Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | NUNO MARCELO NÓBREGA DOS SANTOS DE FREITAS ARAÚJO | ||
Descritores: | ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO ABUSO DO DIREITO VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM SUPRESSIO | ||
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Nº do Documento: | RP2025071020405/23.8T8PRT.P1 | ||
Data do Acordão: | 07/10/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGAÇÃO | ||
Indicações Eventuais: | 5.ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - À Relação cumpre alterar a factualidade provada, mesmo oficiosamente, para aditar factos omitidos em primeira instância que, para além de terem interesse para a decisão da causa, segundo as soluções plausíveis da questão de direito, estão assentes por acordo das partes. II - O abuso do direito é um instituto de ultima ratio, destinado a evitar situações de clamorosa injustiça: não basta, para que se verifique, que o titular do direito exceda os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, antes sendo necessário que esses limites sejam manifestamente excedidos, i.e., que ofendam de forma clamorosa a consciência ética e jurídica da generalidade dos cidadãos. III - O venire contra factum proprium constitui uma configuração do abuso de direito baseada num comportamento contraditório do agente, que actua de forma oposta ao que, num primeiro momento, havia claramente denunciado, gerando com a primeira acção legítima confiança no outro lado da relação jurídica. IV - A suppressio ou neutralização, como categoria do abuso do direito, está verificada quando o agente não exerce o seu direito durante um lapso temporal considerável, criando por isso a convicção noutrem de que não o irá fazer, desde que se verifiquem elementos objectivos que legitimem essa convicção, por um lado e, por outro, que o titular do direito esteja consciente da sua situação, não agindo apesar de consabidamente dispor de todas as condições para o fazer. V - Não estão presentes os requisitos dessas modalidades de abuso quando, no âmbito de um contrato promessa, o promitente comprador, que beneficia desde o início de uma cláusula resolutiva a seu favor, baseada na eventual contaminação do solo, exerce o seu direito à resolução contratual logo que conheça a verificação de fundamento para o efeito, apesar de ter solicitado e obtido, anteriormente, duas adendas ao contrato por motivo diversos, nelas tendo reiterado a vontade de celebrar a escritura de compra e venda condicionada na íntegra aos termos que haviam sido inicialmente contratados. (Sumário da responsabilidade do Relator) | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Processo: 20405/23.8T8PRT.P1 ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO (3.ª SECÇÃO CÍVEL): Relator: Nuno Marcelo Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo 1.º Adjunto: Teresa Pinto da Silva 2.º Adjunto: António Mendes Coelho RELATÓRIO AA, titular do NIF ...79, residente em ... ...0, ..., Israel, e BB portador do NIF ...89, residente ... número ..., também ..., Israel, intentaram a presente acção declarativa, com processo comum, contra A... S.A., com o NIPC ...86 e sede na Rua ..., em ..., Vila Nova de Gaia. Pediram a condenação da R. a pagar aos AA. a quantia de €110.000,00, a título de capital, mais os juros de mora comercias vencidos no valor de €4.442,19 e apurados entre 15 de Julho de 2023, ou seja desde a data em que recebeu a comunicação de resolução do contrato promessa de compra e venda e a data da entrada da acção (26 de Novembro de 2023), e os juros de mora vincendos a contar dessa data até integral pagamento. Para tanto e em síntese, alegaram a celebração de um contrato promessa de compra e venda, datado de 2/06/2022, através do qual prometeram comprar dois prédios à R., um rústico denominado ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o número ...87 da freguesia ... e outro urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o número ...18 da freguesia ..., pelo preço global de €3.000.000,00, do qual entregaram a quantia de €110.000,00 a título de sinal e princípio de pagamento. Nesse contrato, ficou previsto que os promitentes compradores irão promover a realização de diligências no sentido de aferir se o solo dos prédios revela a presença de algum tipo de contaminação, sendo que se encontram a aguardar a conclusão das mesmas e que as partes acordam que, na eventualidade de em função das diligências empreendidas, se vir a verificar que o solo apresenta efetivamente indícios de contaminação, aqueles poderão optar por (1) proceder à descontaminação do solo, suportando todos os custos inerentes à operação, ou (2) resolver o contrato e exigir a devolução do montante pago a título de sinal, no valor de € 100.000,00 em singelo. A escritura de compra e venda dos prédios seria outorgada no prazo de 6 meses contados da data de assinatura do presente contrato, i. é, até 2/12/2022, o que, por razões várias, veio a ser alterado através de duas adendas ao contrato, a primeira celebrada em 16/11/2022, pela qual estenderam o prazo máximo para a outorga da escritura até ao dia 2/3/2023, e a segunda, datada de 23/6/2023, que estabeleceu nova extensão do prazo até ao dia 2/9/2023, ou no prazo de 30 dias a contar da aprovação do pedido de informação prévia. Em Julho de 2023, porém, foi conhecido o resultado dos testes ao solo dos prédios prometidos vender, mediante relatório que concluiu que aquele se encontra com níveis de contaminação superiores aos valores de referência. Na sequência, com cópia do referido relatório, os AA., através dos seus mandatários, enviaram para a R. carta datada de 13/7/2023, exercendo a prerrogativa de resolver o contrato e de exigir a devolução de todas as quantias pagas ao abrigo do mesmo, em singelo, para o que concederam o prazo de 5 dias, o que a R. viria a rejeitar, mediante carta de 27/7/2023, a que se seguiram outras comunicações entre as partes que não resolveram o diferendo. A R. ofereceu contestação, na qual, para além de impugnar parte da matéria alegada na petição inicial, defendeu que não assiste aos AA. o direito invocado, porque a sua conduta constitui evidente má-fé contratual. Para fundamentar essa conclusão, em resumo, afirmou que os AA. solicitaram a extensão do prazo por constrangimentos na obtenção do Pedido de Informação Prévia e ainda por dificuldades relacionadas com o financiamento destinado à aquisição dos prédios, que nunca informaram a R. não terem iniciado a aferição da eventual contaminação do solo (que tiveram início apenas a 13/6/2023), de que só informaram mais de um ano após a celebração do contrato, que não é crível que apenas nessa data tenham sabido da contaminação do solo, que o relatório apenas contém conclusões preliminares, que os