Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP00040702 | ||
Relator: | ISABEL PAIS MARTINS | ||
Descritores: | CHEQUE SEM PROVISÃO CHEQUE ANTE-DATADO DESCRIMINALIZAÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RP200710310743684 | ||
Data do Acordão: | 10/31/2007 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REC PENAL. | ||
Decisão: | PROVIDO. | ||
Indicações Eventuais: | LIVRO 285 - FLS 264. | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - A suspensão do processo decorrente da declaração de contumácia não é obstáculo à apreciação de questão susceptível de obstar ao conhecimento do mérito da causa. II - Apesar de na acusação por crime de emissão de cheque sem provisão, deduzida antes da entrada em vigor do DL nº 316/97, não constar a data da entrega do cheque ao tomador, esse elemento pode e deve ser investigado na audiência. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL (2.ª) DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO I 1. O Ministério Público, em 22/01/1997, deduziu acusação, requerendo o julgamento, em processo comum e perante tribunal singular, de B………., pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pelo artigo 11.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro. 2. C………., S. A., com base nos factos objecto de acusação, deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido. 3. Distribuído o processo, para julgamento, com o n.º ../97.6TBVLC, do ..º juízo de Vale de Cambra, foi, em 12/06/2007, proferido despacho a designar dia para a audiência. 4. Por despacho de 21/01/1998, foi o arguido declarado contumaz. 5. A partir de então, foram os autos aguardando a apresentação ou detenção do arguido, até que, por despacho de 14/02/2007, o Exm.º Juiz mandou que fosse aberta vista ao Ministério Público a fim de se pronunciar sobre a eventual nulidade da acusação, face às alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 316/97, de 19 de Novembro. 6. O Ministério Público sustentou o entendimento de que a acusação não se encontra ferida de nulidade. 7. Na sequência, em 07/03/2007, foi proferido o seguinte despacho: «1- Em 22.01.1997, o Ministério Público deduziu acusação contra B………., arguido identificado nos autos, imputando-lhe a prática de um crime de emissão de cheque sem provisão previsto e punido pelo art. 11º, nº 1, al. a) do DL nº 454/91, de 28.12, com referência ao art. 217º, nº 1 do Cód. Penal aprovado pelo DL nº 48/95, de 15.03 (fls. 16 e segs.). «C………., S.A, formulou pedido de indemnização civil contra o arguido, o qual foi recebido pela secretaria em 30.01.1997 (fls. 21). «Em 12.06.1997, foi proferido o despacho de fls. 32, sendo a acusação e o pedido cível recebidos, e os autos remetidos para a fase do julgamento. «Em 21.01.1998, o arguido foi declarado contumaz, situação que se mantém até ao momento (fls. 46). «Entretanto foi publicado o DL nº 316/97, de 19.11, o qual procedeu à alteração do regime jurídico do cheque sem provisão e entrou em vigor em 01.01.1998. «Cumpre retirar as devidas consequências legais desta alteração legislativa, posterior, quer à dedução da acusação pública, quer ao despacho proferido nos termos do art. 311º do Cód. Proc. Penal. «2- Com a publicação do diploma legal por último referido operou-se a descriminalização de determinadas condutas anteriormente consideradas ilícitas nos termos do art. 11º do DL nº 454/91, de 28.12. «Com efeito, com a entrada em vigor do DL nº 316/97, de 19.11, excluíram-se as condutas relacionadas com uma data de entrega do cheque diferente daquela que nele constava, as quais deixaram de considerar-se penalmente relevantes e merecedoras desta específica tutela[1]. «Deste modo, passou a ser indispensável investigar-se e apurar-se qual a data da entrega do cheque, fazendo-se constar da acusação tal elemento, sem o qual não é perspectivável o sancionamento do arguido do ponto de vista da censura ético-juridica que a condenação penal representa, e por isso mesmo o sucesso da acusação. «A circunstância de a acusação ter sido recebida, tendo já sido proferido o despacho a que se refere o art. 311º