarem todo o processado.» Pede que seja revogado o despacho recorrido com as legais consequências. O recurso veio a ser admitido após decisão de reclamação proferida pela Vice- Presidente deste Tribunal em 16/03/2023. Nesta Relação a Sr.ª Procuradora-geral-adjunta emitiu parecer de concordância com a argumentação dos recorrentes entendendo que o recurso deve obter provimento. Cumprido o disposto no art. 417 nº2 do CPP veio a arguida EE responder ao parecer subscrevendo o que do mesmo consta atento o disposto nos artigos 162 e 163 do Código das Sociedades Comerciais. 2. Fundamentação A - Circunstâncias com interesse para a decisão a proferir: Em 11/07/2023 foi exarado nos autos principais despacho que ao abrigo do disposto no art. 82 do CPP decidiu remeter as partes para os tribunais civis no que ao pedido de indemnização civil diz respeito, e do qual foi interposto recurso interlocutório que subiu nos autos principais. Sucede que na sessão da conferência realizada neste Tribunal, no passado dia 29 de janeiro, foi publicitado Acórdão, transitado em 13/02/2025 que decidiu revogar o despacho exarado em 11/07/2023, por se entender, em súmula, não se verificarem, em concreto, os requisitos previstos no art. 82 do CPP e anulou todo o processado a partir de 4/07/2023, para que o Tribunal a quo proceda à reabertura da audiência em primeira instância conhecendo totalidade do objeto do processo, ou seja, quer a matéria do pedido cível, quer o objeto da ação penal. Em 15/02/2019 deu entrada nos autos principais pedido de indemnização cível deduzido por B..., Lda, contra, entre outros, A..., Lda. Porém, os autos haviam sido arquivados pelo MP no que respeita a A..., Lda, tendo sido rejeitado, em 29/10/2019, o requerimento para abertura da Instrução apresentado nos autos pela assistente B..., Lda. Contudo, e não obstante não ter a qualidade de arguida nos autos, foi em 9/11/2020, admitido o pedido de indemnização cível formulado contra A..., Lda. A referida A..., Lda, informou o tribunal que, tendo cessado a sua atividade para efeitos fiscais desde 31/07/2018, por deliberação dos sócios de 31/03/2022, foi determinada a dissolução e liquidação imediata da sociedade demandada, o que foi notificado às partes em 22/05/2022. Em 13 de junho de 2023, CC, DD juntaram aos autos procuração concedendo poderes forenses gerais à Sociedade de Advogados C... e Associados, com sede na Rua ..., ..., da qual faz parte do Dr. FF, autor do requerimento que esteve na base do despacho recorrido e subscritor do recurso, e em 15/06/2023 juntam procuração concedendo poderes forenses gerais à mesma sociedade de advogados, AA e BB. Em 29/06/2023 o aqui mandatário dos recorrentes deu entrada nos autos principais de requerimento para confiança dos autos com vista a inteirar-se do processo e intervir na audiência de julgamento cujo adiamento também requer. Sobre esse requerimento foi proferido nessa mesma data o seguinte despacho a que se alude no despacho recorrido: «Requerimento que antecede: O Ilustre advogado vem requerer o adiamento da diligência agendada para o próximo dia 3 de julho, alegando estar impedido noutra diligência processual. Ora, analisados os autos, constata-se que o Ilustre advogado juntou procuração forense outorgada pelas testemunhas a inquirir CC e DD. Sendo que estas apenas possuem a qualidade de testemunhas e embora se possam fazer acompanhar de advogado – como decorre do disposto no artigo 132.º, n.º 4 do Código de Processo Penal – este não pode intervir na inquirição. Por esse motivo, entende o Tribunal que o disposto no artigo 151.º do Código de Processo Civil, aqui aplicável por remissão do artigo 312.º, n.º 4 do Código de Processo Penal, não se aplica aos mandatários que não têm a obrigatoriedade de comparecer, como é o caso. Desta feita, pelos motivos expostos e com os fundamentos invocados, indefere-se o requerido adiamento da diligência. Notifique. Relativamente ao pedido de confiança dos autos para consulta no escritório, pelo prazo de 5 dias, a fim de preparar a intervenção nas próximas sessões de audiência de julgamento, nos termos do disposto no artigo 89.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, entende-se que tal pedido carece de fundamento legal, pelos fundamentos já expostos supra. Salienta-se, assim, e uma vez mais que o Ilustre advogado apenas pode acompanhar as testemunhas, mas não pode ter qualquer intervenção, pelo que nem se entende o motivo pelo qual pretende “preparar a intervenção nas próximas sessões de julgamento”. Para além disso, não tem aqui aplicabilidade o disposto no artigo 89.º, n.º 4 do Código de Processo Penal, uma vez que as testemunhas são apenas intervenientes no processo e não qualquer sujeito processual dos elencados no n.º 1 do mencionado artigo 89.