Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
32/25.6T8FLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MENDES COELHO
Descritores: PASSAGEM FORÇADA MOMENTÂNEA
FEITURA DE OBRA
Nº do Documento: RP2025101332/25.6T8FLG.P1
Data do Acordão: 10/13/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – O que se prevê no nº1 do art. 1349º do C. Civil é o consentimento para passar por prédio alheio para fazer obra em prédio do próprio (normalmente com aquele confinante e cuja passagem por ele de materiais, objetos ou colocação de estruturas de apoio é necessária para se poder fazer aquela obra) e não para fazer obra naquele prédio alheio.
II – O prédio alheio ali referido é apenas um local de passagem ou de apoio para a obra que a pessoa pretende levar a cabo no seu próprio prédio e não o local sobre o qual se visa realizar a obra.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 32/25.6T8FLG.P1

Relator: António Mendes Coelho

1º Adjunto: Maria de Fátima Almeida Andrade

2º Adjunto: Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I Relatório[1]

AA intentou processo especial de suprimento de consentimento nos termos e ao abrigo do preceituado no art. 1000º do CPC contra BB, pedindo que o réu seja condenado a “consentir/autorizar a entrada forçada momentânea do A. no seu prédio, sito em ..., freguesia ..., do concelho de Felgueiras, com acesso pela Rua ... (a norte) e pela Viela ... (a poente)”.

Alegou, em síntese:

- é dono de prédio urbano composto de casa de rés do chão e quintal sito na Viela ..., ..., da freguesia ..., concelho de Felgueiras, cuja inscrição matricial e descrição no registo identifica, e, por sua vez, o réu é dono do prédio urbano contíguo ao seu;

- em data que não sabe precisar mas que ocorreu no mês de Novembro de 2022, o réu entubou e aterrou num tubo de cimento de 0,40cm a água de consortes que ele, ante possuidores e demais consortes dos prédios vizinhos utilizavam para fins de cultivo, rega e domésticos, nomeadamente para os animais, há mais de trinta anos, e que, por força dessa obra levada a cabo por aquele, deixou de correr para a sua propriedade, impedindo-o do seu uso;

- não obstante as várias comunicações que por si lhe foram enviadas, o réu até à data nunca lhe respondeu, nem repôs o normal curso e fluência das águas de consortes e da hidráulica que servem o prédio do aqui A., bem como não o autorizou a fazer as obras necessárias à sua reposição, pelo que, através da presente ação, vem requerer o “suprimento do consentimento” do réu para a sua entrada forçada momentânea no seu prédio para realizar as obras necessárias à reposição natural da situação pré-existente a novembro de 2022 e agosto de 2023;

- invocou para sustentar a sua pretensão o disposto no art. 1349º nº1 do C. Civil.

Conclusos os autos para despacho liminar, foi proferido despacho com o seguinte conteúdo (transcreve-se o mesmo, com exceção do relatório dele constante):

(…)

Cumpre apreciar, desde já, se é admissível o recuso àpresente acção especial de suprimento de consentimento, prevista nos artigos 1000º e seguintes do Código de Processo Civil.

Atendendo que a excepção a conhecer decorre da própria petição inicial e sendo manifesta a sua simplicidade, é desnecessário garantir o contraditório, o que dispensamos nos termos do n.º 3, do artigo 3.º, do Código de Processo Civil.

Dir-se-á, desde logo, que a acção de suprimento de consentimento instaurada não é a própria, porquanto o disposto no artigo 1349º do Código Civil, normativo em que o Autor funda a sua causa de pedir, não prevê o suprimento judicial do consentimento.

Dispõe o artigo 1349º do Código Civil:

“1. Se, para reparar algum edifício ou construção, for indispensável levantar andaime, colocar objetos sobre prédio alheio, fazer passar por ele os materiais para a obra ou praticar outros atos análogos, é o dono do prédio obrigado a consentir nesses atos.

