Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0424271
Nº Convencional: JTRP00037632
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: ALEGAÇÕES
MATÉRIA DE FACTO
EMPREITADA
REDUÇÃO
PREÇO
Nº do Documento: RP200501250424271
Data do Acordão: 01/25/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA A DECISÃO.
Área Temática: .
Sumário: I - O incumprimento dos ónus do recorrente sobre a matéria de facto, conduz à rejeição do recurso nessa parte, não sendo possível convidar o faltoso ao seu cumprimento.
II - Para que se opere a redução do preço na empreitada não basta que se alegue o não cumprimento ou o cumprimento defeituoso da prestação a cargo do empreiteiro.
III - É ainda necessário que, para além da inadequação da obra ao fim a que se destina, concorram duas circunstâncias: a interpelação da devedora para eliminação ou correcção dos defeitos; e, não ocorrendo esta, a fixação de um prazo razoável para o efeito.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I. RELATÓRIO

“B....., Lda.”, anteriormente denominada “C....., Lda.”, com sede na Rua....., ....., ....., propôs, nos Juízos Cíveis de Lisboa, a presente acção declarativa de condenação, sob a forma sumária, contra a Fundação de D....., com sede na Rua de....., ....., pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 2.740,53, relativa à prestação de serviços de informática, os juros de mora já vencidos no valor de 2.503,19 e também os juros vincendos, à taxa legal, até integral e efectivo pagamento.

Na contestação a Ré arguiu a incompetência territorial dos Juízos Cíveis de Lisboa, sustentando que a competência devia ser atribuída aos Juízos Cíveis do Porto.
Referiu ainda que só não pagou a parte do preço em falta porque a Autora não cumpriu o contrato nos termos que haviam ficado acordados.
Sem prescindir, a Ré invocou a prescrição do alegado crédito da Autora e dos respectivos juros, bem como o abuso de direito.
Em reconvenção, a Ré reclamou da Autora o pagamento da quantia de € 4.884,84 referente às despesas que teve de suportar para fazer operar devidamente o sistema informático fornecido pela Autora.
No final do seu articulado, a Ré pediu a condenação da Autora, em multa e indemnização, por litigar de má fé.

Na resposta, a Autora impugnou os factos em que a Ré assentou o pedido reconvencional, rebateu a matéria de defesa por excepção e sustentou não se verificar abuso de direito nem litigância de má fé da sua parte.

No despacho proferido a fls. 133/134 foi julgada procedente a excepção da incompetência territorial, julgando-se competentes os Juízos Cíveis do Porto, onde passaram a ser tramitados autos, depois de distribuídos ao juiz do -º e -º Juízos

Proferiu-se o despacho saneador, tendo-se julgado improcedente a excepção da prescrição do direito alegado pela Autora.

Fixaram-se os Factos Assentes e organizou-se a Base Instrutória, sem que surgissem reclamações das partes.

Realizou-se o julgamento, tendo-se respondido à matéria da Base Instrutória pela forma e com a fundamentação que consta de fls. 223 a 227, sem qualquer crítica das partes.

Por fim, foi lavrada a sentença que julgou improcedente a acção e procedente a excepção peremptória da caducidade do direito à indemnização peticionada em sede de reconvenção, absolvendo-se, respectivamente, a Ré e a Autora dos pedidos formulados.
Condenou-se, no entanto, a Autora, como litigante de má fé, na multa de 6 Uc’s e no pagamento de uma indemnização à parte contrária, cujo montante se relegou para momento posterior.

A Autora recorreu da sentença.
O recurso foi admitido como sendo de apelação, com efeito meramente devolutivo (v. fls. 246).

