Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
127/08.0BELSB.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL FERREIRA
Descritores: CONTESTAÇÃO
PRINCÍPIO DA PRECLUSÃO
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL DO ESTADO PELO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO LEGISLATIVA
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
COMPETÊNCIA
Nº do Documento: RP20250710127/08.0BELSB.P1
Data do Acordão: 07/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A excepção de exclusão do contrato de seguro da situação de apropriação dolosa de quantias por parte do solicitador de execução tem de ser invocada pela seguradora na contestação, ou pelo menos em articulado superveniente (preenchidos os respectivos pressupostos), sob pena de preclusão, o que significa que, invocando-a em alegações escritas após o julgamento, já tinha precludido esse seu direito, não podendo tal questão ser conhecida pelo tribunal, sob pena de excesso de pronúncia.
II – O tribunal administrativo é competente para apreciar o pedido subsidiário formulado contra o Estado com fundamento na responsabilidade extracontratual do Estado pelo exercício da função legislativa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 127/08.0BELSB.P1

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:


I “A..., S.A.” (actual denominação) intentou acção declarativa, com processo comum, contra AA, “B..., S.A.”, a qual veio a ser incorporada por fusão na “C... – Companhia de Seguros, S.A.”, Estado Português e “D..., S.A.”, no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, pedindo:
1. Caso, na pendência da presente acção, não transite em julgado o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que absolveu a A. do pedido, devem os RR. ser condenados, em solidariedade (quanto ao 2.° Réu, no limite do montante segurado e juros), a reconstituir a situação que existiria antes da prática do acto ilícito, reconstituição essa que consiste no depósito da quantia de €2.224.080,69 à ordem do Tribunal de execução, acrescida de juros calculados desde 9 de Fevereiro de 2007, à média mensal da taxa EONIA deduzida de 0,75%, vencidos e vincendos, os primeiros perfazem, até 31.12.2007, a quantia de € 871.653,65.
2. Caso, na pendência do presente processo, venha a transitar em julgado o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, devem os RR. ser condenados, em solidariedade (quanto ao 2.° Réu, no limite do montante segurado e juros), e em substituição do depósito em conta do Tribunal, a entregar directamente à Autora a quantia de €2.224.080,69, acrescida de juros calculados desde 9 de Fevereiro de 2007, à média mensal da taxa EONIA, deduzida de 0,75%, vencidos e vincendos, os primeiros perfazem, até 31.12.2007 a quantia de € 871.653,65.
3. Relativamente ao 3° Réu, caso não se entenda que o Estado é responsável pelos actos praticados pelo solicitador de execução, deve o Estado ser condenado, subsidiariamente, nos termos previstos nos números anteriores, a título de responsabilidade pelo exercício da função legislativa, conforme previsto pelo artigo 22.° da CRP.
4. Relativamente à 4.° Ré, caso não se entenda que a D... é responsável por acto ilícito praticado, nos termos do artigo 483.° do CC, deve a D... ser condenada, subsidiariamente, a devolver a quantia com que injustificadamente se locupletou, a título de enriquecimento sem causa, acrescida dos juros mencionados supra em 2.
Alegou para tal que o 1º R., agente de execução do 3º R., Estado Português, desempenhando funções de natureza jurídico-pública, no âmbito da execução nº 33829/05.3YYPRT, da 3ª secção do 2º Juízo de Execução do Porto, na qual foi apresentado como título executivo a sentença proferida no processo nº 825/2000, da 2ª Secção da 4ª Vara Cível do Porto, à data não transitada em julgado, procedeu à transferência da quantia de € 2.224.080,69 do saldo bancário penhorado à executada, ora A., para a sua conta e depois para a conta da exequente, ora 4ª R., em violação das disposições legais aplicáveis e dos despachos judiciais que lhe foram dirigidos, quantia que nunca veio a ser devolvida, não obstante em sede de recurso a acção tenha vindo a ser julgada improcedente, com a absolvição da executada do pedido, por decisão do Tribunal da Relação, confirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça. E que a responsabilidade civil decorrente da actividade profissional do 1º R. se encontrava transferida para a 2ª R., mediante contrato de seguro celebrado entre esta e a Câmara dos Solicitadores, em cumprimento da disposição legal que obriga os solicitadores de execução a manter um tal seguro, sendo o capital seguro de € 100.000,00 por cada solicitador de execução.
Alegou ainda que, mesmo que se considerasse que o Estado não é responsável pelos actos praticados pelo solicitador de execução, sempre existirá responsabilidade deste por actos legislativos, quer por acção, por ter legislado alterando a acção executiva sem acautelar convenientemente os direitos dos particulares, sendo inconstitucional a norma do art. 123º, al. l), do D.L. nº 88/2003, que estabelece como limite mínimo para aquele seguro o de € 100.00,00, resultando os prejuízos da A. directamente da existência desta norma desconforme à Constituição, quer por omissão, por se abster de, na sua função de garante, regular de forma plena e eficaz a tutela dos direitos dos particulares face à actividade desenvolvida pelos solicitadores de execução, mormente no que diz respeito ao direito de propriedade, omissão esta que permitiu a violação do património da A., sem estar assegurado o seu ressarcimento integral.
A 2ª R. apresentou contestação, impugnando os factos alegados pela A., aduzindo não ter conhecimento dos mesmos porque o sinistro não lhe foi participado, e invocando que a sua eventual responsabilidade está limitada ao capital seguro, que é de € 100.000,00, e que está contratada uma franquia, da responsabilidade do segurado, de 10% do valor dos prejuízos apurados, no mínimo de € 500,00 e no máximo de € 1.250,00.
O 3º R. apresentou contestação, invocando que a actuação do agente de execução está excluída do âmbito do regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, e, quanto ao pedido subsidiário, que o ordenamento jurídico-constitucional português não admite o controlo jurisdicional concreto de omissões legislativas, que o art. 22º da C.R.P. não é de aplicação directa e que não estão preenchidos no caso os pressupostos previstos no art. 15º da Lei nº 67/2007.
A 4ª R. não apresentou contestação.
Por despacho de 20/02/2012 foi ordenado o desentranhamento da contestação apresentada pelo 1º R., por falta de pagamento da taxa de justiça e da multa respectiva.
A A. replicou e requereu a alteração e ampliação da causa de pedir e dos pedidos, alegando que o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça transitou em julgado e, por isso, o pedido do ponto 1 tornou-se supervenientemente inútil, mantendo-se o pedido do ponto 2, mas eliminando-se a parte inicial “Caso, na pendência do presente processo, venha a transitar em julgado o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça”; alegando ainda que mesmo que o Estado não seja considerado solidariamente responsável deverá ser subsidiariamente responsável e que estão também preenchidos os pressupostos da responsabilidade do Estado por atraso na administração da justiça, pedindo nesta parte:
- deve ser admitido o pedido subsidiário em relação ao peticionado no ponto 2 da petição inicial, alterado conforme requerido supra, no sentido de deve o R. Estado ser condenado, como responsável subsidiário, no caso de insuficiência do património do R. AA, a entregar directamente à Autora a quantia de € 2.224.080,69, acrescida de juros calculados desde 9 de Fevereiro de 2007, à média mensal da taxa EONIA, deduzida de 0,75%, vencidos e vincendos, perfazendo os primeiros, até 31.12.2007, a quantia de € 871.653,65, no caso de insuficiência total do património do R. AA ou, no caso de insuficiência parcial, a entregar o remanescente em falta até perfazer a quantia peticionada;
- deve ser admitida a ampliação da causa de pedir supra alegada e ampliação do pedido, admitindo o pedido subsidiário em relação ao peticionado no ponto 2 da petição inicial, alterado conforme requerido supra e ainda ao ponto pedido subsidiário supra requerido (ponto 5, i) da Réplica), no sentido de, caso não se entenda que o Estado é responsável pelos actos praticados pelo solicitador de execução, deve o Estado ser condenado, subsidiariamente, nos termos previstos no número anterior, a título de responsabilidade por atraso na administração da justiça.