do Cód. Proc. Penal, não inviabiliza que se conheça desta questão nesta altura. «Acresce que é nosso entendimento que os princípios da estabilidade da instância e da preclusão têm por limites, seguramente, as questões suscitadas até então – até à prolacção (sic) do dito despacho. «Face ao sucedido nos autos, a descriminalização operada pelo DL nº 316/97, de 19.11, surge como uma questão superveniente relativamente ao despacho em questão, sobre a qual não se debruçou o juiz que recebeu a acusação[2]. «E, face ao princípio do tratamento mais favorável, impõe-se o conhecimento de tal questão superveniente. «Na realidade, por um lado, a conduta descrita na acusação não constitui mais qualquer delito penalmente relevante e censurável, face às alterações introduzidas nos elementos típicos do crime de emissão de cheque sem provisão pelo DL nº 316/97, de 19.11. «Por outro lado, não foi esta questão apreciada até ao momento, designadamente, aquando do recebimento da acusação – nem o poderia ter sido, face à data da alteração legislativa. «Finalmente, a acusação deduzida nos autos, a ser levada a julgamento, não levaria à condenação do arguido em virtude de à mesma faltar um elemento constitutivo do crime, representando o seu acrescentamento uma alteração substancial dos factos, podendo e devendo ser rejeitada em face do que se dispõe nos arts. 283º, nº 3, al. b) e 311º, nº 1, nº 2, al. a) e nº 3, als. b) e d) do Cód. Proc. Penal. «3- Isto posto, e debruçando-nos mais precisamente sobre a acusação dos presentes autos, constata-se que na mesma não vem indicada a data da entrega do cheque, elemento este que é, como dissemos, indispensável à punição da conduta. «Com efeito, na acusação de fls. 18 diz-se o seguinte: “O arguido, e em data que não foi possível determinar, preencheu, assinou e entregou à firma queixosa (…) os cheques nº (…) nos quais apôs as datas de 01.05.1996 e 02.06.1996 como suas datas de emissão”. «Diz-se ainda que os cheques foram entregues à firma queixosa para pagamento do preço de materiais fornecidos e entregues, que foi apresentado a pagamento no prazo legal, e que o arguido agiu livre e consciente, bem sabendo que não dispunha de fundos na conta bancária em causa e que a sua conduta era punível. «Em parte alguma da acusação se fez constar a data da entrega dos cheques em causa. «Ora, “dizer-se que «para pagamento do valor estabelecido no acordo, o arguido preencheu o cheque (…) e entregou-o à ofendida, apondo-lhe a data de 17.06.2002» não é o mesmo que dizer que o arguido entregou esse cheque no dia 17.06.2002. A data da entrega do título não tem necessariamente que corresponder à data nele aposta e a experiência comum revela que muitas vezes e pelas mais variadas razões, tal coincidência não se verifica”[3]. «E, “A expressão «com data de … preencheu, assinou e entregou…» não contém a data da entrega do cheque”[4]. «Assim será, por maioria de razão, no caso dos autos em que se refere que não foi possível apurar a data de entrega dos cheques. «4- Em virtude da descriminalização operada pelo DL nº 316/97, de 19.11, que passou a exigir a menção da data da entrega do cheque, e faltando à acusação dos autos um elemento típico do crime de cheque sem provisão, tal como hoje este é configurado, impõe-se declarar tal descriminalização e ordenar o arquivamento do procedimento criminal. «Na verdade, “no caso de descriminalização, pode e deve o juiz declarar extinto o procedimento criminal (…) mesmo depois de recebida a acusação”[5]. «Ainda que não se entendesse do modo ora transcrito, sempre teríamos, supervenientemente, de conhecer de tal problemática, uma vez que, como supra fizemos notar, trata-se de uma questão posterior ao recebimento da acusação[6]. «5- Por todo o exposto, e uma vez que a conduta do arguido, tal como vem descrita na acusação, se encontra descriminalizada, declara-se extinto o procedimento criminal, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 11º, nº 3 do DL nº 454/91, de 28.12, na redacção introduzida pelo DL nº 316/97, de 19.11. «Mais se declara cessada a situação de contumácia. «Sem custas. «* «Notifique, sendo a firma queixosa nos termos e para os efeitos do preceituado no art. 3º, nº 1, 3 e 4 do DL nº 316/97, de 19.11. «(...)» 