Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1851/19.8T8PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO DUARTE TEIXEIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
ACIDENTE CAUSADO POR UMA PERSEGUIÇÃO AUTOMÓVEL
CULPA
DANO BIOLÓGICO
Nº do Documento: RP202511271851/19.8T8PVZ.P1
Data do Acordão: 11/27/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Nos termos do art. 623°. do CPC pode uma seguradora tentar ilidir a existência da factualidade demonstrada em processo crime.
II - A condução automóvel é permitida através do principio do risco permitido e da teoria da confiança. Se um condutor imprime alta velocidade ao seu veiculo por forma fugir a uma perseguição de um terceiro, por receio que a sua integridade física esteja em perigo, a culpa exclusiva na produção do acidente é do perseguidor.
III - Nessa situação, a perseguição, a alta velocidade e o estado de temor impediam qualquer cidadão médio de pensar em melhores alternativas para além de prosseguir, tentar escapar a alta velocidade e ligar para as forças policiais.
IV - Quando esteja em causa a utilização do veículo de forma dolosa a seguradora só é responsável perante terceiros, após a eclosão do sinistro que é um dos factos constitutivo do direito dos beneficiários do seguro.
V - A fixação dos danos não patrimoniais decorrentes da situação de medo e stress causada por uma perseguição automóvel devem ser fixados, no caso concreto, em 12.000 euros.
VI - Os danos patrimoniais causados pela eclosão do acidente, dores e ferimentos sofridos por este devem ser fixados em 12 mil euros, tendo o lesado sofrido dores num grau de 3/7, um dano estético de 1/7 e um défice funcional temporário parcial de 90 dias, ficando abalado psicologicamente.
VII - O dano biológico de um lesado com 49 anos, que auferia o salário de 483 euros mensais e teve um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 1,5 pontos, sendo as lesões compatíveis com o exercício da atividade habitual, com esforços suplementares, deve ser fixado em 5.400 euros, atendendo ao valor atual do s.m.n. mas evitando a duplicação de fatores com as restantes indemnizações fixadas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 1851/19.8T8PVZ.P1

Sumário:

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1. Relatório

AA intentou a presente acção declarativa de condenação em processo comum contra A..., S.A. e BB.

Formulou o seguinte pedido:

A) ser o réu BB condenado a pagar ao demandante a quantia de € 50.000,00 a título de danos não patrimoniais sofridos pelo autor no momento anterior à produção do acidente causado;

B) ser a ré A..., S.A. condenada a pagar ao demandante, sem prejuízo do resultado da avaliação médico-legal e das quantias que eventualmente sejam ainda peticionadas posteriormente:

a) a quantia de € 50.000,00 a título de danos não patrimoniais;

b) o montante de €3.000,00 título de perdas salariais;

c) € 100,00 referentes a transportes;

d) € 290,00 concernentes ao valor pago pelo autor pela consulta da especialidade de ortopedia;

e) € 250,00 pela roupa que o demandante usava e ficou destruida na sequência do acidente;

f) € 200,00 pela perda do relógio do mesmo;

g) € 200,00 pelo telemóvel do autor;

h) € 20.000,00 correspondentes ao valor comercial do veículo conduzido pelo autor à data do acidente, na sequencia da sua perda total;

i) € 67,79 correspondente a medicamentos/ tratamento subsequente;

j) € 75.000,00 a título de lucros cessantes/ danos futuros, sem prejuízo do resultado da perícia médica que se requererá;

k) juros, à taxa lega, sobre todas as quantias peticionadas desde a data da citação dos réus até efectivo e integral pagamento.


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Os RR contestaram.

O réu BB afirma que no âmbito do processo n.º ..., que correu os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Central Criminal de Vila do Conde – Juiz 1, o aqui Réu, que naquele processo ocupava a posição processual de Arguido, foi absolvido da prática do crime de homicídio na forma tentada e coação na forma tentada. Pelo que o pedido do autor terá de improceder. Pede a condenação do autor, como litigante de má-fé, a indemnizá-lo em 5.000,00€.

A ré seguradora contestou excepcionando a prescrição do direito do autor. Por impugnação a responsabilidade do seu segurado na eclosão do acidente, pois, em suma “O autor imprimia ao CF uma velocidade vertiginosa, sempre superior a 150 km/h e tendo chegado mesmo a atingir os 200 km/h”.

Pedem ambos a sua absolvição da instância e do pedido.

Foi saneado o processo, instruída a causa e realizado julgamento.

Foi proferida sentença que decidiu: Julga-se a acção parcialmente procedente e condenam-se a pagar ao autor AA as quantias seguintes: a) o réu BB, 10.000,00€ (dez mil euros) acrescidos de juros de mora, à taxa legal, contados da data desta sentença; b) a ré A..., S.A., 35.127,90€ (trinta e cinco mil cento e vinte e sete euros e noventa cêntimos), acrescidos de juros de mora, à taxa legal, contados desde a data desta sentença sobre 23.000,00€ (vinte e três mil euros) e desde a citação desta ré sobre os restantes 12.127,90€ (doze mil cento e vinte e sete euros e noventa cêntimos).

Inconformados vieram todas as partes recorrer.

Os RR interpuseram recurso que foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo da decisão. – cfr. arts. 627.º, 629.º, n.º 1, 631.º, 637.º, 639.º, 644.º, n.º 1, al. a), 645.º, n.º 1, al. a), 647.º, n.º 1 a contrario todos do C.P.Civil.

O autor interpôs recurso subordinado que foi admitido.


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2.1. B..., S.A. ré, veio apresentar alegações concluindo nos seguintes termos:

I. A prova do sinistro relatado no petitório assenta única e exclusivamente nas declarações de parte do A., sendo que, mesmo assim, uma parte significativa do que este alegou, e especialmente o que terá motivado (na sua versão) o sinistro, não resultou provado;

II. Ora, s. m. o., o sentido constante da jurisprudência (cfr. p. ex. os acs. do T. R. Porto

de 10.09.2015 e de 20.06.2016, o primeiro dos quais, ao que se pensa, não publicado) sobre esta possibilidade conferida às partes desde 2013 vai no sentido da valoração das declarações de parte com reservas, demandando um mínimo de corroboração de outras provas, o que não sucede e de forma nenhuma (muito visivelmente, de resto) in casu;

III. Percebe-se essa preocupação, uma vez que existe o sério risco de um “grau de comprometimento” demasiado grande com as versões apresentadas nomeadamente nos articulados iniciais, sendo razoavelmente expectável que essas declarações não caminhem em direcção oposta à dos interesses dos declarantes (identicamente, ao menos de alguma maneira, assim sucede quando se trata, p. ex., de ouvir, na qualidade de testemunhas, proprietários não inscritos registalmente de um veículo e quando este é afinal bem comum juntamente com aquele(a) que no registo figura como seu proprietário(a) );

IV. Em seu contraponto, numa situação como esta, importa que sejam devidamente valorados os elementos probatórios (e eles existem neste caso) que coloquem em crise as versões apresentadas, designadamente no âmbito do que deve ser a “normalidade do acontecer” (além de ser interessante avaliar, de parte do depoimento de CC transcrito acima, a suposta credibilidade das declarações de parte devido às “démarches” que este desenvolveu – ou tentou - junto desta testemunha);

V. No caso concreto, e como se poderá concluir dessas declarações de parte do A., designadamente daquelas transcritas no corpo destas alegações, veja-se que o A. jamais passou a ideia que o despiste e subsequente sinistro tinha ficado a dever-se não propriamente a medo nomeadamente da situação vivida, como decidiu o Tribunal a quo, mas antes ao alegado mas não provado (e bem, diga-se) abalroamento que o veículo que conduzia sofreu da parte daquele timonado pelo R. BB;

VI. Por outro lado, é também importante reter que, ainda que possa ser eventualmente tentador concluir que o medo e/ou sinónimos erigidos à categoria de explicação do sucedido, o que é não menos verdade é que, por um lado, não se pode considerar que semelhante prova foi feita pelo A. e, por outro, que o medo (e “afins”) é subjectivo, motivo pelo qual, também por isso, devia ter havido um outro cuidado antes de se avançar para semelhante conclusão;

VII. Era, portanto, mister que se pudesse lançar mão de outro “tipo” de prova para que assim (como a sentença fez) se pudesse concluir;

VIII. De modo que os pontos 29 e 30 dos actuais factos provados, devem transitar para o “lado” dos factos não provados e, por isso, não devendo ser considerados na nova decisão a proferir por este Tribunal ad quem;

