Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
11870/25.0T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA OLÍVIA LOUREIRO
Descritores: ARRESTO
CRÉDITO ILÍQUIDO
Nº do Documento: RP2025101311870/25.0T8PRT.P1
Data do Acordão: 10/13/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O legislador não condicionou o decretamento do arresto à liquidação do crédito do requerente.
II - Também um crédito ilíquido pode merecer tutela cautelar por via do arresto, sendo várias as razões pelas quais ainda não pode ser liquidado, algumas delas eventualmente imputáveis ao próprio devedor ou à natureza do crédito.
III - Também a natureza urgente do procedimento cautelar pode constituir um óbice a que nele se apurem valores indemnizatórios decorrentes de cálculos que só podem ser sustentados em factos de difícil e demorada prova, nomeadamente a que dependa de conhecimentos vedados ao julgador e que, por isso, deva ser feita por via pericial.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo número 11870/25.0T8PRT.P1, Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim, Juiz 3.

Recorrente:

AA

Recorrido:

BB

Relatora: Ana Olívia Loureiro

Primeiro adjunto: Carlos Gil

Segundo adjunto: Manuel Fernandes

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório:

Em 30-06-2025 BB propôs procedimento cautelar de restituição provisória de posse ou, subsidiariamente, de arresto, contra AA pedindo, a título principal a restituição imediata de três imóveis, inscritos sob os artigos matriciais rústico número ... e urbanos números ... e ... da União das Freguesias ..., ..., ... e ..., concelho de Santo Tirso, com imediato levantamento de qualquer obstáculo que impeça o livre acesso aos mesmos.

Para sustentar este pedido alegou que o uso de tais imóveis lhe foi gratuitamente cedido pelo requerido, seu pai, de acordo com o teor de contrato de comodato reduzido a escrito e com reconhecimento notarial de assinaturas, desde 13 de outubro de 2022 e até 13 de outubro de 2042. O requerido, contudo, continuou a usar um desses imóveis, ali residindo. O requerente, por sua vez, neles passou a manter alguns animais, pois é responsável por exploração agrícola ali sedeada e financiada pelo Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas. Em 2024, o requerente, vendo-se impossibilitado, por doença, de continuar a pagar o mútuo que contraíra para adquirir habitação, incentivado pelo seu pai, vendeu o imóvel onde residia e, por proposta dele, iniciou obras de reconstrução de uma moradia em ruínas existente num dos imóveis objeto do comodato, tendo ambos o propósito de que o requerente ali passasse a residir, junto do requerido, seu pai. As obras foram feitas com o conhecimento do requerido, que ajudou mesmo nalguns trabalhos e nelas alega que despendeu 50 520, 40 € tendo valorizado tal imóvel em mais de 250 000 €. No prédio estão, além disso, armazenados materiais de construção a que nunca mais conseguiu aceder. Atendendo ao seu valor concluiu que, no total, já investiu mais de 80 000€ para a reconstrução da moradia.

Por causa de desentendimentos relacionados com os animais que o requerente mantém nos imóveis, as relações entre este e o requerido deterioraram-se e este passou a anunciar a venda dos imóveis e, com violência, impediu a continuação das obras ordenando ao requerente que as abandonasse, o que o mesmo acatou face à violência das interpelações e insultos do requerido.

A título subsidiário pediu o arresto de bens móveis ou imóveis do requerido que sejam suficientes a garantir um crédito de 330 000€. Descreveu, para sustentar tal crédito, as benfeitorias que fez num dos referidos imóveis urbanos, e os “danos emergentes e lucros cessantes” decorrentes da impossibilidade do seu uso que entende ter o valor de entre 1 500 € e 2000 € mensais. Alegou que fez tais obras com o conhecimento e até colaboração do recorrido, com o propósito de vir a habitar o imóvel benfeitorizado, pelo que este age em abuso do direito ao impedi-lo de usar os imóveis objeto do comodato nomeadamente a habitação que tem vindo a reconstruir. O facto de os referidos imóveis se encontrarem anunciados para venda cria, segundo o requerente, um risco de que a demora da ação principal venha a impedir o requerente de cobrar o seu direito de crédito.