8. Inconformado, o Ministério Público veio interpor recurso desse despacho, tendo rematado a motivação apresentada com a formulação das seguintes conclusões: «1º Nos presentes autos o que se discute é apenas uma questão de direito: proferido despacho de pronúncia, ou equivalente, que designe data para realização de julgamento por crime de emissão de cheque sem provisão em data anterior à entrada em vigor do Decreto Lei nº 316/97, de 19 de Novembro, e não constando claramente da acusação que se trata de um cheque post-datado, pode ou não ser conhecida a questão da eventual descriminalização da conduta imputada ao arguido sem a averiguação de tal facto em sede de audiência de julgamento? «2º Enquanto a M.ma Juiz “a quo” entende que sim, já nós, não obstante todo o respeito que tal posição nos merece, entendemos que em face do teor da acusação deduzida, e constante dos autos, estes deverão prosseguir a sua normal tramitação para a fase de julgamento, única, aliás, onde se poderá averiguar se estamos, ou não, perante um cheque pré-datado, e daí a razão da interposição do presente recurso; «3º No dia 1 de Janeiro de 1998 entrou em vigor o novo regime jurídico-penal «do cheque sem provisão, aprovado pelo Decreto Lei nº 316/97, de 19 de Novembro; «4º Por força das alterações introduzidas por esse diploma legal, e entre outros, o art. 11º do Decreto Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, e na parte que nos interessa, passou a ter a seguinte redacção: «3- O disposto no nº 1 não é aplicável quando o cheque seja emitido com data posterior à da sua entrega ao tomador; «5º Em face do que preceitua agora o nº 3 do art. 11º, do Regime Jurídico Penal do Cheque, os cheques emitidos com data posterior à da sua entrega ao tomador deixaram de ter qualquer tutela penal; «6º Está-se perante uma clara descriminalização dos denominados..."cheques pós-datados e todos os que não se destinem ao pagamento imediato de uma obrigação subjacente." (Preâmbulo cit.); «7º Tendo presente este regime jurídico-penal, e passando a analisar a acusação deduzida nos autos, cumpre verificar se dela constam, ou não, todos os elementos constitutivos do crime de emissão de cheque sem provisão; «8º Da acusação, e relativamente a esta matéria, consta o seguinte: “O arguido e em data que não foi possível precisar, preencheu, assinou e entregou à firma…, os cheques nº ….”. «Ou seja, dela não resulta, expressa e claramente, que o cheque foi emitido e entregue na mesma data dele constante… mas também dela não resulta o contrário, como concluiu a M.ma Juiz recorrida; «9º Há que apurar se houve, ou não, coincidência nesses dois momentos – a emissão e a entrega; «10º Ora, esse apuramento, em nosso modesto entender, só pode e deve ser efectuado na fase de julgamento que se vai seguir; «11º Não pode, para se conhecer dessa questão, lançar mão dos elementos constantes do inquérito, assim como não pode lançar mão de uma simples declaração do ofendido ou do arguido nesse sentido; «12º Será, pois, na fase de julgamento que se terá de produzir toda a prova indicada na acusação, e da qual resultará, ou não, se o momento da emissão do cheque coincidiu com o momento da sua entrega; «13º Aliás, não podia ser de outra forma; «14º Se estivéssemos na fase de recebimento da acusação, poderia entender-se que, por omissão do elemento da data da efectiva entrega do cheque ao tomador, aquela teria de ser rejeitada, por manifestamente infundada; «15º Mas ultrapassada essa fase o que se verifica é que, com o trânsito em julgado da decisão que acolheu a acusação e designou dia para julgamento, o processo transita obrigatoriamente para a fase de julgamento, e só com a realização da audiência, e a consequente prolação de sentença, podem apreciar-se os factos e dar-lhes uma diferente qualificação jurídica; «16º E não se diga, como pretende fazer crer a M.ma Juiz recorrida, que a levar-se o arguido a julgamento estaríamos a acrescentar à acusação um elemento constitutivo que dela não consta, o que representaria uma alteração substancial dos factos; «17º É que esse elemento consta da acusação, tem é que ser clarificado, definido, esclarecido; «18º Por todo o exposto, e não obstante todo o respeito por opinião contrária, entendemos que a acusação deduzida nos autos não se encontra ferida de qualquer nulidade, pelo que deverão os mesmos prosseguir [p]ara a fase de julgamento.» 