IX. Por seu turno, e pelas mesmas razões (mas também devido ao ponto 72 dos factos provados a que nos referiremos ainda), deve o actual ponto 13 dos factos provados passar a ter a seguinte redacção: - provado que “O que fez com que o condutor do CF, aqui Autor, imprimisse ao veículo que conduzia uma velocidade cada vez maior.”;

X. Não desligado surge o ponto 31 dos factos provados, uma vez que, também como se pode ver da acta de audiência de julgamento de 07.10.2024 a respeito do depoimento de DD, militar da GNR, o mais que se pode concluir é que sim, o A. contactou o 112, mas apenas isso, ou seja, a redacção mais correcta será antes: - 31 – provado que “O Autor contactou o 112.”;

XI. Depois, e agora relativamente ao já mencionado ponto 72 dos factos provados, pode concluir-se do confronto/concatenação daquelas declarações de parte do A. e do depoimento de EE, ambos transcritos nestas linhas e melhor identificados no corpo destas alegações, assim como p. ex. dos pontos provados nºs. 5, 6, 13, 17 e 21 que nada dizem sobre isso, situando-se apenas numa espécie de “limbo”, pelo que o mais que eventualmente se pode concluir é que não se sabe quem era o proprietário do veículo à data dos factos (e mais uma vez essa era prova que estava cometida ao A.);

XII. Pelo contrário, aliás, à falta de prova documental que mostre algumas das declarações do A. nomeadamente, além de não se poder descartar documentos juntos pela R. (p. ex. docs. nºs. 3, 5 e 7), o mais correcto é concluir-se que o veículo CF estava registado em nome/a favor daquela EE, beneficiando esta, ademais, da presunção inerente ao registo a seu favor;

XIII. Acresce ainda dizer que o depoimento daquela EE tem de ser entendido cum grano salis, porquanto é evidente, apesar da manifesta animosidade em relação ao A., que esta testemunha tem todo o interesse numa decisão favorável ao A. destes autos;

XIV. De sorte que, na opinião da R./recorrente, aquele ponto 72 dos factos provados não poderá ir além da seguinte redação: - 72 – provado que «Na altura a viatura, registada a favor de EE, tinha um valor comercial de 12.650,00€ e o salvado de 2.210,00€.»

XV. A fundamentação em que se ancora a sentença do Tribunal a quo não é, salvo sempre o devido respeito, a correcta e conforme à prova que se conseguiu produzir (ou não, no caso do A.) e a começar desde logo por aquele “argumento” de o R. ter sido condenado em processo penal por crime de condução perigosa de veículo rodoviário;

XVI. É que tivera sido participada criminalmente a conduta do A., parece fora de questão que também ele seria, no mínimo, acusado (quando não condenado também) pelo menos pelo mesmo crime;

XVII. Por outro lado, e ainda que a douta sentença tenha considerado não merecedora de credibilidade a explicação avançada designadamente pelo R. BB para o despiste e subsequente sinistro do CF, com base nomeadamente no depoimento de CC que não viu (e isso é certo) o sinistro, é de notar que o único local ao longo dos cerca de 10 Kms que durou o episódio onde podia ser feita essa manobra (de simular a entrada na área de serviço) era aquele, já que não há outro possível desde o local de entrada na auto-estrada (nó de Santo Tirso);

XVIII. Por outro lado, e mesmo que se mantenha tal como está a redacção dos pontos 29, 30 e 31 dos actuais factos provados, não se extrai qualquer hipótese (e provada então, nem se fala) de, e como fez a sentença, a alegada “pressão psicológica” ou “algo de semelhante” ter sido o “gatilho” que espoletou o sinistro e antes o despiste;

XIX. Pelo que é evidente que se deu na douta sentença um “salto proíbido”, dado que não há qualquer nexo de causalidade provado que o permita (e nem sequer – adiante- se – numa eventual “solução” de concausalidade);

XX. De resto, convém repetir que o A., em momento algum da sua alegação inicial, avançou como explicação para o sucedido essa putativa “pressão” ou quejandos, mas antes – repete-se – um abalroamento de que (e bem nessa parte) não logrou convencer o Tribunal a quo que tenha acontecido;

XXI. Na verdade, o que apenas se sabe (vide factos provados 19 a 24) é que o CF se despistou e embateu num terceiro veículo, acabando por se imobilizar dentro da área de serviço. Mais nada que isto (tudo o resto, salvo o respeito devido, não passa de mera “adivinhação”, sem qualquer base de sustentação);

XXII. Assim, tendo em atenção os factos de que se pode lançar mão, é evidente que o único culpado pela produção do seu sinistro é precisamente o próprio A. por flagrante violação pelo menos do disposto nos artigos 11º, nº 2, 13º, nº 1, 18º, 24º, nº 1 e 27º, nº 1, todos do Código da Estrada, razão pela qual a douta sentença, sempre salvaguardando o respeito devido, violou pelo menos os artigos 342º, nº 1, 483º, 487º, nº 2 e 563º, do Código Civil.

XXIII. Ainda que se entenda, salvo, evidentemente, o devido respeito pela “imagem”, que não existe neste caso o “elefante na sala” com o qual se haverá forçosamente de lidar, ou, e de uma outra forma, que não falha/falta, como claramente acontece, a prova (e o facto) respeitante ao necessário nexo de causalidade, a verdade é que, mesmo em tal hipótese admitida só para efeitos deste raciocínio, não é correcta a decisão;

XXIV. Efectivamente, atendo-nos acriticamente (e única e exclusivamente para esse fim anunciado, naturalmente) à conclusão da douta sentença – “(…) A conjugação da pressão psicológica da perseguição com a velocidade permite concluir que foram essas as causas do despiste. (...)” -, é inegável que afinal teriam sido duas (e não apenas uma, a dita pressão psicológica) as causas do despiste/sinistro;

XXV. Ora, a velocidade a que ali se alude tem apenas que ver com o A. (vide factos provados nºs. 16, 17 e 18), dado que era ele que tripulava o CF e, obviamente, era ele quem “carregava no pedal” e até (porque seguiu sempre à frente do R. BB) quem determinava a que velocidade se circulava, a começar pelo veículo por si conduzido;

XXVI. Pelo que, só por aí (e “dando de barato” sempre e apenas para efeitos deste raciocínio), é incontornável que uma parcela de responsabilidade sempre teria de lhe ser endossada e a sentença – como é claro - não o fez;

XXVIII. Aliás, a essa conclusão pode sempre chegar-se pela leitura do acórdão do S.T. J. de 18.12.2013 (Fernando Bento; proc. nº 1749/06.0TBSTS.P1.S1; www.dgsi.pt), onde é nomeadamente dito/defendido que “(…) uma perseguição automóvel que determina que o condutor do veículo perseguido lhe imprima uma velocidade excessiva, causando o seu despiste, é – conjuntamente com a imperícia do condutor –, causa deste, bem assim como do acidente e dos danos. (…)”. (itálico e sublinhado nossos)

XXIX. No caso concreto, atendendo aos dados concretos que importa reter (sem esquecer, a bem da verdade, que não está provado que terá sido a dita pressão psicológica a determinar o despiste e o subsequente sinistro), designadamente o tempo e a distância de cerca de 10 Kms, entende a R. que a imperícia do A. é bem mais visível (e tem, ademais, factos provados para isso, que a sustentam) e determinante e, por isso, a repartição de responsabilidade se deverá fixar em não menos de 70% para o A. e em não mais de 30% para o R. BB.

XXX. Antes de mais, e atendendo à alteração defendida nestas linhas para o ponto 72 dos factos provados, é óbvio que o A., porque não fez a prova que lhe competia e ao abrigo do disposto no artigo 342º, nº 1 do Código Civil (e mesmo assim nada há na factualidade dos autos que mostre que o A. era, à data, o proprietário e/ou até possuidor do veículo), não poderá em circunstância alguma receber o que quer que seja pela perda total do CF (no caso a diferença entre o respectivo valor venal e aqueloutro do salvado);

XXXI. Depois, importa dizer que a indemnização atribuída pelo chamado dano biológico, para lá de nem sequer se lograr perceber, salvo o devido respeito, em que moldes terá sido feito uso da equidade, é nitidamente exagerada;

XXXII. Portanto, pura e simplesmente não se nos afigura possível, só com isto, avaliar se é justa ou não a quantia fixada a este título pela douta sentença, pelo que teremos de a tentar sindicar desde logo com recurso a fórmulas de cálculo;

XXXIII. E para tal, utilizar-se-á aquela porventura mais simples do Sr. Conselheiro Sousa Dinis («Dano corporal em acidentes de viação, CJ, Ano IX, Tomo I, pág. 5), bem como, e tal como a douta sentença, um salário mensal de 485,00€, 14 meses (ainda que haja dúvidas sobre isso, atendendo à «natureza» do trabalho desempenhado), obviamente o DFPIF-P de 1,5 pontos e um lapso temporal de 30 anos (= 79 – 49);

XXXIV. Assim, e mesmo que não se considere (ainda que apenas para efeitos deste raciocínio) qualquer «desconto» justificado pelo pagamento/recebimento de uma só vez e desde já, temos que o montante a que aquela fórmula permite chegar seria de - 485,00€ x 14 meses = 6.790,00€ x 30 anos x 1,5 pontos (%) DFPIF-P = 3.055,55€;

XXXV. De modo que, bem mais consentâneo com os dados e factos disponíveis, entende a R. (repita-se: no caso de se entender que o A. é credor de alguma indemnização e sobretudo na sua totalidade, por assim dizer, o que não parece acontecer), com recurso à equidade, que o A. não deverá ser indemnizado em mais de € 3.000,00 a este título de DFPIF-P.