Na motivação do recurso a Autora pede a revogação da sentença e formula as seguintes conclusões:
1. Ao contrário do que se decidiu na sentença “a quo”, deve ser dada por não provada a matéria constante da alínea c) da sentença com a seguinte redacção:
“Na altura em que adjudicou os fornecimentos referidos em e) à A. a R. salientou à A. a importância fundamental no cumprimento dos prazos previstos e no perfeito funcionamento do equipamento e sistemas que aquela se comprometeu a fornecer e implementar”, por não ter sido produzida prova suficiente para que tal matéria fosse dada por provada.
2. Ao contrário do que se decidiu na sentença “a quo”, deve ser dada por não provada a matéria constante da alínea l) da sentença com a seguinte redacção:
- “O arranque da aplicação só se deu em Junho de 1996”
dando, ao contrário, como provado o n.º 19 da Base Instrutória com a seguinte redacção:
“A A. forneceu e implementou integralmente o sistema adjudicado até final de 1995”, por ter sido isso o que resultou da prova produzida.
3. Na sentença “a quo” deve ser dado por provado um esclarecimento à matéria constante da alínea n) da sentença com a seguinte redacção:
“A A. não instalou a área de tratamento de convites e Mailings correspondentes às aplicações ‘Fundadores e Vips e Mailings e Serviços’, devido a opção da própria R. por esta não conseguir definir os respectivos requisitos”
dado que tal resultou inequivocamente da prova produzida.
4. Ao contrário do que se decidiu na sentença “a quo” deve ser dada por não provada a matéria constante da alínea p) da sentença com a seguinte redacção:
“A Ré ao utilizar a aplicação verificou que não existiam algumas funcionalidades requeridas que a A. se havia comprometido a instalar”
por ter sido isso que resultou da prova produzida.
5. Ao contrário do que decidiu na sentença “a quo” deve ser dada por provada a matéria constante dos nºs 20, 21, 22 e 23 da Base Instrutória com a seguinte redacção:
- “A Ré nunca designou uma pessoa responsável para servir de interlocutor entre a A. e o E.....”.
- “O que implicou perda de tempo a todas as partes”.
- “Ao longo de todo o processo a Ré não definiu os requisitos e as funcionalidades da aplicação a instalar”.
- “E frequentemente, após realizar tal definição, alterava novamente a sua posição e pedia novos serviços para tais alterações”, por ser isso o que resultou da prova produzida.
6. A própria sentença recorrida deu por provado que a factura cujo preço a apelante peticionou nos presentes autos respeitava a hardware e software (alínea d) da matéria dada por provada), pelo que não tem qualquer fundamento legítimo a decisão da sentença “a quo” que decide que ela não é devida no seu todo, pois que a apelante executou apenas uma parte do software incluído na proposta (as aplicações de ‘Fundadores e Vips’ e ‘Mailings e Serviços’).
7. Estas aplicações não foram desenvolvidas pela apelante porque a apelada desistiu delas, o que consubstancia alterações a pedido do dono da obra que não dão lugar à diminuição do preço, como defende a sentença recorrida, mas apenas à dedução da parte das despesas que o empreiteiro eventualmente tenha deixado de suportar (art. 1216º, n.º 3, do C. Civil).
8. E nos presentes autos não foi fixado o valor de qualquer eventual despesa que o apelante tivesse deixado de suportar por virtude de tal alteração, pelo que não pode o preço ser reduzido arbitrariamente pela sentença “a quo”, em desrespeito pelo art. 884º do C. Civil que assim foi também violado.
9. Mas, mesmo que se admita que a apelante não prestou todos os serviços propostos, o que só se equaciona por cautela de raciocínio, mesmo assim a apelada apenas teria direito a obter a redução do preço nos termos previstos no art. 884º do C. Civil, após prova de que exigira da apelante, sem sucesso, a eliminação desses defeitos, prova que não fez.
10. Violou, pois, a sentença recorrida os arts. 1221 e 1222º do C. Civil.
11. Acresce que a apelante invocou também a seu favor a excepção da caducidade prevista no art. 1224º do C. Civil e ela aproveita-lhe não só quanto ao pedido de indemnização reconvencional, como o reconhece a sentença “a quo”, mas também quanto ao direito de redução do preço invocado pela apelada na contestação.
12. Ao aplicar tal excepção apenas ao pedido reconvencional e não aplicando à pretendida redução do preço deduzida pela apelada na contestação, violou a sentença recorrida os arts. 1221º e 331º do C. Civil.
13. De facto, tal pedido está de há muito caduco, pois que a apelada recebeu a obra, pelo menos, em Julho de 1996 e daí para cá não executou qualquer acto susceptível de interromper o prazo de caducidade de dois anos previsto no art. 1222º do C. C.
14. Tanto bastava para ser julgado improcedente o direito que a apelada pretende ver reconhecido de reduzir o preço e julgar procedente o pedido formulado pela apelante na p.i.
15. Não litigou também a apelante de má fé nos presente autos, pois que quando defendeu que cumpriu integralmente o fornecimento adjudicado pela apelada referia-se à adjudicação inicial com as alterações acordadas entre as partes durante a sua execução e tal incluía o acordo de não desenvolvimento de algum software incluído na proposta inicial.
16. E, por isso, tinha e tem direito à totalidade do preço acordado.
17. E ainda que alguma redução tivesse lugar, o que só por cautela se admite, nunca poderia incluir toda a factura porque ela respeita também a hardware.
18. Não podendo também qualquer eventual redução de preço ser feita de modo arbitrário pela apelada, que deveria sempre recorrer ao mecanismo previsto no art. 884º do C. Civil.
19. Acresce que não foi a apelante quem directamente executou o software, pois que o subcontratou ao E..... e a informação que recebeu deste é que o serviço fora totalmente efectuado como se comprova aliás dos autos.
20. Pelo que não houve qualquer dolo, ou sequer negligência da apelante no presente caso, mas apenas na interpretação divergente da lei nesta área.
21. Não se vislumbra, pois, ocultação maliciosa da apelada de qualquer facto, ou uso abusivo dos meios ao seu dispor, pelo que, viola a sentença recorrida o art. 456º do CPC, ao condená-la por litigância de má fé, condenação que deve ser revogada.