9. Admitido o recurso, e na sequência da notificação da sua admissão, não foi apresentada resposta. 10. Nesta instância, na oportunidade conferida pelo artigo 416.º do Código de Processo Penal[7], o Exm.º Procurador-geral-adjunto pronunciou-se pela confirmação do despacho recorrido. 11. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, nada chegou ao processo. 12. Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, realizou-se a conferência, cumprindo decidir. II 1. A primeira questão que abordaremos prende-se com a possibilidade de, na vigência da declaração de contumácia, serem, oficiosamente ou a requerimento, apreciadas questões susceptíveis de obstarem ao conhecimento do mérito da causa acerca das quais não tenha ainda havido decisão e que possam desde logo ser decididas. Já que, da resposta a que ela se der, dependerá a apreciação da questão que constitui objecto do recurso. Ou seja, essa questão apresenta-se como questão prévia ao conhecimento do objecto do recurso, podendo conformar uma questão verdadeiramente prejudicial, se decidirmos negar essa possibilidade. Mas não é esse o nosso entendimento. Na fase do julgamento, o CPP prevê os momentos processuais em que devem ser apreciadas as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento do mérito da causa. No despacho a que se refere o artigo 311.º do CPP e no início da audiência, em relação àquelas sobre que ainda não tenha havido decisão e que possam logo ser apreciadas. Com efeito, nos termos do artigo 338.º, n.º 1, do CPP, «o tribunal conhece e decide das nulidades e de quaisquer outras questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa acerca das quais não tenha ainda havido decisão e que possa desde logo apreciar». Estas normas têm uma função meramente ordenadora do processo, não conformando um impedimento à apreciação de questões susceptíveis de obstarem ao conhecimento do mérito da causa, surgidas após o despacho a que se refere o artigo 311.º do CPP. Ou seja, as questões prévias surgidas após esse despacho e que, portanto, nele não foram apreciadas, podem ser conhecidas e decididas imediatamente, não tendo o processo que aguardar o início da audiência, para, só nesse momento, serem apreciadas. Como ensinou o Professor Cavaleiro de Ferreira[8], «as considerações de sistematização formal do processo não se sobrepõem à conveniência da imediata intervenção judicial para regularização do próprio processo». «É sempre oportuno conhecer do mérito das questões prévias, e importa, em princípio, decidi-las logo que levantadas.» Também da norma do n.º 3 do artigo 335.º do CPP, não se extrai um impedimento legal a que, assim, se proceda. Dispõe o n.º 3 do artigo 335.º do CPP que «a declaração de contumácia ... implica a suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou detenção do arguido, sem prejuízo da realização de actos urgentes nos termos do artigo 320.º». A suspensão dos termos ulteriores do processo, por efeito da declaração de contumácia, significa isso mesmo; que o processo não pode prosseguir para a fase de julgamento à «revelia» do arguido (impede a marcha normal do processo) mas não implica que o juiz esteja impedido de ter intervenção no processo para, oficiosamente ou a requerimento, apreciar questões que possa desde logo decidir e que obstem ao conhecimento do mérito da causa, tornando, portanto, absolutamente inútil a manutenção de um processo suspenso e a subsistência de uma declaração de contumácia, com graves efeitos na esfera pessoal e jurídica do contumaz. Surgindo, num processo que segue a sua normal tramitação ou num processo que tem a sua normal tramitação suspensa, por efeito da declaração de contumácia, uma questão prévia susceptível de obstar ao conhecimento do mérito da causa, acerca da qual não tenha ainda havido decisão e que possa desde logo ser apreciada, deve ela ser imediatamente conhecida e decidida. Como questões supervenientes que devem ser imediatamente apreciadas podem apontar-se, a título meramente exemplificativo, as causas de extinção da responsabilidade criminal – morte do agente, amnistia da infracção ou descriminalização dos factos. 