AA. já haviam diligenciado junto da Gaiaurb EM pelo prosseguimento do PIP, o que pressupõe o conhecimento do estado do solo dos prédios, e que, afinal, a carta do dia 21/7/2023 evidencia apenas que os AA. se arrependeram do negócio em causa. Por isso e por entender que os AA. estavam simplesmente (como estão ainda) a recusar-se cumprir com a obrigação principal do contrato, a R. procedeu à expressa resolução do contrato, por incumprimento definitivo imputável à contraparte, o que reiterou nas comunicações posteriores. Sem prejuízo disso, na tentativa de prosseguimento do contrato, a R. reuniu com os AA. no dia 18/10/2023 e, acedendo à proposta deles, que afinal já não consideravam o contrato resolvido, assumiu os custos com a descontaminação do solo, embora depois de outorgada a escritura, e que nesta seria mencionado, o que veio a ser reiterado por escrito datado de 15/11/2023. Contudo, num novo volte face, os AA., por carta de 27.11.2023, deram o dito por não dito e negaram-se à acordada conclusão do negócio prometido, o que mereceu resposta da R., por carta datada de 02.01.2024, no sentido de que contrato havia sido definitivamente incumprido pelos AA. Concluiu com a indicação de que não incorreu em responsabilidade civil obrigacional e que, ao invés, a contraparte actuou com abuso de direito, na vertente do “venire contra factum proprium”. Em consequência, deduziu reconvenção, pedindo que seja declarado resolvido o contrato, por incumprimento definitivo imputável aos AA., que a R. pode fazer seus os €115.000,00 recebidos e condenando aos AA. a indemnizar a Ré no montante de €6.443,00, acrescido de juros à taxa de juro aplicável às transações comerciais, pelos prejuízos que lhe causou. Os AA. replicaram, pugnando pela não verificação da excepção do abuso de direito, seja na modalidade da suppressio, seja do venire contra factum proprium, e pela improcedência da reconvenção. Dispensou-se a audiência prévia e procedeu-se ao saneamento da instância, com enunciação do objecto do litígio e definição dos temas de prova, antecedido de despacho que declarou não escrita parte da réplica. Realizada a audiência de discussão e julgamento, em duas sessões, foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente, por não provada, e parcialmente procedente a reconvenção, declarando resolvido o contrato promessa celebrado em 02 de junho de 2022 e o direito da R. A... S.A. a fazer sua a quantia entregue pelos Autores de € 115.000,00. E dessa sentença, inconformados, os AA. interpuseram recurso, admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo Formularam as seguintes conclusões: 1. Os autores interpuseram uma ação declarativa de condenação pedindo que a Ré fosse condenada a pagar-lhes a quantia de €110.000 (cento e dez mil euros) a título de capital, juros demora comercias vencidos no valor de 4442,19€ e apurados entre 15 de Julho de 2023, ou seja desde a data em que esta recebeu a comunicação dos autores onde estes declaram resolver o contrato promessa de compra e venda e exigem a devolução dos valores pagos, e a data da entrada da presente ação ou seja 26 de Novembro de 2023, pagar juros de mora vincendos a contar de 27 de Novembro de 2023 até que as referidas quantias reportadas ao capital estejam pagas. 2. Fundamentam o seu pedido no fato de ter sido celebrado, entre os AA e a ré, um contrato promessa de compra e venda que estava condicionado a uma condição resolutiva, a qual se veio a verificar, razão pela qual os valores entregues a título de sinal teriam de ser devolvidos, e não tendo a ré, depois de interpelada para o efeito, procedido ao pagamento, não lhes restou outra solução que não fosse a interposição da presente ação. 3. O tribunal “ aquo” depois de afirmar o direito dos Autores à devolução dos valores entregues, à luz do contrato promessa de compra e venda celebrado, pela verificação da aludida condição resolutória, denega-lhes porém o exercício do direito, pois que considera que os AA estariam em abuso de direito, nos termos e para os efeitos do artigo 334º do Código Civil, dado que, haviam criado na esfera jurídica da Ré, uma confiança, que considera legitima, de que após a inicial data para a celebração do contrato definitivo ter sido ultrapassada, e porque as adendas subsequentes que posteciparam o prazo mencionaram que tal era feito por causa do Pedido de Aprovação Prévia não ter sido ainda emitido, os AA já não iriam prevalecer-se do direito à resolução previsto no contrato, o que, se assim não fosse, consubstanciaria num “venire contra factum prorium”. 4. Decidiu mal o tribunal “a quo” dado que, não existe abuso de direito desde logo na forma de “venire contra factum proprium” precisamente, porque, não existe qualquer confiança legitima que assista à ré, que mereça a tutela do direito, e da qual se deva considerar abusiva a invocação por parte dos AA do seu direito à revogação do contrato, 5. E isto pelas seguintes razões: i. A ré é uma empresa do ramo imobiliário com naturais conhecimentos especiais das matérias e vicissitudes inerentes à celebração de contratos de compra e venda de imoveis. (esta matéria é alegada é acessória, e não é posta em causa pela própria ré) ii. A existência de uma especifica condição inserida no âmbito de um contrato promessa de compra e venda de um imóvel implica, objetivamente ou por si só, um risco acrescido de que o projetado contrato definitivo possa não vir a ser celebrado, o que implicaria que a ré, naturalmente, estivesse não apenas alertada de forma genérica para esta possibilidade, por ser inerente a qualquer contrato promessa, mas especialmente alertada o que implicaria a observância de cuidados acrescidos, nomeadamente que fossem inerentes a que se entendia que durante as negociações o contrato não seria integralmente para cumprir e ou inaplicado nalguma das suas obrigações, deveria expressamente ter colocado atempadamente a questão, para não ser surpreendida. iii. Se reclama o direito ao não cumprimento do contrato, sobre si, devem pesar especiais cuidados de agir, antes de se imporem deveres à contraparte que apenas pretende executar o contrato. iv. A ré porque omitiu até à data da declaração resolutória emitida pelos AA, qualquer sinal no sentido de demonstrar que entendia que a condição resolutiva já não se aplicaria, omite deveres de cuidado. v. A ré inclusive teve, pelo menos, duas oportunidades para que, se existisse alguma dúvida quanto à eficácia da clausula resolutória do contrato, solicitar que a mesma fosse arredada, nomeadamente aquando e com a celebração das adendas ao contrato original, mas nada fez, omitindo pois deveres de cuidado que sobre si impediam. vi. Acresce, significativamente, que a ré alias aceitou celebrar duas adendas ao contrato promessa de compra e venda, onde, de forma