A 2ª R. pronunciou-se sobre a réplica apresentada pela A., defendendo que a mesma não tem cabimento legal quanto à contestação por si apresentada, pois nesta “apenas se defendeu por impugnação, limitando-se a apresentar a sua versão dos factos ou, mais correctamente, o desconhecimento dos mesmos”, e, à cautela, impugnou os factos alegados na réplica e manteve a posição por si assumida na contestação (sublinhado nosso).
Mais tarde, em 16/02/2011, a A. apresentou articulado superveniente, para alegar factos de que tomou conhecimento por terem sido dados como provados no processo crime nº 1755/08.0TDLSB, tendo o acórdão sido proferido em 17/01/2011 e o 1º R., ali arguido, sido condenado pelo crime de corrupção passiva, e requereu a intervenção principal provocada de BB e CC, igualmente condenados naquele processo, pretendendo responsabilizá-los solidariamente com os demais RR. pelos danos peticionados.
Sobre este requerimento pronunciou-se a 2ª R., nos seguintes termos:
«(…) a Ré dá como integralmente reproduzido tudo aquilo que por si foi alegado na contestação bem como no articulado que apresentou nos presentes autos posteriormente à Réplica da Autora.
- Deste modo, importa nunca perder de vista que, efectivamente, a Ré seguradora desconhece, in totum, os factos que estão relatados na petição inicial bem como os factos que agora surgem vertidos no requerimento da Autora (factos que a mesma reputa de supervenientes à data da entrada da petição inicial ou, pelo menos, o conhecimento que a Autora tem dos mesmos).
- Volta-se a repetir que após diligências por si encetadas, nomeadamente junto do segurado e aqui Réu AA, a Ré nada conseguiu apurar relativamente às circunstâncias em que os factos relatados pela Autora tinham tido lugar ou, sequer, se os mesmos tinham ocorrido, nomeadamente com a configuração que a Autora agora lhes confere.
- Deste modo, a Ré mantém aquilo que afirmou no art. 1.º da sua contestação, ou seja, de que não tem conhecimento da ocorrência dos factos que se discutem nos autos, nomeadamente os factos supervenientes, uma vez que não conseguiu apurar, até à presente data, qualquer tipo de facto elemento que pudesse alterar esta posição.
Acresce referir que,
A Ré desde já dá por integralmente reproduzido tudo aquilo que alegou na sua contestação, desconhecendo se a factualidade carreada para os autos pela Autora no seu requerimento - articulado superveniente e dedução de incidentes de intervenção, correspondem, ou não à verdade, pelo que essa factualidade se deve ter por impugnada (art.ºs 1.º a 130.º do requerimento da Autora), nos termos do disposto no art. 490.º, n. 3 do CPC, concluindo-se como na contestação.»
Em 05/04/2013 foi proferido despacho que indeferiu a requerida intervenção e determinou a notificação das partes para se pronunciarem, querendo, sobre a excepção dilatória da incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria para apreciação dos pedidos de condenação à reconstituição, pagamento ou devolução deduzidos contra a 4ª R..
E em 17/03/2014 foi proferido despacho onde se considerou o articulado de 16/02/2011 “extemporâneo, no que à invocação de factos supervenientes diz respeito”.
Por despacho de 22/12/2014 foi conhecida oficiosamente a competência territorial e julgou-se o tribunal incompetente em razão do território e competente o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, nos termos do art. 18º, nº 1, do C.P.T.A., na sequência do que os autos foram remetidos para este Tribunal em 03/03/2015.
Em 03/06/2020 foi proferido “saneador-sentença” onde:
- se admitiu a alteração do pedido requerida na réplica “que resulta da superveniência dos factos” respeitantes ao trânsito em julgado do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, considerando-se inútil o pedido formulado sob o ponto 1 e mantendo-se válido o pedido do ponto 2 com a redacção indicada na réplica;
- indeferiu-se a ampliação da causa de pedir e do pedido no que concerne à responsabilidade do Estado no exercício da função jurisdicional (por atraso na administração da justiça);
- julgou-se verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta em razão da matéria do tribunal e, em consequência, absolveram-se os RR. da instância.
No que a esta questão respeita, é a seguinte a fundamentação constante da decisão:
«(…)
Quanto à incompetência absoluta em razão da matéria dos Tribunais Administrativos para dirimir o litígio
Suscitada que foi a excepção dilatória de incompetência absoluta em razão da matéria dos Tribunais Administrativos para dirimir o litígio, o que determina a absolvição dos Réus da instância, nos termos do artigo 89º, nº 2, e nº 4, alínea a), do CPTA, e do artigo 278º, nº 1, alínea a), do CPC ex vi artigo 1º do CPTA e que as partes puderam já exercer o direito ao contraditório em relação a tal matéria exceptiva, importa decidir, face à relação existente nos autos tal qual vem delineada pela A., se incumbe aos Tribunais Administrativos dirimir o litígio, sendo que, o seu conhecimento precede o de qualquer outra questão, de acordo com o disposto no 13º do CPTA.
Na verdade, o âmbito da jurisdição administrativa e a competência dos Tribunais Administrativos, em qualquer das suas espécies, de ordem pública, precedendo o seu conhecimento o de qualquer outra matéria (cfr. artº 13º do CPTA: “o âmbito da jurisdição administrativa e a competência dos tribunais, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria”), pelo que, importa apurar se é este o Tribunal materialmente competente para conhecer do pedido formulado.
Cumpre apreciar e decidir.
Saliente-se, desde logo, que os tribunais judiciais gozam de competência genérica ou residual, o que significa que são competentes para o conhecimento de todas as causas que não sejam atribuídas a outras ordens judiciais, conforme se decalca dos artigos 211º, nº 1, da CRP, e 40º, nº 1, da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto (LOSJ).
O artigo 212º, nº 3, da CRP determina que compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais. No plano legal, a par de normas que visam concretizar o conteúdo da cláusula geral estabelecida na Lei Fundamental, são de destacar, por um lado, os preceitos que implicam a diminuição, por subtracção, do âmbito da jurisdição administrativa, e, em contrapartida, outros que produzem a sua ampliação, por atribuição aos tribunais administrativos do julgamento de questões que, em princípio, não lhes caberia substancialmente conhecer. Uma das principais normas que efectua tal delimitação encontra-se vazada no artigo 4º do ETAF, ao qual, mais adiante, faremos apelo.
Posto isto, e como se sabe, a determinação do tribunal competente é aferida em função dos termos em que é formulada a pretensão do autor, incluindo os respectivos fundamentos, ou seja, afere-se por referência à relação jurídica controvertida, tal como exposta na petição inicial, atendendo-se ainda à identidade das partes, pretensão formulada e respectivos fundamentos, e isto tudo aferido à data da propositura da acção (cf. artigo 5º do ETAF).
No caso concreto, o pedido formulado pela Autora consiste na condenação solidária dos Réus no pagamento de uma quantia a título de danos patrimoniais, assente numa causa de pedir com subsunção no regime da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, integrando os factos constitutivos do direito da Autora à luz daquele instituto.