XXXVI. Igualmente exagerada é, na opinião da R., a compensação/indemnização de € 15.000,00 atribuída ao A. a título de dano não patrimonial;

XXXVII. E, de resto, chega-se muito facilmente a essa conclusão, porquanto não se poderá perder de vista que o R. BB também foi condenado a pagar € 10.000,00 a esse mesmo título, ou seja, menos cerca de 33% que a R., o que também por aí se revela incompreensível, porquanto (seguindo neste raciocínio, e apenas para esse efeito, aqueloutro da sentença) é inevitável que se conclua, até segundo a sentença, que há nitidamente maior gravidade no dano desse tipo “inflingido” por aquele R. ao A.;

XXXVIII. Acresce dizer que parece à R., por comparação (ainda que «proporcional») com decisões jurisprudenciais dos Tribunais Superiores, de que constituem exemplo os acs. do TRG de 13.07.2022 (proc. nº 41/20.1T8CBT.G1; Margarida Almeida Fernandes) e do TRP de 24.03.2025 (proc. nº 3737/21.7T8PRT.P1; Teresa Fonseca) e de 25.11.2024 (proc. nº 2999/21.4T8VFR.P1; Ana Paula Amorim), todos consultáveis em www.dgsi.pt, que o montante arbitrado peca, como dito, por excessivo;

XXXIX. Assim, é a R. de opinião que os danos não patrimoniais do A. devem ser fixados em não mais de 6.000,00€;

XL. Nesse seguimento, cumpre dizer que na opinião da R./recorrente, a sentença recorrida violou, salvo o devido respeito, o disposto nos artigos 342º, nº 1, 487º, nº 2, 494º, 496º, nº 4, 562º, 563º, 564º e 566º do Código Civil, devendo ser revogada e alterada nos moldes defendidos nestas linhas.


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2.2. O Réu interpôs recurso, apresentando conclusões que se resume nos seguintes termos, e cujo restante teor se dá por integralmente reproduzido.

2. Não se conformando com o douto acórdão, vem o recorrente recorrer do mesmo, colocando à ponderação do Tribunal da Relação as seguintes questões: a. Da prestação de caução nos termos do art. 647º, nº.4 CPC. b. Da nulidade por falta de fundamentação nos termos do art. (s) 615º, nº.1, b) e 154º do CPC e 205º da CRP. c. Erro de julgamento da matéria de facto dada como provada sob os pontos 6, 29 e 30 por impugnação ampla da matéria de facto nos termos do art. 640º do CPC. d. Responsabilidade Civil extracontratual por factos ilícitos nos termos do artigo 453.º do CC. e. Do quantum da pena.

B- Da Nulidade por falta de fundamentação nos termos das disposições conjugadas dos art. (s) 615º, nº.1, b) e 154º do CPC e 205º da CRP

10. Salvo melhor opinião, parece-nos que a sentença recorrida padece de falta de fundamentação, isto porque no elenco da motivação da decisão de facto, várias são as questões que ficaram por fundamentar, não tendo o Tribunal “a quo”, como era seu dever, fundamentado a sua decisão.

11. In casu, estamos perante um erro improcedendo, pois que a sentença não especificou os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão segundo o estabelecido no art. 615º, n. º1, al. b) do CPC, estando por isto ferida de nulidade.

12. A nulidade referida corresponde à omissão de cumprimento do dever (contido no art. 205º, nº1 da CRP) que impõe ao juiz indicar as razões de facto e de direito que sustentam a sua decisão, pois só assim as partes ficam cientes das razões factuais e jurídicas que conduziram ao sucesso ou fracasso das suas pretensões.

C) Da impugnação da matéria de facto – art. 640.º do CPC

18. O Recorrente impugnou a matéria de facto por entender existirem nos autos elementos probatórios que impõe decisão diversa da recorrida e fê-lo em claro respeito pelo ónus de especificação que o comando normativo impõe.

19. Sem embargo, tendo por baluarte o ónus de impugnação que recai sobre a Recorrente – art. 640.º do CPC -, indica-se os pontos da matéria de facto que se julgam incorretamente julgados os pontos 6, 29 e 30 e, posteriormente, a indicação dos concretos elementos probatórios que impõe decisão diversa da recorrida.

20. No seu ponto 6 deu o Tribunal à quo como provado que o Autor sentiu medo

na presença do Réu o que o fez fugir.

21. Contudo, o Recorrente discorda de tal factualidade motivo pelo o qual pretende impugnar a mesma, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 640º, n.º1 do CPC, respeitando o ónus de especificação por esta norma imposto.

22. Senão vejamos, o Autor não logrou provar o alegado medo que sentiu, uma vez que não foi possível demonstrar esse estado emocional.

23. A fls. 7 da sentença recorrida é possível ler que o Recorrido afirmou que o Recorrente terá encostado a frente do seu veículo à traseira do veículo do Autor, circunstância não valorada pelo Tribunal A quo na sua motivação (vide fls. 9).

24. Uma vez que, refere o Tribunal A quo que a única testemunha que presenciou os factos foi o irmão do Réu, e ainda que a Testemunha FF afirmou ter circulado nesse carro nessa noite e o mesmo não aparentava sinais de embate.

- Da arma de fogo

26. A fls. 7 da sentença recorrida pode ler-se que o Réu, pelo que foi afirmado pelo Autor, gesticulava na direção deste, com um objeto que aparentava ser um revólver acenando-lhe com ordens para que parasse o seu automóvel.

27. Também aqui o Tribunal A quo julgou não existirem elementos probatórios que sustentassem tal afirmação, dando-a como não provada.

- Das ameaças

28. Quanto às ameaças pode retirar-se das declarações do Autor prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento que o mesmo nunca recorreu às autoridades, quer nas alegadas ameaças que o Recorrente alegadamente lhe dirigiu anteriores aos factos em apreço nos autos, quer no trajeto que percorreu no seu veículo, limitando-se a ligar para o 112.

29. Mais ainda, importar referir que também em sede de audiência de discussão e julgamento, o Autor mencionou que apesar de o Réu conduzir um veículo com maior potência que o seu nunca o ultrapassou, sendo este quem marcava a velocidade a que seguiam.

30. Assim, e se o mesmo nunca recorreu às autoridades policiais, jamais se poderia considerar que as ameaças tivessem ocorrido, e que consequentemente o mesmo tivesse sentido medo.

31. Já no que concerne à perigosidade do Réu, e atendendo a toda a factualidade supra descrita é entendimento do mesmo que não logrou o Autor demonstrar o porque do alegado medo, pois que o Recorrente é uma pessoa inserida sobre todos os aspetos e bem reputada no seio em que se insere e mais ainda, À data não tinha qualquer condenação averbada no seu registo criminal.

- Da tentativa de homicídio

33. No âmbito do processo crime foi o Recorrente acusado pela prática de um crime de homicídio na forma tentada no âmbito do processo n.º ..., que correu os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Central Criminal de Vila do Conde – Juiz, tendo sido absolvido da prática de tal crime.

34. Em suma, de todos as circunstâncias e características que fossem passíveis de aferir o alegado medo sentido pelo Autor, nenhum deles teve provimento.

35. Motivo pelo qual, a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, nomeadamente, (…)

51. Assim, ao não ser dado como provado os pontos 6, 29 e 30 não resulta demonstrada a obrigação de indemnizar do Recorrente porquanto não se encontram preenchidos os pressupostos cumulativos, da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos.

53. Referiu o tribunal na sentença recorrida, em sede de Direito, que o montante da indemnização deve ser fixado de acordo com a equidade e tendo em consideração o art. 494º do CC no âmbito do qual se deve ter em conta o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias que no caso se justifiquem.

