Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0210872
Nº Convencional: JTRP00036986
Relator: DOMINGOS MORAIS
Descritores: DESPEDIMENTO NULO
PRESTAÇÕES DEVIDAS
ENTIDADE PATRONAL
MORTE
Nº do Documento: RP200405310210872
Data do Acordão: 05/31/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: ALTERADA A DECISÃO.
Área Temática: .
Sumário: I - O contrato de trabalho caduca com a morte do empregador, se os seus sucessores não prosseguirem a actividade que por ele era desenvolvida.
II - O trabalhador ilicitamente despedido só tem direito às retribuições que teria auferido até à morte do empregador, se os sucessores não prosseguirem com a actividade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto


I - B.........., nos autos identificada, intentou, no Tribunal do Trabalho de Sto. Tirso, acção comum, emergente de contrato individual de trabalho, contra
Herança Indivisa, aberta por óbito de C.........., residente que foi na cidade do Porto,
Alegando, em resumo, que trabalhou para o falecido C.........., como escriturária, desde 1989 até 10 de Julho de 2000, data em que foi despedida por aquele, sem a precedência de processo disciplinar.
Termina pedindo a condenação da Ré a reconhecer a ilicitude do despedimento e a pagar-lhe a indemnização por antiguidade, bem como as retribuições vencidas e vincendas e respectivos juros de mora.
Frustrada a conciliação na audiência de partes, a Ré contestou, excepcionando a sua ilegitimidade e alegando, em síntese, que o contrato de trabalho cessou por abandono da Autora, ao deixar de comparecer no seu local de trabalho, a partir de 10 de Julho de 2000, sem aviso prévio.
Conclui pela improcedência da acção.
A Autora respondeu, concluindo pela improcedência da excepção da ilegitimidade e da compensação deduzidas pela Ré.

Realizado o julgamento e fixada a matéria de facto, a Mma Juíza da 1.ª instância proferiu sentença, julgando a acção procedente, por ilicitude do despedimento, e condenou a ré, para além do mais, no pagamento de € 8 728,96 a título de indemnização por antiguidade e de € 6 027,14 a título de retribuições vincendas “desde 30 dias antes da propositura da acção até hoje” (leia-se, data da sentença).

Inconformada, a Ré apelou para este Tribunal da Relação, concluindo, em síntese, que não houve despedimento da Autora, mas se se considerar que o despedimento foi ilícito, não tem direito às retribuições vincendas dado que o contrato de trabalho cessou por caducidade, em 2000.08.07, data do falecimento da entidade patronal da Autora, ou com a transmissão do acervo do estabelecimento para a recorrida.
A Autora contra-alegou, pugnando pela manutenção do julgado.

O M. Público emitiu Parecer, no sentido de que seja negado provimento ao recurso.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II - Os Factos
A decisão proferida na 1.ª instância sobre a matéria de facto não foi impugnada, nem padece dos vícios previstos no artigo 712.º, n.º 4 do CPC, pelo que se mantém nos seus precisos termos, de harmonia com o estabelecido no artigo 713.º, n.º 6 do CPC.