Assim, a causa de pedir, tal como a Autora a traz a juízo, assenta, em síntese, no facto de o 1º Réu, AA, na qualidade de Agente de Execução, no âmbito dos autos de execução comum n.º ..., que correram termos na 3ª secção do 2º Juízo de Execução do Porto e que teve como título executivo a sentença, na data não transitada em julgado proferida no âmbito dos autos n.º 825/2000, da 2ª Secção, da 4ª Vara Cível do Porto, penhorou o depósito do saldo bancário existente no Banco 1...., S.A., de que era titular a Executada, ora A., no valor de € 2.224.080,69, transferindo tal montante para sua conta e, posteriormente, para a conta da Ré, D..., S.A, a qual nunca devolveu a quantia em causa, sendo que da sentença- à data da penhora - não transitada em julgado proferida no âmbito dos autos n.º 825/2000, da 2ª Secção, foi interposto recurso para o Tribunal da Relação e para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo sido proferido Acórdão, julgando a acção totalmente improcedente e absolvendo as Rés do pedido.
Visa, assim, a Autora, com a presente acção, obter dos RR uma indemnização por acto ilícito do solicitador de execução, consubstanciada na reconstituição da situação existente antes da prática do mesmo, ou seja, na entrega do montante de € 2.224.080,69, acrescida de juros de mora, desde 09/02/2007, à média mensal da taxa EONIA deduzida de 0,75 %, vencidos e vincendos.
Nessa medida, importa aferir se este Tribunal é, ou não, competente em razão da matéria, o que implica que se tome posição sobre a natureza da responsabilidade civil extracontratual do agente de execução.
De acordo com o artigo 4º, nº 1, do ETAF, compete à jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a "[r]esponsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do no 4 do presente artigo" [alínea f)], a “[r]esponsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo ações de regresso” [alínea g)] e a “[r]esponsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público” [alínea h)].
Desse prisma, em conformidade com as alíneas f) e g) do nº 1 do artigo 4º do ETAF, há que salientar que, independentemente da natureza jurídica pública ou privada da situação de responsabilidade, esta cabe no âmbito da jurisdição exercida pelos tribunais administrativos só porque é pública a personalidade da entidade alegadamente responsável ou da entidade em que se integram os titulares ou servidores públicos. Todavia, o artigo 4º, nº 1, alínea h), do ETAF e o artigo 1º, nº 5, da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro que aprovou o regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Pessoas Colectivas de Direito Público (doravante, RCEP), a jurisdição administrativa intervém por via da extensão a pessoas colectivas de direito privado do regime substantivo de responsabilidade civil de direito público, o que sucede quando actuem no exercício de prerrogativas de autoridade de poder público ou segundo um regime de direito administrativo. O que releva, nesse caso, é já a circunstância de as entidades em causa praticarem actos que possam integrar o conceito de gestão pública.
Em síntese, a jurisdição administrativa é competente sempre que se trate de uma situação de responsabilidade civil referente a uma actuação do Estado ou de uma pessoa colectiva de direito público. Como também é competente quando se trate de uma pessoa colectiva privada, desde que se trate de uma situação de responsabilidade civil decorrente do exercício da função administrativa, sendo, pois, as restantes actuações privadas da competência dos tribunais judiciais.
Note-se que o artigo 1º do RCEP circunscreve o âmbito subjectivo de aplicação às pessoas colectivas públicas, às pessoas colectivas de direito privado que exerçam poderes de autoridade e, ainda, apenas às pessoas singulares que sejam titulares de órgãos, agentes ou funcionários de pessoas colectivas de direito público, magistrados judiciais e do Ministério Público, trabalhadores de pessoas colectivas de direito privado que exerçam poderes de autoridade, titulares de órgãos sociais dessas empresas e seus representantes legais ou auxiliares.
Acresce referir que, cada agente de execução, apesar de integrado na Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução, está no processo a título individual, enquanto profissional liberal, não fazendo parte do Tribunal, nem praticando actos de natureza jurisdicional e que o facto de o Estado ter privatizado esta área de actividade com vista a libertar-se dos custos a ela associados e a circunstância de os honorários pertencerem apenas ao agente de execução nomeado, faz com que não haja razão para que o Estado assuma o pagamento dos prejuízos causados no âmbito da respectiva actividade (cf. VIRGÍNIO DA COSTA RIBEIRO, "A responsabilidade civil do agente de execução", in AAVV., Responsabilidade civil profissional, CE], em linha, 2017, pp. 265-266).
Assim, dos elementos essenciais de caracterização orgânica e funcional da figura do solicitador de execução, no contexto da Reforma da acção executiva de 2003, mormente o dever ser exercida por solicitadores profissionais liberais supervisionados pela Câmara de Solicitadores — hoje, Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução (OSAE) —, perante quem respondem disciplinarmente por actos cometidos no processo, e não perante o Juiz, o não serem, senão excepcionalmente, designados pelo Tribunal, o facto de apesar de intervirem em processos executivos agindo com latos poderes, na perspectiva da desjudicialização do processo, e actuarem em nome próprio, ainda que possam ser destituídos pelo Juiz, mas só com justa causa, faz com que a componente privada da sua nomeação e o modo e responsabilidade da sua actuação sobreleve a vertente da actuação paradministrativa, não devendo considerar-se que a sua actuação é a de um funcionário judicial, auxiliar ou cometido do Tribunal (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 06-07-2011, proc. nº 85/08.1TJLSB.L1.S1). Ademais, 0 agente de execução não exerce nem participa na função jurisdicional, e não integra o Tribunal enquanto órgão de soberania, sendo-lhe consequentemente inaplicável o acervo de garantias que vinculam a função jurisdicional (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 199/2012).
Submetidos a um estatuto híbrido, no qual surgem aspectos ligados à cooperação na Administração da Justiça, acaba por prevalecer a vertente liberal da sua actividade, a qual é revelada, designadamente, através do modo de recrutamento, da forma de designação, do grau de autonomia relativamente ao juiz, a par do grau de dependência em relação ao exequente, da faculdade de delegar a execução de actos, do regime de honorários, com indexação aos resultados, ou da atribuição da função inspectiva e disciplinar a órgãos autónomos que não se confundem com órgãos da Administração.
Tais circunstâncias demandam a integração no regime geral da responsabilidade civil. Com efeito, a submissão dos agentes de execução ao regime de responsabilidade civil prescrito para os servidores do Estado e de outras entidades públicas exigiria um grau de interferência externa e a elevação do nível de controlo a um ponto que acabaria por descaracterizar o perfil estatutário que o legislador inequivocamente pretendeu assumir (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11-04-2013, proc. nº 5548/09.9TVLSNB.L1.SI).
O agente de execução é um profissional, sujeito a formação própria, bem como a um estatuto deontológico e disciplinar específico, a quem são atribuídos poderes públicos no âmbito da acção executiva, mas prevalecendo no seu estatuto a vertente liberal, não existindo responsabilidade objectiva por actos do solicitador/agente de execução que responsabilizem o Estado (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 16-11-2017, proc. nº 12597-15.6T8LSB.L1-6).
Dessa sorte, por não haver qualquer vínculo relevante entre o Estado e o solicitador de execução que projecte sobre o primeiro as consequências danosas dos actos deste último, o Estado não pode ser responsabilizado por actos danosos cometidos pelo solicitador de execução no exercício das suas funções. Muito embora ele leve a cabo acções no âmbito de uma actividade que tem natureza pública, o certo é que o mesmo não tem qualquer relação de dependência profissional em relação ao Estado, visto que, na verdade, não é funcionário do Estado, não recebe ordens ou instruções do Estado, não é remunerado pelo Estado, nem está sujeito ao poder disciplinar do Estado. Dessa maneira, os actos praticados pelo solicitador de execução não são qualificáveis como efectuados no âmbito da função administrativa do Estado, ficando, por isso, a sua apreciação excluída da jurisdição administrativa (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 16-04-2013, proc. nº 397/11.7T2AND.C1).
Portanto, inexistem fundamentos para equiparar os solicitadores ou os agentes de execução aos demais agentes administrativos, bem como para considerar que os actos praticados pelo solicitador de execução sejam de qualificar como efectuados no âmbito da função administrativa do Estado, pelo que os solicitadores ou agentes de execução não resultam subordinados ao regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado nem à competência da jurisdição administrativa.