54. Na verdade, o tribunal “a quo” indicou de que forma e quais as circunstâncias que deveriam ser tidas em conta para a fixação do montante da indemnização de forma supérflua que se torna incompreensível, não justificando, aliás, porque motivo considerou a culpa do recorrente bastante elevada, conjeturando o Recorrente que a mesma possa ter ficado a dever-se à perseguição e à velocidade a que circulavam.

55. Olvidando-se o tribunal “a quo” que a culpa do recorrente não se pode considerar muito elevada quando a velocidade que o mesmo incutia na sua viatura era com o único propósito de alcançar o autor que circulava na frente, e era este que decidia a velocidade e caminho.

56. Da mesma forma que este se dirigiu para a auto estrada poderia ter-se dirigido ao posto policial mais próximo, que bem conhecia, atento a que se encontrava na sua cidade berço.

57. Quanto à situação económica do recorrente, veja-se que o tribunal a fundamenta apenas e somente com base no automóvel que o mesmo tripulava, olvidando-se que o recorrente era e é vendedor automóvel e que por tal motivo o carro em que circula é na realidade um mero instrumento de trabalho.

58. Em relação às demais circunstâncias entendemos que o tribunal atribuiu de forma desproporcional o valor de €10.000,00 (dez mil euros) para o “medo” que o Autor sentiu por 17 minutos, tal como dado como provado, traduzindo-se isto num valor de €588,24 por minuto.

59. Assim, parece-nos claro que por todas as circunstâncias que se referiram em supra, a haver lugar a indemnização por danos não patrimoniais ocorridos até ao acidente, nunca poderia ser em montante superior a €3.000,00 na medida em que seria claramente excessivo,

60. Pois o que se indemniza é o alegado medo que o autor sentiu durante dezassete minutos e até à ocorrência do acidente.


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2.3. O autor contra-alegou e apresentou recurso subordinado

Na sua resposta defende que, baseando-se na decisão criminal que ”face à prova produzida, não poderão restar dúvidas – como não restam- sempre salvo melhor entendimento, que o Réu BB foi o único causador do acidente e será sobre o mesmo que deverá ser assacada a responsabilidade pelos danos produzidos em última instância, pois que se tratam de factos dolosos por si praticados”.

Depois efectua transcrição de vários depoimentos, concluindo que os recursos devem ser rejeitados.

Subordinadamente concluiu que

1. Em alteração à matéria de facto, requer-se que seja dado como provados os seguintes factos: A) Na perseguição na autoestada, o Réu colocava o seu carro ao lado do autor: B) Ambos os veículos conduziram sobre as três faixas de rodagem da AE e, por vezes, na faixa da esquerda. C) O Réu embateu propositadamente co a frente do seu automóvel na traseira do veículo conduzido pelo Autor; D) O Autor percebeu que corria risco de vida. E) E acreditou que a intenção do Segundo Réu era a de lhe causar a morte. F) O medo da morte sentida pelo Autor foi presente e real. G) O Autor ainda hoje tem receio de se deslocar à cidade de Santo Tirso, de onde é natural, com medo de que a conduta do segundo Réu ou alguém a seu mando, se volte a repetir. H) Em Santo Tirso, o Segundo Réu faz constar que o Autor seria morto. I) O Autor sentindo-se triste, humilhado e angustiado com todo o sucedido. J) O veículo em que circulava o Autor era por si usado diariamente.

2. Sendo que importa aditar um outro facto a ser dado como provado: K) O Réu BB, imediatamente ao acidente, arranjou o seu veículo AI, que foi visto em Santo Tirso, dias após o acidente devidamente reparado de novo e recentemente.

3. Acresce que, atenta a matéria dada como provada e sem prescindir da que se pretende ver alterada para provada, as indemnizações atribuídas aos Autor padecem de defeito.

4. Sendo mais ajustado condenar o Réu BB a pagar ao Autor uma indemnização não inferior a € 20.000,00.

5. E, bem assim, condenar a Ré B... a pagar ao Autor uma indemnização não inferior a € 25.000,00, em vez dos € 15.000,00 arbitrados e uma indemnização não inferior a € 20.000,00, a título de lucros cessantes a danos futuros, em substituição dos € 8.000,00 ajuizados.

6. Violou a Douta Sentença o plasmado nos art.º 494º, 496º, 562º, 564 e 566º, todos do Código Civil.


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2.4 A Ré seguradora contra-alegou, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

Em suma, defende que o depoimento da testemunha EE não deve ser atendido porque é meramente de ouvir dizer e tem um interesse directo na responsabilização da ré seguradora porque o veículo sinistrado “foi ou estava a ser pago de acordo com um plano de prestações, pode esta testemunha aspirar a receber aquilo que diz ter direito precisamente do A., sendo certo que é pelo menos indiscutível que terá sido ela quem pagou pelo menos a partir de certa altura”.

Por tudo isso concluiu que o recurso principal deve ser julgado procedente e, obviamente, improcedente este subordinado do A., bem como as respectivas conclusões.


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3. questões a decidir

1. apreciar a nulidade da decisão invocada pelo réu

2. apreciar os três recursos sobre a matéria de facto, por ordem cronológica.

3. Verificar depois, se a decisão deve ou não ser alterada quanto à responsabilidade da ré e réu.

4. Averiguar, por fim, se o valor das indemnizações deve ser aumentado ou diminuído, conforme os vários pedidos formulados por todas as partes.


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4. Da nulidade da sentença

Pretende o réu BB que a sentença é nula por falta de fundamentação.

Defendendo que é “omissa no excerto supratranscrito a análise do comportamento do Recorrente por forma a enquadrar o mesmo no preenchimento dos pressupostos da responsabilidade

E, que “Não consegue o Recorrente compreender qual o raciocínio levado a cabo pelo tribunal para determinar a sua obrigação de indemnizar.

O tribunal a quo pronunciou-se no sentido negativo.

Apreciando

Dispõe o art. 615º, nº1, al. b), do CPC que “É nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.

Ora, in casu é manifesto que essa nulidade não existe.

A sentença possui 17 páginas, das quais quase quatro relativas à análise da prova e quase seis relativas à matéria jurídica.

Nela se escreveu quanto à imputação do acidente: “A conjugação da pressão psicológica da perseguição com a velocidade permite concluir que foram essas as causas do despiste. E imputá-lo totalmente ao réu BB”.

Quanto à fixação do dano escreveu-se que “O grau de culpabilidade do réu é muito elevado. O facto de tripular um automóvel muito caro indicia uma boa situação económica. A do réu será inferior. O que se retira de ter bens em nome de outras pessoas como o veículo acidentado. Deve considerar-se, ainda, que esta situação foi de curta duração. Dezassete intensos minutos. Assim, entende-se ajustado que o réu BB pague ao autor uma indemnização de 10.000,00€”.

Parece, pois, que qualquer entendedor médio e objectivo consegue compreender as razões da sentença.

E, note-se que o próprio réu as compreendeu plenamente, porque conseguiu apresentar alegações com várias dezenas de páginas nas quais pretende por em causa precisamente todos esses fundamentos.

Improcede, pois, a questão invocada.


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5. Recurso sobre a matéria de facto

Todas as partes pretendem a alteração da matéria de facto em sentido, porém, oposto entre si.

A prova é valorada, desde logo de acordo com as regras da experiência as quais encerram em si um juízo de probabilidade da ocorrência dos factos alegados.

Etimologicamente probabilidade significa a possibilidade de obter um resultado incerto.

Portanto, tudo na vida é possível, mas algumas coisas são mais prováveis do que outras.

Ora, in casu, tendo consultado todos os documentos e ouvido todos os depoimentos testemunhais e da parte, torna-se logo evidente que a versão da realidade aduzida pelos apelantes não é congruente, e muito pouco verosímil com a prova produzida.

Isto, porque, este processo tem especificidades que o tornam especial.

Está em causa uma situação originada por uma dívida do autor ao réu, nos termos da qual o réu procurou o autor num local, da qual o autor fugiu a alta velocidade sendo perseguido pelo réu.

Logo, as únicas pessoas que de forma relevante presenciaram a situação foram as duas partes, e o irmão do réu que iria com ele no carro.

Acresce que, quanto a este foi junta pelo autor uma decisão criminal, nos termos do qual este foi condenado como autor material de um crime de condução perigosa.

Logo, essa realidade constitui nos termos dos arts., 623º e 624º, do CPC uma presunção ilidível (quanto à ré seguradora) que esses factos ocorreram nesses termos.