Pediu a dispensa de citação do requerido e indicou os imóveis acima descritos para arresto.

2. Por despacho de 03-07-2025 foi o requerente convidado a esclarecer se pretendia, como pedira, ouvir o requerido em depoimento de parte, já que no regime legal de ambas as providências cautelares peticionadas está prevista a dispensa de contraditório prévio. Foi o mesmo, ainda, convidado a reduzir a cinco o número de testemunhas arroladas.

3. Tendo o requerente prescindido do depoimento da contraparte e reduzido o rol de testemunhas por requerimento de 04-07-2025, foi designada data para a produção de prova indicada que veio a realizar-se em 15-07-2025.

4. Em 16-07-2025 foi proferido despacho final que julgou improcedente o pedido principal de restituição provisória de posse e procedente o pedido subsidiário ordenando, em consequência, o arresto dos prédios identificados pelo requerente.

5. O requerido foi citado para os termos da ação e notificado desse despacho em 12 de agosto de 2025, por carta registada com aviso de receção.

6. Interpôs recurso do despacho final em 27-08-2025, que foi admitido por despacho de 18-09-2025.

7. O recurso foi admitido por despacho de 18-09-2025 para subir de imediato, nos próprios autos e com efeito devolutivo.

II - O recurso:

O recorrente pretende a revogação do despacho final com a consequente absolvição do pedido.

Para tanto, alega o que sumaria da seguinte forma em sede de conclusões de recurso:

“A) Nos presentes autos de Procedimento Cautelar o Requerente pede que seja decretada a restituição provisoria da posse dos seguintes imoveis:

- Prédio rustico sito da União das Freguesias ..., ..., ... e ..., inscrito na matriz sob o art. ...

- Prédio urbano sito da União das Freguesias ..., ..., ... e ..., inscrito na matriz sob o art..., e

- Prédio urbano sito da União das Freguesias ..., ..., ... e ..., inscrito na matriz sob o art. ...

Ou caso a mesma não seja decretada, seja, neste caso, subsidiariamente, decretado o arresto dos imoveis já identificados.

B) Proferida a douta sentença, foi decidido:

a) Julgar improcedente o pedido principal de restituição provisoria de posse e, em consequência, absolver o recorrente nessa parte;

b) E julgar procedente o pedido subsidiário e em consequência, determinar o arresto dos prédios supra identificados, ou seja os prédios inscritos na matriz sob o art. ......, ...... e ..., todos sitos na União das Freguesias ..., ..., ... e ..., concelho de Santo Tirso.

C) Da Audiência de Julgamento resultaram sumariamente provados os seguintes factos:

a) Requerente e requerido apuseram as suas assinaturas no escrito junto como documento n.◦ 2 com a petição inicial (fls. 19, verso), datado de 13/10/2022, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, do qual consta nomeadamente que o requerido cede gratuitamente ao requerente um prédio rustico sito da União das Freguesias ..., ..., ... e ..., inscrito na matriz sob o art. ... um prédio urbano sito da União das Freguesias ..., ..., ... e ..., inscrito na matriz sob o art..., e um prédio urbano sito da União das Freguesias ..., ..., ... e ..., inscrito na matriz sob o art. ... com inicio em 13/10/2022 e término em 13/10/2042: (art. 5.° da petição inicial)

b) Em sequência, o requerido passou a ocupar o local com animais cães, um pónei e uma équa; (art. 8.° da petição inicial)

c) O requerente, CC e DD apuseram as suas assinaturas no escrito junto como documento n.º 16 com a petição inicial, datado de 14/02/2025 (fls. 41. verso), cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, do qual consta nomeadamente que o requerente promete vender aos restantes, pelo preço de €299.500,00, um prédio urbano, composto de casa de habitação de cave, rés-do-chão andar, com quintal, sito em ..., freguesia ..., concelho de Vila Nova de Famalicão, descrito na respectiva Conservatória do Registo Predial sob o n. ..., devendo a escritura de compra venda ser realizada no prazo máximo de 30 dias; (art. 19." da petição inicial)