Assim sendo, a conduta do 1º Réu é regida pelo regime civilístico da responsabilidade civil extracontratual e a factualidade alegada pela Autora encontra-se fora do âmbito da jurisdição administrativa.
De resto, nada se altera pelo facto de terem sido demandados solidariamente, como réus, a Seguradora, o Estado Português e a D....
Não estamos, por isso, no caso vertente, perante as situações de competência jurisdicional dos tribunais da ordem administrativa a que se reportam as alíneas g) e i) do nº 1 do artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Desde logo inexiste qualquer elemento que determine a competência da jurisdição administrativa e fiscal relativamente à Ré Seguradora.
Já ao abrigo do artigo 123º do Decreto-Lei no 88/2003, de 26 de Abril (ECS), todos os solicitadores estavam obrigados a contratar e manter seguro de responsabilidade civil profissional de montante não inferior a €100.000. Actualmente, por força do disposto no artigo 123º, nº 1 do Estatuto da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, o agente de execução com inscrição em vigor deve celebrar e manter um seguro de responsabilidade civil profissional, tendo em conta a natureza e o âmbito dos riscos inerentes à sua actividade, por um capital de montante não inferior ao que seja fixado pelo conselho geral, sem prejuízo do regime especialmente aplicável às sociedades e do disposto no artigo 38º da Lei nº 2/2013, de 10 de Janeiro (cf. também o artigo 15º do Código Deontológico dos Solicitadores e Agentes de Execução - Regulamento no 202/2015). Nos termos do nº 2 do mesmo artigo, o seguro de responsabilidade civil profissional do agente de execução tem que cobrir as responsabilidades profissionais pelo valor mínimo de €100.000,00 ou o correspondente a 50% do valor da facturação do ano anterior, caso seja superior a €100.000,00. Contudo, o nº 4 do artigo citado estabelece que o agente de execução que comprove que exerce a sua actividade profissional exclusivamente no âmbito de uma sociedade profissional de responsabilidade limitada com o seguro em vigor, nos termos estatutários, não é obrigado a manter o seguro acima referido. O nº 5 do mesmo artigo 123º estabelece que quando a responsabilidade civil profissional do associado, o que vale para o agente de execução, se fundar na mera culpa, o montante da indemnização tem como limite máximo o correspondente ao fixado para o mencionado seguro.
Neste aspecto, trata-se de uma alegada contitularidade da relação jurídica controvertida decorrente de um contrato de seguro em que o 1º Réu é o segurado, em virtude do exercício da actividade profissional de agente de execução. De forma alguma tal relação jurídica se enquadra em alguma das normas prescritas no artigo 4º do ETAF.
Quanto ao Réu Estado, a conclusão firmada a propósito da ausência de natureza de agente administrativo quanto ao agente de execução e da inaplicabilidade do RCEP leva, consequentemente, a que nada haja a dirimir por parte da jurisdição administrativa e fiscal.
Quanto à R., D..., por maioria de razão, tratando-se de uma pessoa de direito privado para quem o 1º R. alegadamente, transferiu indevidamente a quantia penhorada em causa e a quem imputa responsabilidade por factos por ela directamente praticados, em relação à qual inexiste norma que a submeta ao regime substantivo da responsabilidade civil extracontratual aplicável ao Estado ou a outras pessoas colectivas de direito público, temos que concluir que, no caso vertente, não estamos perante situações de competência jurisdicional dos tribunais da ordem administrativa a que se reportam as alíneas f), g) e h) do nº 1 do artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Posto isto, tudo visto e considerado, verificando-se a excepção dilatória de incompetência absoluta em razão da matéria deste Tribunal, impõe-se absolver os Réus da presente instância - cf- artigo 89º, nº 2, e nº 4, alínea a), do CPTA, e do artigo 278º, nº 1, alínea a), do CPC ex vi artigo 1º do CPTA.
(…)».
Na sequência de requerimento da A. nesse sentido, o processo foi remetido para o Juízo Central Cível de Lisboa, que se declarou territorialmente incompetente e competente o Juízo Central Cível do Porto do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, passando os autos a correr os seus termos neste Juízo a partir de 19/05/2023.
Em 11/07/2023 foi proferido despacho a declarar extinta a instância por inutilidade/impossibilidade superveniente da lide relativamente à 4ª R., entretanto declarada insolvente, com encerramento da liquidação, dispensou-se a realização de audiência prévia, foi elaborado despacho saneador tabelar, fixou-se o objecto do litígio como sendo “responsabilidade civil solidária dos RR. ainda anos autos (a 2ª R. no limite do montante segurado) no montante de €2.224.080,69 acrescida de juros”, e elencaram-se os temas da prova (nenhum deles atinente ao pedido subsidiário).
Procedeu-se seguidamente a julgamento, tendo sido concedida às partes a faculdade de apresentarem as alegações finais por escrito, o que foi feito pela A., pela 2ª R. e pelo 3º R..
Nas alegações, a 2ª R. invocou (pela primeira vez no processo) a exclusão da situação dos autos do contrato de seguro, por o 1º R. ter actuado com intenção de se apropriar das quantias retiradas da conta da A., para as distribuir, de forma previamente combinada, com os demais arguidos no processo crime.
E o 3º R. pronunciou-se pela incompetência material do Juízo Central Cível para apreciar o pedido no que respeita à responsabilidade civil do Estado Português, e pela competência do Tribunal Administrativo (embora sem aludir especificamente ao pedido subsidiário).
Após, foi proferida sentença, na qual se considerou, quanto à questão da competência, que “sobre esta questão já foi prolatada decisão saneador/sentença no Tribunal Administrativo, o qual se julgou materialmente incompetente, decisão que transitou em julgado, pelo que a questão se encontra prejudicada”, e se decidiu julgar parcialmente procedente a acção e:
a) condenar o 1º R. a entregar directamente à A. a quantia de € 2.224.080,69 (dois milhões duzentos e vinte e quatro mil e oitenta euros e sessenta e nove cêntimos) acrescida de juros de mora civis, vencidos e vincendos, contados desde 9 de Fevereiro de 2007 até efectivo e integral pagamento;
b) condenar solidariamente a 2ª R. a pagar à A. a quantia de €100.000,00, acrescida de juros de mora civis contados desde a citação até efectivo e integral pagamento;
c) julgar improcedente o remanescente do pedido deduzido contra o 1º R. e a 2ª R. e absolver estes do mesmo;
d) julgar improcedente o pedido deduzido contra o 3º R. e absolver este do mesmo.
De tal sentença veio a A. interpor recurso, tendo, na sequência da respectiva motivação, apresentado as seguintes conclusões, que se transcrevem:
«A. O presente Recurso vem interposto da parte da Sentença de 22.05.2024 que julgou improcedente o pedido deduzido pela Recorrente contra o Estado Português, nos termos do qual requereu a condenação deste último, solidariamente com os demais Réus, a título de responsabilidade pelo exercício da função legislativa, no pagamento à Recorrente da quantia de €2.224.080,69 (correspondente aos danos patrimoniais sofridos pela Recorrente, no âmbito de uma penhora ilegal do seu património), acrescida de juros de mora calculados desde 9 de fevereiro de 2007,
B. Pedido esse que foi formulado ao abrigo da norma constitucional constante do artigo 22.º da Constituição, nos termos do qual o Estado é responsável por ações ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, das quais resulte violação dos direitos, liberdades e garantias, considerando que quer a doutrina, quer a jurisprudência dominantes, à data dos factos, reconheciam a aplicabilidade imediata desta norma, no que concerne à responsabilidade do Estado pela função legislativa, por inexistência de uma lei concretizadora deste preceito.