Ora, dessa decisão resultou provado:

À luz desta realidade específica, apreciemos então os recursos das partes

1. Recurso da ré seguradora

Esta, pretende, em suma, que

a) Os pontos 29 e 30 dos actuais factos provados, devem transitar para o “lado” dos factos não provados.

Estes factos são:

29 - Desde o momento em que o Autor, ao sair da Rua ..., se apercebeu que o Réu BB o perseguia, sentiu-se perturbado e muito amedrontado.

30 - Sendo que o medo, inquietação, o desassossego e aflição que sentia, foram aumentando à medida que o Réu BB mantinha o acto de perseguição, a alta velocidade

Pretende a ré seguradora que o único meio de prova é o depoimento de parte do autor.

Certamente terá esquecido que essa perseguição foi admitida, em termos suaves é certo, pelo réu que aliás, admite a velocidade alcançada e a duração e localização dessa perseguição, confessando aliás que não parou após o autor ter capotado.

O irmão deste admite também a marcação de uma reunião, a fuga do autor e a perseguição subsequente. O Sr. GG admite ter visto o carro do Sr. AA (réu) no parque da rabada, nada sabendo após isso.

Esqueceu ainda que consta dos autos um telefonema efectuado para o 112 feito pelo autor afirmando que estava a ser perseguido e precisava de ajuda.

Omite, por fim, que todas as fotos do local do acidente e veículo demonstram a elevada magnitude do impacto.

Logo, sem necessidade de valorar o depoimento de parte é evidente que existiam desentendimentos entre Autor e Réu e que o primeiro fugiu de um local a alta velocidade porque era perseguido pelo Réu.

Note-se, aliás que a tese do réu (segundo a qual se limitou a ir atrás do carro, como se fosse em mero passeio), é manifestamente desconforme com os factos apurados no processo crime; com a velocidade imprimida; com as consequências do embate e com as simples realidades da vida social e regras da experiência.

Bastará salientar que, já foi considerado entre nós como meio de prova proibida a utilização policial de um carro descaraterizado que se coloca na traseira do outro imprimindo alta velocidade, porque esse acto “leva este a sentir-se pressionado". Ou seja, a presença de um veículo perto da traseira de um veículo é um facto inabitual e que potencia não apenas uma situação de pressão do condutor, como obriga a uma maior velocidade do mesmo.

Por fim, o estado do autor após o acidente (relatado pela sua companheira) é esclarecedor este “estava muito mal, não falava não se mexia, e esteve dois meses em casa” e tinha “medo de sair à rua, porque estava traumatizado”.[1]

Note-se que à pergunta na contra-instância sobre quanto tempo durou esse medo, esta respondeu “ainda dura”.

É, portanto seguro que o juízo sobre esses factos é fundado, racional e por isso deve ser mantido.

b) o ponto 13 dos factos provados deve passar a ter a seguinte redacção: - provado que “O que fez com que o condutor do CF, aqui Autor, imprimisse ao veículo que conduzia uma velocidade cada vez maior.”;

A restrição pretendida (eliminação da expressão com receio) é manifestamente desajustada da prova produzida e da realidade processual conforme já salientamos.

O receio do autor é evidente e foi exteriorizado por meios seguros.

Desde logo a própria fuga manifesta algum tipo de receio, se alguém conduz a alta velocidade para se afastar de outro é evidente que possui receio de algo. Depois, como a própria seguradora admite essa pessoa telefonou para o 112 dizendo que estava a ser perseguido. Ora, o Sr. Cabo DD refere que recebeu essa chamada do autor, o qual aliás foi depois ao posto formalizar essa queixa crime. Note-se, aliás que, a chamada terá caído e foi enviado de imediato um carro patrulha para o local onde foi comunicado que tinha ocorrido um acidente, tendo este agente associado o mesmo à pessoa que telefonou.

Por fim, se dúvidas houvesse bastaria reler os factos inerentes à perseguição que constam do processo crime e que, note-se a ré seguradora não ilidiu por qualquer meio.

c) o facto nº 31 deve ser alterado para “O Autor contactou o 112.”;

Esta realidade decorre do depoimento do agente policial Sr. Cabo DD que disse aliás que recebeu a chamada do autor via 112 (ou directamente não se recorda) de alguém que disse estar a ser seguido. Mas não se vislumbra qual a diferença da redacção proposta para aquela que já consta dos factos pelo que nesta parte se indefere a pretensão tendo em conta que essa factualidade já está contida nos factos provados.

d) O facto 72 deve ser alterado que «Na altura a viatura, registada a favor de EE, tinha um valor comercial de 12.650,00€ e o salvado de 2.210,00€.»

Neste ponto até poderia assistir total razão à apelante seguradora se tivesse sido junto o respectivo documento.

Bastará dizer que essa testemunha admite que foi usada como testa de ferro pelo autor e que esse veículo se encontra em seu nome suportando até as despesas do mesmo (parqueamento e impostos). Note-se aliás que essa realidade (alegada na contestação da ré seguradora), está confirmada pelos documentos juntos pela ré (carta enviada pela seguradora, participação do acidente) e admitida pelo próprio autor que note-se nunca se afirmou proprietário do veículo[2] pretendendo até que conste dos factos que é utilizador da mesma. Por fim, este no seu depoimento confirma essa realidade referindo que pagou a prestação mensal do crédito apenas até à data do acidente.

Todavia, não estando junto aos autos o documento, o teor da factualidade é aquele (apenas) que decorre da discussão da causa, pelo que terá de improceder o recurso da ré seguradora.


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2) Do recurso de facto do Réu

Pede este que se “PROCEDA À ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO, DANDO COMO NÃO PROVADOS OS PONTOS 6, 29 E 30.

Os factos nº 29 e 30 já foram analisados supra, sem que mais nenhuma razão válida tenha sido aduzida pelo se mantém a improcedência desta parte do recurso.

Note-se alias, quanto ao réu que a sua tese na acção e recurso é contraditada pelos factos provados no processo crime, nos termos do qual este foi condenado pela prática da “perseguição”[3].

O facto nº 6 tem o seguinte teor “Após se aperceber da presença do Réu e dos seus colegas, o autor fugiu com medo que atentassem contra a sua integridade física”.

Por tudo o que foi dito é evidente que esse facto se terá de manter como provado, pois, o mesmo além de ter sido confirmado nos termos expostos, é o único pressuposto lógico, social e racional para a conduta do autor.

A fuga só se explica por um qualquer tipo de receio grave e ponderoso que, note-se, deu causa a um telefonema para o 112 que foi reencaminhado para a GNR e no qual se pedia ajuda porque estava a ser perseguido.

Saliente-se que nesta matéria a sentença recorrida fundamentou o seguinte:

O tribunal convenceu-se que o réu tinha feito uma espera ao autor na Rua .... Foi isso que EE contou por ter ouvido a terceiros. E é o que faz sentido perante a coincidência do autor se ter cruzado nessa artéria com o réu e o irmão e logo perseguido quando fugiu. Isto numa rua sem saída como disse GG. Pessoa que trabalhava numa discoteca do pai do réu. E que, segundo essa testemunha, apenas para ali foi para tomar um café. Coincidência esta que não se acredita. O autor admitiu que tinha um litígio, uma dívida, com o réu. Fugiu porque já tinha sido ameaçado e teve medo do réu e do irmão. A fuga do autor dá credibilidade aos seus receios. Às fobias anteriores à fuga e às posteriores ao acidente.”

Esta fundamentação é congruente, racional e por isso deve ser elogiada e não revogada.

Improcede, pois, o recurso sobre a matéria de facto do ré.


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3) Do recurso sobre a matéria de facto do autor

Pretende este que sejam aditados aos factos provados os seguintes factos:

A) Na perseguição na autoestada, o Réu colocava o seu carro ao lado do autor

B) Ambos os veículos conduziram sobre as três faixas de rodagem da AE e, por vezes, na faixa da esquerda.

C) O Réu embateu propositadamente com a frente do seu automóvel na traseira do veículo conduzido pelo Autor;

D) O Autor percebeu que corria risco de vida.

E) E acreditou que a intenção do Segundo Réu era a de lhe causar a morte.

F) O medo da morte sentida pelo Autor foi presente e real.

G) O Autor ainda hoje tem receio de se deslocar à cidade de Santo Tirso, de onde é natural, com medo de que a conduta do segundo Réu ou alguém a seu mando, se volte a repetir.

H) Em Santo Tirso, o Segundo Réu faz constar que o Autor seria morto.

I) O Autor sentindo-se triste, humilhado e angustiado com todo o sucedido.

J) O veículo em que circulava o Autor era por si usado diariamente.

