Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | ANA LUÍSA LOUREIRO | ||
Descritores: | SIGILO PROFISSIONAL QUEBRA INTERESSE PREPONDERANTE INDISPENSABILIDADE DA INFORMAÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RP202504106890/24.4T8MAI-A.P1 | ||
Data do Acordão: | 04/10/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | INDEFERIDO O INCIDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 3ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - Do disposto no n.º 4 do art. 417.º do Cód. Proc. Civil resulta que o dever de sigilo – fundamento da legitimidade da recusa, nos termos previstos na al. c) do n.º 3 do art. 417.º do Cód. Proc. Civil – não tem carácter absoluto, comportando exceções nomeadamente, quando tal se mostrar necessário para satisfazer outros interesses constitucionalmente protegidos, como é o caso, por exemplo, do direito de acesso aos tribunais. II - Por força do disposto no n.º 3 do art. 135.º do Cód. Proc. Penal, aplicável com as devidas adaptações ex vi n.º 4 do art. 417.º do Cód. Proc. Civil, a decisão de autorização da quebra do segredo ou sigilo profissional pressupõe que «(…) esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante (…)», nas circunstâncias do caso concreto. III - A recusa de prestação de informação atinente à identificação do tomador do seguro – nome, morada e contato – de veículo penhorado em processo de execução, por parte da seguradora para quem foi transferida a responsabilidade emergente da circulação do referido veículo, subsume-se na sua sujeição ao dever de sigilo profissional, nos termos do disposto no artigo 119.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo DL n.º 72/2008, de 16 de abril. IV - Atento o princípio da prevalência do interesse preponderante referido no n.º 3 do art. 135.º do Cód. Proc. Penal, aplicável por força da remissão efetuada pelo n.º 4 do art. 417.º do Cód. Proc. Civil, apenas se justifica a quebra do sigilo profissional da seguradora se a obtenção de tais elementos se mostrar necessária e indispensável à concretização da apreensão do veículo penhorado. V - Não se pode afirmar a indispensabilidade de obtenção dos dados pessoais do tomador do seguro para se proceder à apreensão da viatura penhorada quando nenhuma diligência foi feita no processo de execução para a localização e apreensão a viatura, nomeadamente, junto da executada que consta, no registo automóvel, como sua proprietária. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Processo: 6890/24.4T8MAI-A.P1 *** Sumário: ……………………………… ……………………………… ……………………………… *** Acordam na 3ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I – Relatório:
Banco 1... S.A. intentou ação executiva contra AA para pagamento da quantia exequenda liquidada em € 1.255,33, acrescida de juros vincendos à taxa legal de 4% sobre o capital de € 1.159,36 e de juros vincendos à taxa de 5%, a título de sanção pecuniária compulsória (nos termos do art. 13.º alínea d, do DL 269/98 de 1 de setembro) até integral pagamento, apresentando como título executivo requerimento de injunção ao qual foi conferida força executiva. A Sr.ª AE procedeu à junção aos autos: a) em 13-01-2025, de auto de penhora de motociclo de passageiros, matrícula ..-..-HC, acompanhado de consulta ao Registo Automóvel da qual consta como proprietária inscrita no referido registo a executada e como data do registo de penhora 08-01-2025, e do comprovativo de envio à executada de citação para a execução nos termos do disposto no art. 856.º do CPC e para deduzir oposição à penhora do motociclo; b) em 14-01-2025, de auto de penhora de veículo automóvel, ligeiro de passageiros, matrícula ..-..-ZI, acompanhado de consulta ao Registo Automóvel da qual consta como proprietária inscrita no referido registo a executada e como data do registo de penhora 07-01-2025. c) em 22-01-2025, do comprovativo da citação da executada para a execução – indicando ter a mesma sido citada em 15-01-2025 – e ainda do envio da notificação à executada para se opor à penhora do veículo automóvel.
