Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1975/25.2T8VNG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EUGÉNIA CUNHA
Descritores: PROVA PERICIAL
Nº do Documento: RP202510131975/25.2T8VNG-A.P1
Data do Acordão: 10/13/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Toda a prova a produzir, e, como tal, também a pericial, se destina a demonstrar a realidade dos factos da causa relevantes para a decisão (artº 341º do Código Civil), sendo que a demonstração que se pretende obter com a prova se traduz na convicção subjetiva a criar no julgador.
II - Podendo ser objeto de instrução tudo quanto, de algum modo, possa interessar à prova dos factos relevantes para a decisão da causa segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, vedado está aquilo que se apresenta como irrelevante (impertinente) para a desenhada causa concreta a decidir, devendo, para se aferir daquela relevância, atentar-se no objeto do litígio (pedido e respetiva causa de pedir e matéria de exceção);
III - Havendo enunciação dos temas de prova, o objeto da instrução são os temas da prova formulados, densificados pelos respetivos factos, principais e instrumentais (constitutivos, modificativos, impeditivos ou extintivos do direito afirmado) –v. arts 410º, do CPC e 341º e seguintes, do Código Civil e, ainda, artigo 5º, daquele diploma legal;
IV - Cabe ao tribunal pronunciar-se sobre as provas propostas e emitir, sobre elas, um juízo, não só de legalidade mas também de pertinência sobre o seu objeto: a prova de factos, controvertidos, da causa, relevantes para a decisão.
V - A prova pericial, com a especificidade de ter a mediação de uma pessoa - o Perito – para a demonstração do facto, consiste na perceção ou apreciação de factos pelo perito chamado a os percecionar (com os órgãos dos sentidos) e/ou a os valorar (à luz dos seus especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos), conhecimentos esses que, não fazendo parte da cultura geral e da experiência comum, se presumem não detidos pelo julgador.
VI - A perícia, para perceção e valoração de factos da causa carecidos de prova (por isso pertinente), só deveria ser indeferida se a perceção e a apreciação desses factos não reclamasse conhecimentos científicos, técnicos ou artísticos especiais (caso em que seria dilatória), não o caso.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 1975/25.2T8VNG-A.P1
Processo da 5ª secção do Tribunal da Relação do Porto (3ª Secção cível)
Tribunal de origem do recurso: Juízo Central Cível de Vila Nova de Gaia - Juiz 2


Relatora: Des. Eugénia Cunha
1º Adjunto: Des. Carla Jesus Costa Fraga Torres
2º Adjunto: Des. Ana Paula Amorim

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):

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I. RELATÓRIO

Recorrentes: Os Réus, AA e BB

Recorridos: os Autores, CC e DD

AA e BB, Réus na ação declarativa comum que contra si foi proposta por CC e DD, apresentaram recurso do despacho que admitiu a perícia por estes requerida, para prova dos factos constantes dos artigos 17º a 19º, da petição inicial[1], pugnando por que, na sua procedência, seja o mesmo revogado com base nas seguintes

CONCLUSÕES:

1. O presente recurso tem por objeto o douto despacho proferido nos presentes autos (ref.ª 473882857), pelo qual foi admitida a realização de prova pericial, com o fundamento de que a matéria alegada nos artigos 17.º a 19.º da petição inicial constituiriam questões cujo apuramento exigiria especiais conhecimentos técnicos.

Ora, o direito de acesso à justiça, constitucionalmente consagrado, abrange o direito à produção de prova, mas tal não confere às partes um poder ilimitado de requerer e ver admitido qualquer meio probatório, devendo a sua admissibilidade ser apreciada à luz da lei.

3. O direito à prova não é absoluto, sendo legítimas as limitações fundadas em razões de legalidade, pertinência, proporcionalidade, desde que não comprometam o direito à tutela jurisdicional efetiva.

4. Nos termos do CC-341 e CPC-410, só são admissíveis os meios de prova que se destinem à demonstração de factos concretos, controvertidos e juridicamente relevantes, que influenciem a decisão final da causa.

5. Cabe ao Tribunal apreciar a admissibilidade dos meios de prova propostos, podendo e devendo recusar aqueles que se revelem impertinentes, inúteis ou desnecessários para a boa decisão da causa.