2. Sendo que importa aditar um outro facto a ser dado como provado: K) O Réu BB, imediatamente ao acidente, arranjou o seu veículo AI, que foi visto em Santo Tirso, dias após o acidente devidamente reparado de novo e recentemente.


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O juízo sobre a matéria de facto está sujeito ao principio da utilidade, economia processual e aptidão probatória (art. 130º, do CPC).

Nestes termos é pacifico entre nós que “A admissão de meios de prova depende de esta ser, além do mais, útil e necessária para a boa decisão da causa e poder, em abstracto, afectar a comprovação ou não de qualquer realidade relevante da causa[4].

Ora, não se vislumbra, nem foi alegado qual o interesse processual do facto J) e nº2, já que nestes autos o pedido formulado foi: “€ 20.000,00 CORRESPONDENTES AO VALOR COMERCIAL DO VEÍCULO CONDUZIDO PELO AUTOR À DATA DO ACIDENTE, NA SEQUENCIA DA SUA PERDA TOTAL”, e não qualquer dano da privação de uso.

Não se apreciará, pois, essa factualidade.

Os restantes factos cuja adição se pede constituem factos pessoais inerentes à perseguição e reação do autor à mesma.

Teremos de notar, mais uma vez, que esta tese ficou indemonstrada no processo crime, onde, note-se, o autor afirmava até que foi exibida pelo réu uma arma.

Ora, a credibilidade deste nunca pode ser total já que o mesmo incorre em contradições evidentes e notórias.

Com base nos documentos juntos pelo próprio autor constata-se que:

Mas, nas declarações aquando da elaboração da perícia

Ficamos, pois, sem saber se perdeu a consciência ou, pelo contrário, já estaria de pé após o acidente[5].

Depois, quanto ao embate por trás é o próprio autor que ao minuto 13 e segs diz que lhe bateram por trás não uma mas três vezes. À pergunta se se punha ao lado diz “não ia sempre atrás” (minuto 14). Quanto ao risco de vida, se nada ficou demonstrado quanto à arma [6]e embates traseiros parece seguro que este não pode estar também demonstrado. Os factos g) e h) não foram referidos por qualquer meio de prova.

Teremos assim de concluir que a comprovação desses factos teria de ser baseada apenas no depoimento do autor, o qual, como vimos, não pode ser isoladamente fidedignio.

Quanto ao medo de morte e ameaças.

A probabilidade de algo ocorrer depende, neste caso, não de uma relação naturalistica, mas das circunstâncias relativas do caso concreto que permitem concluir pela maior ou menor probabilidade desses factos terem ocorrido. Esse juízo de maior ou menor frequência depende, neste caso, de uma conclusão a elaborar sobre a ligação e consequência entre dois eventos.

Nessa medida se não se demonstra a concreta ameaça de morte, nem o embate propositado entre os dois veículos, é sempre possível que o autor tenha sentido “medo de morrer”, mas essa conclusão não assume uma natureza altamente provável, porque da concreta conduta imputável ao réu não se pode inferir também essa concreta intenção de matar.

Quanto ao medo que o autor sentiu, o mesmo já consta dos factos provados (29 e 30).

É certo que a sua ex-companheira Sra HH refere parte dessa realidade (medo e ameaças), mas esta admite que sabe apenas o que o autor lhe disse, pelo que é um depoimento de ouvir dizer.

Mas, note-se que o autor ao minuto 31 diz que “depois do acidente não tenho receio deles”, “antes sim, depois não”.

Portanto, é com base no depoimento do próprio autor que o seu recurso terá de improceder nesta parte.

Pelo exposto, o recurso sobre a matéria de facto do autor terá de improceder.


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Em conclusão todas as alterações factuais peticionadas pelas três partes terão de improceder.

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6. Motivação de Facto

1 - No dia 17 de Dezembro de 2014, por volta das 15h00, o segundo Réu, BB, acompanhado pelo seu irmão, II, e pelo amigo GG, dirigiu-se à Rua ..., freguesia ..., concelho de Santo Tirso,

2 - Local onde previamente sabiam que o Autor se dirigiria, por razões profissionais, aí aguardaram a sua chegada.

3 - Pretendiam confrontar o Autor com uma dívida ao 2º réu pela compra de um veículo.

4 - O Réu BB conduzia o automóvel marca BMW, modelo ..., de matrícula ..-AI-.. (doravante AI), seguindo o seu irmão II no lugar de pendura, GG estava noutro carro.

5 - O Autor chegou ao referido local por volta das 15h35 do dia 17/12/2014, conduzindo o veículo marca BMW, modelo ..., com a matrícula ..-CF-.. (doravante CF).

6 - Após se aperceber da presença do Réu e dos seus colegas, o autor fugiu com medo que atentassem contra a sua integridade física.

7 - É de imediato perseguido pelo Réu BB na referida viatura AI.

8 - O Autor, ao volante do CF, percorreu diversas artérias da localidade onde se encontrava, passando, nomeadamente, na Estrada Nacional n.º ..., até chegar à entrada da auto-estrada ...,

9 - Sempre seguido, a grande velocidade, pelo BMW ... de matrícula AI, conduzido pelo Réu BB.

10 - No percurso desde a Rua ... até à autoestrada ... o autor passou por estabelecimentos comerciais sem parar para pedir auxílio.

11 - Chegado à AE ..., o Autor tomou a direcção do Porto,

12 - Continuando a ser perseguido pelo AI, conduzido pelo Segundo Réu agora em plena Auto-Estrada ....

13 - O que fez com o condutor do CF, aqui Autor, com receio com o que lhe pudesse acontecer, imprimisse ao seu veículo uma velocidade cada vez maior.

14 - Passando os dois veículos a circular na ... com velocidades superiores a 150 km/ hora.

15 - O Réu seguia atrás do Autor.

16 - O veículo do réu, um BMW ..., tem mais de 500 cavalos

17 - O veículo conduzido pelo Autor é a gasóleo e tem 163 cavalos de potência,

18 - Ou seja, muito facilmente o Segundo Réu alcançava o veículo do Autor.

19 - Na recta da área de serviço da C.../.../..., ao km 11 da referida autoestrada, cerca de 15:52h,

20 - Quando prosseguia na faixa da esquerda,

21 - O Autor perdeu completamente o controlo da viatura que conduzia.

22 - Dando-se o despiste do veículo do CF para o lado direito da via.

23 - Embateu na traseira do veículo ..-FM-.. que seguia no mesmo sentido, mais à frente, na faixa da direita.

24 - Após, o CF ultrapassou as guardas de segurança, vulgo rails, laterais da Auto-Estrada,

25 - Capotou várias vezes,

26 - Derrubou um poste de electricidade,

27 - E imobilizou-se já no espaço interior da área de serviço.

28 - O Réu BB, tendo mantido o controlo do veículo, prosseguiu a sua marcha, sem parar, tendo passado nas portagens da ... (saída da Maia) às 15:53:18 segundos.

29 - Desde o momento em que o Autor, ao sair da Rua ..., se apercebeu que o Réu BB o perseguia, sentiu-se perturbado e muito amedrontado.

30 - Sendo que o medo, inquietação, o desassossego e aflição que sentia, foram aumentando à medida que o Réu BB mantinha o acto de perseguição, a alta velocidade.

31 - O que fez com que o Autor contactasse o 112,

32 - A perseguição durou não menos de 17 minutos.

33 - Durante 18 Kms.

34 - Logo após acidente, o Autor foi assistido pelo INEM e conduzido ao Centro Hospitalar ..., sito em Vila Nova de Famalicão.

35 - Politraumatizado, com diversas escoriações na face e no couro cabeludo e no nariz com dores em diversas partes do corpo.

36 - Nessa instituição hospitalar, foi realizada limpeza das feridas.

37 - Removidos os estilhaços de vidro do seu couro cabeludo.

38 - Lesão essa que foi suturada.

39 - Foi o Autor sujeito a TAC com vista a verificação da existência de traumatismo crânio-encefálico, raio X no tórax, coluna cervical, dorsal e lombar e ainda raio X ao ombro esquerdo.

40 - De seguida foi observado pela especialidade de Ortopedia do hospital e detectada uma luxação acrómio-clavicular esquerda de grau III.

41 - Para além de um hematoma epicraniano frontoparietal direito.

42 - O Autor teve alta hospitalar no dia do acidente pelas 22:37h.

43 - Saindo do hospital com imobilização do membro superior esquerdo e um suporte braquial que manteve durante 15 dias.

44 - Não conseguia tomar banho sozinho.

45 - Nem tão pouco vestir-se.

46 - O Autor deixou de poder conduzir durante dois meses.

47 - As dores físicas que sentiu no dia dos factos intensificaram-se nos dias seguintes.