2. Não há, portanto, nada que censurar à intervenção judicial oficiosa para apreciação dos factos objecto da acusação, na perspectiva do regime legal que decorre do Decreto-Lei n.º 326/97, de 19 de Novembro. Com efeito, esse diploma introduziu profundas alterações ao regime jurídico penal do cheque sem provisão, constante do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, relevando, especialmente, aquela que é convocada pelo recurso - a expressa exclusão do âmbito da tutela penal dos cheques emitidos com data posterior à da sua entrega ao tomador. Nos termos do n.º 3 do artigo 11.º, o disposto no n.º 1 do mesmo artigo não é aplicável quando o cheque seja emitido com data posterior à da sua entrega, estabelecendo-se, assim, a delimitação negativa dos factos incriminados. «Dada a exigência típica negativa, constante do n.º 3 do artigo 11.º, de que a data da emissão não seja posterior à data da entrega ao tomador, resulta que ficaram retroactivamente despenalizadas todas as emissões e endossos de cheque sem provisão (ou equivalente) cuja data inserida no cheque (data da emissão) tenha sido posterior à data da entrega do cheque, pelo sacador ao tomador.»[9] 3. Se é inquestionável que, após a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 316/97, os factos relativos à exigência típica negativa devem constar da acusação[10], pois o Ministério Público só deve deduzir acusação por factos que constituam crime, a questão que se coloca é a de saber quais as consequências jurídicas impostas pela falta desse elemento nas acusações deduzidas, antes desse momento. Na verdade, era muito frequente que o Ministério Público, antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 316/97, não fizesse constar das acusações, por crime de emissão de cheque sem provisão, a data da entrega do cheque ao tomador - elemento que, as mais das vezes, não era sequer investigado -, dada a sua irrelevância. Continuamos a entender que a falta desse elemento nas acusações deduzidas antes da entrada em vigor do Decreto-lei n.º 316/97, não implica a imediata descriminalização dos factos. Por se tratar de um elemento negativo do tipo, pode e deve ser averiguado em audiência. A partir do momento em que a acusação foi recebida, ter-se-á de proceder a julgamento pelos factos tipicamente positivos, que já constam da acusação, e averiguar se se verifica o elemento típico negativo[11]. 4. O processo só não deverá prosseguir para julgamento quando possa ser imediatamente apreciada e conhecida a extinção do procedimento criminal, por descriminalização da conduta, na sequência da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 316/97. E isso só ocorrerá quando dos termos da própria acusação resulte que o cheque foi emitido com data posterior ao da sua entrega. Quer o facto conste directamente na acusação, quer o facto resulte inequivocamente daqueles que foram inseridos na acusação. E o que se nos afigura é que dos termos em que foi deduzida a acusação, neste processo, não pode subsistir dúvida de que a conduta se encontra descriminalizada. O Ministério Público, na acusação, imputou ao arguido a prática de um único crime de emissão de cheque sem provisão. Assenta essa imputação, nomeadamente, nos seguintes factos: «O arguido, e em data que não foi possível determinar, preencheu, assinou e entregou à firma queixosa “C………., S.A., (...), os cheques n.ºs ……… e ………., ambos sacados sobre a conta bancária n.