6. A prova pericial tem uma natureza excecional e destina-se apenas a esclarecer factos cuja perceção ou valoração requeira efetivamente o recurso a conhecimentos técnicos, científicos que ultrapassem o domínio do conhecimento comum do julgador.

7. A sua função reside não apenas na perceção sensorial dos factos, mas na formulação de um juízo técnico-científico sobre esses mesmos factos, com base em critérios objetivos e máximas de experiência técnica que escapem ao âmbito da apreciação judicial.

8. Consequentemente, a perícia apenas deve ser admitida quando estejam em causa factos cuja apreciação exija, de forma incontornável, a intervenção de um perito, nomeadamente quando estejam em causa áreas técnicas especializadas de ciência, arte ou técnica.

9. Sempre que o apuramento dos factos possa ser efetuado diretamente pelo Tribunal, com base noutros meios de prova e na sua própria capacidade de avaliação, a perícia é não só inadmissível, como também dilatória.

10. No caso sub judice, os Autores requereram a realização de prova pericial para apuramento do valor locativo do rés-do-chão do prédio identificado na petição inicial, alegando prejuízo diário de €100,00 (cem euros), desde 1 de fevereiro de 2025, em virtude da ocupação alegadamente abusiva pelos Réus.

11. O apuramento do valor locativo de um imóvel, enquanto estimativa económica, não pressupõe o recurso a conhecimentos técnico-científicos especializados, mas apenas a análise de dados de mercado e de natureza estatística, amplamente acessíveis ao julgador.

12. Com efeito, o Tribunal pode socorrer-se de diversas fontes públicas, atualizadas e credíveis como o Instituto Nacional de Estatística, os relatórios periódicos de empresas de mediação imobiliária com atuação nacional ou local e plataformas de referência no setor, como o Idealista, onde constam informações sobre valores médios de arrendamento por tipologia, localização, área e estado de conservação.

13. Estas ferramentas permitem, com objetividade e sem necessidade de mediação técnica, aferir o potencial locativo de um imóvel, bastando para o efeito o exercício racional e crítico por parte do julgador, no uso das suas competências legais.

14. Trata-se de matéria que não extravasa a capacidade de apreciação do Tribunal, sendo possível ao julgador, com base nesses mesmos dados, formar a sua convicção, sem necessidade de recorrer à intervenção de um perito.

15. A perícia requerida não se justifica, surgindo como meio destinado a colmatar fragilidades da causa de pedir, em violação do ónus de alegação e prova que impende sobre os Autores.

16. A realização da perícia apenas contribuiria para atrasar o andamento do processo e aumentar os seus encargos, sem oferecer um ganho efetivo na descoberta da verdade dos factos.

17. O mesmo resultado probatório poderia ser obtido por via de meios mais simples, eficazes e proporcionais, como a junção de elementos de mercado ou a inquirição de testemunhas com conhecimento direto da realidade imobiliária da zona.

18. A realização da perícia nos termos admitidos no despacho recorrido revela-se, assim, processualmente inútil, juridicamente desadequada e dilatória, violando os princípios da economia e da adequação processual consagrados no artigo 6.º do Código de Processo Civil.

19. A decisão recorrida violou o disposto nos artigos 341.º e 388.º ambos do Código Civil e artigos 476.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.


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Não foram apresentadas contra-alegações.

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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.

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II. FUNDAMENTOS

- OBJETO DO RECURSO

Apontemos, por ordem lógica, as questões objeto do recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº3 e 4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil -, ressalvado o estatuído no artigo 665º, de tal diploma legal.

Assim, a questão a decidir é a seguinte:

- Da admissibilidade e relevância, para a descoberta da verdade e boa decisão da causa da prova pericial.


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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos provados com relevância para a decisão constam já do relatório que antecede, resultando a sua prova dos autos, e não se reproduzindo por tal se revelar desnecessário, tendo, nos autos, sido fixado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova nos seguintes termos:

OBJETO DO LITÍGIO

“A) Do direito dos Autores a verem os Réus condenados a reconhecer o direito de propriedade dos Autores sobre o prédio sito na Rua ..., ..., Vila Nova de Gaia, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob nº ..., da freguesia ..., e inscrito na matriz predial urbana da União de Freguesias ... e ... sob o art. ...;

B) Do direito dos Autores a verem os Réus condenados a restituírem, de imediato, aos Autores, livre de pessoas e bens, o prédio identificado na anterior alínea, em bom estado de conservação;