C. No presente caso, a responsabilidade civil extracontratual do Estado emerge da circunstância de a norma da alínea l) do artigo 123.º do Decreto-Lei n.º 88/2023, de 26 de abril, que vigorava à data dos factos, e que, na sequência da reforma da ação executiva, previu a obrigatoriedade de os solicitadores/agentes de execução constituírem um seguro de responsabilidade civil com um montante segurado mínimo de apenas € 100.000,00, violar os princípios constitucionais de proteção dos direitos fundamentais dos particulares e da proteção da confiança dos cidadãos, previstos no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, bem como o direito de propriedade da Recorrente (cf. artigo 62.º da Constituição), consagrando uma inconstitucionalidade por ação.
D. Ao sufragar-se, como faz a Sentença recorrida, que, com a reforma da ação executiva, o Estado deixou de ser responsável pelos atos ilícitos de execução do património do executado, por o agente de execução não ser um funcionário público, ter-se-á de concluir pela ilicitude da previsão de uma norma da alínea l) do artigo 123.º do Decreto-Lei n.º 88/2023, de 26 de abril (na redação vigente à data dos factos), que previu a obrigatoriedade de constituição pelos solicitadores/agentes de execução de um seguro de responsabilidade civil com um montante mínimo segurado de apenas € 100.000,00, por tal norma (i) violar os princípios constitucionais de proteção dos direitos fundamentais dos particulares e da proteção da confiança dos cidadãos, previstos no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa e (ii) comportar a lesão do direito de propriedade da Recorrente (cf. artigo 62.º da Constituição).
E. Resulta da Sentença recorrida – num salto lógico que faz a sentença incorrer num[a] vício de falta de fundamentação (cf. artigo 607.º, n.º 4, do CPC), que impede a Recorrente de compreender plenamente a conclusão alcançada pelo Tribunal a quo – que da circunstância de o agente de execução não poder ser considerado um funcionário público, «decorre inexistir qualquer inconstitucionalidade por ação da reforma produzida pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 08/03».
F. Atente-se, porém, que em causa não está uma limitação da responsabilidade do Estado ao montante indicado, mas, ao invés, o afastamento de qualquer responsabilidade do Estado pelos atos do agente de execução desacompanhada de medidas suficientemente protetoras das garantias de que os particulares-executados beneficiavam previamente àquele reforma.
G. O princípio constitucional de proteção dos direitos, liberdades e garantias, impõe ao Estado uma função protetiva, de imperativo da tutela, que se traduz numa atuação como Estado-garante dos direitos fundamentais dos particulares, como é o direito de propriedade, com natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias.
H. A norma mencionada violou o aludido princípio, por consagrar uma drástica e desproporcionada diminuição da tutela a que se encontrava previamente sujeito o património dos executados: pois, quando as funções dos solicitadores/agentes de execução eram desempenhadas por funcionários públicos do Tribunal, pelos atos ilícitos e danosos destes últimos respondia, em última instância, o próprio Estado; com a sobredita reforma, pelos mesmos atos ilícitos passou apenas a responder o património dos agentes de execução exclusivamente e a seguradora contratada, com responsabilidade limitada até ao escasso limite de € 100.000,00.
I. Ao ter procedido à “privatização” de funções de natureza pública e, assim, eximindo-se de qualquer responsabilidade pelo exercício das mesmas – tal como entendeu o Tribunal recorrido – o Estado não tratou convenientemente de garantir os direitos dos particulares relativamente ao exercício dessas funções, nomeadamente, o direito de propriedade da Recorrente, para cujos danos se revela objetiva e ostensivamente insuficiente o valor mínimo de €100.000,00 do seguro de responsabilidade civil contratado pelo Réu agente de execução (valor que representa, apenas, 10% dos danos sofridos pela Recorrente!).
J. Atenta a posição de Estado-garante que é constitucionalmente imposta, era legitimamente expectável que o Estado não viesse a aprovar uma norma que implicasse uma drástica e inesperada diminuição das garantias legais que protegiam os direitos dos particulares-executados, no contexto de uma ação executiva, principalmente, perante atos executados por um agente que não é qualificado como um funcionário público – motivo pelo qual foi também violado o princípio constitucional de proteção da confiança dos cidadãos (cf. artigo 2.º da Constituição).
K. A norma aludida permitiu, com efeito, a criação de um risco não coberto de os executados serem violados no seu património no valor correspondente às quantias exequendas, sempre que tais quantias sejam superiores ao montante mínimo segurado. O que efetivamente ocorreu no caso presente, em que a Recorrente foi ilicitamente desapossada de uma quantia em dinheiro de cerca de € 2,2M.
L. Do exposto resulta que o Estado-Legislador adotou uma conduta ilícita e culposa, por não poderem ser desconhecidas as imposições constitucionais atinentes à tutela devida dos direitos e interesses legítimos dos particulares-executados, no contexto da pretendida reforma do processo executivo.
M. Assim, o Tribunal a quo, ao considerar, por um lado, que da natureza privatística das funções do agente de execução decorre, sem mais, que a norma da alínea l) do artigo 123.º do Decreto-Lei n.º 88/2003, de 26 de abril, não padece de qualquer inconstitucionalidade por ação, e, por outro lado, que não foi violado o direito de propriedade da Recorrente, simplesmente por este não ser um direito absoluto, incorreu num manifesto erro de julgamento de direito, que impõe a revogação da sentença recorrida, na parte que julgou improcedente o pedido de condenação do Estado no pagamento, em solidariedade com os demais Réus, de uma indemnização a título de responsabilidade civil extracontratual por exercício da função legislativa, por inconstitucionalidade por ação.
N. Caso assim não se entenda, o que apenas à cautela foi e é equacionado pela Recorrente, sempre se terá de concluir pela responsabilização do Estado por ter incorrido numa inconstitucionalidade por omissão no âmbito do exercício da sua função legislativa, decorrente da consagração de um regime jurídico no qual o mesmo se desresponsabiliza, injustificadamente, quanto ao exercício de funções com carácter inegavelmente público, em violação dos seus deveres constitucionais, da responsabilidade que lhe é atribuída por força do artigo 22.º da Constituição o qual é diretamente aplicável, e, ainda, dos princípios constitucionais supra aludidos.
O. A reforma executiva contribuiu para uma desresponsabilização injustificada do Estado quanto ao exercício de funções de cariz inegavelmente público, demitindo-se, este, sem qualquer fundamento e em violação de direitos constitucionais, da responsabilidade que lhe era constitucionalmente imposta, ao abrigo do artigo 22.º da Constituição.
P. O que permitiu que a Recorrente fosse violada no seu património, sem poder ver assegurado o ressarcimento integral ou sequer razoável dos danos patrimoniais sofridos.
Q. Não obstante a Recorrente ter solicitado ao Tribunal a quo a condenação do Estado Português neste sentido, sobre este tema, sufragou o juiz recorrido – diga-se, com o devido respeito, incompreensivelmente – que a ação declarativa em apreço não constituía «sede própria para declarar a mesma [inconstitucionalidade]», não tendo, em rigor, apreciado a presente questão.
R. O que não procede, porquanto, a Recorrente não solicitou a declaração de inconstitucionalidade da norma, mas tão-somente o reconhecimento da mesma para efeitos de formação de um juízo de ilicitude da omissão legislativa – o que, como é consabido, vinha era pacificamente aceite pela doutrina e pela jurisprudência maioritárias, à luz do enquadramento legal aplicável ao caso sub judice, atenta a data dos factos que constituem a causa de pedir, que assenta na norma ínsita no artigo 22.º da Constituição.
S. Apesar de o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas exigir, como pressuposto para a responsabilização do Estado fundada na omissão de providências legislativas a prévia declaração de uma inconstitucionalidade por omissão pelo Tribunal Constitucional (cf. artigo 15º, n.º 5, do Anexo à Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro), este regime não é aplicável ao presente dissídio, atenta a data dos factos, que é anterior à entrada em vigor do mencionado diploma legal.