expressa, se reafirma a validade e eficácia da condição resolutória, anteriormente acordada no contrato original, dado que as adendas são claras a expressar que tudo o que não era alterado se mantinha valido, onde se incluía naturalmente a clausula resolutória. vii. Acresce que verifica-se a existência de um pequeníssimo lapso de tempo decorrido entre a data inicial para a conclusão do contrato e a data em que a ré toma efetivo conhecimento que os AA não pretendam efetivamente celebrar o contrato, o que sinaliza a ausência de um qualquer prejuízo efetivo para a ré e a inocuidade do argumento centrado no prazo, como coadjuvante justificativo da confiança que a ré reclama. viii. O fato de se terem mencionado nas adendas que o fundamento para a sua celebração era a pretensão das partes em posteciparem a data da celebração do contrato, não pode ser interpretado com o sentido de que as partes prescindiam da exequibilidade de algumas das obrigações previstas no texto do contrato, especialmente até quando em sentido contrário dessas adendas se recolhe que as partes expressaram que tudo o que não estava a ser alterada se mantinha inalterado, por isso eficaz. 6. Tudo isto significa afinal que a confiança que a ré tinha no sentido de que os AA não iriam prevalecer-se da condição prevista no contrato, não é legitima e ou justificável, dado que, tal confiança resulta de um manifesto erro de avaliação da sua parte sustentado numa violação de elementares deveres de cuidado, em especial porque, não é aceitável que a ré tenha aceite celebrar duas adendas ao contrato inicial, onde se reafirmou a validade da clausula resolutória, mas venha depois pretender que foi surpreendida com o fato da parte cumpridora pretender que o contrato seja afinal cumprido em face da pretensão do direito à resolução do contrato. 7. Deve pois a decisão do tribunal “a quo” ser alterada por outra que julgue a exceção de abuso de direito improcedente e consequentemente a ação procedente, condenando-se a ré nos exatos termos pedidos na petição inicial, com a simples alteração da data inicial para a contagem dos juros de mora. E assim: a) As normas jurídicas violadas; i. A decisão viola o artigo 334º do código Civil. b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas; i. Deveria ter sido interpretado e aplicado o artigo 334.º do código civil, considerando-se que não existia o abuso de direito, especialmente na modalidade do venire contra factum proprium, dado que o pressuposto para tal, centrado na existência de uma situação objetiva de confiança, legítima e justificada não se verificava, pois que, tal havia resultado de uma violação de elementares deveres de cuidado que a ré, não poderia ter descuidado. A R. apresentou resposta ao recurso, sem conclusões, no sentido de justificar com argumentos vários a verificação do abuso de direito e o acerto da decisão recorrida, em especial que a conduta negocial dos AA. ao longo do tempo criou na Recorrida a convicção (expectativa legítima) de que o interesse no negócio se mantinha e que os únicos entraves à outorga da Escritura de Compra e Venda se prendiam, não com a pretensa contaminação dos solos, mas na demora na aprovação do PIP e na falta de capacidade económica para pagamento do remanescente do preço. Bem assim, que a omissão prolongada do exercício do direito pelos Recorrentes, suscitou, naturalmente, na Recorrida a legítima expectativa de que aqueles haviam já encetado as diligências a que se haviam comprometido (e alegadamente iniciado um ano antes), não tendo havido conclusões das mesmas que inviabilizassem o negócio. Rematou com o pedido de que o recurso seja julgado totalmente improcedente por carecer de fundamento, devendo ser mantida a Sentença nos seus exatos termos com a total improcedência da acção e a consequente absolvição da Ré, aqui Recorrida, dos pedidos contra si formulados Nada obsta ao conhecimento da apelação, a qual foram admitidos na forma e com os efeitos legalmente previstos. * OBJECTO DO RECURSO. Sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões, as quais, assim, definem e delimitam o objeto do recurso (arts. 635.º/4 e 639.º/1 do CPC). Assim sendo, importa apenas apreciar se os factos apurados traduzem ou não uma actuação dos AA. em abuso do direito. * FACTOS PROVADOS E NÃO PROVADOS. São os seguintes os factos provados, de acordo com a decisão recorrida e que os sujeitos processuais não colocaram em crise: 1) Entre Autores e Ré foi celebrado contrato intitulado de “Contrato promessa de compra e venda”, datado de 02.06.2022. (documento nº 1 junto com a petição inicial que se dá por reproduzido) 2) No âmbito do referido contrato, a Ré na qualidade de legítima proprietária e possuidora, prometeu vender aos Autores, que prometeram comprar, os seguintes prédios: i. prédio rústico denominado ..., ..., ... e ..., situado em lugar do ..., limites do lugar do ... ou ..., descrito na primeira conservatória do registo predial de Vila Nova de Gaia sob o número ...87 da freguesia ... e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...40 da freguesia .... ii. Prédio urbano situado em ..., limites do lugar do ..., rua ..., descrito na primeira conservatória do registo predial de Vila Nova de Gaia sob o número ...18 da freguesia ... e inscrito na matriz predial urbana sob os artigos ...75 e ...10 da freguesia .... 3) A Ré é proprietária e possuidora dos dois imóveis prometidos vender. 4) Do considerando com a alínea c) do contrato referido em 1. consta que “os Promitentes Compradores ainda não conseguiram concluir a análise ao solo, o que será concluído até à outorga do contrato prometido”. 5) Do número 4 da cláusula primeira do mesmo contrato consta que “Não obstante o disposto na presente cláusula as partes reconhecem e aceitam que os promitentes compradores irão promover a realização de diligências no sentido de aferir se o solo dos prédios revela a presença de algum tipo de contaminação, sendo que se encontra a aguardar a conclusão das mesmas. As partes acordam que na eventualidade de em função das diligências empreendidas no âmbito do número anterior se vir a verificar que o solo apresenta efetivamente indícios de contaminação, os promitentes compradores poderão optar por (1) proceder à descontaminação do solo, suportando todos os custos inerentes à operação, ou, (2) resolver o presente Contrato e exigir a devolução do montante pago a título de sinal, no valor de €100.000 (cem mil euros) em singelo, conforme descrito na Cláusula Nona do presente contrato”. 6) Da cláusula nona do mesmo contrato consta que “1. O promitentes compradores encontra-se a promover a realização de démarches no sentido de aferir se o solo dos prédios revela a presença de algum tipo de contaminação, sendo que se encontra a aguardar a conclusão das mesmas. 