C) Do direito dos Autores a verem os Réus condenados no pagamento de uma indemnização desde o dia 1 de fevereiro de 2025 e até à efetiva restituição do imóvel, pela ocupação do imóvel e ao abrigo do instituto da responsabilidade civil por factos ilícitos;

D) Da celebração, no ano de 1972, entre os falecidos pais do Autor marido e os Réus de um contrato de arrendamento, de forma verbal, válido até à presente data, que legitima a ocupação do imóvel e impede a sua restituição aos Autores;

E) Da apreciação da conduta processual das partes e da sua litigância de má fé, oficiosamente apreciada”

TEMAS DA PROVA

1)Da autorização dada pelos falecidos pais do Autor à Ré para que passasse a habitar o rés-do-chão do imóvel identificado nos autos a título de empréstimo;

2) Valor locativo daquele rés-do-chão;

3) Do acordado verbalmente entre os falecidos pais do Autor marido e os Réus, no ano de 1972, quanto à cedência do gozo do locado pelos primeiros a estes e respetivos termos;

4) Da ocupação pelos Réus do imóvel, ao abrigo daquele acordo, desde 1972 e até à presente data, contra o pagamento do valor mensal acordado”.


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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

- Da admissibilidade e relevância da prova pericial

Insurgem-se os Réus/Apelantes contra a decisão do Tribunal a quo que deferiu a perícia requerida pelos Autores com fundamento de a mesma ser desnecessária, dilatória, não estando em causa matéria cujo apuramento exige especiais conhecimentos técnicos, bem podendo o Tribunal decidir com recurso a outros meios de prova.

Analisemos da utilidade, admissibilidade e relevância da perícia ou se a mesma é inútil, desnecessária, impertinente e dilatória.
Como a ora Relatora já afirmou noutros acórdãos, a proposição e a produção da prova em juízo visam demonstrar a realidade dos factos relevantes para o processo[2], sendo que regras existem, para a balizar, de direito probatório material, de natureza substantiva, a regular a admissibilidade e força probatória, inseridas no Código Civil, e de direito probatório formal, a regular os procedimentos probatórios, e que têm sede no Código de Processo Civil.
O artigo 410º, do Código de Processo Civil, diploma a que pertencem todos os preceitos citados sem outra referência, com a epígrafe “Objeto da instrução”, bem estatui que “A instrução tem por objeto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha de haver lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova”.
Deste modo, quando tenha havido enunciação dos temas da prova (o que se verifica no processo comum de declaração, nos termos do art. 596º, a menos que ocorra revelia operante (art. 567, nº2), termo do processo no despacho saneador (art. 595º) ou decisão do juiz no sentido da dispensa, em ação de valor não superior a metade da alçada da Relação (art. 597º, c))), são os próprios temas da prova o objeto da instrução[3], neles se incluindo os factos, quer os essenciais quer os instrumentais, sobre que a prova incide, pois que o real e efetivo objeto da instrução é sempre matéria fáctica, nos termos dos arts 341º e segs, do Código Civil.
Assim, enunciados temas da prova (para, no final da instrução, o juiz decidir, na sentença, os factos que considera provados e não provados), correspondendo um deles a um facto, tem de ser o mesmo objeto direto da instrução, não estando, contudo, as partes inibidas de produzir prova sobre factos instrumentais ou circunstâncias que indiciem ou revelem aquele. Nos temas de prova de formulação mais genérica é objeto de instrução toda a factualidade pertinente para a sua concretização, tendo em conta a previsão normativa de que depende o resultado da ação, aí se incluindo a livre discussão dos factos em relação de instrumentalidade[4].
Destarte, havendo enunciação dos temas de prova, o objeto da instrução são os temas da prova, densificados pelos factos, principais e instrumentais (constitutivos, modificativos, impeditivos ou extintivos do direito afirmado) – arts 410º, do CPC e 341º e segs, do Código Civil.
E é garantida ampla liberdade, em sede de instrução, no sentido de permitir que, na produção de meios de prova (máxime, prova testemunhal, pericial ou por depoimento de parte), sejam averiguados os factos circunstanciais ou instrumentais, designadamente aqueles que possam servir de base à posterior formulação de presunções judiciais, sendo que a instrução da causa “deve ter como critério delimitador o que seja determinado pelos temas da prova erigidos e deve ter como objetivo final habilitar o juiz a expor na sentença os factos que relevam para a decisão da causa, de acordo com as diversas soluções plausíveis da questão de direito”[5].
Sendo as diversas fases do processo a proposição, a audiência contraditória e a admissão (ou rejeição), com vista à produção das provas e decisão, podendo ser objeto de instrução tudo quanto, de algum modo, possa interessar à prova dos factos relevantes para a decisão da causa, não deve ser permitido seja objeto de instrução aquilo que se apresenta como irrelevante para a concreta causa, tal como desenhada se mostra.
Assim, para a apreciação da prova, que tem lugar na fase da sentença, só são admitidos os meios de prova propostos, após audiência da parte contrária, que relevem de acordo com as diversas soluções plausíveis da questão de direito.
Tem, pois, de ser olhado o objeto do litígio, que se define pelo pedido formulado e respetiva causa de pedir, para se aferir dessa relevância, nenhuma a podendo ter se nem sequer cabe apreciar a concreta questão a que a prova em causa pode interessar.