III - O Direito
Atento o disposto nos artigos 684.º, n.º 3 e 690.º, n.ºs 1 e 3, do CPC, aplicáveis por força do artigo 1.º, n.º 2, alínea a) e artigo 87.º do CPT, as conclusões da recorrente delimitam o objecto do recurso sob apreciação e os poderes de cognição do tribunal ad quem, salvo quanto a questões de conhecimento oficioso.
Mas essa delimitação é precedida de uma outra, qual seja a do reexame de questões já submetidas à apreciação do tribunal recorrido, isto é, o tribunal ad quem não pode criar decisões sobre matéria nova, matéria não submetida ao exame do tribunal de que se recorre. (cfr., por todos, o Ac. do STJ, de 09.03.1993, BMJ 435/438).
A Autora alegou na petição inicial que o contrato de trabalho cessou por iniciativa do empregador. Ao contrário, a ré alegou que o contrato cessou por abandono da Autora do seu local de trabalho, sem aviso prévio.
Da matéria de facto provada, resulta que o contrato de trabalho cessou, em 07.07.2000, por iniciativa do empregador e sem a precedência de processo disciplinar.
Os efeitos da ilicitude do despedimento são os previstos no artigo 13.º, n.º 1 do DL n.º 64-A/89, de 27.02, aplicável ao caso dos autos.
Assim, para além da reintegração (ou indemnização), o trabalhador tem direito ao pagamento da importância correspondente ao valor das retribuições que deixou de auferir desde a data do despedimento até ao trânsito da decisão final.
A Autora optou pela indemnização por antiguidade e pediu, além do mais, a condenação da Ré no pagamento das prestações pecuniárias deixadas de auferir desde a propositura desta acção até à data do trânsito em julgado da sentença (alínea F) do pedido).
Se o pagamento da indemnização por antiguidade não é questionável, dada a ilicitude do despedimento, já o é o pagamento das retribuições vincendas.
O pagamento das retribuições vincendas pressupõe a continuidade da relação laboral, por virtude da declaração de ilicitude do despedimento.
Ora, quando a Autora veio a juízo, em 02.07.2001, o contrato de trabalho já não vigorava há muito tempo.
A Autora tinha cabal conhecimento de que, para além da morte do empregador, em 07.08.2000, tinha recebido, após o falecimento deste, como bens da herança, um automóvel, marca Toyota e o acervo do estabelecimento de contabilidade, incluindo o equipamento e a clientela existente.
Assim, perante a morte do empregador e sem a continuação da actividade do gabinete de contabilidade pelos seus sucessores, o contrato de trabalho caducou (ver artigo 6.º, n.º 1 do DL n.º 64-A/89, de 27.02).
E, para além disso, o contrato de trabalho também cessaria com o recebimento, pela Autora, do acervo do estabelecimento de contabilidade, incluindo o equipamento e a clientela existente. Passando a Autora a ser a titular do gabinete de contabilidade, o contrato de trabalho cessa imediatamente, por incompatibilidade da mesma pessoa reunir as qualidades de trabalhador e de empregador em nome individual.
Mutatis mutandis, o caso dos autos é uma situação típica de cessação do contrato de trabalho por confusão (cfr. artigo 868.º do CC).

Nos termos do artigo 334.º do CC, “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
É comummente aceite que se verifica abuso de direito quando o seu titular exerce formalmente o poder de facto correspondente ao exercício do direito, em termos reprovados pela lei, “em termos clamorosamente ofensivos da justiça”, utilizando a expressão de Manuel de Andrade (ver Teoria geral das obrigações, pág. 63).
“O abuso do direito pressupõe logicamente a existência do direito (direito subjectivo ou mero poder legal), embora o titular se exceda no exercício dos seus poderes. A nota típica do abuso do direito reside, por conseguinte, na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 3.ª ed., pág. 297).
Deste modo, cessado o contrato de trabalho, a condenação da Ré no pagamento das retribuições vincendas ofende a justiça e viola o princípio da boa fé, pelo que, no caso sub judice, consideramos que se verifica abuso de direito na parte relativa às retribuições vincendas, devendo ser alterada a decisão recorrida, por tal excepção ser de conhecimento oficioso.

IV - A Decisão
Face ao exposto, decide-se julgar parcialmente procedente o recurso e, em consequência, alterar a sentença recorrida, ficando a Ré condenada a pagar à Autora as importâncias de:
- € 8 728,96 (esc. 1.750.000$00), a título de indemnização pelo despedimento;
- € 1 246,99 (esc. 250.000$00), a título de férias e subsídio de férias vencidas em 01.01.2000;
- € 642,29 (esc. 128.768$00), a título de proporcionais de férias e subsídio de férias pelo trabalho prestado no ano de 2000;
- € 321,15 (esc. 64.384$00), a título de proporcionais do subsídio de Natal, pelo trabalho prestado no ano de 2000 e
- Juros de mora, à taxa de 7%, contados desde as datas dos respectivos vencimentos até pagamento.


Custas na proporção do vencido, em ambas as instâncias.

Porto, 31 de Maio de 2004
Domingos José de Morais
Manuel Joaquim Sousa Peixoto
João Cipriano Silva