Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
22301/24.2T8PRT-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RUI MOREIRA
Descritores: LIVRANÇA EM BRANCO
AVAL PARCIAL
PREENCHIMENTO ABUSIVO
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RP2025112622301/24.2T8PRT-C.P1
Data do Acordão: 11/26/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A aposição da limitação da responsabilidade do avalista a 25% do valor do crédito subjacente à emissão de uma livrança em branco, constante do próprio aval, não torna ilíquida, ab initio, a obrigação cambiária, nem a faz depender a exequibilidade da livrança da alegação da relação subjacente, para que se possa aferir da regularidade do preenchimento da livrança, quanto ao valor nela titulado. Diferentemente, tal limitação faculta, no âmbito de relações imediatas, a verificação ulterior da conformidade do preenchimento da livrança entregue em branco com o pacto de preenchimento correspondente.
II – A alegação de que do contrato de crédito subjacente à emissão de uma livrança em branco resulta a inexigibilidade da obrigação cambiária não afecta a respectiva validade e eficácia enquanto título cmbiário, desde que devidamente preenchida antes da sua apresentação à execução. Cabe ao obrigado cambiário a demonstração do abuso de preenchimento da livrança, quanto à data de vencimento, por referência ao pacto de preenchimento correspondente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. Nº 22301/24.2T8PRT-A.P1

Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Execução do Porto – Juiz 6



REL. N.º 993
Juiz Desembargador Relator: Rui Moreira
1º Adjunto: Juíza Desembargadora: Raquel Lima
2º Adjunto: Juiz Desembargador: João Proença

*



ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO


1 – RELATÓRIO

*


Por apenso à execução que, a si e a outros, moveu “Banco 1..., S.A.”, agora substituído por A... Sarl, veio AA deduzir embargos de executado, invocando a ineptidão da execução, por nulidade do título executivo, bem como a inexigibilidade da obrigação.
Alegou, a esse propósito, que o contrato de mútuo no âmbito do qual foi subscrita, em branco, a livrança dada à execução, na qual apôs o seu aval, previa um período de carência de dois anos, não obstante o que o exequente a preencheu em momento anterior ao do termos desse período de carência.
Mais alegou que, nos termos do aval prestado, apenas garantiu 25% do crédito contratado. Ora, não tendo o exequente alegado, no requerimento executivo, qual o valor do crédito contratado e não constando este da própria livrança, deve concluir-se que esta não vale por si própria, enquanto título executivo.
O exequente contestou. Alegou a suficiência da livrança para servir como título executivo; alegou que o valor de preenchimento da livrança corresponde a 25% do crédito e júris; e alegou que o período de carência do crédito respeitava ao capital, sendo que a mutuária jamais pagou as prestações relativas a juros e seguros que desde o início se foram vencendo.
Foi proferido despacho saneador, no qual a Sra. Juíza afirmou estar habilitada ao conhecimento parcial do mérito da causa, decidindo nos seguintes termos, quanto às excepções arguidas:
“(…)
O título contém todos os factos que fundamentam o pedido porque a emissão de uma letra ou qualquer outro título cambiário envolve a constituição ou reconhecimento de uma obrigação cambiária de carácter abstracto.
Assim, nada mais carecia o exequente de alegar, consubstanciando o próprio título a causa de pedir – art. 10º, nº 5 do Código de Processo Civil.
Só assim não seria se a livrança tivesse perdido as características de título cambiário, em virtude, v.g. de prescrição.
No caso dos autos, não se vislumbra nem vem alegado que a livrança tenha prescrito ou que por outro motivo a mesma não valha como título de crédito, ou seja, como livrança, que repete-se envolve a constituição ou reconhecimento de uma obrigação cambiária de carácter abstracto, pelo que é auto-suficiente em termos da sua exequibilidade, atentas as características de literalidade inerentes ao próprio título – art. 75º da LULLiv.
A causa de pedir é assim, apenas, a promessa pura e simples de pagar uma determinada quantia, num determinado momento, a uma determinada pessoa, ou seja, o que consta da livrança.
Está assim dispensada a exequente de indicar qualquer facto suplementar no requerimento executivo, improcedendo pois a invocada ineptidão.
(…)
A livrança em causa nos autos cumpre todos os requisitos previstos no art. 75º da LULLiv.
Existe assim título executivo bastante, sem prejuízo, naturalmente de poder tal força executiva ser impedida pela procedência das demais excepções invocadas, como o pagamento, a violação do pacto de preenchimento, ou o pagamento.
Pelo exposto, julgo improcedentes a invocadas excepções de ineptidão do requerimento executivo e falta de título executivo.”
*
Depois, foi indicado o objecto do litígio e selecionados os temas de prova: “OBJECTO DO LITÍGIO − A liquidação e exigibilidade da quantia exequenda; TEMAS DA PROVA 1. Cumprimento das obrigações contratuais emergentes para a embargante que a livrança dada à execução se destinava a garantir. 2. . Existência, conteúdo e cumprimento do pacto de preenchimento da livrança dada à execução.”
*