d) Em sequência o requerente entregou já o prédio referido em c), onde habitava, aos demais signatários identificados em c), e passou habitar uma casa em Santo Tirso mediante pagamento de renda; (art. 21.° da petição inicial)

e) O requerente actuou nos termos descritos em c) e d) com o apoio e incentivo do requerido, com o objectivo de financiar obras num dos prédios referidos em a), e ir para aí habitar, junto à casa do requerido; (arts. 15.°, 16.9, 18.°, e 25.° da petição inicial)

f) Após o que fez realizar obras de reconstrução de um de tais prédios, que se encontrava em ruínas, apenas com as paredes sem telhado, que o transformaram numa casa habitável, com três quartos, cozinha e sala, tendo o requerente despendido montante não apurado em tal obra, o que fez sempre com assentimento do requerido que inclusivamente auxiliou nos trabalhos da obra; (arts. 24.°, 27.°, 28., 29. e 30.° da petição inicial)

g) Cerca do meio do mês de Junho de 2025, o requerido abeirou-se da obra, apodou o requerente e trabalhador que o acompanhava de "filhos da puta" e disse-lhes para saírem do local, ante o que o requerente não voltou ao edifício, comparecendo no local apenas para alimentar os animais ocasião em que o requerido voltou a dizer ao requerente e à sua mulher para abandonar o local; (arts. 45.º, 47.°, 53.°, 54.°, 56.°, 59.° e 60.º da petição inicial)

h) O requerido anunciou via internet a intenção de vender os imoveis referidos em a), com indicação de preço. (arts. 46.º, 71.º, e 91.º da petição inicial)

D) Resulta sumariamente provado, conforme consta do facto a) da sentença, a realização de um contrato de comodato, celebrado em 13 de outubro de 2022, entre o requerente e o requerido, aqui recorrente.

E) Consta da clausula n. 1 a identificação dos prédios dados de comodato e que são os que constam dos factos sumariamente provados na alínea a): um prédio rustico sito da União das Freguesias ..., ..., ... e ..., inscrito na matriz sob o art. ... um prédio urbano sito da União das Freguesias ..., ..., ... e ..., inscrito na matriz sob o art..., e um prédio urbano sito da União das Freguesias ..., ..., ... e ..., inscrito na matriz sob o art. ... .

F) Mais foi outorgado na clausula 5ª:

1. Não é permitido ao 2º outorgante (o requerente do procedimento cautelar – aqui recorrido) proceder a quaisquer obras e ou benfeitorias sem autorização expressa do 1º outorgante (o requerido – aqui recorrente), dada por documento escrito.

2. Caso venham a existir, benfeitorias realizadas pelo 2º outorgante essas ficarão a fazer parte do bem imóvel, sem direito a indemnização ou retenção.

G) Constata-se pela análise do contrato de comodato que, e em especial da clausula 5ª, o requerente não é possuidor de qualquer autorização constante de documento escrito, que o autorize a realizar as obras que alega que realizou conforme consta da petição inicial, logo não tinha qualquer autorização para realizar, o que diz que realizou, mas cujo montante despendido nem sequer á apurado.

H) Assim como consta, também, da clausula 5ª do contrato de comodato, no seu número 2, que mesmo que venham a existir obras ou benfeitorias, as mesmas ficam a fazer parte do imóvel, sem direito a indemnização ou retenção.

I)Atento o disposto no art. 391 n. 1 do código de Processo Civil, são requisitos do procedimento cautelar de arresto: a existência de um direito de crédito e o justo receio da perda de garantia patrimonial.