Nas contra-alegações, a apelada defende a manutenção do julgado, para a hipótese de não proceder a questão prévia da inadmissibilidade do recurso por incumprimento do estabelecido nos arts 690º-A, n.º 1, al. b) e n.º 2 e 522º-C, n.º 2, do CPC.

Foram colhidos os vistos legais.
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Sendo o âmbito do recurso balizado pelas conclusões da recorrente – arts. 684º, n.º 3 e 690º do CPC – as questões em debate são:
a) devem ser alteradas as respostas aos quesitos 1º, 4º, 5º, 10º, 20º, 21º, 22º e 23º da Base Instrutória?
b) a terem-se como verificados os pressupostos da redução do preço, esse direito está caduco?
c) a acção tem condições para proceder?
d) deve ser revogada a sentença na parte em que condenou a apelante como litigante de má fé?
Como questão prévia à sumariada na antecedente alínea a), suscitou a apelada a da rejeição liminar do recurso, com o fundamento de que foram postergadas as normas dos arts. 690º-A, n.º 1, al. b) e n.º 2 e 522º-C, n.º 2, do CPC.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

O Tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos:

a) A Autora é uma sociedade comercial que se dedica à comercialização de produtos informáticos.
b) A Autora procedeu, em 06.05.2002, à alteração da sua anterior denominação social “C....., Lda.” Para “B....., Lda.”, conforme certidão emitida pela Conservatória do Registo Comercial de Lisboa, em 28.05.2002, cuja cópia certificada se encontra a fls. 6 a 18 dos autos e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
c) No exercício da sua actividade a Autora prestou à Ré diversos serviços de informática.
d) A factura cuja cópia se encontra junta a fls. 19 dos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, no valor de € 2.740,53, respeita a uma parte do preço do equipamento e aplicações informáticas (hardware e software) que a Autora se propôs fornecer à Ré, conforme proposta e revisão remetidas pela Autora à Ré, respectivamente, em 3 de Março e 16 de Abril de 1995, cujas cópias se encontram juntas a fls. 31 a 42 dos autos.
e) Na sequência das referidas proposta e revisão, a Ré adjudicou à Autora esse fornecimento e instalação, através da sua carta de 5 de Junho de 1995, pelo preço global de 2.500.000$00 mais IVA, ou seja, 2.925.000$00.
f) O pagamento da factura referida em d) era devido trinta dias após a data da sua emissão.
g) A Ré não pagou à Ré o valor da factura referida em d) na data do respectivo vencimento nem até à presente data.
h) A Ré pagou a parte restante do preço global acordado no fornecimento da aplicação e equipamento informático, no montante de 2.626.419$00.
i) Na altura em que adjudicou os fornecimentos referidos em e) à Autora, a Ré salientou à Autora a importância fundamental no cumprimento dos prazos previstos e no perfeito funcionamento do equipamento e sistema que aquela se comprometeu a fornecer e implementar.
j) A Autora comprometeu-se a fornecer o equipamento e a implementar o sistema, no limite, até ao final do ano de 1995.
l) O arranque da aplicação só se deu em Junho de 1996.
m) No que concerne à instalação do software, a Autora não instalou a área de tratamento de convites e mailings (correspondentes às aplicações ‘Fundadores e Vips’ e ‘Mailings e Serviços’).
n) O fornecimento e serviço de tratamento de convites e mailings (correspondentes às aplicações ‘Fundadores e Vips’ e ‘Mailings e Serviços’) estavam incluídos na proposta da Autora, aceite pela Ré, e tinham um valor de 525.000$00, excluindo IVA, na proposta inicial.
o) O pós-arranque da aplicação foi caracterizado por constantes acções de detecção – correcção de um erro – que se prolongaram por cerca de um ano, com o consequente transtorno no desempenho das tarefas do dia a dia e com perda de confiança na aplicação por parte dos utilizadores.
p) A Ré, ao utilizar a aplicação, verificou que não existiam algumas das funcionalidades requeridas e que a Autora se havia comprometido a instalar.
q) A Ré, ao utilizar a aplicação, verificou a ocorrência constante de erros na referida utilização, constantes avarias e uma deficiente instalação da infra-estrutura de hardware, em especial da ligação em rede para a Casa.