º ……….., da D………., agência de ………., nos montantes de 57910$00, cada, nos quais apôs as datas de 01/05/96 e 02/06/96, como suas datas de emissão, respectivamente.» Quer dizer, o Ministério Público imputou ao arguido uma única conduta - consubstanciada na emissão de dois cheques -, conformando um único crime. E se, na mesma altura e com a mesma finalidade («para pagamento do preço de artigos em madeira que a queixosa forneceu e entregou ao arguido», como também consta da acusação) emitiu os dois cheques e nestes apôs datas diferentes, com um mês de intervalo, entre elas, é evidente que, pelo menos o cheque em que foi aposta a data de 02/06/96, foi pós-datado. Ora, pelos termos em que foi deduzida a acusação, já não é possível valorizar as acções naturalísticas de emissão de cada um dos cheques por forma a conferir relevância jurídico-penal autónoma a cada uma delas. Tal só se apresentaria fundado se ao arguido tivessem sido imputados dois crimes. Não tendo sido assim, a compreensão unitária da conduta imputada demonstra que, em relação a factos que a constituem (a emissão do cheque datado de 02/06/96) - e que são indissociáveis dos outros -, a data de emissão foi posterior à data da entrega. Como são incindíveis os factos que conformam a conduta que, segundo a acusação, tem relevância jurídico-penal, tem de se afirmar, agora, face ao n.º 3 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 316/97, de 19 de Novembro, que a conduta imputada ao arguido deixou de merecer tutela penal. III Pelos fundamentos expostos, não precisamente coincidentes com os do despacho recorrido, mantemos a decisão de declarar descriminalizada a conduta que constitui o objecto da acusação, com o consequente arquivamento da acção penal. Não há lugar a tributação. Porto, 31 de Outubro de 2007 Isabel Celeste Alves Pais Martins David Pinto Monteiro José João Teixeira Coelho Vieira _________________________________ [1] Não pode olvidar-se que constitui critério de intervenção legislativa e até de interpretação, e por conseguinte, de aplicação, que o direito penal é um direito subsidiário, no sentido de que é chamado a intervir em última instância – é a ultima ratio do direito na sua versão sancionatória. [2] Neste sentido, ainda que indirectamente, pode consultar-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09.01.2002, disponível na Internet, na página www.dgsi.pt. [3] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29.03.2006, disponível na Internet, na página oficial www.dgsi.pt. [4] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13.01.1999, disponível na Internet, na página oficial www.dgsi.pt. No mesmo sentido, pode consultar-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16.12.1998, igualmente disponível no mesmo sítio. [5] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 03.03.1999, disponível na Internet, na página oficial www.dgsi.pt. [6] Neste sentido, ainda que indirectamente, pode consultar-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29.03.2006, disponível na página www.dgsi.pt. [7] Daqui em diante abreviadamente designada pelas iniciais CPP. [8] Curso de Processo Penal, III, Reimpressão da Universidade Católica autorizada pelo Autor, Lisboa, 1981, pp. 69-71. [9] Américo A. Taipa de Carvalho, Crime de Emissão de Cheque Sem Provisão, Coimbra Editora, 1998, p. 45. [10] Até já devem constar da queixa (artigo 11.º-A, n.º 2). [11] Neste sentido, cfr. Germano Marques da Silva, Regime Jurídico-Penal dos Cheques Sem Provisão, Principia, Lisboa, 1997, pp. 132-133. Também Taipa de Carvalho, ob. cit., p. 45, aponta no sentido desta solução, na medida em que não defende a imediata declaração de despenalização no caso de condenações por crime de emissão de cheque sem provisão quando no processo não foi feita a prova (positiva) de que a data da emissão não foi posterior à data da entrega pelo emitente ao tomador. O que defende é que «não tendo sido feita, no processo, a prova (positiva) de que a data da emissão não foi posterior à data da entrega pelo emitente ao tomador, o mínimo, jurídico-penal e jurídico-constitucionalmente, imposto é a urgente reapreciação ou revisão do processo. E, no caso de permanecer a duvida, não há outra coisa a fazer do que aplicar o respectivo princípio de in dubio pro reo.» |