É da decisão relativa às arguidas excepções que vem interposto o presente recurso, que a embargante termina alinhando as seguintes conclusões:
I – A livrança apresentada à execução foi preenchida ao abrigo de pacto de preenchimento não alegado nem provado pelo Exequente, não podendo ser considerada automaticamente exequível pela mera apresentação do título.
II – A falta de alegação da relação causal subjacente, exigida pelo artigo 724.º, n.º 1, al. e), do CPC, compromete a validade da livrança como título executivo, ficando por determinar “os fins e os limites da ação executiva” (cf. n.º 5 do artigo 10.º do CPC).
III – O requerimento executivo não contém os factos necessários à exigibilidade da obrigação, como é imposto pelo artigo 186.º, n.º 2, alínea a), do CPC, o que determina a sua ineptidão.
IV – A cláusula literal “Bom para Aval até ao limite de 25% do crédito contratado” impunha ao Exequente o ónus de provar o valor do crédito subjacente – o que o Exequente não fez.
V – Sem recurso ao elemento externo referido na própria livrança, a obrigação da avalista, em face do mero título dado à execução, não é certa, nem exigível, nem líquida, como exige o artigo 713.º do CPC.
VI – A omissão de pronúncia sobre a cláusula de limitação de responsabilidade configura nulidade da decisão, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC.
VII – A decisão recorrida violou o princípio do contraditório, da tutela jurisdicional efetiva e normas legais aplicáveis.
VIII – Deve o presente recurso ser julgado procedente, com a consequente revogação do despacho saneador recorrido.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso de apelação e, em consequeência, sejam julgadas procedentes as excepções de falta de título executivo e de ineptidão do requerimento executivo, seja declarada a nulidade da decisão, por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 615º nº 1 al d) do CPC e, em consequência seja a execução extinta quanto à recorrente, assim fazendo a mais inteira e sã justiça!
*

Não foi oferecida qualquer resposta ao recurso.

*


O recurso foi admitido como apelação, com subida em separado e efeito devolutivo.
Não obstante as questões apreciadas se sediarem no âmbito de excepções dilatórias opostas à execução, entendemos, tal como decidido no Ac. deste TRP de 1135/18.9T8PRT-A.P1, que tal decisão é passível de apelação autónoma, ao abrigo da al. b) do nº 1 do art. 644º do CPC: “Em embargos de executado, a decisão proferida no saneador sobre a exequibilidade do título dado à execução (sobre a falta de título executivo invocada pelo embargado como fundamento para obter a extinção da acção executiva), conhece do mérito relativamente a um dos fundamentos invocados (a uma das excepções invocadas pelo embargante quanto ao pedido executivo), sendo susceptível de apelação autónoma, por se enquadrar na alínea b) do nº 1 do art. 644º do CPC.”
Tal entendimento é, de resto o mesmo da apelante e o do tribunal recorrido.
Cumpre, pois, apreciar o recurso interposto.
*


2- FUNDAMENTAÇÃO

Não cabendo a este Tribunal conhecer de matérias não incluídas nas conclusões, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3 do CPC - é nelas que deve identificar-se o objecto do recurso.
A ora apelante vem colocar as seguintes questões:
1 – A inexequibilidade da livrança de per si, sem recurso a um elemento externo relativo à obrigação subjacente de que resulte o valor do crédito;
2- A omissão de pronúncia sobre tal questão e inerente nulidade da decisão;
3 – O requerimento executivo não contém factos aptos ao necessário complemento da livrança, não se intuindo a exigibilidade da obrigação, o que resulta na ineptidão do requerimento executivo.
*