J) Porém, há que ter em consideração quanto ao direito de crédito, o mesmo não se limita à prestação pecuniária, mas incluiu, também, outro tipo de prestação de facto positivo ou negativo, dada a possibilidade de, em execução, de ser convertida em obrigação de pagamento de quantia certa (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, II, 3ª edição. Pág.. 17; Lebre de Freitas, Código de Processo Civil anotado, 2º, 2001, pág.. 119, e Antonio Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, 2ª edição, 2003, pág. 183).

L) No entanto, atento o teor da clausula 5ª, do referido contrato, o requerente não é possuidor de nenhum direito de crédito sobre o requerido, aqui recorrente, já que não era possuidor da pertinente autorização para a realização de quaisquer obras ou benfeitorias e mesmo as que eventualmente realizou, ficam a fazer parte do imóvel, sem direito a indemnização ou retenção.

M) Mais acresce que consta do facto sumariamente provado em f), entre outros, que o montante de obras nem sequer chegou a ser apurado. E em tal situação para que a providencia seja decretada, o eventual crédito, tem que ser actual, não pode ser considerada a situação de probabilidade da existência do crédito, ou um crédito futuro ou hipotético.

N) Deste modo, verifica-se que o requerente não tem nenhum direito de crédito sobre o requerido, aqui recorrente, já que não se mostra devidamente alegado o direito de crédito exigido para o decretamento da providencia cautelar.

O) E perante a omissão do direito de crédito, o pedido de arresto de bens deveria ser julgado improcedente.

P) O Tribunal “a quo” violou o disposto nos arts. 619 n. 1 do código Civil e 391, n.1 do código Processo Civil.”


*

O requerente contra-alegou sustentando, em suma que, tal como consta da decisão recorrida, o seu crédito resulta da realização de obras nos imóveis que lhe foram emprestados pelo requerido/recorrente, obras essas feitas com a intenção de vir a residir num deles, o que fez com o conhecimento e colaboração do requerido que age em abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium. Por força desta conduta abusiva entende o recorrido que tem um direito de crédito sobre o recorrente consistente na indemnização dos danos decorrentes da realização das obras e da impossibilidade de uso do prédio benfeitorizado.

III – Questões a resolver:

Em face das conclusões do recorrente nas suas alegações – que fixam o objeto do recurso nos termos do previsto nos artigos 635º, números 4 e 5 e 639º, números 1 e 2, do Código de Processo Civil -, é apenas uma a questão a resolver:

Se o recorrido é titular de direito de crédito sobre o recorrente que possa ser fundamento do decretado arresto.

IV – Fundamentação:

Foram os seguintes os factos selecionados pelo tribunal recorrido como relevantes para a decisão da causa, que o recorrente não impugna.

“a) Requerente e requerido apuseram as suas assinaturas no escrito junto como documento n.º 2 com a petição inicial (fls. 19, verso), datado de 13/10/2022, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, do qual consta nomeadamente que o requerido cede gratuitamente ao requerente um prédio rústico sito da União das Freguesias ..., ..., ... e ..., inscrito na matriz sob o art. ..., um prédio urbano sito da União das Freguesias ..., ..., ... e ..., inscrito na matriz sob o art. ..., e um prédio urbano sito da União das Freguesias ..., ..., ... e ..., inscrito na matriz sob o art. ..., com início em 13/10/2022 e término em 13/10/2042; (art. 5.º da petição inicial)

b) Em sequência, o requerido passou a ocupar o local com animais, cães, um pónei e uma égua; (art. 8.º da petição inicial).