T. Ao considerar que a ação intentada pela Recorrente não constitui sede adequada de apreciação da inconstitucionalidade por omissão imputada à atuação do Estado-Legislador, o Tribunal recorrido violou o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado pelo exercício da função legislativa resultante do artigo 22.º da Constituição.
Nestes termos e nos demais de direito, deve o presente Recurso ser julgado procedente, por provado, com todos os devidos legais efeitos, nomeadamente, requerendo-se que V. Exas. se dignem anular a sentença recorrida, na parte em que julga improcedente pedido deduzido contra o Estado e, consequentemente, condenar o Estado Português, solidariamente com os demais Réus, a entregar diretamente à Recorrente a quantia de € 2.224.080,69, acrescida de juros calculados desde 9 de fevereiro de 2007, título de responsabilidade pelo exercício da função legislativa.
Fazendo-se assim JUSTIÇA.».
Também a 2ª R. veio interpor recurso da sentença, tendo, na sequência da respectiva motivação, apresentado as seguintes conclusões, que se transcrevem:
«I. Resultou como provado que o co-Réu/Segurado AA actuou com intenção de se apropriar das quantias retiradas da conta da Recorrida para as distribuir, de forma previamente combinada, com os demais Arguidos condenados no processo crime n.º 1755/08.0TDLSB.
II. O contrato de seguro exclui liminarmente a possibilidade de accionamento das garantias de cobertura da apólice nestas situações, ou seja, em casos em que o segurado furta/rouba valores monetários e os faz seus ou os entrega a terceiros.
III. O contrato de seguro cobre sinistros decorrentes de danos patrimoniais causados a terceiros decorrentes de acções/omissões dos segurados no exercício da sua actividade profissional.
IV. Furto ou roubo de valores monetários propriedade de clientes não é, com toda a certeza, exercício da actividade de advocacia.
V. O Segurado não cometeu nenhum erro ou omissão no exercício da sua actividade profissional.
VI. O mesmo, de forma criminosa, apropriou-se dos fundos propriedade da Recorrida em seu benefício e em benefício de terceiros.
VII. Assim, sempre o âmbito de cobertura estaria excluído uma vez que não se tratou de um sinistro decorrente da actividade de advogado.
VIII. Conforme se pode verificar das EXCLUSÕES da apólice, a perda e extravio de valores monetários não se encontra coberta pelas garantias de cobertura da apólice.
IX. Se a perda/extravio de valores monetários não se encontra coberta (quando no exercício da actividade profissional do segurado) o furto/roubo de valores monetários (sem relação directa (erro/omissão) do exercício da actividade profissional do segurado) obviamente que não se encontra assegurado pelas garantias de cobertura da apólice.
X. Se o “menos” (perda/extravio de valores monetários) não se encontra coberto o “mais” (furto/roubo de valores monetários) também não está.
XI. Se o contrato de seguro dos autos cobre negligência simples e negligência grosseira, a intenção da Recorrente não é, com toda a certeza, cobrir situações de dolo que, no caso dos autos, se consubstancia num furto feito pelo próprio segurado.
XII. Se assim fosse tal estaria previsto no contrato de seguro dos autos o que, efectivamente, não sucede.
XIII. O contrato de seguro não contempla a perda ou extravio de valores monetários mas, segundo a perspectiva do Tribunal a quo, contemple roubo/furto pelo segurado desses valores.
XIV. A decisão recorrida violou, assim, as normas constantes dos art.ºs 405.º e 406.º do Código Civil.
Termos em que a douta sentença recorrida deverá ser
revogada, e substituída por outra que condene e
absolva a Recorrente do pedido.
Assim se fará, como sempre, inteira
JUSTIÇA!».
A A. apresentou contra-alegações ao recurso da 2ª R., defendendo que deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a sentença recorrida na parte impugnada.
O 3º R. apresentou contra-alegações a ambos os recursos, defendendo que deve ser negado provimento aos recursos, mantendo-se a sentença recorrida nas partes impugnadas.
O recurso foi recebido neste Tribunal da Relação, tendo sido proferido pela relatora, em 16/06/2025, o seguinte despacho:
“Ao analisar o processo com vista à elaboração do projecto de acórdão, constatamos que a decisão (saneador-sentença) de 03/06/2020 do T.A.F. do Porto apenas conheceu da incompetência material do tribunal no que concerne ao pedido principal formulado (“No caso concreto, o pedido formulado pela Autora consiste na condenação solidária dos Réus no pagamento de uma quantia a título de danos patrimoniais, assente numa causa de pedir com subsunção no regime da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, integrando os factos constitutivos do direito da Autora à luz daquele instituto” – cfr. pág. 27 do despacho), não se tendo pronunciado sobre a competência para conhecer do pedido subsidiário formulado contra o R. Estado Português (“Relativamente ao 3° Réu, caso não se entenda que o Estado é responsável pelos actos praticados pelo solicitador de execução, deve o Estado ser condenado, subsidiariamente, nos termos previstos nos números anteriores, a título de responsabilidade pelo exercício da função legislativa, conforme previsto pelo artigo 22.° da CRP.”) – quanto a este R., naquele despacho apenas se aludiu que “a conclusão firmada a propósito da ausência de natureza de agente administrativo quanto ao agente de execução e da inaplicabilidade do RCEP leva, consequentemente, a que nada haja a dirimir por parte da jurisdição administrativa e fiscal”, ou seja, apenas se apreciou a questão atinente ao pedido principal formulado.
Remetidos os autos ao tribunal cível, os mesmos prosseguiram sem que fosse notada esta “omissão”, tendo havido lugar a julgamento, com apresentação de alegações por escrito pelas partes, nas quais o Ministério Público, em representação do R. Estado, defendeu que podia ser conhecida a incompetência absoluta quanto ao pedido relativo a este R., pugnando pela absolvição da instância, por considerar competente o tribunal administrativo (embora sem aludir especificamente ao pedido subsidiário).
Na sentença recorrida, não se tendo detectado a situação supra referida, considerou-se que “sobre esta questão já foi prolatada decisão saneador/sentença no Tribunal Administrativo, o qual se julgou materialmente incompetente, decisão que transitou em julgado, pelo que a questão se encontra prejudicada”.
Ora, como se vê do acabado de explicar, não houve efectivamente decisão quanto à competência do tribunal para conhecer do pedido subsidiário formulado contra o R. Estado, sendo que a incompetência absoluta, como é o caso da incompetência material em caso de jurisdições diferentes, deve ser suscitada oficiosamente até ao trânsito em julgado da decisão sobre o fundo da causa (podendo ser conhecida mesmo pelo tribunal de recurso), nos termos do art. 97º, nº 1, do C.P.C..
No caso, atento o disposto no art. 4º, nº 1, al. f), do E.T.A.F., afigura-se-nos que o conhecimento do pedido subsidiário contra o Estado, com base na responsabilidade pelo exercício da função legislativa, é efectivamente da competência dos tribunais administrativos.
Assim, e uma vez que, atenta a situação descrita, esta é uma abordagem nova da referida questão, há que ouvir as partes, de modo a cumprir o princípio do contraditório.
Notifique, pois, as partes para se pronunciarem.”
O 3º R. pronunciou-se, por requerimento de 18/06/2025, defendendo que “é entendimento do M. Público que a matéria da responsabilidade civil extracontratual do Estado pelo exercício da função legislativa é da competência dos tribunais administrativos” e “em relação ao pedido subsidiário formulado nos autos, de condenação do Estado, está verificada a exceção dilatória da incompetência absoluta, que tem como consequência a absolvição do Estado da instância”.