r) A Autora não efectuou a ligação em rede ao Parque/Celeiro que estava prevista na sua proposta e incluída no preço global.
s) A Ré requereu, logo a seguir à emissão da factura referida em d), algumas acções por, alegadamente, ser necessário corrigir erros no software e na utilização.
t) Quando a Ré recebeu a factura referida em d), comunicou à Autora que não aceitava pagar o valor da factura, uma vez que esta não havia fornecido parte do sistema e parte do equipamento e aquilo que forneceu fê-lo deficientemente, não servindo o fim a que se destinava e muito além do prazo convencionado.
u) E referiu à Autora que ia reclamar perante a mesma o montante dos prejuízos sofridos com o incumprimento da Autora, que estavam em fase de apuramento.
v) O mau funcionamento da aplicação implicou despesas acrescidas com horas despendidas por colaboradores da Ré na tentativa de resolução dos problemas criados pela Autora.
x) A Ré contratou a empresa F..... para que esta lhe fizesse uma auditoria aos problemas de instalação e apresentasse soluções que permitissem corrigir o mau funcionamento da mesma, porquanto a Autora não os conseguia resolver.
z) A Ré pagou por esse trabalho a quantia de 678.600$00, o equivalente a € 3.384,84.
aa) Na quantia referida em z) foi incluído o preço do serviço de apoio a uma ligação à Internet.
bb) A Autora propôs à Ré a celebração de um contrato de assistência técnica, suporte e manutenção à aplicação informática que houvera instalado por adjudicação de Junho de 1995.
cc) A proposta referida em bb) não obteve a aceitação da Ré.
dd) Autora e Ré acordaram posteriormente à adjudicação, na sequência de exigências da Ré relativas à preservação dos seus jardins, que a ligação em rede ao Parque/Celeiro fosse feita através de fibra óptica em vez de ser por uma linha normal de comunicação (ligação via modem).
ee) Tal acordo foi objecto de proposta separada, com novos termos e prazos de implementação.
ff) Em meados de 1998, a Ré recebeu uma carta do mandatário da Autora reclamando o valor da factura referida em d), na qual se referia que se o montante em causa não fosse pago se recorreria aos meios judiciais, sem qualquer outro aviso.
gg) O Exº Sr. Dr. G..... enviou ao Exº Sr. Dr. H..... a carta cuja cópia se encontra junta a fls. 110 e 111 dos autos com o seguinte teor:
“Exmº Colega,
Fui incumbido pela m/constituinte Fundação de D..... de responder à carta que o Exmº Colega lhe endereçou a propósito da importância reclamada pela s/constituinte C....., Lda.
Conforme já foi transmitido à constituinte do Exmº Colega pela m/cliente, o valor dos prejuízos que esta efectivamente sofreu com o incumprimento da C....., Lda, nomeadamente ao não ter instalado parte das aplicações a que se havia comprometido, às deficiências das aplicações instaladas e ao ter ultrapassado largamente os prazos fixados, excedem em muito o valor da importância reclamada.
Assim, entende a m/constituinte que nada deve à cliente do Exmº Colega, pelo contrário, é credora do valor dos referidos prejuízos, montante que se encontra em fase de apuramento e que oportunamente será transmitido.
Fico, no entanto, à disposição do Exmº Colega para qualquer esclarecimento suplementar que porventura pretenda ou para reunir com vista a uma solução consensual (…)”.
hh) A Ré enviou à mandatária da Autora a carta cuja cópia se encontra junta a fls. 109 dos autos, datada de 11.09.2002, com o seguinte teor:
“Exmª Senhora
Acusamos a recepção da carta de V. Exª, datada de Agosto p.p., relativamente à qual não podemos deixar de manifestar, desde já, a n/estranheza.
Na verdade, a Sociedade de Advogados que V. Exª representa, na pessoa do Sr. Dr. H....., por carta de 28 de Julho de 1998, reclamou exactamente a mesma quantia e com o mesmo fundamento.
À data, a Fundação de D..... respondeu oportunamente, através de carta do seu advogado, conforme cópia de carta que, por facilidade, se junta novamente e para cujo teor remetemos, dando-o por integralmente reproduzido para os devidos efeitos (…)”.