48 - O autor fez fisioterapia.

49 - Em virtude do acidente em questão Autor ficou abalado psicologicamente.

50 - Receando sair de casa.

51 - Ficou com sequelas pós-luxação da articulação acrómio-clavicular grau III do ombro esquerdo.

52 - A data da consolidação médico-legal das lesões foi fixável em 17 de Março de 2015.

53 - Período de Défice Funcional Temporário Total: 1 dia.

54 - Período de Défice Funcional Temporário Parcial: 90 dias

55 - Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total: 29 dias.

56 - Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Parcial: 62 dias.

57 - Quantum Doloris: grau 3/7.

58 - Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica: 1,5 pontos.

59 - As sequelas são compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares

60 - Dano Estético Permanente fixável no grau 1 /7

62 - À data dos factos, o demandante era gerente de facto da empresa D..., Unipessoal, Lda., cuja quota era detida pelo seu irmão.

63 - Retirando um rendimento mensal de 485€

64 - Em resultado do sucedido esteve dois meses sem trabalhar.

65 - Em consequência dos factos relatados, o Autor dirigiu-se ao Hospital e ao IMNL.

66 -Tendo despendido em transportes valor não apurado.

68 – Devido às lesões sofridas com o acidente, o Autor recorreu ainda a um médico particular, onde pagou pela consulta a quantia de € 290,00.

69 - A roupa e calçado que o demandante usava no dia dos factos, em valor não apurado, ficou completamente destruída.

70 - O Demandante ficou ainda sem o relógio que usava, que se partiu e do seu telemóvel em valores não apurados.

71 - O veículo em que o Autor circulava ficou destruído, sem conserto.

72 - Na altura a viatura tinha um valor comercial de 12.650,00€ e o salvado 2.210€ .

73 - O Autor despendeu ainda em medicamentos com vista ao seu tratamento e no CH... pelo episódio de urgência, pelo menos, a quantia de € 67,79€.

74 - Aquando do acidente o Autor tinha 49 anos de idade, nasceu a ../../1965.

75 - Os factos descritos na petição inicial foram participados criminalmente, tendo dado origem ao processo com o n.º ..., que correu os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Central Criminal de Vila do Conde – Juiz 1.

76 - Foi aí acusado da prática de um crime de coacção, na forma tentada, p.p. art.s 154º, 1 e 2,, 22º e 23º, um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p.p. pelo art. 291º, 1, b), e um crime de homicídio na forma tentada, p.p. pelos art.s 13º, 1, e 145º, b), todos do Código Penal

77 - O réu BB acabou condenado numa pena de 1 ano de prisão, suspensa por igual período, pela prática em autoria material, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p.p. pelo art. 291º, 1, b), do Código Penal pelos factos supra referidos em 1, 4, 7, 8, 9, 11, 12, 14, 15, 19 a 28, 35, 40 e 41.

78 - Foi absolvido da acusação dos demais crimes.

79 - A responsabilidade civil pela circulação estradal do AI estava transferida para a ré A..., S.A., (à data Tranquilidade), através de contrato de seguro titulado pela apólice n.º ....


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6. Motivação Jurídica

1. Da culpa do réu na produção

Estamos perante um acidente de viação.

A condução automóvel é permitida na nossa sociedade através do principio do risco permitido e da teoria da confiança.

Todos os dias acontecem acidentes que produzem lesões mais ou menos graves, mas essa actividade é permitida porque se situa num âmbito vital e necessário para toda a dinâmica social.

Esse perigo efectivo e latente é minorado através da fixação de regras a adoptar pelos condutores, e demais intervenientes, por forma a que todos possam confiar que os outros vão controlar a sua conduta acomodando-a a esses limites.[7]

Por causa disso é que o código da estada impõe que a condução seja feita com segurança evitando perigo para todos os utentes das vias.

E, o art. 483º, do CC impõe que “1. Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilìcitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”

Ora, neste caso, o réu omitiu e violou esses dois princípios básicos, pois, usou a condução para ameaçar um suposto devedor de forma ilegítima sem recorrer aos tribunais (art.1º, do CPC). E, por essa conduta, já foi condenado nas precisas circunstâncias destes autos pela prática de um crime de condução perigosa de veículo.

Convém relembrar, porque pelos vistos é necessário que essa decisão possui efeitos nestes autos, nos termos do art. 623º, do CPC que dispõe “A condenação definitiva proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer ações civis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infração”.

Portanto, quanto ao réu arguido não pode este discutir os factos concretos que se provaram nesse processo quanto à prática desse crime[8].

Quanto à ré seguradora, cumpre dizer que esta pode tentar ilidir essa presunção, mas claramente não o conseguiu.

Na verdade, está mais do que demonstrado que o seu segurado usou um veículo como arma, perseguindo o autor durante largo período em várias vias públicas a alta velocidade.

Assim atemorizando o outro condutor que se despistou e embateu noutro veículo.

É, pois, evidente, sem necessidade de mais argumentos que este deu causa ao acidente porque violou o principio geral da segurança (art. 3º, nº2, do C.Estrada), bem como os arts. 27º (velocidade), 18 º (distância entre veículos) e 13º (linha de marcha).

Tal conduta deu causa ao acidente, porque provocou o despiste do condutor perseguido que mão fora a velocidade que foi obrigado a imprimir não circularia naquele local, nem por certo teria perdido o controlo do seu veículo.

Estão, pois, verificados todos os pressupostos (ilicitude, culpa e causalidade) para a responsabilização dos réus.


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2.Da culpabilidade do autor na produção do acidente

Alegam os RR apelantes que, pelo menos, o acidente ter-se-á de imputar à total ou parcialmente à conduta do autor.

Tendo já concluído pela responsabilidade do réu importa apenas determinar se podemos concluir pela existência de concorrência de culpas.

O art. 570, nº1, do CC dispõe que “1. Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.”

Esta norma prescreve a relevância da conculpabilidade da vitima quanto ao montante da indemnização a prestar, sendo necessário que o facto do lesado seja uma concausa do dano em concorrência com o facto causal do lesante.

Segundo o Ac. do STJ de 29.10.2020, P. no 515/04.1TBGDM.P1.P1.S1 (Tomé Gomes), a “concausalidade de facto culposo do lesado prevista no artigo 570.o do Código Civil pressupõe que o resultado danoso provenha de uma conduta ilícita imputável ao agente, em regra, a título de culpa leve e que para a produção ou agravamento do mesmo tenha concorrido, em termos de causalidade adequada, uma conduta do lesado culposa, no sentido de não ter atuado com a diligência de uma pessoa razoável na gestão do seu interesse de modo a evitar esse resultado danoso ou a mitigá-lo.”.

Ora, in casu não há dúvida que os factos provados demonstram a violação de normas estradais pelo autor.

Bastará dizer que esta, no decurso da sua fuga imprimiu ao veículo uma velocidade indeterminada mas de cerca de 150 km/h, e por isso violou o limite de velocidade (art. 24 e 27º, do Código da estrada), ao que acresce que circulava pela faixa da esquerda momentos antes do despiste.

É inequívoco que essa velocidade deu causa, pelo menos parcial, ao acidente concreto[9], pois, sem esta não teria perdido o controlo do seu veículo.

Seria, pois, simples, mas, com o devido respeito simplista, concluir pela conculpabilidade do autor.

Em primeiro lugar, porque os RR apelantes omitem que esse despiste e perda de controlo só ocorreu por causa da perseguição automóvel realizada pelo réu.

Isso é o que resulta dos factos provados 6 a 13, de tal modo que “12 - Continuando a ser perseguido pelo AI, conduzido pelo Segundo Réu agora em plena Auto-Estrada .... 13 - O que fez com o condutor do CF, aqui Autor, com receio com o que lhe pudesse acontecer, imprimisse ao seu veículo uma velocidade cada vez maior. 14 - Passando os dois veículos a circular na ... com velocidades superiores a 150 km/ hora.”

Ou seja, o despiste do autor foi causado pelas manobras e alta velocidade que adoptou para se por em fuga do réu cujo veículo “tinha mais de 500 cavalos” ao invés dos 163 do veículo do autor”.

Estamos, portanto, perante uma situação de emergência, na qual a velocidade visou fugir a uma perseguição do réu, por medo e receio.

Nos termos do art. 64º, do CE “Os condutores de veículos que transitem em missão de polícia, de prestação de socorro, de segurança prisional ou de serviço urgente de interesse público assinalando adequadamente a sua marcha podem, quando a sua missão o exigir, deixar de observar as regras e os sinais de trânsito, mas devem respeitar as ordens dos agentes reguladores do trânsito”.