Também a A. se pronunciou, por requerimento de 30/06/2025, aduzindo que partilha o entendimento vertido naquele despacho e “desde já manifesta a sua intenção de formular o pedido de remessa dos presentes autos para os tribunais administrativos, para estes apreciarem e decidirem o pedido aqui em causa”.
Os restantes RR. nada disseram.
*

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***

II - Considerando que o objecto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), são as seguintes as questões a tratar:
a) exclusão da situação ocorrida do contrato de seguro celebrado com a 2ª R.;
b) (in)competência do tribunal para o conhecimento do pedido subsidiário;
c) mérito do decidido quanto ao pedido subsidiário.
**

Vejamos a primeira questão.
Como decorre do que se descreveu no relatório, a 2ª R., seja na contestação, seja nos requerimentos posteriores, sempre se escudou no desconhecimento dos factos, tendo-se defendido somente por impugnação, como a própria expressamente referiu no requerimento em que se pronunciou sobre a réplica, nunca tendo invocado qualquer excepção, designadamente no requerimento de resposta ao articulado superveniente, onde a A. invocou os factos que foram dados como provados no processo crime (articulado este, note-se, que foi considerado extemporâneo por despacho de 17/03/2014).
E apenas em sede de alegações escritas, findo o julgamento, invocou a excepção em causa.
De acordo com o princípio do dispositivo, e conforme decorre dos arts. 3º e 5º do C.P.C., às partes cabe apresentar as suas pretensões no processo e os factos que as sustentam, sendo só dessas que o juiz pode conhecer, com excepção das questões que sejam de conhecimento oficioso, sob pena de haver excesso de pronúncia, que conduz à nulidade da sentença – cfr. arts. 608º, nº 2, e 615º, nº 1, al. d), do C.P.C..
Especificamente no que concerne à defesa, a mesma deve concentrar-se toda na contestação, excepto quanto aos meios de defesa que sejam supervenientes, que a lei admita passado esse momento ou de que se deva conhecer oficiosamente, como determina o art. 573º do C.P.C..
“Este preceito consagra o princípio da concentração da defesa na contestação. Associados ao princípio da concentração da defesa na contestação, e como sua consequência, encontramos os princípios da eventualidade e da preclusão. Daqui resulta que o réu deve incluir na sua peça processual todos os meios de defesa de que disponha, seja a defesa direta (impugnação), seja a defesa indireta (exceções dilatórias e perentórias), em vez de reservar para momento ulterior do processo certos meios de defesa, que utilizaria apenas no caso de improcedência dos primeiramente invocados”.
“Do princípio da preclusão resulta que todos os meios de defesa não invocados pelo réu na contestação ficam prejudicados, não podendo ser alegados mais tarde (…). O princípio da eventualidade significa que, dado o risco de preclusão, o réu há de dispor todos os seus argumentos de maneira que cada um deles seja atendido no caso (ou na eventualidade) de qualquer dos anteriores improceder.”
“A regra da concentração da defesa na contestação conhece algumas limitações que o próprio preceito refere e se reconduzem a duas espécies: defesa separada e defesa posterior. (…)
A defesa posterior, prevista no art. 573º, nº 2, é a que pode ser deduzida após a apresentação da contestação e tem três modalidades:
a) A defesa superveniente, isto é, defesa fundada em factos objetiva ou subjetivamente supervenientes (arts. 588º e 589°);
b) A defesa autorizada por lei, dela fazendo parte aqueles meios de defesa cuja dedução após a contestação a lei expressamente admite, tais como a incompetência absoluta (art. 97º), o impedimento do juiz (art. 116º, nº 1), a falta de citação do réu ou do Min. Público como parte principal (arts. 187 e 198º, nº 2) e a falta de vista ou exame ao Min. Público como parte acessória (arts. 194º e 198º, nº 2);
c) A defesa oficiosa, na qual se integram todos aqueles meios de defesa de que o tribunal pode conhecer oficiosamente, como sucede com quase todas as exceções dilatórias (art. 578°) e com grande parte das exceções perentórias (art. 579º), embora já não seja conferida ao réu a possibilidade de articular novos factos que as sustentem, direito que, em regra, preclude com a apresentação da contestação.” (cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil anotado, Vol. I, 3ª ed., Almedina, págs. 696 a 698).
Resumindo, no que concerne às excepções peremptórias (que importam a absolvição total ou parcial do pedido e consistem na invocação de factos que impedem, modificam ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor – art. 576º, nº 3, do C.P.C.), como é o caso da que está em causa, as mesmas devem ser invocadas na contestação, ou acaso sejam supervenientes, em articulado superveniente que preencha os requisitos previstos no art. 588º do C.P.C., com a alegação simultânea dos factos respectivos que as sustentem. Tratando-se de excepções que sejam de conhecimento oficioso (aquelas cuja invocação a lei não torne dependente da vontade do interessado – art. 579º do C.P.C.), ainda que não invocadas expressamente, os factos que as sustentem têm de ser apresentados nos articulados, nos mesmos termos referidos.
No caso, afigura-se-nos estarmos perante uma excepção em sentido próprio, cuja relevância depende da vontade do interessado na sua alegação, tendo em conta a circunstância de se tratar de um seguro de responsabilidade civil obrigatório (cfr. art. 123º, nº 1, al. l), do D.L. nº 88/2003, de 26/04, na redacção em vigor à data dos factos), que visa a protecção de terceiros lesados, com “a natureza de garantia social ou de contrato a favor de terceiro lesado” (cfr. Ac. do S.T.J. de 06/07/2011, com o nº de proc. 3126/07.6TVPRT.P1.S1, publicado em www.dgsi.pt, a propósito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel), em que a posição do segurador perante actos dolosos do segurado normalmente era assegurada pela via do direito de regresso e não pela desprotecção do lesado (o que, não estando expressamente consagrado à data dos factos em todos os casos, mas apenas em legislação específica, como era o caso do seguro automóvel, veio a ser consagrado na ulterior Lei de Contrato de Seguro, como decorre dos seus arts. 46º, 144º e 148º), sendo a instauração da acção de regresso uma opção do segurador (e não uma obrigação), para além de o contrato de seguro poder, no âmbito da liberdade contratual, convencionar a cobertura de actos dolosos.
E daí que, nos autos, se esteja perante uma situação em que a excepção em causa tinha de ser invocada pela 2ª R. na contestação, ou pelo menos em articulado superveniente (designadamente em resposta ao articulado superveniente apresentado pela A.), sob pena de preclusão, o que significa que, quando o fez nas alegações escritas, já tinha precludido esse seu direito, não podendo tal questão ser conhecida, sob pena de excesso de pronúncia (neste sentido, Ac. da R.C. de 28/06/2022, com o nº de proc. 822/14.5T8CTB.C1; veja-se ainda o Ac. da R.P. de 19/02/2015, com o nº de proc. 1813/12.6TBPNF.P1, em que se admitiu o conhecimento oficioso de uma exclusão de cobertura, mas numa situação em que se tratava de uma excepção imprópria, ao contrário do presente caso, e todos os factos relevantes para o seu conhecimento se encontravam nos autos, ambos publicados em www.dgsi.pt).
Para mais, tendo em conta que se tratava de um seguro de grupo, em que existem determinadas obrigações de informação ao segurado, e que à excepção da seguradora podiam ser opostas excepções, fosse pelo segurado, fosse pela A., enquanto beneficiária, para contrariar o efeito jurídico por aquela pretendido, e que estes ficaram impedidos de invocar pelo facto de aquela excepção ter sido alegada unicamente nas alegações escritas (cfr. Ac. da R.C. de 16/06/2015, com o nº de proc. 425/11.6TBLMG.C1, publicado em www.dgsi.pt).
Assim, não podia esta questão ter sido conhecida em sede de sentença, verificando-se nessa parte excesso de pronúncia, e não pode ser conhecida também em sede de recurso.