2. As partes acordam que na eventualidade de em função das diligências empreendidas no âmbito do número anterior, se vir a verificar que o solo dos prédios apresenta efetivamente indícios de contaminação, o Promitentes Compradores poderá optar por: (1) proceder à descontaminação do solo, suportando todos os custos inerentes à operação, ou, (2) resolver o Presente contrato e exigir a devolução de todas as quantias pagas ao abrigo do mesmo, em singelo”. 7) Autores e Ré acordaram no preço global de aquisição dos prédios de € 3.000.000,00 e que o mesmo seria pago da seguinte forma: a. O valor de € 15.000,00 que foi pago em 07.04.2022 através de duas transferências bancárias para a conta bancária titulada por A... S.A., com o IBAN ...05 do Banco 1... SA, uma no valor de € 10.000,00 e outra no valor de € 5.000,00 ordenadas através da conta bancária titulada pelos promitentes compradores com o IBAN ...05, do Banco 1... S.A. b. Um segundo valor de € 100.000,00 que foi pago na data da celebração do contrato através de uma transferência bancária para a conta bancária titulada pela promitente vendedora no banco Banco 2... com o IBAN ...65 e BIC/Swift ..., a título de sinal. c. O remanescente do preço correspondente ao montante de € 2.885.000,00 seria pago pelos promitentes compradores à promitente vendedora na data de outorga da escritura pública. (cf. cláusula segunda do contrato) 8) Acordaram igualmente Autores e Ré que a escritura de compra e venda dos prédios seria outorgada no prazo de 6 meses contados da data de assinatura do contrato, ou seja, até 02.12.2022. (cf. número 1 da cláusula quarta do contrato). 9) Para que os Autores pudessem conhecer os prédios e efetuar a análise legal, administrativa, fiscal e técnica aos mesmos, a Ré forneceu-lhes toda a informação e documentação necessária. (cf. Considerando B do Contrato referido em 1.) 10) Após negociações os Autores efetuaram, a 07.04.2022, o pagamento da quantia de € 15.000,00. (cf. Cláusula Segunda, n.º 2 alínea a)) 11) O contrato referido em 1., veio a ser objeto de duas adendas. (documentos nºs 2 e 3 juntos com a petição inicial, que se dão por reproduzidos) 12) A primeira das adendas foi outorgada em 16 de novembro de 2022, tendo as partes declarado que “pretendem alterar alguns dos termos no Contrato-Promessa, procedendo à extensão do prazo para a outorga da escritura” (cf. Considerando C do documento nº 2) 13) Do número 1 da cláusula primeira da primeira adenda consta que “as partes acordam de livre vontade, pela extensão do prazo máximo para a outorga da escritura pública de compra e venda dos prédios até ao dia 2 de março de 2023”. 14) O número 1 da cláusula quarta do contrato descrito em 1. passou a ter a seguinte redação: “1. A escritura pública de compra e venda dos prédios será outorgada até ao dia 2 de Março de 2023”. 15) Na segunda adenda, outorgada a 23.06.2023, as partes declararam que pretendem “alterar alguns dos termos no Contrato-Promessa e da Primeira Adenda, procedendo, nomeadamente a uma nova extensão do prazo para a outorga da escritura (…) assim como as condições necessárias para a sua realização, reconfigurando o disposto nas cláusulas terceira e quarta do contrato promessa” (cf. Considerando C do documento nº 3 e cláusula terceira) 16) Nos termos da clausula Primeira da Segunda Adenda, as partes acordam em novas condições para a eventualidade de não ser aprovado o Pedido de Informação Prévia (PIP). 17) Na Segunda Adenda o nº 1 da cláusula quarta do contrato promessa, passou a ter a seguinte redação: “1. A escritura pública de compra e venda dos prédios será outorgada até ao dia 2 de Setembro de 2023 ou no prazo de 30 dias a contar da aprovação/deferimento do pedido de informação prévia, consoante o que ocorrer primeiro lugar”. 18) Foram os Autores que solicitaram a prorrogação do prazo acordado para outorga da escritura pública de compra e venda, o que foi aceite pela Ré. 19) Para o efeito, os Autores invocaram constrangimentos na obtenção do PIP (Pedido de Informação Prévia). 20) Em julho de 2023 os autores receberam um relatório de B..., Lda. (B...) que indicava a presença de contaminação no solo dos prédios objeto do contrato. 21) Numa análise preliminar o solo apresentou concentrações de metais superior aos valores de referência nos pontos objeto de amostragem. 22) Por carta de 21.07.2023 os Autores comunicaram à Ré o resultado das testagens ao solo que haviam recebido e enviaram cópia do relatório de Due Diligencie Ambiental, declarando que “a cláusula nona, ponto primeiro do contrato assinado entre as partes no dia 2 de junho de 2022, enunciava que o promitente comprador se encarregava de realizar démarches no sentido de aferir se o solo dos prédios revelava a presença de algum tipo de contaminação, sendo que, consignava ainda o ponto segundo da cláusula nona do mesmo contrato que na eventualidade de em função das diligências empreendidas no âmbito do número anterior se vir a verificar que o solo dos prédios apresenta efetivamente indícios de contaminação, os promitentes compradores poderá optar por: (1) proceder à descontaminação do solo, suportando todos os custos inerentes à operação ou, (2) resolver o presente contrato e exigir a devolução de todas as quantias pagas ao abrigo do mesmo, em singelo, a qual vem o nosso cliente exercer”. (cf. documento nº 5 junto com a petição inicial, que se dá por reproduzido) 23) Na mesma carta solicitou a “devolução de todas as quantias pagas ao abrigo do contrato assinado pelas partes a 2 de junho de 2022, no prazo de 5 dias úteis, contados da data de entrega desta carta”, para conta bancária que identificavam. 24) Esta carta foi recebida pela Ré. 25) A Ré remeteu aos Autores, carta datada de 27.07.2023, na qual comunicava rejeitar a validade e o conteúdo do relatório que lhe tinha sido remetido e que não assistia aos Autores direito de procederem à resolução do contrato promessa de compra e venda. (cf. documento nº 6 junto com a petição inicial e documento nº 1 junto com a contestação, que se dá por reproduzido) 26. Na mesma carta a Ré refere que “Conclui-se, (…) que se recusam a cumprir a obrigação principal do Contrato Promessa de Compra e Venda – ie., adquirir os mencionados prédios. Consequentemente, vimos expressamente proceder à resolução do Contrato Promessa de Compra e Venda, por incumprimento definitivo que vos é única, exclusiva e culposamente imputável, (…) mais informamos que, ao abrigo nas normas acima citadas, faremos nossas todas as quantias que nos foram entregues, nomeadamente, a título de sinal e princípio de pagamento”. 