O DIREITO

Questão Prévia

A apelada começou por suscitar a questão prévia da rejeição do recurso, por incumprimento do preceituado nos art. 690º-A, n.º 1, al. b) e n.º 2 e no art. 522º-C, n.º 2, ambos do CPC, já que – segundo afirma – a apelante não indica nas conclusões os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida e também omite qualquer referência dos depoimentos que invoca ao assinalado em acta.
Há que ter presente que são dois os ónus que o art. 690º impõe ao recorrente: o ónus de alegar e o ónus de formular conclusões.
O recorrente cumpre o ónus de alegar apresentando uma peça processual onde expõe os motivos da sua impugnação, explicitando as razões por que entende que a decisão é errada ou injusta, através de argumentação sobre os factos, o resultado da prova, a interpretação e aplicação do direito, para além de especificar o objectivo que visa alcançar com o recurso.
(…)
Expostas pelo recorrente, no corpo da alegação, as razões de facto e de direito da sua discordância com a decisão impugnada, deve ele, face à sua vinculação ao ónus de formular conclusões, terminar a sua minuta pela indicação resumida, através de proposições sintéticas, dos fundamentos de facto e/ou de direito, por que pede a alteração ou anulação da decisão – v. Amâncio Ferreira, “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 3ª edição, págs. 147/148.

Vejamos, agora, o que diz o art. 690º-A do CPC:
“1. Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados.
b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios indicados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 522º-C.
(…).”
O art. 522º-C, por seu turno, estabelece no seu n.º 2 que:
“Quando haja lugar a registo áudio ou vídeo, deve ser assinalado na acta o início e o termo da gravação de cada depoimento, informação ou esclarecimento”.

Versando o recurso apenas sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar os aspectos especificados no n.º 2 do art. 690º. Quando as conclusões faltem, sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações a que alude o n.º 2, o recorrente deve ser convidado a apresentá-las, completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, sob pena de não se conhecer do recurso na parte afectada – v. art. 690º, n.º 4.
Este n.º 4 não tem norma equiparável no âmbito do recurso em que se impugne a decisão sobre a matéria de facto.
Com efeito, o art. 690º-A nada prevê quanto à omissão ou deficiência das conclusões relativas às especificações obrigatórias estipuladas no nºs 1, als. a) e b) e n.º 2.
No Ac. do STJ de 01.10.1998, publicado no BMJ 480, pág. 348, entendeu-se que deveria ser estendido ao art. 690º-A o disposto no n.º 4 do art. 690º, em homenagem aos princípios gerais da cooperação e da decisão do processo pelo juiz. Esse entendimento é, porém, energicamente recusado pela doutrina mais autorizada.
Assim, Amâncio Ferreira, em “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 3ª edição, pág. 150, anotação 301, critica aberta a solução adoptada nesse acórdão. A principal razão que aponta para a imediata rejeição do recurso é a de que o legislador nada declarou ou previu quanto a essa possibilidade de convite prévio, ao contrário do que sucede nos casos do art. 690º, n.º 4 e 75º-A, n.º 5 da Lei do Tribunal Constitucional. Esta posição é também assumida por Lopes do Rego, “Comentários ao Código de Processo Civil”, 1999, pág. 466, Leal-Henriques, “Recursos em Processo Civil”, 3ª edição, pág. 61, e Lebre de Freitas, “Código de Processo Civil Anotado”, Volume 3º, pág. 53.
Supomos ser esta a melhor interpretação do preceito em causa. A faculdade concedida às partes para impugnarem a matéria de facto constituiu um importante passo no sentido de se tornar efectivo um duplo grau de jurisdição nesse campo. Mas não se deve levar essa possibilidade ao extremo, designadamente quando as partes interessadas na modificação da decisão da matéria de facto negligenciam os requisitos mínimos que a lei impõe para tal desiderato. Como ironicamente refere Amâncio Ferreira, loc. cit., a seguir-se o caminho propugnado nesse acórdão, pouco faltaria para, antes de se julgar deserto o recurso por falta de alegações, se formulasse um convite prévio ao recorrente para que as apresentasse. Por outro lado – e este é o argumento mais decisivo –, se tivesse querido, o legislador teria consagrado norma idêntica à do n.º 4 do art. 690º, porque se presume que ao legislar terá delineado as soluções mais acertadas ao fim em vista, exprimindo o seu pensamento em termos adequados – v. art. 9º do CC.
Como se alcança da leitura das alegações da apelante, o recurso abrange matéria de facto e matéria de Direito.
No que concerne à parte atinente à matéria de facto, o recurso falha o requisito exigido pela alínea b) do n.º 1 do art. 690º-A, na medida em que nas conclusões não vêm indicados os meios probatórios concretos que justificariam - na tese da apelante - decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados.
A inobservância desse ónus, adjectivado de “rigoroso” por Lebre de Freitas, loc. cit., conduz à rejeição do recurso nessa parte, e impede o conhecimento da questão sumariada sob a alínea a).