Ao juiz cabe realizar ou ordenar as diligências dos procedimentos probatórios relativos aos meios de prova propostos pelas partes, na medida em que necessárias ao apuramento da verdade ou à justa composição do litígio”[6], bem podendo, “por sua iniciativa ou a requerimento de qualquer das partes, requisitar informações, pareceres técnicos, plantas, fotografias, desenhos, objetos ou outros documentos necessários ao esclarecimento da verdade”, requisição que pode “ser feita aos organismos oficiais, às partes ou a terceiros” – cfr. nº1 e 2, do art. 436º, bem podendo ordenar a realização de prova pericial.
A prova pericial - com regulação de direito probatório material (objeto, admissibilidade e força probatória) nos arts 388º e seg, do Código Civil, e de direito probatório formal (a regular o procedimento da prova pericial) nos arts 467º a 489º, do CPC -, modalidade de prova pessoal e indireta, na medida em que a demonstração do facto é feita através de uma pessoa, o perito, que se interpõe entre o tribunal e o objeto da perícia, consiste na perceção ou apreciação de factos, pelo que o perito ou peritos são convocados a percecionar os factos e/ou a valorá-los à luz dos seus conhecimentos técnicos[7], sendo que aquela operação envolve captação (com os sentidos) dos factos e a sua compreensão.
O perito surge como intermediário entre a fonte de prova e o tribunal quando, para a plena apreensão da prova, haja necessidade de conhecimentos especializados. A prova pericial pode visar a perceção indiciária de factos, a apreciação, de acordo com a regra da causalidade, dos indícios a extrair das fontes de prova (para, nomeadamente, estabelecer um nexo de causalidade)[8]. O perito surge como o intermediário necessário em virtude dos seus conhecimentos técnicos: apreendendo ou apreciando factos, por serem necessários conhecimentos especiais que o julgador não tem, ou por os factos, respeitando a pessoas, não deverem ser objeto de inspeção judicial (art. 388 CC), o perito intervém no processo de manifestação da fonte de prova e traduz ao juiz o resultado da sua observação ou apreciação.[9]

A prova pericial destina-se, como qualquer outra prova, a demonstrar a realidade dos factos (artº 341º do Código Civil), sendo que essa demonstração que se pretende com a prova se traduz na convicção subjetiva, criada no espírito do julgador, de que aquele facto ocorreu. Não se trata de uma certeza absoluta acerca da realidade dos factos, que nunca seria alcançável, mas de um grau de convicção suficiente para as exigências da vida[10]. Aquilo que a singulariza é o seu peculiar objeto: a perceção ou averiguação de factos que reclamem conhecimentos especiais que o julgador comprovadamente não domina (cfr. artº 388º, do Código Civil, que estatui que “A prova pericial tem por fim a perceção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objeto de inspeção judicial.”).