27) Os Autores respondem à carta de ré com uma carta, datada de 07.08.2023, declarando que a interpretação que a ré estava a pretender fazer não era aceitável e solicitam novamente a devolução de todas as quantias pagas. (documento nº 7 junto com a petição inicial, que se dá por reproduzido) 28) Os Autores enviam uma nova carta à Ré, datada de 14.09.2023, em que insistem pela devolução das quantias pagas a título de sinal. (cf. documento nº 8 junto com a petição inicial, que se dá por reproduzido) 29) A Ré, por carta de 13.09.2023, reiterou a sua posição anterior. (cf. documento nº 2 junto com a contestação, que se dá por reproduzido) 30) A Ré não efetuou o pagamento das quantias que havia recebido a título de sinal. 31) Autores e Ré reuniram no dia 18.10.2023, tendo em vista aventar uma eventual solução de prosseguimento do contrato. 32) Na referida reunião, tendo em vista o prosseguimento do negócio, foi sugerido pelos Autores que a Ré assumisse os custos com a descontaminação do solo dos prédios. 33) A Ré acedeu em custear a descontaminação do solo dos prédios após a celebração do contrato definitivo. 34) Por carta datada de 15.11.2023 a Ré declara aceitar assumir os encargos necessários à descontaminação do solo, após realização da escritura (cf. documento nº 9 junto com a petição inicial e nº 3 junto com a contestação, que se dá por reproduzido). 35) O que os Autores não vieram a aceitar. 36) Por carta de 27.11.2023 os Autores vieram comunicar que a possibilidade de revitalização do negócio não foi acordada e que mantêm as comunicações de 12.07.2023 e de 21.07.2023. (cf. documento nº 4 junto com a contestação, que se dá por reproduzido) 37) A Ré respondeu por carta datada de 14.12.2023 reiterando o que havia sido acordado em reunião mantida e a falta de cumprimento por parte dos Autores. (cf. documento nº 5 junto com a contestação, que se dá por reproduzido). 38) Os Autores não responderam a esta comunicação. 39) Por carta de 02.01.2024 a Ré comunicou aos Autores que entendia encontrarem-se as negociações para resolução amigável do contrato encerradas e solicitou a remessa dos documentos e informações referentes ao PIP (cf. documento nº 6 junto com a contestação, que se dá por reproduzido). 40) A Ré foi surpreendida pelo teor da carta datada de 21 de julho de 2023. 41) Aquando da celebração das duas Adendas ao Contrato, os Autores não informaram a Ré de não ter iniciado qualquer ato tendente à aferição da eventual contaminação do solo dos prédios. 42) A Ré estava convicta que o interesse dos Autores no negócio se mantinha e que o único entrave à outorga da escritura de compra e venda se prendia com a demora na aprovação do PIP. 43) Estava convicta que estavam ultrapassadas as questões relacionadas com a eventual contaminação do solo. 44) Os trabalhos de aferição do estado do solo tiveram início apenas em junho de 2023. 45) Os Autores, até julho de 2023, diligenciaram junto da Gaiaurb pelo prosseguimento do PIP. 46) Os Autores arrependeram-se do negócio. 47) Os Autores sabiam que a Ré exerceu nos prédios objeto do contrato atividade de fabricação de material elétrico e eletrónico. 48) Tendo em vista a aprovação do PIP, foram avançadas pela Ré diligências com as quais teve custos, concretamente com Arquitetos. 49) A Ré contratou a empresa “C..., Lda.”, a quem pagou até ao momento o valor de € 6.150,00. 50) Procedeu a pagamento à Gaiaurb, do montante de € 293,00. * Por outro lado, não se provou que: a) Na sequência da receção do relatório elaborado por B..., os autores enviaram à Ré uma carta datada de 13 de julho de 2013, juntando o relatório de Due Diligencie Ambiental. b) Na mesma comunicavam que, em virtude da contaminação detetada, optavam por resolver o contrato e exigiam a devolução de todas as quantias pagas ao abrigo do contrato. c) A Ré reconhece a existência dos indícios de contaminação. d) A descontaminação afeta a imagem pública do prédio. e) A quantia de € 15.000,00, paga em 07.04.2022, foi paga a título de pré-reserva dos prédios da Ré, como taxa de reserva acordada entre as Partes. f) Os Autores, à data do contrato, já haviam iniciado a aferição do estado do solo dos prédios e conformaram-se com as características do solo. g) Os Autores invocaram dificuldades relacionadas com o financiamento destinado à aquisição dos prédios para realização das adendas ao contrato. h) Na reunião ocorrida entre as partes o sugerido pelos Autores era que a descontaminação do solo dos prédios fosse feita depois de outorgada a escritura. i) Nessa reunião os Autores manifestaram a sua vontade e interesse na outorga da escritura pública. j) A aceitação pela Ré de custear a descontaminação foi feita em atenção à alteração de entendimento dos Autores, que já não consideravam o contrato resolvido, antes pretendiam a sua execução. l) A carta datada de 15.11.2023 foi remedida em cumprimento do que havia sido acordado entre as partes na reunião de 18.10.2023. m) Para além do atraso na aprovação de PIP o entrave à outorga da escritura de compra e venda prendia-se com a falta de capacidade económica dos Autores para pagamento do remanescente do preço. n) Os Autores sabiam que o solo dos prédios podia conter resíduos de fios e cabos elétricos e eletrónicos. * OUTROS FACTOS A CONSIDERAR. Nos termos do art. 663.º/2 do CPC, o acórdão principia pelo relatório, em que se enunciam sucintamente as questões a decidir no recurso, expõe de seguida os fundamentos e conclui pela decisão, observando-se, na parte aplicável, o preceituado nos artigos 607.º a 612.º. Ao passo que, segundo o disposto no art. 607.º do mesmo diploma legal, deve o juiz discriminar os factos que considera provados (nº3) e toma ainda toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito (nº4). Por outro lado, dispõe o art. 662º/1 que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. Daqui resulta que certas patologias da decisão da matéria de facto podem ser conhecidas oficiosamente pelo tribunal de recurso, ao passo que, no caso de erro de julgamento sobre factos relevantes, a apreciação factual a empreender pela segunda instância depende da devida impugnação da parte. Neste âmbito, como refere a doutrina, “a Relação, limitando-se a aplicar regras vinculativas extraídas do direito probatório material, deve integrar na decisão o facto que a primeira instância considerou não provado ou retirar dela o facto que ilegitimamente foi considerado provado (…), alteração que nem sequer depende da iniciativa da parte” (A. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., pp. 335-6). Idêntico tratamento deve ser concedido pelo tribunal ad quem, segundo pensamos, por expressa determinação do art. 662.