c) O requerente, CC e DD apuseram as suas assinaturas no escrito junto como documento n.º 16 com a petição inicial, datado de 14/02/2025 (fls. 41, verso), cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, do qual consta nomeadamente que o requerente promete vender aos restantes, pelo preço de €299.500,00, um prédio urbano, composto de casa de habitação de cave, rés-do-chão e andar, com quintal, sito em ..., freguesia ..., concelho de Vila Nova de Famalicão, descrito na respectiva Conservatória do Registo Predial sob o n.º ..., devendo a escritura de compra e venda ser realizada no prazo máximo de 30 dias; (art. 19.º da petição inicial)

d) Em sequência, o requerente entregou já o prédio referido em c), onde habitava, aos demais signatários identificados em c), e passou a habitar uma casa em Santo Tirso, mediante pagamento de renda; (art. 21.º da petição inicial)

e) O requerente actuou nos termos descritos em c) e d) com o apoio e incentivo do requerido, com o objectivo de financiar obras num dos prédios referidos em a), e ir para aí habitar, junto à casa do requerido; (arts. 15.º, 16.º, 18.º, e 25.º da petição inicial)

f) Após o que fez realizar obras de reconstrução de um de tais prédios, que se encontrava em ruínas, apenas com as paredes e sem telhado, que o transformaram numa casa habitável, com três quartos, cozinha e sala, tendo o requerente despendido montante não apurado em tal obra, o que fez sempre com assentimento do requerido que inclusivamente auxiliou nos trabalhos da obra; (arts. 24.º, 27.º, 28.º, 29.º, e 30.º da petição inicial)

g) Cerca do meio do mês de Junho de 2025, o requerido abeirou-se da obra, apodou o requerente e o trabalhador que o acompanhava de “filhos da puta” e disse-lhes para saírem do local, ante o que o requerente não voltou ao edifício, comparecendo no local apenas para alimentar os animais, ocasião em que o requerido voltou a dizer ao requerente e à sua mulher para abandonar o local; (arts. 45.º, 47.º, 53.º, 54.º, 56.º, 59.º, e 60.º da petição inicial).

h) O requerido anunciou via internet a intenção de vender os imóveis referidos em a), com indicação de preço. (arts. 46.º, 71.º, e 91.º da petição inicial).”


*

A censura que o recorrente dirige à decisão que decretou o arresto assenta apenas na afirmação de que não está demonstrada a existência de qualquer crédito cujo pagamento deva ser acautelado em face do risco de perda da garantia patrimonial do credor, crédito esse que, afirma o recorrente, nem foi possível liquidar.

Apenas pretende discutir, portanto, um dos requisitos de que depende o decretamento do procedimento cautelar de arresto: a existência de um crédito do requerente sobre o requerido, como decorre do artigo 392.º, número 1 do Código de Processo Civil.

Começa o recorrente por afirmar que o Tribunal a quo não teve em conta o teor da cláusula quinta do contrato de comodato que deu como provado e cujo teor deu por reproduzido na alínea a) dos factos em que assenta a decisão e que essa cláusula é impeditiva de qualquer direito de indemnização do requerente/recorrido.

Vejamos se lhe assiste razão.

Está assente que entre o requerente (comodatário) e o requerido (comodante) foi celebrado por escrito um contrato pelo qual este cedeu àquele, gratuitamente e até 13 de outubro de 2042, o uso de três imóveis de que é proprietário. Celebraram, assim, um contrato de comodato como previsto no artigo 1129.º do Código Civil.

Da cláusula quinta desse contrato[1] resulta, de facto, que não era permitido ao comodatário proceder a quaisquer obras ou benfeitorias sem autorização expressa do comodante e que, caso as realizasse, as mesmas passariam a fazer parte do imóvel sem que o benfeitorizante tivesse direito a indemnização ou retenção.

Ficou, contudo, provado que com o apoio e incentivo do requerido o requerente fez obras de reconstrução de um dos imóveis para nele poder vir a habitar. A construção nele existente consistia numas ruínas, umas meras paredes sem telhado, e as obras destinaram-se a transformá-las numa casa habitável com três quartos, cozinha e sala.

Ou seja, o recorrido fez obras que consistem em benfeitorias, nos termos do artigo 216º, número 1 do Código Civil, destinadas a melhorar o prédio.