Para a análise das questões colocadas pela apelante, é útil ter presente que o requerimento executivo se funda única e exclusivamente na livrança dada à execução, tal como alegado.
Diz-se ali, na exposição dos factos que sustentam a pretensão executiva: “Livrança no montante de €24.355,05 (Vinte e quatro mil, trezentos e cinquenta e cinco euros e cinco cêntimos) vencida e não paga, conforme Doc. 1 que se junta e que se dá por reproduzido para todos os efeitos legais, acrescida de juros vencidos e vincendos até efetivo e integral pagamento e honorários do Agente de Execução”.
Assim, como afirmado pela recorrente, nenhuma referência é feita pelo exequente à elação subjacente à emissão da livrança.
Por sua vez, a livrança exequenda mostra-se integralmente preenchida, designadamente quanto ao valor, de 24.355,05€ (vinte e quatro mil trezentos e cinquenta e cinco euros e cinco cêntimos, quanto ao local e data de vencimento, assinatura e carimbo do subscritor, constando ainda do respectivo verso “Bom para aval ao subscritor até ao limite de 25% do crédito contratado”, seguido da assinatura da executada/embargante.”
Facilmente se constata que tal livrança, tal como está preenchida, apresenta todos os caracteres exigidos para a sua validade e eficácia, em conformidade com o disposto no art. 75º da L.U.L.L.
Como se refere na decisão recorrida, nestas condições, a livrança compreende, sem mais, uma obrigação de pagamento relativamente ao valor pelo qual se mostra preenchido, desde que, em atenção à data do seu vencimento, não se mostre prescrito o direito do seu portador.
As conclusões do recurso da apelante circunscrevem as questões em função das quais entende não bastar a apresentação da livrança à cobrança coerciva, na execução a que estes embargos estão apensos, as quais são de resposta simples, tal como resulta da própria decisão recorrida, que não deixou de nelas atentar.
Assim, por um lado, refere a apelante que a limitação da sua responsabilidade por via do aval prestado a 25% do crédito contratado pela subscritora da livrança (a co-executada B... Unipessoal, Lda), constante da própria livrança, impede que se possa aferir da correcta liquidação da sua obrigação como avalista, pois que nada revela qual é o valor do crédito contratado e, por isso, qual o valor pelo qual é responsável e se este é, ou não, o aposto na livrança pelo exequente, pois que é inequívoco que a livrança fora entregue em branco e só veio a ser preenchida em momento ulterior, pelo próprio exequente.
Por outro lado, afirma que a obrigação não é exigível, pois que o crédito contratado que constitui a relação subjacente à emissão da própria livrança previa um período de carência de 24 meses, o qual não se completou até á data aposta como sendo a de vencimento da livrança.
Dando-se por adquirido, para efeitos de argumentação e na medida em que tal questão nem assume qualquer controvérsia nos autos, que a embargante interveio no próprio contrato de crédito subjacente à emissão da livrança exequenda, encontramo-nos, na situação sub judice, no âmbito das relações imediatas.
Tal significa, à luz do regime resultante do art. 10º da L.U.L.L. que não se justifica conferir ao portador da livrança a tutela inerente à literalidade e abstracção dos títulos de câmbio, antes se devendo facultar ao obrigado cambiário a discussão dos termos da sua obrigação, o que o habilita a invocar e demonstrar um eventual preenchimento abusivo da livrança e, por essa via, a obter a exoneração da sua obrigação (cfr., entre muitos outros, o ac. do TRC de 6/12/2016, proc. nº 1419/13.2TBMGR-A.C1).
Todavia, isso não acarreta que a livrança fique desprovida da sua aptidão enquanto título cambiário. Determina, tão só, que o obrigado cambiário pode opor ao portador da livrança, v.g. ao exequente, as excepções que resultem da própria relação subjacente.
In casu, este regime, não excluindo a validade e eficácia da livrança, enquanto título cambiário e, nessa medida, a sua aptidão executiva, permite à ora apelante a oposição à pretensão executiva mediante a invocação do conteúdo do contrato de crédito celebrado entre o exequente e a B... Unipessoal, Lda. e a demonstração de que, em face deste, o valor inscrito na livrança não é o correspondente à obrigação que lhe advém do contrato de crédito, bem como de que tal obrigação não é ainda exigível, face ao clausulado contratual, isto é, face ao período de carência ali previsto.