No entanto, como o recurso também abriga matéria de direito, não será caso de rejeição total do mesmo, havendo apenas que conhecer das questões de direito nele suscitadas ou de outras que o tribunal considere dever tratar, na medida em que é livre de o fazer – art. 664º, n.º 1, do CPC.

a)
Considera-se, face ao acabado de decidir, definitivamente assente a matéria de facto acima descrita.

b)
Ponto de partida para o conhecimento do demais impugnado no recurso, é a caracterização do contrato firmado entre Autora (apelante) e Ré (apelada).
A Autora forneceu à Ré equipamento informático e obrigou-se a instalar as devidas aplicações (hardware e software) mediante a contrapartida pecuniária da Ré fixada na alínea e) dos Factos Provados.
Este contrato tem, quanto a nós, natureza mista.
Na verdade, num só contrato, Autora e Ré juntaram dois tipos contratuais distintos: o de compra e venda e o de empreitada. Uma das partes (a Autora) obrigou-se a várias prestações principais, próprias de outras tantas categorias de contratos (venda de equipamento e instalação das aplicações informáticas), e a outra parte (Ré) obrigou-se a uma prestação global e unitária (pagamento do preço). Não há aqui mera união de contratos, mas verdadeira fusão, porque os contratos componentes se misturam, de tal modo que, se as respectivas obrigações se distinguem quanto a um dos contraentes (Autora), não se distinguem quanto ao outro (Ré), adstrito a uma prestação unitária, indiferenciada – v. Galvão Telles, “Manual dos Contratos em Geral”, 4ª edição, pág. 471.
Em caso idêntico assim concluiu o STJ, no acórdão de 05.07.1994, CJSTJ, Ano II, Tomo II, pág. 174, onde se escreveu o seguinte:
“ … face ao conteúdo do contrato celebrado entre autora e ré, tendo esta o fim de adquirir, para si, um equipamento informático mas, também, que esse equipamento fosse instalado, pela autora, na sua sede para os fins já atrás referidos e com interligações necessárias para que as suas actividades fossem sujeitas a tratamento informático, tal contrato é misto, de compra e venda e empreitada”.
No que concerne à instalação das aplicações informáticas pela Autora, tal contrato deverá ser regulado pelas disposições do contrato de empreitada, segundo os princípios da teoria da combinação – v. Galvão Telles, ob. cit., págs. 474/475. Para esta teoria, “a disciplina legal de cada contrato típico (…) não se justifica apenas nos casos que integram todos os seus elementos constitutivos, mas também nas espécies em que cada um destes elementos se instala, embora só para fixar o regime próprio desses elementos” – v. Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral” , Vol. I, 4ª edição, pág. 248.