As benfeitorias podem ser necessárias, úteis ou voluptuárias, como decorre do artigo 216º, números 2 e 3 do Código Civil e, no caso, uma vez que não se alegou nem provou que as obras feitas eram indispensáveis à conservação do prédio (o que está arredado desde logo por se tratar já de uma ruína), é manifesto concluir que as mesmas lhe aumentam necessariamente o valor já que a transformam em casa habitável. Tratam-se assim de benfeitorias úteis, de acordo com a respetiva definição legal.

Nos termos do artigo 1138.º, número 1 do Código Civil o comodatário é equiparado ao possuidor de má-fé quanto a benfeitorias.

Por sua vez, o artigo 1273.º do Código Civil prevê que o possuidor de má-fé pode levantar as benfeitorias úteis realizadas na coisa desde que o possa fazer sem detrimento dela e, caso contrário, o titular do direito (neste caso o comodante/proprietário) deve satisfazer ao comodatário o valor delas, a calcular de acordo com as regras do enriquecimento sem causa.

As obras feitas estão sumariamente descritas na alínea f) dos factos provados como consistindo na reconstrução de uma ruína descrita como umas meras paredes sem telhado, que passará a casa habitável, com três quartos, cozinha e sala. Pelo que é de concluir que se tratam de obras que não podem, pela sua natureza e pelo menos na sua maioria, ser levantadas sem detrimento da coisa benfeitorizada, tendo o comodatário direito a ser indemnizado pelas mesmas nos termos do artigo 1273.º número 2 do Código Civil, que remete para as regras do enriquecimento sem causa. Assim, de acordo com estes preceitos teria o requerente direito a ser indemnizado.

Sucede que as partes estipularam expressamente no contrato de comodato que o comodatário não podia realizar quaisquer obras e que, caso o fizesse, não teria direito a qualquer indemnização pelas mesmas. Tal cláusula é admissível e obriga, à partida, ambas as partes nos termos do disposto nos artigos 405.º, número 1 e 406.º, número 1 do Código Civil.

Todavia, o Tribunal a quo concluiu que o requerente da providência realizou benfeitorias na sequência do apoio e incentivo do requerido a que vendesse a sua casa de habitação para poder pagá-las, após o que poderia passar a residir no prédio benfeitorizado. Ou seja, a decisão recorrida não se estribou na mera realização de benfeitorias cujo ressarcimento era afastado pelo contrato, tal como aliás o era a possibilidade da sua realização, mas no comportamento prévio requerido que, depois, foi contrariado pela exigência ao comodatário/benfeitorizante do abandono do imóvel em causa.

Caso o comodatário não tivesse confiado nos anteriores comportamentos do comodante não teria com grande probabilidade e em face do clausulado do contrato, feito as obras em curso.

Provou-se, de facto, que todas as obras foram feitas com o assentimento do requerido que inclusivamente auxiliou nos trabalhos e incentivou o requerente a vender a sua habitação para financiar tais obras. Depois, estando já a referida habitação vendida e as obras em curso, em pelo menos duas ocasiões, ordenou que o requerente abandonasse o imóvel dado em comodato, insultando-o.

Com base nestes comportamentos do requerido o Tribunal a quo entendeu que este agiu em abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium¸ pois criou no requerente a confiança de que poderia vir a habitar o imóvel benfeitorizado, o que o levou a vender a sua casa e a realizar obras para passar a habitar num dos imóveis dado em comodato.

Ora, o apoio e incentivo do requerido à venda da sua casa e à realização de obras pode e deve desde logo ser interpretado como declaração expressa do comodante de consentimento à sua realização pelo comodatário, em sentido contrário ao estipulado na primeira parte da cláusula 5ª do contrato de comodato. É permitido às partes alterar o conteúdo do contrato celebrado, nos termos da liberdade contratual reconhecida legalmente no artigo 405.º do Código Civil. A lei não obriga a que o contrato de comodato seja sujeito à forma escrita, tratando-se de negócio real quoad constitutionem (concluindo-se o mesmo pela entrega da coisa), nos termos do artigo 1129.º do Código Civil. Assim, nos termos do artigo 222.º do Código Civil é válida a posterior estipulação do comodante, ainda que verbal, de que o comodatário podia realizar obras num dos imóveis objeto do contrato de comodato, passando assim as obras feitas a ser autorizadas expressamente pelo comodante, apesar de tal autorização não ter revestido a forma escrita prevista no contrato.