Em 22-01-2025 a Sr.ª AE apresentou ao Ex.mo Sr. Juiz do processo requerimento para autorização do levantamento do sigilo, «(…) no sentido da A..., Sucursal em Portugal, conceder acesso aos seguintes elementos (que não se encontram disponíveis na consulta às bases de dados, prevista nos n.ºs 1 e 3, do artigo 749.º do CPC): - Identificação do tomador do seguro do veículo de matrícula ..-..-ZI, penhorado à ordem dos presentes autos, remetendo o nome, morada e contacto. Mais se informa V/Exa que, o referido despacho é solicitado pelas seguradoras. (….)». Com tal requerimento juntou o resultado de pesquisa efetuada na internet para verificação do seguro através da matrícula ..-..-ZI, que retornou a informação da existência de seguro quanto a tal veículo na entidade A..., Sucursal em Portugal, titulado pela apólice .... Em 28-01-2025 foi proferido despacho a deferir o pedido de levantamento de sigilo, nos termos do disposto no art. 749.º do Cód. Proc. Civil. Em 10-02-2025 a A..., Sucursal em Portugal (atual designação), informou que «(…) na qualidade de Seguradora, se encontra sujeita ao dever de sigilo profissional, nos termos do disposto no artigo 119º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril, com as alterações introduzidas pela Lei nº 147/2015, de 09 de Setembro, pelo que, sob pena de violação do referido dever, tais informações não poderão ser disponibilizadas, conforme previsto no artigo 417º, nº 3, alínea c) do Código de Processo Civil, sem prejuízo do disposto no artigo 135º do Código de Processo Penal, aplicável ex vi o disposto no nº 4 do artigo 417º do Código de Processo Civil.» Em 13-02-2025, na sequência da notificação da resposta da seguradora, o exequente deduziu incidente de quebra de sigilo profissional, com os seguintes fundamentos: «(…) 5.º - (…) a Exequente instaurou a presente ação executiva contra AA para cobrança de dívida decorrente do incumprimento de um contrato de crédito com o nº .... 6.º - No âmbito da presente execução foi penhorado à ordem dos autos o veículo de matrícula ..-..-ZI. 7.º - O veículo encontra-se com seguro ativo na presente data. 8.º - No que respeita ao caso em concreto, é importante referir que o veículo de matrícula ..-..-ZI é dos poucos bens penhoráveis existentes para satisfação da quantia exequenda. 10º - Atento ao referido, os dados do tomador do seguro são importantes, de modo a prosseguir com as diligências de localização, apreensão e venda da viatura. 11º - No caso concreto existem dois interesses em conflito: por um lado o interesse da seguradora em manter uma relação de confiança com os seus clientes; por outro lado o interesse público da boa administração e realização da justiça. 12º - O interesse público da boa administração e realização da justiça é concretizado no interesse da Exequente ver satisfeita a sua pretensão de cobrança de um direito de crédito. (…) 16º - As diligencias posteriores à penhora prendem-se com a apreensão do bem penhorado e a sua venda. 17º - Para se proceder à apreensão da viatura penhorada é necessário se saber o nome, a morada e contacto do tomador do seguro, por se entender que se encontra na posse da mesma. 18º - Os dados pessoais do tomador do seguro são os únicos que possibilitam ao Exequente lograr contactar o tomador do seguro de modo a proceder à apreensão da viatura. 19º - Contrapondo os dois interesses em conflito de harmonia com o princípio da prevalência do interesse preponderante previsto no artigo 135º, n° 3 do C.P.P, aplicado ao processo civil por força do artigo 417º, n° 4 do C.P.C e o princípio da proporcionalidade na restrição de direitos concluímos que a recusa da informação solicitada poderá prejudicar o interesse da Exequente em ver satisfeita a cobrança do seu direito de crédito. 20º - É importante salientar que o pedido da Exequente se limita ao mínimo indispensável para se conseguir proceder à apreensão da viatura, o qual se afigura como fundamental para a liquidação da dívida exequenda e para a tutela efetiva do seu direito. (…)».
Em 18-02-2025 foi proferido despacho que considerou «(…) legítima a escusa invocada pela seguradora, uma vez que resulta do cumprimento do dever legal imposto pelo art. 119º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Dec.-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril, com as alterações introduzidas pela Lei nº 147/2015, de 9 de Setembro.», tendo determinado a remessa do incidente de dispensa de sigilo a este Tribunal da Relação, competente para a apreciação do referido incidente.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II – Questão a decidir:
Cumpre apreciar se, no caso concreto, o dever de sigilo que impende sobre a seguradora tem que cessar perante o dever de cooperação com a justiça.