A prova pericial pressupõe que: são necessários conhecimentos especiais para percecionar ou apreciar os factos, conhecimentos esses de que o juiz não dispõe; ou que os factos a demonstrar são relativos a pessoas não devendo ser objeto de inspeção judicial por estar em causa a intimidade da vida privada e familiar e a dignidade da pessoa, sendo que a prova pericial não deverá ser admitida se não forem exigidos conhecimentos que extravasem o saber do tribunal, sendo esses os conhecimentos relativos à cultura e experiência comuns. A admissibilidade da perícia não está dependente dos conhecimentos concretos do juiz em particular que julga a causa, mas dos que excedem a cultura e experiência comuns, bastando, pois, à parte que pretenda socorrer-se deste meio de prova que invoque que os factos a sujeitar a perícia extravasam essa cultura e experiência. Não será admissível a perícia quando sejam necessários conhecimentos jurídicos, pois que deles dispõe o julgador. A perícia pressupõe conhecimentos específicos, pelo que ao perito a nomear pelo Tribunal tem de ser reconhecida idoneidade e competência na matéria em causa[11], sendo necessários conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos para compreender e poder valorar os factos a apreciar.

E uma vez realizada a perícia, o resultado da mesma é expresso em relatório, no qual o perito se pronuncia, fundamentadamente, sobre o respetivo objeto (artº 484º), questão ou questões direta ou indiretamente ligadas à matéria de facto controvertida para posterior apreciação, pelo juiz, segundo as regras da livre convicção (art. 389º, do CC e art. 607º, nº5, do CPC), que, no entanto, sofrerão uma importante restrição precisamente motivada pelo diferencial de conhecimentos técnicos[12].