Chegados a este ponto, vejamos se colhem as conclusões 6ª e seguintes da apelação.
As conclusões 6ª a 8ª do recurso estão votadas ao insucesso por estarem ligadas a matéria de facto não alegada e, por isso, não submetida ao juízo do tribunal recorrido. Nos seus articulados (petição inicial e resposta) a Autora/apelante não alegou que tivesse havido desistência da Ré em relação às aplicações ‘Fundadores e Vips’ e ‘Mailings e Serviços’. Talvez por estar ciente disso é que a apelante defende eufemisticamente ao longo da impugnação da matéria de facto, que deve ser aditado esse esclarecimento à matéria provada sob a alínea n) – cfr. conclusão 3ª. Trata-se, sem dúvida, de questão nova sobre a qual este tribunal de recurso não deve nem pode pronunciar-se.
A realidade que não pode ser escamoteada é que a Autora não instalou as aplicações aludidas na alínea m), sendo que elas se integravam num pacote mais vasto de aplicações na área do software – cfr. doc. fls. 40, junto com a contestação.
É também certo que a Ré reclamou, em termos genéricos, do mau funcionamento do software e das utilizações que o mesmo proporcionava – cfr. s). E, após ter recebido a factura referida em d), informou a Autora de que exigiria desta o pagamento das despesas originadas pelo seu incumprimento.
Esta intenção da Ré foi concretizada quando deduziu o pedido reconvencional no articulado de fls. 24 e ss. Mas, a sentença considerou caduco o direito à indemnização deduzido pela Ré.
Uma coisa se torna, porém, evidente: a sentença, ao julgar improcedente o pedido da Autora, que se limitava a reclamar o pagamento da factura mencionada em d) - na qual se incluíam aplicações de software e de hardware - acabou por operar a redução do preço acordado com o único fundamento de que a Autora não havia prestado parte da sua obrigação, a saber, a instalação das aplicações que vêm referidas na alínea m) e cujo preço se cifrava em Esc. 525.000$00 – cfr. n).
Esta posição do tribunal recorrido não é aceitável.
A redução do preço da empreitada, prevista no art. 1222º, depende da correcta e fundada alegação dos seus pressupostos.
Na contestação, a Ré defende a redução do preço, na medida do valor dos serviços não efectuados pela Autora – cfr. art. 19º desse articulado. E era possível proceder à redução nos termos propostos pela Ré, porquanto está perfeitamente autonomizada a verba relativa aos serviços não realizados – cfr. art. 884º do CC, aplicável por remissão do art. 1222º, n.º 2, do mesmo código.
Porém, para que se opere a redução do preço da empreitada não basta que se alegue o não cumprimento ou o cumprimento defeituoso da prestação a cargo do empreiteiro. É ainda necessário que, para além da inadequação da obra ao fim a que se destina - o que, no caso, se dá de barato face ao que consta da parte final da alínea t) - concorram duas circunstâncias: a interpelação da devedora (Autora) para que esta elimine ou corrija os defeitos em causa; e, caso essa eliminação ou correcção não ocorra, a fixação de um prazo (razoável) para o efeito – cfr. arts. 777º, 804º, 805º e 808º do CC.
Nada disto parece ter ocorrido. A reclamação da Ré, nos termos que ficaram provados, é genérica – v. al.s) – e, por outro lado, não resulta dos autos que tenha sido fixado prazo à Autora para corrigir os erros detectados na instalação das aplicações referidas em m).
Mas mesmo na hipótese de se considerar fundamentada a redução do preço, havia que julgar procedente a excepção da caducidade do respectivo direito, alegada pela Autora na resposta (cfr. art. 61º), nos termos do que preceitua o art. 1224º, n.º 2, do CC, pois que a Ré nada reclamou da Autora a esse título no prazo de dois anos após a entrega da obra.
Nesta medida, procedem as conclusões 9ª a 14ª.

c)
Não havendo lugar, por inexistência dos seus pressupostos, à redução do preço, tem a Ré, em princípio, de pagar a parcela do preço em falta, ou seja Esc. 525.000$00.
A procedência da acção passa, contudo, pela apreciação da matéria de defesa por excepção arguida pela Ré na contestação.
Funcionando este Tribunal ad quem em substituição do Tribunal recorrido, há que conhecer das questões abordadas nesse articulado, não resolvidas em momentos processuais anteriores: abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium” e prescrição dos juros de mora.
Em relação ao abuso de direito, a Ré alega que após ter explicado à Autora as razões por que não pagava a factura aludida em d), esta nada mais disse, fazendo crer àquela que aceitava e concordava com aquelas razões. A propositura da presente acção quatro anos depois, consubstancia –segundo ela – abuso de direito.
Vejamos:
O fornecimento do material e a instalação das aplicações remontam ao final do ano de 1995.
Não obstante a acção só ter sido proposta em Outubro de 2002, parece-nos evidente que não existe nenhum comportamento contraditório da Autora justificativo da modalidade de abuso de direito invocada pela Ré. De facto, o silêncio da Autora em relação às comunicações que constam das alíneas t) e u) não pode ter o significado que a Ré pretende dar-lhe. As atitudes de antagonismo face ao cumprimento contratual protagonizadas por ambas as partes não reivindicam destas tomadas de posição permanentes sobre o mesmo tema. Por isso, a presente demanda não deve ser encarada como uma manifestação atentatória da confiança da Ré de que o exercício do direito da Autora não mais teria lugar. Tanto mais que, conforme ficou provado em ff), em meados de 1998, o mandatário da Autora enviou à Ré uma carta na qual reclamou o valor da factura referida em d), referindo que se o montante em causa não fosse pago se recorreria aos meios judiciais, sem qualquer outro aviso.