Tendo a excepção sido improcedente na apreciação feita pelo tribunal recorrido e destinando-se o recurso a alterar essa decisão, de modo a considerar-se verificada a mesma, não há que retirar quaisquer consequências do referido excesso de pronúncia, para além do não conhecimento da questão colocada no recurso da 2ª R. e a consideração do recurso como não provido.
Ainda que assim não se entendesse, sempre faltariam os factos necessários ao conhecimento da excepção (note-se que o que se encontra provado é que no processo crime aludido no ponto 132 da matéria de facto “encontram-se provados entre outros” determinados factos, e que os factos concretos subjacentes à actuação dolosa do 1º R. não constam do elenco dos factos provados, não tendo sido admitido o articulado superveniente em que os mesmos foram alegados pela A.) e, de todo o modo, no âmbito do seguro de responsabilidade civil obrigatório, as excepções previstas no contrato de seguro não são oponíveis ao lesado beneficiário, que nele não é parte (neste sentido, Ac. da R.P. de 09/11/2017, com o nº de proc. 9108/16.0T8PRT-A.P1, publicado em www.dgsi.pt), pelo que nem sequer poderia proceder a pretensão da 2ª R. recorrente.
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Passemos à segunda questão.
Como se disse no despacho da relatora de 16/06/2025, transcrito no relatório, e aí consta explicado, tendo a acção sido instaurada no tribunal administrativo, não foi proferida decisão expressa sobre o pedido subsidiário formulado contra o 3º R., Estado, de condenação em indemnização a título de responsabilidade pelo exercício da função legislativa – apenas se conheceu da questão quanto ao pedido principal, tendo os autos sido remetidos para a jurisdição civil olvidando-se o referido pedido subsidiário.
Por seu turno, no tribunal recorrido a questão também não foi concretamente conhecida, tendo sido proferido despacho saneador tabelar, que não faz caso julgado, e tendo, na sentença, na sequência da questão levantada pelo 3º R. nas alegações escritas, sido considerado que a questão já havia sido conhecida no tribunal administrativo, encontrando-se a sua apreciação prejudicada.
Ora, efectivamente a questão não foi concretamente conhecida e é de conhecimento oficioso, nos termos do art. 97º, nº 1, do C.P.C., podendo no caso ser conhecida até ao trânsito em julgado da decisão sobre o fundo da causa, como foi dito naquele despacho.
Esta decisão não transitou em julgado, uma vez que a A. recorreu da decisão de mérito proferida no tribunal recorrido que conheceu do pedido subsidiário.
Ambas as partes no pedido subsidiário estão de acordo em que a competência para conhecimento deste pedido é dos tribunais administrativos.
Apreciemos então.
Dispõe o art. 4º, nº 1, al. f), do E.T.A.F. (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo (que respeita aos casos de responsabilidade por erro judiciário) – redacção que não difere muito da que estava em vigor à data da instauração da presente acção, na altura al. g), e que era a seguinte: questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa (ou seja, no que ao caso interessa, a responsabilidade pela função legislativa, a previsão da norma não se alterou).
“A responsabilidade do Estado por facto da função legislativa tem como pressupostos da obrigação de indemnizar o facto ilícito (acção ou omissão legislativa), a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
O facto ilícito traduz-se na violação de direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos, resultante de um acto legislativo desconforme com uma norma de valor hierárquico superior, sejam normas constitucionais, internacionais (v.g., Tratados, Convenções, Direito Comunitário) ou de valor reforçado.
Por outro lado, o facto ilícito pode resultar da omissão de providências legislativas necessárias para tornar exequíveis normas constitucionais, dependendo, neste caso, da prévia verificação de inconstitucionalidade por parte do Tribunal Constitucional”.
“O lesado poderá interpor uma acção de responsabilidade civil contra o Estado por danos decorrentes do exercício da função legislativa, directamente nos tribunais administrativos, não necessitando de previamente a norma ser declarada inconstitucional ou ilegal pelo Tribunal Constitucional” (cfr. Sérgio Duarte da Costa Florindo, Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, dissertação de Mestrado em Ciências Jurídico-Políticas, Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Julho de 2011, págs. 27 e 28, disponível para consulta em https://sigarra.up.pt/fep/en/pub_geral.show_file?pi_doc_id=6257).
Na situação dos autos, a A. pretende que existe responsabilidade do Estado por actos legislativos, quer por acção, por ter legislado alterando a acção executiva sem acautelar convenientemente os direitos dos particulares, sendo inconstitucional a norma do art. 123º, al. l), do D.L. nº 88/2003, que estabelece como limite mínimo para aquele seguro o de € 100.00,00, resultando os prejuízos da A. directamente da existência desta norma desconforme à Constituição, quer por omissão, por se abster de, na sua função de garante, regular de forma plena e eficaz a tutela dos direitos dos particulares face à actividade desenvolvida pelos solicitadores de execução, mormente no que diz respeito ao direito de propriedade, omissão esta que permitiu a violação do património da A., sem estar assegurado o seu ressarcimento integral.
Assim, tal como configurado pela A. na petição inicial, está em causa a responsabilidade extracontratual do Estado pela sua actuação no exercício da função legislativa. Está em causa a própria legislação (ou omissão da mesma) e não a impugnação de um concreto acto (donde não está em causa a excepção prevista no nº 2, al. a), actualmente nº 3, al. a), do E.T.A.F.), pelo que não se nos oferecem dúvidas de que a competência para a apreciação deste pedido é dos tribunais administrativos (no mesmo sentido Ac. do S.T.J. de 10/07/2008, com o nº de proc. 07B740, publicado em www.dgsi.pt).
Como se diz no Ac. do S.T.A. de 14/02/2013, com o nº de proc. 01173/12, publicado em www.dgsi.pt, “sendo o n.º 1 a norma padrão, a que define as matérias que aos tribunais administrativos cabe apreciar, os n.ºs 2 e 3 identificam as excepções. O n.º 2 reporta-se exclusivamente aos “litígios que tenham por objecto a impugnação” de actos (alíneas a) e c)) ou decisões jurisdicionais (alínea b)). Como é bom de ver a acção em causa nos autos não visa a impugnação de qualquer acto ou decisão jurisdicional, traduzindo-se num simples pedido indemnizatório (…). Sublinhe-se que não estão em causa os próprios actos (ou omissões) imputados às referidas entidades mas as suas consequências. Cabe, portanto, na supra citada alínea g) já que aí se incluem as questões geradoras de responsabilidade incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa”.
É de concluir, pois, que o tribunal comum é incompetente em razão da matéria para conhecer da causa, havendo lugar à absolvição do 3º R. da instância quanto ao pedido subsidiário, nos termos do disposto nos arts. 96º, 99º, nº 1, 577º, al. a), e 576º, nº 2, todos do C.P.C..
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Tendo em conta o resultado do tratamento da questão anterior, fica prejudicado o conhecimento da terceira questão enunciada.
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III - Por tudo o exposto, acorda-se em:
a) negar provimento ao recurso interposto pela 2ª R., confirmando-se a decisão recorrida no que respeita à al. b) do dispositivo;
b) julgar procedente a excepção de incompetência do tribunal em razão da matéria para conhecer do pedido subsidiário formulado contra o 3º R. e, em consequência, absolver o 3º R. da instância e revogar a sentença recorrida na parte em que conheceu deste pedido.
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Quanto ao recurso da 2ª R., custas pela recorrente (art. 527º, nºs 1 e 2, do C.P.C.).
Quanto ao recurso da A., sem custas, uma vez que não há parte vencida no recurso.
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Notifique.
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Sumário (da exclusiva responsabilidade da relatora - art. 663º, nº 7, do C.P.C.):
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datado e assinado electronicamente

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Porto, 10/7/2025.
Isabel Ferreira
Francisca Mota Vieira
Carlos Cunha Rodrigues Carvalho