Na verdade, a “prova pericial encontra-se sujeita ao princípio da livre apreciação da prova, o qual impõe ao julgador que decida os factos em julgamento segundo a sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação da prova trazida ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e do conhecimento das pessoas, utilizando, nessa avaliação, critérios objetivos, genericamente suscetíveis de motivação e controlo” sendo que “os factos puramente descritivos que constam do relatório pericial, isto é, que não envolvam conhecimentos especializados para a sua percepção (compreensão) e/ou apreciação (valoração), não gozam de qualquer força probatória especial em relação à dos restantes meios de prova. Já os factos cuja percepção (compreensão) e/ou apreciação (valorização) reclame conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos especializados, não acessíveis ao julgador médio, apenas podem ser infirmados ou rebatidos com fundamentos da mesma natureza aos utilizados pelos peritos”[13].
Consagra o artigo 475º, com a epígrafe “Indicação do objeto da perícia” que, ao requerer a perícia, a parte indica logo, sob pena de rejeição, o respetivo objeto, enunciando as questões de facto que pretende ver esclarecidas através da diligência (nº1), podendo, ela, reportar-se, quer aos factos articulados pelo requerente quer aos factos alegados pela parte contrária (nº2), sendo que a determinação definitiva do objeto da perícia é feita pelo juiz, nos termos do nº2, do art. 476º.
Assim, a perícia tem por objeto as questões de facto que o requerente pretende ver esclarecidas através da diligência, contanto que se contenham no âmbito da causa de pedir e do pedido enunciados pelo Autor ou na defesa invocada pelo Réu[14], podendo, o objeto da perícia, apenas ser constituído por questões de facto condicionantes (porque infirmadoras ou corroboradoras dos factos que sustentam a pretensão e/ou a exceção) da decisão final de mérito segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito[15].
Como bem se analisa no Ac. RG de 26/9/2019 “1- “Factos” são os acontecimentos externos ou internos suscetíveis de serem captados pelos sentidos.
2- “Meios de prova” são os mecanismos colocados pelo legislador ao dispor das partes e do tribunal através dos quais se procura demonstrar ou não a realidade/verificação dos “factos”, isto é, trata-se dos meios legalmente fixados a que as partes e o próprio tribunal se podem socorrer para formar a convicção do julgador sobre a ocorrência ou não de acontecimentos externos ou internos captáveis pelos sentidos.
3- A prova pericial é um “meio de prova” e não um meio alegatório de factos, sequer se destina a obter outros meios de prova, designadamente, prova documental, e através dela não se podem suprir as omissões de alegação em que incorreram as partes.
4- A prova pericial tem de específico em relação aos restantes meios de prova legalmente previstos, a circunstância da perceção (verificação material) dos “factos” e/ou a apreciação destes (determinação das ilações que deles se possam tirar acerca de outros) reclamar conhecimentos científicos, técnicos ou artísticos especiais, que por não fazerem parte da cultura geral e da experiência comum, se devem presumir não serem detidos pelo juiz.
5- A prova pericial, tal como os demais meios de prova legalmente previstos, apenas podem recair sobre os “factos da causa”.
6- Consideram-se “factos da causa” os factos essenciais alegados pelo autor, na petição inicial, para fundamentar a causa de pedir nela invocada para sustentar o pedido, os factos essenciais alegados pelo réu na contestação, para fundamentar as exceções que nela invocou contra o autor, os factos essenciais alegados pelo autor na réplica, audiência prévia ou no início da audiência final (arts. 584º, n.º 1 e 3º, n.º 4 do CPC) para fundamentar as contra exceções que invocou contra o réu e, bem assim os factos complementares e instrumentais dos essenciais pertinentemente alegados.
7- Quando as questões de facto colocadas pelas partes para efeitos de integrarem o objeto da perícia não versem sobre os “factos da causa”, impõe-se que o juiz indefira essas questões por impertinentes. Já quando essas questões de facto versem sobre “os factos da causa”, mas a perceção e a apreciação desses factos não reclame conhecimentos científicos, técnicos e/ou artísticos especiais, deve-se indeferir essas questões por dilatórias[16].
Revertendo para o caso, verifica-se que os Autores, requereram perícia para apurar o valor locativo ou de arrendamento da fração autónoma.
O art. 476º, do CPC, prevê que a perícia possa ser rejeitada por impertinente ou dilatória (nº1), consagrando, também, deverem ser indeferidas, depois de ouvir a parte contrária sobre o objeto da perícia, as questões suscitadas pelas partes que considere inadmissíveis ou irrelevantes (nº2).
E, devendo o tribunal emitir sobre a perícia, como relativamente a todas as provas, um juízo, não só de legalidade, mas também de pertinência sobre o objeto: a prova dos factos que se propõe provar, fê-lo o Tribunal a quo, deferindo a perícia.
Ora, as razões invocadas pelos apelantes não podem, validamente, fundamentar a rejeição deste meio de prova, pois que, existe um facto relevante para cuja perceção (compreensão) e/ou apreciação (valoração) se reclamam, na verdade, conhecimentos técnicos especializados, não acessíveis ao julgador médio, sendo que só o Perito, após realizar a diligência, se poderá pronunciar.
Isso mesmo resulta, na verdade, do disposto no artº 476º nº1 do CPC, que refere as situações em que o juiz deve indeferir a perícia ou questões nela suscitadas, ao estabelecer “Se entender que a diligência não é nem impertinente nem dilatória, o juiz ouve a parte contrária sobre o objeto proposto, facultando-lhe aderir a este ou propor a sua ampliação ou restrição”, acrescentando o nº 2 que “Incumbe ao juiz, no despacho em que ordene a realização da diligência, determinar o respetivo objeto, indeferindo as questões suscitadas pelas partes que considere inadmissíveis ou irrelevantes ou ampliando-a a outras que considere necessárias ao apuramento da verdade” ”.
Assim, face ao estatuído no artº 476º nº1 e 2 do CPC, o juiz pode indeferir o requerimento por a diligência ser impertinente ou dilatória e indeferir questões suscitadas pelas partes por desnecessárias, inadmissíveis ou irrelevantes.
Será impertinente se não respeitar aos factos da causa e dilatória se, respeitando embora aos factos da causa, o seu apuramento não requerer o meio de prova pericial, por não exigir os conhecimentos especiais que esta pressupõe (art. 388º, do CC)[17].
Uma diligência de prova será impertinente (devendo, por isso, ser indeferida) se não for idónea para provar o facto que com ela se pretende demonstrar, se o facto se encontrar já provado por qualquer outra forma, ou se carecer de todo de relevância para a decisão da causa[18] e, mais ainda, se nem de questão de facto se tratar mas mera questão de direito ou se a perícia não for o meio próprio para provar certo facto.
É impertinente ou dilatória a perícia que não respeita a factos condicionantes da decisão final ou que, embora a eles respeitando, o respetivo apuramento não depende de prova pericial, por não estarem em causa os conhecimentos especiais que aquela pressupõe[19], sendo que o que se pretende do perito é que realize uma objetiva observação técnica do objeto da perícia e relate, no relatório final apresentado, o resultado dessa observação, devendo ser dela afastadas questões jurídicas, opiniões e avaliações subjetivas, suscetíveis de influenciar a livre convicção do julgador.
Revertendo para o caso, contrariamente ao que pretendem os apelantes, bem foi decidido. A requerida perícia para apurar o valor locativo do imóvel não é impertinente, pois que se prende com os factos da causa, sempre sendo relevante para a formação da convicção do julgador, nem dilatória, pois que o seu apuramento exige os conhecimentos especiais que a perícia pressupõe.
Bem decidiu o Tribunal a quo pelo seu interesse. E, na verdade, deve ser admitido um meio de prova capaz de auxiliar o julgador na decisão. Sendo a prova pericial, sempre, de livre apreciação (cfr. art. 389º, do Código Civil e art. 607º, nº5, do CPC), juntamente com as restantes provas que forem produzidas melhor habilitará o julgador a formar a sua convicção e decidir a causa em conformidade com a verdade material, melhor alcançando a solução justa.
Assim, tendo os Autores indicado as “questões de facto” objeto da perícia e por não ser impertinente nem dilatória, deve o procedimento pericial prosseguir, bem tendo sido admitida a prova pericial.
Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, não ocorrendo violação dos normativos de direito probatório material ou formal invocados pelos apelantes tendo, por isso, a decisão recorrida de ser mantida e os autos de prosseguir com a realização da perícia, não impertinente nem dilatória, sendo o meio idóneo para auxiliar na formação da livre convicção do julgador, com vista à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.