2. É igualmente permitido o acesso a prédio alheio a quem pretenda apoderar-se de coisas suas que acidentalmente nele se encontrem; o proprietário pode impedir o acesso, entregando a coisa ao seu dono.

3. Em qualquer dos casos previstos neste artigo, o proprietário tem direito a ser indemnizado do prejuízo sofrido.”

A norma é expressão de uma restrição ao direito de propriedade.

No âmbito de uma relação jurídica de vizinhança, a necessidade da obra justifica que se possa aceder ao prédio vizinho. Este está obrigado a consentir nos atos de acesso necessários.

O artigo 1000º do Código de Processo Civil diz:

“1- Se for pedido o suprimento do consentimento, nos casos em que a lei o admite, com o fundamento de recusa, é citado o recusante para contestar.

2 - Deduzindo o citado contestação, é designado dia para a audiência final, depois de concluídas as diligências que haja necessidade de realizar previamente.

3- Na audiência são ouvidos os interessados e, produzidas as provas que forem admitidas, resolve-se, sendo a resolução transcrita na ata da audiência.

4 - Não havendo contestação, o juiz resolve, depois de obter as informações e esclarecimentos necessários.

Ora, da leitura da petição inicial, facilmente se retira que não estamos perante nenhum dos casos previstos no artigo 1349º do Código Civil, pois o que o Autor pretende não é reparar algum edifício ou construção, levantar andaime, colocar objetos sobre prédio alheio, fazer passar por ele os materiais para a obra nem apoderar-se de coisas suas que acidentalmente nele se encontrem, situações expressamente previstas no citado normativo, pretende sim proceder à reposição de uma situação que alega ter existido antes da alegada intervenção do réu no curso de uma água que alega ser de consortes, o que facilmente se constata não ser este processo o processualmente adequado para fazer valer esse seu alegado direito.

Por outo lado, ainda que assim se não entendesse, não prevendo o artigo 1349º, nº1 do Cód. Civil o suprimento judicial do consentimento do proprietário do prédio vizinho, o Autor não tem direito de fazer suprir, como peticiona, o consentimento do Réu.

Com efeito, na discussão sobre a aplicabilidade deste tipo de processo, todos estão de acordo que é necessário que a lei substantiva preveja o suprimento judicial do consentimento.

O processo de suprimento do consentimento não foi organizado para qualquer acto – mas apenas para o pedido de suprimento do consentimento, nos casos que a lei o admite. É, portanto, à lei substantiva e não à lei adjectiva que compete fixar os casos em que a recusa ou a fala de consentimento pode ser suprida. E o princípio geral não pode ser senão este: o consentimento só pode ser suprido judicialmente quando a lei reguladora do respectivo acto jurídico permitir o suprimento. Se a lei nada disser a tal respeito, tem de concluir-se que o suprimento é inadmissível.

Assim, não prevendo o artigo 1349º, nº1 do Cód. Civil o suprimento judicial do consentimento do proprietário do prédio vizinho, o Autor não tem direito de fazer suprir, como peticiona, o consentimento do Réu.

Pelo exposto, conclui-se que, pelas questões a decidir, a forma de processo escolhida pelo Autor não é a adequada, o que configura exceção inominada, impeditiva do conhecimento do mérito da causa e determinante de decisão de absolvição da instância, nos termos dos artigos 577.º e 578.º, ambos do Código de Processo Civil.

Deste modo, o Tribunal decide julgar procedente a aludida excepção e, em consequência, absolver o Réu da instância – artigo 278º, nº1, al. e) do CPC.

Custas pelo Autor – cfr. art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do Cód. Proc. Civil.

De tal despacho veio o autor interpor recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1º.- Decidiu o tribunal a quo a improcedência da presente ação, absolvendo o Réu da instância, por entender que a ação de suprimento de consentimento instaurada não é a própria, porquanto o disposto no artigo 1349º do C. Civil, normativo em que o Apelante funda a sua causa de pedir, não prevê o suprimento judicial do consentimento.