º/1 do CPC, aos casos em que a decisão de facto da primeira instância omita factos que, para além de terem interesse para a decisão da causa, segundo as soluções plausíveis da questão de direito, estejam assentes por acordo das partes. No caso dos autos, é evidente que os AA. alegaram a celebração do contrato promessa e suas duas adendas, que deram por integralmente reproduzidos (arts. 1 e 8 da petição inicial), aceitando a R., por seu turno, “a existência do contrato e adendas juntas pelos Autores” (art. 12 da contestação) e, assim, admitindo também o facto de as referidas adendas “deixarem expresso que as cláusulas do contrato continuavam a aplicar-se” (art. 59 da réplica). Com efeito, como resulta do documento nº2 da PI, na adenda ao contrato promessa assinada por AA. e R. a 16/11/2022 consta, na alínea C), que “as partes pretendem agora alterar alguns dos termos no Contrato-promessa, procedendo à extensão do prazo para a outorga da escritura pública”, alterando a cláusula 4.ª/1 do contrato inicial. Mas nela consta também, na cláusula 2.ª/2 da adenda, que “todas as questões que não forem regidas pela presente Adenda serão regulados pelo Contrato Promessa”. Para além disso, o documento nº3 da mesma peça processual denuncia sem impugnação que na adenda seguinte, outorgada a 23/6/2023, AA. e R. declararam que “as partes pretendem agora alterar alguns dos termos no Contrato-promessa, procedendo, nomeadamente, a nova extensão do prazo para a outorga da escritura pública”, alterando as cláusula 3.ª e 4.ª do contrato inicial, como igualmente, na cláusula 3.ª/2 da adenda, que “todas as questões que não forem regidas pela presente Adenda serão regulados pelo Contrato Promessa”. Pelo exposto, decide-se aditar aos factos provados os seguintes: 51) Na adenda ao contrato promessa assinada por AA. e R. a 16/11/2022 consta, na alínea C), que “as partes pretendem agora alterar alguns dos termos no Contrato-promessa, procedendo à extensão do prazo para a outorga da escritura pública”, tendo, em consequência, alterado a cláusula 4.ª/1 do contrato inicial. 52) Consta também, na cláusula 2.ª/2 dessa adenda, que “todas as questões que não forem regidas pela presente Adenda serão regulados pelo Contrato Promessa”. 53) Na adenda seguinte, outorgada a 23/6/2023, AA. e R. declararam que “as partes pretendem agora alterar alguns dos termos no Contrato-promessa, procedendo, nomeadamente, a nova extensão do prazo para a outorga da escritura pública”, tendo alterado, mercê disso, as cláusulas 3.ª e 4.ª do contrato inicial. 54) AA. e R. mencionaram igualmente, na cláusula 3.ª/2 dessa adenda, que “todas as questões que não forem regidas pela presente Adenda serão regulados pelo Contrato Promessa”. * O DIREITO Dispõe o art. 334.º do Código Civil, sob a epígrafe abuso do direito, que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”. O abuso do direito ou de direito tem sido caracterizado como uma válvula de segurança do sistema jurídico, nascido e desenvolvido para impedir resultados que, embora na aparência conformes à lei ou ao negócio jurídico, traduzam desvio significativo e inaceitável ao sentimento geral de justiça. Neste sentido, refere a jurisprudência que o “abuso do direito é um instituto de ultima ratio, para situações de clamorosa injustiça: não basta, para que se verifique, que o titular do direito exceda os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, antes sendo necessário que esses limites sejam manifestamente excedidos, i.e., que ofendam de forma clamorosa a consciência ética e jurídica da generalidade dos cidadãos” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/10/2017, proc. 11403/15.6T8PRT.P1.S1, relator Sousa Lameira, disponível na base de dados da DGSI em linha). Na mesma linha, destaca-se que em geral “existe abuso de direito, nos termos do disposto no artigo 334º do Código Civil, quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objetivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos apoditicamente ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, por exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou fim social ou económico desse direito” (cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 3/10/2019, proc. 3722/16.0T8BG.G1.S1, relator Rosa Tching, in www.dgsi.pt). E daí que o juízo sobre a existência do abuso de direito esteja condicionado pelas concepções ético-jurídicas dominantes na sociedade, por um lado e, por outro, em sede contratual, também dependa, “absoluta e decisivamente, da análise concreta e casuística de todas as particularidades da conduta de cada um dos contraentes” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26/10/2022, proc. 5261/20.6T8BRG.G1.S1, relator Luís Espírito Santo, a consultar no citado sítio). Estes são os traços gerais relativos à essência do abuso de direito. Para além disso, densificando tal instituto, a doutrina tem distinguido algumas categorias típicas em que o abuso pode manifestar-se em concreto e que consistem no venire contra factum proprium, na inalegabilidade da nulidade de um negócio jurídico, na suppressio pelo não exercício de um direito, no tu quoque, baseado no aproveitamento de prévia actuação ilícita, e no desequilíbrio no exercício das posições jurídicas (cfr. A. Menezes Cordeiro, Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas, in Revista da Ordem dos Advogados em linha, ano 2005, Vol. II, cap. 9, III). Tal como explica a importância que, actualmente, o princípio da tutela da confiança tem na aplicação da figura, comum às suas apontadas categorias, desde que estejam verificados os pressupostos justificativos da protecção do agente confiante, aquele que confia na adopção da conduta que, face a padrões de boa-fé e razoabilidade, seria expectável fosse tomada pela outra parte. E que, muito sinteticamente, são constituídos pela existência de uma situação de confiança, expressa na boa fé subjectiva ética do confiante, “própria da pessoa que ignore sem culpa estar a lesar posições alheias”, pela justificação dessa situação, manifestada na “presença de elementos objetivos capazes de em abstrato de criar a confiança”, pelo investimento da confiança, traduzido na actuação do confiante com base na confiança gerada e, por fim, pela imputação da confiança à conduta da contraparte (cfr. Elsa Vaz de Sequeira, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, 2.ª ed., UCP-FD, p. 965). Sem prejuízo de, face ao nosso ordenamento jurídico, a verificação de tais pressupostos apenas assumir relevância quando concorra com a violação do fim social ou económico do direito, da boa fé ou dos bons costumes e quando, para além disso, “o excesso cometido seja manifesto”, no sentido de se cingir “às hipóteses em que a invocação e aplicação de um preceito da lei resultaria, no caso concreto, intoleravelmente ofensiva do nosso sentido ético-jurídico” (cfr. P. Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª ed., pp. 298-9). Aproximando os conceitos e fundamentos referidos ao caso dos autos, verifica-se que as partes e o tribunal de primeira instância esgrimiram argumentos e formularam conclusões, no essencial, em torno de duas modalidades possíveis do abuso do direito: o venire contra factum proprium e a suppressio. O “venire” constitui uma configuração do abuso de direito baseada em comportamento contraditório do agente, que actua de forma oposta ao que, num primeiro momento, havia claramente denunciado, gerando com a primeira acção legítima confiança no outro lado da relação jurídica. Como diz a doutrina, “estruturalmente, o venire postula duas condutas da mesma pessoa, lícitas em si, mas diferidas no tempo. Só que a primeira — o factum proprium — é contraditada pela segunda — o venire” (cfr. A. Menezes Cordeiro, Ob. cit., cap. 9, ponto II). Tal como, de forma igualmente expressiva, a jurisprudência tem decidido que “pode definir-se venire contra factum proprium como o exercício de uma posição jurídica contrária ao comportamento anteriormente assumido pelo exercente”, que “comporta duas atitudes da mesma pessoa que se encontram diferidas, espaçadas temporalmente, sendo que o primeiro desses comportamentos, designado como factum proprium, é contrariado pelo segundo” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21/5/2024, proc. 407/22.2T8ETR.P1, relator Anabela Dias da Silva, disponível na citada base de dados). No entanto, no caso dos autos, não vislumbramos essa contradição no comportamento que os AA. levaram a efeito no desenvolvimento da relação jurídica inerente ao contrato promessa de 2/6/2022. A questão essencial, neste ponto, a nosso ver, diz respeito à importância que, no referido contrato, as partes reconheceram que para os AA. assumia o tema da eventual contaminação dos solos dos prédios que prometeram comprar. Importância que, aliás, transparece imediatamente do teor do acordo, em atenção às sucessivas referências ao estado do solo no seu texto e, desde logo, no considerando da alínea c), onde se mencionou que “os Promitentes Compradores ainda não conseguiram concluir a análise ao solo, o que será concluído até à outorga do contrato prometido”. Para além disso, no número 4 da cláusula primeira do contrato, cuja parte inicial refere que “não obstante o disposto na presente cláusula as partes reconhecem e aceitam que os promitentes compradores irão promover a realização de diligências no sentido de aferir se o solo dos prédios revela a presença de algum tipo de contaminação, sendo que se encontra a aguardar a conclusão das mesmas”. Para, na segunda parte, prever que “as partes acordam que na eventualidade de em função das diligências empreendidas no âmbito do número anterior se vir a verificar que o solo apresenta efetivamente indícios de contaminação, os promitentes compradores poderão optar por (1) proceder à descontaminação do solo, suportando todos os custos inerentes à operação, ou, (2) resolver o presente Contrato e exigir a devolução do montante pago a título de sinal, no valor de €100.000 (cem mil euros) em singelo, conforme descrito na Cláusula Nona do presente contrato”. Algo que os contraentes tiveram ainda o cuidado de repetir e reforçar na cláusula nona do contrato, mencionando que os “promitentes compradores encontra-se a promover a realização de démarches no sentido de aferir se o solo dos prédios revela a presença de algum tipo de contaminação, sendo que se encontra a aguardar a conclusão das mesmas” e, para além disso, que “as partes acordam que na eventualidade de em função das diligências empreendidas no âmbito do número anterior, se vir a verificar que o solo dos prédios apresenta efetivamente indícios de contaminação, o Promitentes Compradores poderá optar por: (1) proceder à descontaminação do solo, suportando todos os custos inerentes à operação, ou, (2) resolver o Presente contrato e exigir a devolução de todas as quantias pagas ao abrigo do mesmo, em singelo”. Consagrando e reiterando, desse modo, uma verdadeira cláusula resolutiva expressa do contrato promessa, como “fonte de um direito potestativo de extinção retroactiva da relação contratual” e capaz de atribuir “ao beneficiário o poder de resolver o contrato uma vez verificado o facto por ela descrito (o fundamento convencional previsto no contrato)”, como é reconhecido na jurisprudência (cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 27/4/2023, proc. 2310/19.4T8SXL.L1.S1, relator Fernando Baptista, acessível no mesmo sítio). Para além do exposto, a essencial importância atribuída à questão da eventual contaminação dos solos ressuma ainda de duas outras circunstâncias. A primeira radicada na mera existência de “indícios de contaminação” para fundamentar a aplicação da cláusula contratual resolutiva. E a segunda, ainda mais relevante, resultante da ausência de qualquer prazo para que a faculdade de resolver o contrato, por indícios de contaminação, fosse exercida pelos promitentes compradores. Aos quais, assim, assistia o poder de, unilateralmente, obter a extinção dos direitos e deveres contratuais a todo o tempo e, portanto, até à celebração da escritura de compra e venda, na compreensível dependência de informação de que o solo dos prédios revelava a presença de algum tipo de contaminação. Neste contexto, segundo pensamos, a outorga de duas adendas ao contrato promessa, com a extensão do prazo para a celebração da escritura, não constitui, por si só, um comportamento contraditório com o exercício posterior da faculdade de resolução contratual. Na verdade, atenta a especial importância concedida à eventual contaminação dos terrenos, e embora a prorrogação do prazo tenha sido pedida e aceite por constrangimentos na obtenção do PIP, seria muito estranho e mesmo impensável que, aquando da celebração das adendas, a R. não tivesse cogitado, e não se tivesse questionado, sobre como estaria a perspectiva dos AA. a respeito daquela fundamental questão da qualidade do solo. Ora, a resposta a essa dúvida ou questionamento que decorre do texto das adendas é muito clara: “todas as questões que não forem regidas pela presente Adenda serão regulados pelo Contrato Promessa”. Mantendo-se em pleno, por isso, e com óbvio conhecimento da contraparte, a faculdade de os AA. resolverem o contrato com base na existência de indícios de contaminação no solo, que fosse conhecida até à data da celebração da escritura de compra e venda, em perfeita coerência com a importância que a questão, como foi reconhecido no contrato e resulta da exposição antecedente, assumia para os promitentes compradores. Nestes termos, se é certo que as adendas têm objectivamente subjacente o fortalecimento da intenção de celebrar o contrato prometido, a verdade é que, mais que isso, elas evidenciam sobretudo o reforço desse propósito condicionado na íntegra aos termos que haviam sido estabelecidos inicialmente. Ou seja, a intenção de contratar mantém-se sem prejuízo da sua dependência