Repete-se, contudo, que a possibilidade dessa discussão não comporta, a montante, a exclusão da validade e eficácia da livrança enquanto título cambiário. Como é repetido pela jurisprudência, a subscrição de uma livrança em branco confere ao seu portador o direito potestativo ao seu preenchimento. E, desde que este seja completo, em conformidade com o regime da Lei Uniforme já referido, o título fica validamente constituído.
A situação impõe sucessivamente, a qualquer obrigado cambiário, e desde que se permaneça no âmbito das relações imediatas, o ónus de demonstrar que tal preenchimento foi abusivo, i. é, desconforme ao pacto de preenchimento subjacente.
No caso, a discussão que a apelante pretende empreender sobre a limitação da sua responsabilidade a 25% do valor do crédito, bem como quanto à não exigibilidade da sua obrigação, não poderá deixar de ter lugar. Mas essa discussão não impede a validade e eficácia da livrança com os específicos caracteres que lhe foram apostos pelo exequente, se a ora apelante, oportunamente, não lograr demonstrar que o valor que nela foi aposto, de 24.350,00€, e a data de vencimento ali inscrita o foram em desconformidade para com o clausulado no próprio contrato de crédito de onde procedeu a emissão da própria livrança.
Analisada a decisão recorrida, constata-se que foi precisamente isso que ali foi disposto: foi reconhecida a validade da livrança pelos caracteres ali inscritos, designadamente quanto ao valor ali inscrito, em relação ao qual vale a literalidade do título. Qualquer alteração à obrigação ali descrita, designadamente por via da violação do pacto de preenchimento, haverá de ser demonstrada por via da discussão e instrução da causa.
Por isso, as excepções opostas à ineptidão do requerimento executivo e à falta de aptidão da livrança enquanto título executivo foram julgadas improcedentes, o que compreende, além do mais, a conclusão de que a limitação inerente ao aval prestado, de 25% do credito contratado, só poderá operar se a embargante vier a demonstrar que o valor aposto no título, pelo exequente, não cumpriu tal limite.
De resto, em conformidade com isso, o tribunal fixou como objecto do litígio a liquidação e exigibilidade da quantia exequenda, ou seja, a quantificação da obrigação da embargante e a sua exigibilidade por referência ao pacto de preenchimento.
Nestes termos, deve afirmar-se expressamente o que já está implícito no que acaba de expor-se: inexiste a nulidade invocada, por omissão de pronúncia, em relação às questões suscitadas pela embargante, ora apelante. O tribunal decidiu expressamente que tais questões não afectam a validade e eficácia do titulo executivo, sem prejuízo de relevarem em sede de apreciação do mérito dos embargos, remetendo para essa fase a sua decisão.
Cabe, pois, concluir que não se identifica a nulidade prevista na al. d) do nº 1 do art. 615º do CPC.
Em suma, e em plena concordância com a decisão recorrida, cabe afirmar que a aposição da limitação da responsabilidade da embargante, enquanto avalista, a 25% do valor do crédito subjacente à emissão da livrança não torna ilíquida, ab initio, a obrigação cambiária, nem, a faz depender da alegação da alegação da relação subjacente, isto é, daquele contrato de crédito, para que se possa aferir da regularidade do preenchimento da livrança, quanto ao valor nela titulado. Diferentemente, tal limitação faculta a verificação ulterior da conformidade do preenchimento da livrança entregue em branco com o pacto de preenchimento correspondente.
Tal conformidade, tal como a exigibilidade da obrigação, serão, todavia, objecto de discussão em sede de mérito dos embargos, pois que as questões que a tal propósito a embargante opõe não afectam a validade e eficácia da livrança que se mostra completa quanto a todos os seus caracteres essenciais.
Resta, em conclusão, afirmar a confirmação da douta decisão recorrida, na rejeição de provimento ao presente recurso de apelação.
*



Sumário (art. 663º, nº 7 do CPC).
…………………………………..
…………………………………..
…………………………………..


*








3 - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em negar provimento à presente apelação, com o que confirmam a decisão recorrida.

Custas pela apelante.

Registe e notifique.










Porto, 25 de Novembro de 2025

Rui Moreira

Raquel Correia Lima

João Proença