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As custas do recurso são da responsabilidade dos recorrentes dada a total improcedência da sua pretensão recursória (nº1 e 2, do artigo 527º, do Código de Processo Civil).

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III. DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida.


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Custas pelos apelantes.


Porto, 13 de outubro de 2025

Assinado eletronicamente pelos Senhores Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Carla Fraga Torres
Ana Paula Amorim
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[1] Têm tais artigos a seguinte redação: “17º … como consequência direta e necessária da descrita atuação dos réus, os autores sofreram, e sofrem, desde 1 de fevereiro de 2025 um prejuízo não inferior a €100 –CEM EUROS-, por cada a dia, e que só cessará com a restituição da identificada parte do prédio aos autores, seus proprietários, livre de pessoas e bens”. “18º … se os réus tivessem restituído aos autores o Rés do Chão ocupado do identificado prédio, em 31 de janeiro de 2025, conforme lhes foi exigido pelos autores, estes podiam ter arrendado, ou explorado um alojamento local no Rés-do-Chão, do identificado prédio, por um valor não inferior a €100 dia”. “19º Ao não restituir, e ao ocupar abusivamente o referido Rés do Chão, do identificado prédio sem o consentimento, e contra a vontade dos autores, seus legítimos proprietários, os réus estão a causar aos autores um prejuízo diário não inferior a €100, a contar, pelo menos, de 1 de fevereiro de 2025, e que só cessará quando os réus procederem à restituição do identificado Rés do Chão do referido prédio, livre de pessoas e bens”.
[2] Ana Prata (Coord.), Código Civil Anotado, vol. I, 2017, Almedina, pág 420
[3] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de processo Civil Anotado, vol. 2º, 3ª edição, pág 205
[4] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, pág. 482
[5] Ibidem, pág 483
[6] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, idem, pág. 208
[7] Rita Gouveia, Anotação ao artigo 388º, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, 2014, pág. 881 e seg
[8] José Lebre de Freitas, Anotação ao art. 388º, Ana Prata (Coord.), Idem, pág 475
[9]José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2, 3ª Edição, Almedina, pág. 312
[10] Rita Lynce de Faria, Anotação ao artigo 341º, Idem, pág. 810
[11] Rita Gouveia, Idem, pág. 882
[12] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, pág. 533
[13] Ac RG de 4/4/2019, Proc. 536/15.9T8EPS.G1 (Relator: José Alberto Moreira Dias)
[14] Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado,4ª Edição Revista e Ampliada, 2017, Ediforum, pág. 656
[15] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Idem, pág 539
[16] Ac. RG de 26/9/2019, Proc. 137/16.4T8CMN-A.G1 (Relator: José Alberto Moreira Dias), in dgsi
[17] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Idem, pág. 326
[18] Ac. RG de 17/12/2019, processo 21/16.1T8VPC-B. G1 (Relatora: Maria João Matos), in dgsi
[19] António Santos Arantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Idem, pág 539