à falta de contaminação dos solos, a qual, existindo, concedia no início do acordo e continuava a conceder com as adendas, aos AA., a possibilidade de, legitimamente, optar por resolver o contrato. E que, em indesmentível acatamento dos ditames da boa fé, os promitentes compradores, em lugar de aguardarem uma data mais longínqua, até ao termo do prazo para a celebração da escritura, exerceram no mesmo mês (Julho de 2023) em que tomaram conhecimento do relatório relativo à contaminação. O que se comprovou (factos 20 a 22) precisamente ao arrepio do que havia sido alegado pela R., para quem os AA., à data do contrato, já haviam iniciado a aferição do estado do solo, aceitando as suas características, e sabiam já que podia conter resíduos de fios e cabos elétricos e eletrónicos, factos que não se apuraram (alíneas f) e n) da matéria não provada). Poderia censurar-se aos AA., no entanto, no plano da exigência da boa fé no cumprimento dos contratos, por desrespeito ao dever de informação, o facto de nada terem referido sobre o estado das diligências relativas à averiguação do estado do terreno e, também por falta de diligência, de apenas em Junho de 2023 terem sido iniciados os trabalhos de aferição do estado do solo. A verdade prevalecente a esse propósito, porém, é que se desconhecem os concretos motivos para o início tardio desses trabalhos, assim como se sabe que os seus resultados foram comunicados logo que conhecidos e, ainda com maior importância, que ao referir expressamente, nas adendas, a manutenção do teor do contrato inicial, estavam os AA., ao cabo de contas, a manifestar à contraparte que as diligências de averiguação sobre os solos ainda não estavam concluídas. Por isso, pese embora a convicção da R., que nada afasta tenha sido unilateralmente criada, no sentido de que o interesse dos AA. no negócio se mantinha, de que o único entrave à outorga da escritura de compra e venda se prendia com a demora na aprovação do PIP e de que estavam ultrapassadas as questões relacionadas com a eventual contaminação do solo, os elementos objectivos resultantes do contrato e das adendas denunciam que se tratava de uma convicção infundada, que naqueles não estava devidamente alicerçada. O que vem colocar em crise, decisivamente, a presença do venire, para cuja verificação, nomeadamente “quando o agente não efetua a ação que anteriormente tinha feito crer que iria praticar”, é indispensável “uma ofensa inaceitável – por carecer de uma justificação juridicamente atendível – às legítimas expectativas de outrem” (cfr. Elsa Vaz de Sequeira, Ob. cit., p. 967). Tal como, de forma igualmente evidente, as referidas circunstâncias afastam qualquer hipótese de os AA. terem incorrido em suppressio, a outra modalidade do abuso do direito considerada em primeira instância. Nesse caso, como salienta a doutrina, “o agente não exerce o seu direito durante um lapso temporal considerável, criando por isso a convicção noutrem de que não o irá fazer”; todavia, “não basta o mero não exercício, sendo simultaneamente preciso um indício que legitime essa convicção”, por um lado e, por outro, “que o titular do direito está consciente da sua situação, tem condições para agir, mas não o faz” (cfr. Elsa Vaz de Sequeira, Ob. cit., p. 968). Ora, a mera celebração de adendas não constitui indício objectivo suficiente para tornar legítima a convicção da R. de que o contrato prometido seria efectivamente celebrado, tanto mais que, naquelas, no caso em apreço, as partes reiteraram a subsistência da cláusula resolutiva. Por outro lado, também não se provou minimamente que os AA., antes de Julho de 2023, tivessem reunidas as condições para exercer o seu direito de resolução. E à mesma conclusão, da ausência de fundamento para reconhecer uma actuação em abuso de direito, se chega através das categorias de valores cuja violação a nossa lei, no art. 334.º do CC, exige para o efeito. Em primeiro lugar, porque o fim social ou económico do direito, se bem pensamos, foi integralmente respeitado pelos AA., visto que a cláusula resolutiva tem precisamente como finalidade obter a extinção do contrato de forma fundamentada e, neste caso, os indícios de contaminação do solo constituem, com razoabilidade, motivo bastante para esse efeito. Em segundo lugar, porque a exigência de boa fé não se confunde com a imposição de um cumprimento perfeito ou minucioso do dever de informação e de diligência. E cujo desrespeito, no caso dos autos, para além de não ser manifesto ou clamoroso, nos termos requeridos pelo art. 334.º do CC, mostra-se ainda claramente esbatido, no plano objectivo, pela sucessiva remissão feita nas adendas para o contrato inicial e, logo, para a sua cláusula resolutiva, e ainda para diligências de averiguação expressamente indicadas como não concluídas. Finalmente, não vislumbramos violação aos ditames dos bons costumes, “que mais não são do que a eticidade jurídico-normativa imanente ao sistema” (cfr. Elsa Vaz de Sequeira, Ob. cit., p. 964). Na verdade, os princípios essenciais, no nosso ordenamento jurídico, da liberdade contratual e do pacta sunt servanda (os contratos são para se cumprir) postulam, ao invés, que a cláusula resolutiva, consensualmente aceite e reiterada pelos contraentes, possa ser exercida por quem dela beneficia. Assim sendo, é nosso entendimento que a decisão de primeira instância não pode manter-se e que os AA. exerceram o seu direito de resolução contratual de modo legítimo, tendo solicitado, para além disso, a devolução do sinal em prazo razoável e em conformidade com a cláusula resolutiva de que beneficiavam. Por isso, procede a acção quanto ao capital e aos juros, com a única ressalva de que estes devem contar-se desde 27/7/2023, pois não se provou a interpelação para pagamento e a sua eficácia em data anterior, improcedendo totalmente, por não provada, a reconvenção. * DECISÃO: Com os fundamentos expostos, concedendo provimento à apelação, revoga-se a sentença recorrida e, em seu lugar: a) julga-se parcialmente procedente a acção, condenando-se a R. a pagar aos AA. a quantia de € 110.000,00 (cento e dez mil euros), acrescida de juros de mora comerciais vencidos desde 27/7/2023 (vinte e sete de Julho de dois mil e vinte e três) e até integral pagamento; b) julga-se totalmente improcedente, por não provada, a reconvenção, dela absolvendo os AA. Custas da apelação e da reconvenção pela R., atento o seu decaimento. E custas da acção por AA. e R., na proporção do decaimento, apurável por simples operação aritmética (art. 527.º do CPC). * SUMÁRIO ……………………………………… ……………………………………… ……………………………………… (o texto desta decisão não segue o Novo Acordo Ortográfico) Porto, d. s. (10/07/2025) Nuno Marcelo Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo Teresa Pinto da Silva Mendes Coelho |