III – Fundamentação:
De facto
Os factos a considerar são os que estão descritos no relatório.
Análise dos factos e aplicação da lei
Dispõe o art. 417.º, n.º 1 – Dever de cooperação para a descoberta da verdade – do Cód. Proc. Civil nos seguintes termos: 1 – Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados. 2 - Aqueles que recusem a colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis; se o recusante for parte, o tribunal aprecia livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil. 3 - A recusa é, porém, legítima se a obediência importar: a) Violação da integridade física ou moral das pessoas; b) Intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações; c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.º 4. 4 - Deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.
Do disposto neste n.º 4 do art. 417.º do Cód. Proc. Civil resulta que o dever de sigilo – fundamento da legitimidade da recusa, nos termos previstos na al. c) do n.º 3 do transcrito art. 417.º do Cód. Proc. Civil – não tem carácter absoluto, comportando exceções, nomeadamente quando tal se mostrar necessário para satisfazer outros interesses constitucionalmente protegidos, como é o caso, por exemplo, do direito de acesso aos tribunais. Como referido no preâmbulo do DL n.º 329-A/95, de 12 de dezembro, que introduziu alterações ao anterior 519.º do Cód. Proc. Civil, entre as quais a introdução da redação que os vigentes n.os 3 e 4 do art. 417.º mantêm, procurou-se «(…) no capítulo da produção dos meios de prova (…) introduzir alterações significativas, com vincados apelos à concretização do princípio da cooperação, redimensionado não só em relação aos operadores judiciários como às instituições e cidadãos em geral, adentro de uma filosofia de base de obtenção, em termos de celeridade, eficácia e efectivo aproveitamento dos actos processuais, de uma decisão de mérito, o mais possível correspondente, em termos judiciários, à verdade material subjacente (…)», para o que «(…) delimitando, embora, com rigor, as hipóteses de recusa legítima de colaboração em matéria probatória (…)», se acentuará «(…) a vertente pública da realização da justiça e a permanência desse valor, na tutela dos interesses particulares atendíveis dos cidadãos, enquanto tal, e se respeitará o conteúdo intrínseco e próprio dos diversos sigilos profissionais e similares, legalmente consagrados. Não obstante, o mesmo interesse público, conatural à função de administração da justiça, como valor intersubjectivo e de solidariedade e paz social, legitimará que o interesse de ordem pública que também preside à estatuição de tais sigilos ceda em determinados casos concretos, mediante a respectiva dispensa, e isso mesmo exactamente se consagra, admitindo a aplicação, ponderada em função da natureza civil dos interesses conflituantes, do regime previsto na legislação processual penal para os casos de legitimação de escusa ou dispensa do dever de sigilo. (…)». Assim, por força do disposto no n.º 3 do art. 135.º do Cód. Proc. Penal, aplicável com as devidas adaptações ex vi n.º 4 do art. 417.º do Cód. Proc. Civil, a decisão de autorização da quebra do segredo ou sigilo profissional pressupõe que «(…) esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante (…)», nas circunstâncias do caso concreto.