º. Acresce que, a consulta dos autos fora da secretaria, quando se encontra em curso a audiência de julgamento, estando agendada uma sessão para o próximo dia 3 de julho, acarretaria prejuízos para o regular andamento do processo. Face a todo o exposto, por falta de fundamento legal, indefere-se a requerida confiança do processo para consulta fora da secretaria.» Da ata de deliberação sobre a dissolução e liquidação da sociedade A..., Lda, junta com o requerimento entrado nos autos principais em 20/05/2023, resulta que os ora recorrentes, são os ex-sócios da sociedade liquidatária. B – Fundamentação de direito O objeto do recurso tem os seus contornos delimitados pelos argumentos recursórios que se retiram das conclusões, mas está intrinsecamente ligado à decisão de que se recorre. O Tribunal de recurso pode e deve também conhecer das questões de conhecimento oficioso. Assim, em concreto e face às conclusões de recurso a questão suscitada pelos recorrentes é a de saber se o mandatário forense dos sócios liquidatários de uma sociedade dissolvida deve poder intervir em ação penal, na qual foi deduzido um pedido cível contra essa sociedade, e se o despacho recorrido está ferido de algum vício, designadamente, nulidade ou irregularidade. Cumpre apreciar! Com a extinção da sociedade, nos termos previstos no art. 160 nº2 do Código das Sociedades Comerciais, a sociedade perde a sua personalidade jurídica, mas as relações jurídicas de que a sociedade era titular não se extinguem, como flui do disposto nos arts. 162, 163 e 164 do Código das Sociedades Comerciais. Os interesses dos credores e do tráfico jurídico em geral opõem-se fortemente a que a extinção da sociedade acarrete a extinção das dívidas sociais. Na verdade, os sócios substituem a sociedade passando a ser partes nas lides e a responder pelo passivo social até ao montante recebido em partilha. Está expressamente previsto no art. 162 do Código das Sociedades Comerciais que no que respeita a ações pendentes: «1 - As ações em que a sociedade seja parte continuam após a extinção desta, que se considera substituída pela generalidade dos sócios, representados pelos liquidatários, nos termos dos artigos 163.º, nºs 2, 4 e 5, e 164.º, nºs 2 e 5. 2 - A instância não se suspende nem é necessária habilitação.» Em face do exposto, os sócios liquidatários de A..., Lda, não eram à data do despacho recorrido meras testemunhas, mas sim demandados cíveis, a quem a lei confere a facultade de constituir mandatário forense e fazer-se representar pelo mesmo, - veja-se o art. 20 nº2 da CRP, o que também está previsto no art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, especificamente nas alíneas c) e d) do nº3 do preceito citado onde no texto original adotado na cidade de Roma, em 1950, consta como direitos dos acusados: «c) Defender-se a si próprio ou ter a assistência de um defensor da sua escolha e, se não tiver meios para remunerar um defensor, poder ser assistido gratuitamente por um defensor oficioso, quando os interesses da justiça o exigirem; d) Interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e obter a convocação e o interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas condições que as testemunhas de acusação;» Na medida em que são demandados por via da responsabilidade emergente de facto ilícito criminal os sócios liquidatários de A..., Lda, devem beneficiar dos direitos dos arguidos no que respeita à defesa, pois, o facto ilícito é gerador da obrigação de indemnizar no caso concreto. Esta equiparação à posição processual dos arguidos resulta do disposto nos artigos 73 e 74 nº3 do CPP. Ora, tendo os demandados civis posição processual idêntica à dos arguidos com decorre expressamente do citado art. 74 nº3 do CPP, o despacho recorrido ao não permitir a intervenção do advogado constituídos dos sócios liquidatários de A..., Lda, violou o disposto no art. 61 nº1 al. f) do CPP, impedindo que o mandatário constituído pelos mesmos interviesse na sessão da audiência de julgamento realizada em 3/07/2023. Ora, a ausência de defensor em audiência de julgamento é configurada pelo Código de Processo Penal como nulidade insanável de acordo com o art. 119 al.c) do referido diploma, o que foi de imediato invocado pelo mandatário dos recorrentes e é de conhecimento oficioso deste Tribunal, pelo que, cumpre declarar. Tudo visto, concluímos que assiste razão aos recorrentes e urge declarar a nulidade do despacho recorrido e a sua respetiva ineficácia, devendo ser repetidos todos os atos processuais praticados a partir de 3/07/2023 inclusive. 3. Decisão: Tudo visto e ponderado, com base nos argumentos que ficaram expendidos, acordam os Juízes na 1ª secção Criminal da Relação do Porto em - declarar a nulidade do despacho recorrido que por esse motivo revogam, devendo ser repetidos todos os atos processuais praticados a partir de 3/07/2023 inclusive, assim se concedendo integral provimento ao recurso interposto por CC, DD, AA e BB, sócios liquidatários de A..., Lda. Sem tributação. Porto, 26/3/2025. Paula Cristina Guerreiro Nuno Pires Salpico Raúl Esteves |