2º.- Decisão de que o Apelante discorda porquanto dispondo o artigo 1000º do C.P.C que o fundamento para a ação do suprimento do consentimento reside na recusa de um terceiro em consentir algo, a mesma se cinja tão só aos casos em que a lei o admita de uma forma concreta e especifica.

3.º - Como defendem Antunes Varela e Pires de Lima, as alterações introduzidas no Código Civil, fruto da sessão da Comissão Revisora em Maio de 1957, à norma que atualmente corresponde ao artigo 1349.º do Código Civil, visaram dar-lhe uma redação mais ampla, por forma a abranger outras situações não claramente abrangidas ou, então, fazer nele uma enumeração exemplificativa»

4.º - Expressão essa que aliás se retira do próprio texto da norma quando refere «fazer passar por ele os materiais para a obra ou praticar outros atos análogos», nele se incluindo, a nosso ver, qualquer obra que aquele que tenha um direito de real de gozo pretenda/necessite fazer em determinado prédio e que se encontre impedido de por fazer por recusa do proprietário do prédio vizinho.

5.º - Encontra-se a nosso ver incluída na previsão do artigo 1349.º do Código Civil a realização de obra de reposição do curso normal de águas de consorte que passam em prédio vizinho de que o titular não possa beneficiar fruto da recusa ou inerciado proprietário daquele prédio.

6.º - Salvo melhor entendimento a reposição de servidão de aquedutagem de água de consortes encontra-se englobada no conceito geral de “obra”, como qualquer trabalho realizado ou a realizar que resulte da ação do homem.

7.º - Afigura-se-nos, pois, em face do exposto, que o suprimento do consentimento do Réu que o Autor pretende obter para os fins mencionados na petição inicial pode ser obtido através do recurso ao processo especial de suprimento do consentimento, uma vez que o ato pretendido executar se engloba no artigo 1349.º do Código Civil, pelo que, não existe fundamento para o indeferimento liminar da petição inicial.

8.º - Viola a decisão proferida o disposto nos artigos 1000.º do CPC e 1349.º do Código Civil, impondo-se revogar a decisão de indeferimento liminar e, em consequência, ordenar o prosseguimento dos autos até final.

Não houve contra-alegações.

Foram dispensados os vistos ao abrigo do art. 657º nº4 do CPC.

Considerando que o objeto do recurso – sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso – é delimitado pelas suas conclusões (arts. 635º nº4 e 639º nº1 do CPC), há apenas uma questão a tratar: apurar se o processo especial instaurado pelo autor deve prosseguir os seus termos.


**

II – Fundamentação

Vamos ao tratamento da questão enunciada.

Tanto quanto resulta da petição inicial, o que o autor pretende é fazer valer o seu direito à “água de consortes que nasce numa mina existente a poente dos prédios do A. e do Réu” (artigos 9º, 10º, 11º e 27º), água essa que, segundo alega, “o Réu entubou e aterrou num tubo de cimento de 0,40cm, em data que o A. não sabe precisar mas que ocorreu no mês de Novembro de 2022” e que “por força dessa obra deixou de correr para a propriedade do A., impedindo-o do seu uso” (artigos 25º e 26º), tendo interposto o processo especial dos autos, previsto no art. 1000º do CPC, para, conforme previsão do art. 1349º nº1 do C. Civil, requerer o “suprimento do consentimento” do réu para a sua entrada forçada momentânea no prédio deste último “para realizar as obras necessárias à reposição natural da situação pré-existente a novembro de 2022 e agosto de 2023” (artigo 34º, articulado com o pedido deduzido a final e já referido no relatório deste acórdão).

Portanto, há um litígio entre o autor e o réu sobre o direito à água alegado pelo primeiro e que este considera estar a ser violado pelo segundo, pretendendo aquele, por via do processo especial dos autos, ir ao prédio deste fazer nele, por si próprio, as obras necessárias à reposição do seu uso da água.