No que toca à prescrição dos juros de mora, a razão não está, mais uma vez, com a Ré/apelada.
Segundo o art. 310º, al. d), do CC, os juros convencionais ou legais prescrevem no prazo de 5 anos.
Contudo, na carta mencionada em gg), datada de 11.08.1998 (cfr. fls. 110/111) a Ré admite, de forma inequívoca, não ter liquidado a quantia reclamada. Esse reconhecimento provoca a interrupção do prazo de prescrição dos juros, de acordo com o previsto no art. 326º do CC, inutilizando o prazo decorrido anteriormente e dando origem à contagem de novo prazo. Ora, sendo o preço devido desde 17.12.1995 - cfr. fls. 19 e alíneas d), f) e g) – o prazo de prescrição dos respectivos juros interrompeu-se em 11.08.1998, começando a correr novo prazo de 5 anos a partir dessa data. Como a acção deu entrada em juízo no dia 1 de Outubro de 2002 há que concluir que são devidos juros de mora desde 17.12.1995, de harmonia com o que dispõem os arts. 804º, n.º 1 e 805º, n.º 2, al. a), do CC., às taxas legais em vigor em cada momento.

d)
Finalmente, a questão da litigância da má fé.
A sentença impugnada condenou a Autora como litigante de má-fé em 6 Uc’s de multa e numa indemnização à Ré cujo montante se relegou para momento ulterior.
Baseou-se essa condenação no facto de a Autora ter afirmado nos articulados que introduziu no equipamento informático todas as aplicações acordadas quando, ao cabo e ao resto, se provou que tal não sucedeu. Terá assim a Autora – segundo a Mmª Juiz – deduzido pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar, na medida em que peticionou o pagamento de serviços sem os ter realizado na íntegra, e, ao alegar que implementou integralmente o sistema adjudicado, alterou a verdade dos factos.
Mais uma vez não estamos de acordo.
Há, com efeito, uma questão que tem passado quase à margem da discussão e que nos parece de grande importância: a factura cujo pagamento vem reclamado nos autos pela apelante (fls. 19) não se refere, nem directamente nem exclusivamente, às aplicações não introduzidas no sistema informático. Nela apenas vem discriminado, de uma forma genérica e vaga, o seguinte item:
“Informatização da Recepção da Fundação de D.....”
------------------------------------------------------------------------------
40% VALOR DE S/W APLICACIONAL 469,596.0
17% IVA 79,831.0

O total da factura é de Esc. 549.427$00.
É este o valor peticionado e a apelante logrou a prova de que o mesmo não foi pago pela Ré – cfr. alínea g). A questão referente ao alegado incumprimento defeituoso do contrato de empreitada, teve, é certo, versões contraditórias, que acabaram por ser decididas de acordo com o que consta supra, nomeadamente nas alíneas m) e n). Mas o sentido em que o tribunal decidiu, no que tange à matéria de facto controvertida alegada por cada uma das partes, não pode, sem mais, justificar condenação em litigância de má fé de qualquer uma delas. Se assim fosse, a parte que em qualquer processo não conseguisse demonstrar a validade substancial da sua argumentação fáctica seria invariavelmente condenada por litigar de má fé.
Nesta parte, procede também a apelação da Autora – cfr. conclusões 14ª e ss.
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III. DECISÃO

Nesta conformidade, decide-se julgar procedente a apelação e, em consequência:
I. Revoga-se a sentença recorrida, condenando-se a Ré (apelada) a pagar à Autora (apelante) a quantia de € 2.740,53, acrescida de juros de mora, à taxa anual e legal em vigor em cada momento, juros esses contados desde 17.12.1995 até efectivo pagamento.
II. Revogar, igualmente, a sentença recorrida no segmento que condenou a Autora, em multa e indemnização à contraparte, por litigância de má fé, isentando-a de qualquer pagamento a esses títulos.
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Custas nas duas instâncias pela Ré.
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PORTO, 25 de Janeiro de 2005
Henrique Luís de Brito Araújo
Alziro Antunes Cardoso
Albino de Lemos Jorge