No caso em análise, verificamos ser fundada a recusa pela seguradora de prestação da informação solicitada, com fundamento na sua sujeição ao dever de sigilo profissional, nos termos do disposto no artigo 119.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro. É o seguinte o teor da referida disposição legal: Artigo 119.º Dever de sigilo 1 - O segurador deve guardar segredo de todas as informações de que tenha tomado conhecimento no âmbito da celebração ou da execução de um contrato de seguro, ainda que o contrato não se tenha celebrado, seja inválido ou tenha cessado. 2 - O dever de sigilo impende também sobre os administradores, trabalhadores, agentes e demais auxiliares do segurador, não cessando com o termo das respetivas funções. «Como se afirma no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.° 2/2008, in DR l.ª série, de 31 de Março de 2008, a propósito do segredo bancário, e vale, mutatis mutandis, para o caso, o dever de segredo tem em vista a salvaguarda de duas ordens de interesses: por um lado, o regular funcionamento da actividade em causa (seguradora) e, por outro, a reserva da intimidade da vida privada de cada um dos clientes das seguradoras. No entanto, a lei concebe o dever de segredo essencialmente como protecção do direito fundamental à reserva da vida privada, consagrado no art. 26°/1 da CRP, porquanto o mesmo cessa quando exista autorização do cliente na sua revelação; como expressamente resulta, a propósito do segredo bancário, do art. 79.°/1 do RGICSF, disposição esta que contém excepções ao dever de segredo, as quais valem, analogicamente, como excepções ao dever de segredo da actividade seguradora. (…)» – cfr. Ac. do TRC de 12-06-2018, proc. 768/16.2T8CBR-C.C1, acessível na íntegra na base de dados de jurisprudência do IGFEJ [1].
Afirmada a existência do dever de segredo profissional, cumpre então apreciar se, atento o princípio da prevalência do interesse preponderante referido no n.º 3 do art. 135.º do Cód. Proc. Penal, aplicável por força da remissão efetuada pelo n.º 4 do art. 417.º do Cód. Proc. Civil, se justifica, no caso, a quebra do sigilo profissional da seguradora, por ao interesse atinente ao regular funcionamento da sua atividade que implica a manutenção da confiança com os seus clientes, nomeadamente, assegurando-se a reserva das informações privadas destes fornecidas no âmbito da relação contratual com a seguradora, se sobrepor o invocado – pelo requerente do incidente de levantamento de sigilo em apreciação – interesse público da boa administração e realização da justiça.
É invocado, no incidente de levantamento/quebra de sigilo, que «Os dados pessoais do tomador do seguro são os únicos que possibilitam ao Exequente lograr contactar o tomador do seguro de modo a proceder à apreensão da viatura.», sendo tal diligência de apreensão da viatura necessária e essencial para a satisfação do fim último do processo de execução: o pagamento do crédito exequendo. Da tramitação processual ocorrida no processo não resulta, diferentemente do que é invocado, que a obtenção dos dados pessoais do tomador do seguro do veículo automóvel de matrícula ..-..-ZI, penhorado nos autos, constitua elemento necessário e indispensável à concretização da apreensão do referido veículo, desde logo porque não consta do processo ter sido efetuada qualquer diligência para a localização da viatura e sua apreensão, nomeadamente, junto da executada que, de acordo com o registo automóvel, é a proprietária do referido veículo, e cujo dados e morada são conhecidos nos autos – onde a mesma foi citada para a execução e para se opor às penhoras dos veículos penhorados. Só se poderá afirmar a necessidade de obtenção dos dados pessoais do tomador de seguro como meio (necessário e indispensável) para a localização da viatura penhorada no caso de se frustrar a localização/apreensão da viatura junto da executada, por esta não estar na posse/detenção da mesma, nem prestar qualquer informação útil sobre a sua localização. No caso, nem sequer foi efetuada qualquer notificação à executada para proceder à entrega do veículo à Sr.ª AE ou sequer para indicar onde o mesmo se encontra. Não há, assim, neste momento, qualquer suporte para a afirmação da necessidade e indispensabilidade da prestação pela seguradora das informações solicitadas, abrangida pelo sigilo profissional, para a satisfação do interesse público na administração da justiça, pelo que não estão verificados os pressupostos de que depende a autorização de quebra do dever de sigilo profissional da seguradora.
IV – Dispositivo
Pelo exposto, acorda-se em indeferir o incidente de levantamento do sigilo/segredo profissional. Custas a cargo do exequente/requerente do incidente, com taxa de justiça de 1 U.C. (art. 527.º, n.os 1 e 2, do Cód. Proc. Civil, e art. 7.º, n.º 1, e Tabela II anexa, do Regulamento das Custas Processuais). Notifique. *** (data constante da assinatura eletrónica) Ana Luísa Loureiro José Manuel Correia Francisca Mota Vieira ______________ [1] http://www.gde.mj.pt/jtrc.nsf/ |