Ora, o reconhecimento deste alegado direito do autor, sua violação e o providenciar pela efetivação de obras para repor o seu exercício é manifesto que não pode ser feito através do processo especial interposto pelo autor com base na previsão do art. 1349º nº 1 do C. Civil – onde se dispõe que “Se, para reparar algum edifício ou construção, for indispensável levantar andaime, colocar objetos sobre prédio alheio, fazer passar por ele os materiais para a obra ou praticar outros atos análogos, é o dono do prédio obrigado a consentir nesses atos”.

Efetivamente, como decorre de tal disposição, o que ali se prevê é o consentimento para passar por prédio alheio para fazer obra em prédio do próprio[2] (normalmente com aquele confinante e cuja passagem por ele de materiais, objetos ou colocação de estruturas de apoio é necessária para se poder fazer aquela obra) e não, como nos parece óbvio, para fazer obra naquele prédio alheio.

O prédio alheio ali referido – que, no caso, seria o do réu – é apenas um local de passagem ou de apoio para a obra que a pessoa pretende levar a cabo no seu próprio prédio e não o local sobre o qual se visa realizar a obra, como, em interpretação completamente errónea daquele preceito, pretende o autor.

Do que se vem de referir, é de concluir que, no caso, não existe o direito de passagem forçada cujo suprimento o autor pretende exercer através da ação especial que propôs.

Assim sendo, mais do que um erro na forma de processo (que, estando-se apenas ainda em presença da petição inicial, levaria ao seu aproveitamento e a que se determinasse a prática dos atos necessários para que o processo se aproximasse da forma processual correta – art. 193º nº1 do CPC) ou até de uma inadequação total da petição à forma processual a seguir (que, tanto quanto nos parece, não pode deixar de ser uma ação declarativa, em que se peça o reconhecimento do direito à água que se entende ter, a violação do mesmo e a condenação do infrator a efetivar as obras para repor o seu exercício), a qual levaria à anulação de todo o processado e consequente extinção da instância (art. 278º nº1 b) do CPC)[3], o que está em causa não é a exceção dilatória inominada pela qual se concluiu no despacho recorrido, mas sim a manifesta improcedência do direito de passagem forçada invocado pelo autor.

Esta manifesta improcedência é motivo de indeferimento liminar da petição (art. 590º nº1 do CPC).

Assim, embora com diferente fundamentação, é de confirmar o indeferimento liminar da petição que a decisão recorrida consubstancia.

Do que se vem de expor, é de concluir pela improcedência do recurso.

As custas do recurso são da responsabilidade do recorrente, que nele decaiu (art. 527º nºs 1 e 2 do CPC).


*

Sumário (da exclusiva responsabilidade do relator – art. 663 º nº7 do CPC):

………………………………

………………………………

………………………………


**

III – Decisão

Por tudo o exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso e, embora com diferente fundamentação, confirmar o indeferimento liminar da petição que a decisão recorrida consubstancia.

Custas pelo recorrente.


***
Porto, 13/10/2025
Mendes Coelho
Fátima Andrade
Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
___________________
[1] Segue-se, com pequenas alterações, o relatório de decisão recorrida.
[2][2] Abrangendo “todo aquele que tenha o direito de fazer obras em determinado prédio, seja ao abrigo de um direito real (propriedade, usufruto, superfície, etc.), seja ao abrigo de um direito simplesmente creditório (caso, v.g., de um arrendatário que pretenda fazer benfeitorias no prédio arrendado”, como referem Pires de Lima e Antunes Varela no seu “Código Civil Anotado”, Vol. III, 2ª edição, Coimbra Editora, 1987, pág. 184.
[3] Neste sentido, vide José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, Volume 1º, 4ª edição, Almedina, 2018, pág. 396, na anotação 3 ao art. 193º.