Autorizadas essas obras pelo comodante com vista a que o imóvel pudesse ser habitado pelo comodatário e tendo em conta que o requerido incentivou à sua realização e auxiliou os respetivos trabalhos, deve concluir-se, como no despacho recorrido, que com isso criou no requerente/comodatário, a confiança de que poderia ali vir a habitar usufruindo as obras feitas, tendo este feito um investimento em função dessa confiança.

O abuso do direito, enquanto exceção perentória impeditiva do exercício de um direito, deve ser usado com a parcimónia que a redação do artigo 334º do Código Civil exige. Ali se estipula que para que se considere abusivo o exercício de um direito o mesmo deve exceder “manifestamente” os limites “impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico desse direito”. Não é, assim, qualquer comportamento que se revele desproporcional ou excessivo em face dos interesses em confronto que justifica o recurso a tal norma, de caráter excecional. Têm que ser manifestos essa desproporção ou esse excesso. É o que sucede no caso dos autos.

A provada atitude do requerido/comodante de impedir ao requerente/comodatário o uso do bem - que lhe cedeu gratuitamente até outubro de 2042 - e de lhe ordenar o abandono da obra já em execução - bem como a um trabalhador que o acompanhava e, noutra ocasião, também à sua companheira -, consiste em facto contrário aos provados incentivo e auxílio à realização dessa obra e ao consentimento dado à mesma.

Além de que tal comportamento se traduz em incumprimento do próprio contrato de comodato que, tendo sido celebrado por prazo certo, não permitia ao comodante exigir a entrega da coisa antes da data prevista, nos termos do artigo 1137.º número 1 do Código Civil.

Pelo que é de concluir que a invocação do direito de não indemnizar o benfeitorizante nos termos contratuais é ilegítima em face do anterior comportamento do requerido e não lhe pode ser permitida, à luz do disposto no artigo 334.º do Código Civil.

Assim não tinha a decisão recorrida que extrair do clausulado contratual o efeito ora defendido pelo recorrente.

Em conclusão:

- o requerido não tinha direito a exigir ao comodatário/requerente o abandono da coisa no momento em que o fez e ao impedir o seu uso depois do investimento ali feito em obras causou dano consistente na perda quer do uso da coisa comodatada quer do montante despendido em benfeitorias úteis nela realizadas;

- do comportamento do comodante ao autorizar e incentivar obras com vista à habitação do comodatário, que depois impediu, resulta ainda para este a impossibilidade de vir a habitar a casa que estava em vias de reconstruir assim beneficiando do investimento feito, como legitimamente contava poder fazer.

Do que decorre a ilicitude do comportamento do requerido e o dano daí decorrente para o requerente.

Como também ficou provado, prepara-se o requerido/comodante para vender os imóveis objeto do contrato de comodato e com essa venda poderá o comodatário perder o direito de uso da coisa, bem como o valor despendido com as obras já realizadas e materiais adquiridos, já que o contrato de comodato apenas tem eficácia entre as partes, nos termos do artigo 406.º, do Código Civil, não podendo ser oposto a terceiros, nomeadamente a futuros compradores do imóvel.

É do anúncio de venda que decorre, segundo a decisão sob censura, o fundado receio do requerente de perder a possibilidade de não vir a ser indemnizado em face da perda da garantia patrimonial consistente no património do devedor. Acompanha-se também esta afirmação a que se soma a conclusão de que, do mesmo passo (por via da venda) se arrisca o requerente a perder também o direito ao uso do imóvel dado em comodato.

Pelo que há que concluir que está suficientemente demonstrada a probabilidade de ao requerente vir a ser reconhecida a existência do crédito indemnizatório que invoca e que decorre do disposto no artigo 1273.º, número 2 do Código Civil, em face da não aplicação do disposto na cláusula 5ª, segundo parágrafo do contrato, por ser ilegítimo o exercício do direito daí decorrente para o comodante.

Ao contrário do que sustenta o recorrente, o facto de não se ter apurado o montante despendido nas obras efetuadas pelo requerente também não impede a procedência da providência de arresto decretada.

O direito de crédito do requerente tem natureza indemnizatória e decorre, como acima se concluiu, dos danos que o seu comportamento pode vir a causar ao recorrido, decorrentes do não uso do imóvel dado em comodato e do risco de perda do valor despendido em benfeitorias.

Não ficaram provados os montantes alegados pelo requerente como correspondentes ao valor de uso do imóvel, ao valor despendido com benfeitorias ou ao aumento de valor do imóvel que por via delas ocorreu.

Daí decorre que tal crédito é ilíquido, mas não que inexiste.

Ora o legislador não condicionou o decretamento do arresto à liquidação do crédito do requerente, crédito esse que pode até nem ser ainda exigível, antes usando a seguinte expressão: “o requerente do arresto deduz os factos que tornam provável a existência do direito.” Acompanhamos Abrantes Geraldes[2] quando afirma que da letra da lei não resulta que o crédito do requerente do arresto tenha que ser exigível ou líquido no momento de decretamento da providência. O referido autor afirma que a existência do direito de crédito exigida pelo legislador não depende da sua liquidez e que “(…) não seria legítimo apor à medida cautelar de arresto uma tal condição, na medida em que em determinadas situações, precisamente aquelas em que a urgência na adoção de medidas cautelares é mais flagrante (…) a iliquidez das obrigações constitui a regra. Nestas situações, a sentença condenatória não é constitutiva do direito, mas simplesmente declarativa, pressupondo a sua existência na esfera do autor. Tão merecedor de tutela cautelar é o crédito que já se mostra liquidado como aquele que, pelas mais variadas razões, ainda não foi quantificado”.

A estes argumentos acrescentamos nós que até a natureza urgente do procedimento cautelar (cfr. artigo 363.º, número 1 do Código de Processo Civil) se afigura, em situações como a dos autos, um óbice a que nele se apurem valores indemnizatórios decorrentes de cálculos que só podem ser sustentados em factos de difícil e demorada prova, como sejam o valor de obras realizadas, o valor de um imóvel antes e depois dessas obras e o valor locativo desse mesmo imóvel. A prova desses factos está, por regra, relacionada com matérias subtraídas ao conhecimento do juiz, pelo que deve ser feita por via pericial, nos termos do artigo 388.º do Código Civil. O que não se compadece com a urgente necessidade de acautelar o direito do requerente do arresto.

Pelo que também o argumento do recorrente assente na iliquidez do crédito do requerente improcede, sendo de confirmar a sentença recorrida.


*

Tendo o recorrente decaído na sua pretensão, sobre ele impende a obrigação de pagamento das custas do recurso, nos termos do artigo 527.º do Código de Processo Civil.

V – Decisão:

Julga-se improcedente a apelação, confirmando-se o despacho final recorrido.

Custas pelo recorrente.

Porto, 13 de outubro de 2025.
Ana Olívia Loureiro
Carlos Gil
Manuel Domingos Fernandes
_____________
[1] Que está dada por reproduzida na alínea a) dos factos provados e tem a seguinte redação: “1. Não é permitido ao 2º Outorgante proceder quaisquer obras e ou benfeitorias sem autorização expressa do primeiro outorgante, dada por documento escrito. 2. Caso venha a existir, benfeitorias realizadas pelo 2º Outorgante, essas ficarão a fazer parte do bem imóvel, sem direito a indemnização ou retenção”.
[2] Temas da Reforma do Processo Civil, Almedina, IV volume, Procedimentos Cautelares Especificados, páginas 172 e 173.