Esta norma consagra uma cláusula de exclusão da ilicitude que depende de determinadas circunstâncias, que não estão verificadas mas que demonstram que as regras estradais consagram causas de exclusão da ilicitude[10].

Ora, no caso a fuga do autor visava evitar uma a conduta lesiva do réu, de tal modo que chegou a telefonar para as forças de autoridade pedindo ajuda. Estamos, portanto numa situação de não ilicitude da conduta concreta do autor.

Nestes termos, Sinde Monteiro[11], (a propósito precisamente das normas legais de protecção de perigo abstracto), defende que a conduta infractora que as infringe, traduzindo a inexistência do necessário cuidado exterior, só não responsabilizará o agente se este demonstrar ter tido o necessário cuidado interior - tendo este o ónus da "(...) prova das circunstâncias morais e intelectuais de que preponderantemente se compõe o cuidado interior que excepcionalmente possam afastar a culpabilidade (...)".

Naquela situação concreta, a perseguição, a alta velocidade e o estado de temor impediam o autor e qualquer cidadão médio de pensar em melhores alternativas para além de prosseguir, tentar escapar e ligar para as forças policiais.

Estamos, assim, por uma situação não imputável ao condutor[12], que teve origem na perseguição concreta efectuada pelo réu e não numa sua livre e intencional opção. Bastará referir que a conduta do réu (desde a reunião com várias pessoas, passando pela perseguição até à fuga do local sem alertar qualquer autoridade), só pode ser qualificada como uma forma de violência psíquica, traduzindo-se numa pressão anímica exercida sobre a vítima, colocando-a numa situação de inferioridade, nervosismo e temor que a impediu de reagir como queria, ou como uma pessoa fria e distanciada faria.

Ora, o fundamento do art. 570º, do CC, segundo Brandão Proença[13], “visa imputar ao lesado os efeitos negativos da sua ação contributiva, consista ela em se ter exposto descuidada e injustificadamente ao perigo de sofrer o dano, quer tenha resultado da falta de observância de certas medidas de segurança, cujo cumprimento reduziria ou evitaria o dano.”.

Não pode ser, pois, aplicável quando essa mesma conduta é justificável na situação concreta e foi provocada pelo réu.

Note-se aliás a abissal diferença deste caso com o analisado no Ac do STJ de 18.12.13, nº nº 1749/06.0TBSTS.P1.S1 ((Fernando Bento)[14], já que naquele o condutor despistou-se numa curva (sem qualquer perseguição), por imperícia “com receio de que alguém fosse em sua perseguição”.

Mas existem arestos, esses sim, análogos ao presente:

1. Ac. Relação do Porto de 19-12-2012 nº 325/08.7GAVLP.P1 (Fernanda Lobo) “Se alguém pretende circular livremente por uma estrada (nacional ou auto-estrada) e se sente constantemente perseguido ao longo de cerca de 80 Kms por um outro veículo automóvel em cujo interior sabe que se encontra outra pessoa que lhe vem exigindo o pagamento de determinada quantia para, daquele modo, diminuir ou eliminar a capacidade de decisão da pessoa perseguida e assim a intimidar à prática do ato pretendido, verifica-se, ainda que não exista propriamente contacto físico entre as pessoas ou os veículos envolvidos, uma interferência sobre a livre actuação da vontade individual, que é, jurídico-penalmente, susceptível de integrar o conceito de «violência» psíquica”.

2. E, um veículo implicado num acidente participa ou intervém materialmente, de qualquer forma e a qualquer título, na produção dos danos, sendo que para tal não é essencial o contacto entre as viaturas, bastando que o condutor de uma perturbe a circulação da outra (por se encontrar no perímetro de espaço e de tempo desta e em que, por isso, tal perturbação é possível), contribuindo assim para o seu despiste (supra citado Ac do STJ de 18.12.13).

Note-se, por fim, que o Ac do STJ de 13.11.25, nº Processo: 1897/19.6T8PVZ.P1.S1 (Cristina Coelho) analisou o art. 570º, do CC em termos restritivos.

E, que, fundamentalmente, sempre seria necessário concluir que a conduta do autor violou o normal dever de cuidado naquela situação concreta.

Ora, se é certo que o autor se despistou no decurso de uma situação de perigo, esta não foi criada por si, mas pelo réu, e naquela situação a fuga a alta velocidade era uma forma de minorar ou evitar esse perigo.

Assim, face a todo o circunstancialismo provado é evidente que existiam melhores opções de conduta, mas uma vez iniciada a conduta perigosa pelo réu, as opções do autor, em desespero ficaram cada vez mais limitadas[15], e por isso, o excesso de velocidade realizado por causa exclusiva do réu não pode ser integrado no art. 570º, do CC por não ser ilícito e culposo.

Concluímos, portanto, pela não repartição de culpas na eclosão do acidente.


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3. Da fixação dos Danos

3.1. Questão prévia da autonomia dos danos patrimoniais a cargo de ambos os RR.

O autor pediu “SER O RÉU BB CONDENADO A PAGAR AO DEMANDANTE A QUANTIA DE € 50.000,00 A TÍTULO DE DANOS NÃO PATRIMONIAIS SOFRIDOS PELO AUTOR NO MOMENTO ANTERIOR À PRODUÇÃO DO ACIDENTE CAUSADO”.

Alegando, que este foi dolosamente causado pelo mesmo réu.

Nos termos do art. 15.º, nº2, da LSO “2 - O seguro garante ainda a satisfação das indemnizações devidas pelos autores de furto, roubo, furto de uso do veículo ou de acidentes de viação dolosamente provocados,

Sendo que, nos termos do art. 27º, do mesmo diploma “1 - Satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso: a) Contra o causador do acidente que o tenha provocado dolosamente; (…)”.

Logo, poder-se-ia, dentro dos limites do pedido global formulado, colocar a questão sobre se ambas as partes podem ser condenadas solidariamente no ressarcimento desses danos, cabendo depois à ré seguradora exercer o seu direito de regresso.

Mas, o contrato de seguro celebrado entre os réus rege-se pelo Decreto-Lei n.º 72/2008 (RJCS).

E, nos termos do art. 128º, do RJCS a seguradora só deve indemnizar “o dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro”.

Porque, de acordo com o art. 1º desse diploma “o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente”.

Ora, nos termos do art. 99 do mesmo diploma, “o sinistro equivale à verificação, total ou parcial, dos factos compreendidos no risco assumido pelo segurador”.

O sinistro é deste modo o facto constitutivo do direito, neste caso, do terceiro beneficiário do seguro contra o segurado, e como é evidente todos os danos cuja indemnização se requerer ocorridos até a esse evento não se podem considerar ainda um efectivo sinistro.

Nesses termos a indemnização pela ocorrência de danos não patrimoniais terá de ser dividida e aferida pelo momento temporal em que ocorreu o despiste do veículo do autor, ficando apenas esta obrigada aos correspondentes apos o evento relevante e concreto estabelecido para o acionamento da cobertura.

Bastará dizer que o direito do segurado à reparação com base em contrato de seguro de danos próprios não depende apenas da prova dos danos, mas, também, da prova de que esses danos foram causados por um dos riscos cobertos pelo seguro, isto é o sinistro.


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3.2. Da indemnização por danos não patrimoniais a cargo do réu.

Esta, diz respeito, pois, à perseguição automóvel até ao momento do despiste e foi fixada em 10 mil euros.

Pretende o autor que seja aumentada e o réu que seja diminuída.

Vejamos

É consabido que os danos não patrimoniais indemnizáveis são aqueles que, pela sua gravidade, merecem a tutela do direito (art. 496º nº 1 do CCivil).

Estes destinam-se a permitir que, com essa quantia monetária, o lesado encontre compensação para a dor, a fim de restabelecer um desequilíbrio no âmbito da felicidade humana, o que impõe que o seu montante deva ser proporcional à gravidade do dano, ponderando-se, para tal, conforme assente entre nós “as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e do criterioso sopesar das realidades da vida”, em conformidade com o preceituado no nº 3 daquele art. 496º do CCivil.

Essa norma ao consagrar a equidade previu uma cláusula geral, aberta e indeterminada, que pressupõe uma liberdade concretizadora e interpretativa do aplicador da lei, mas que exige limites operativos concretos, mediante os quais exista uma adequação dos interesses individuais, mas também um respeito dos interesses gerais garantindo a aplicação uniforme do direito.

No fundo, aquilo que distingue a equidade da simples aplicação da lei ao caso concreto é uma diferença de grau e não de metodologia ou mecanismos operativos.[16]

Esses limites são encontrados através da análise da nossa jurisprudência em situações semelhantes.

Desde logo, o limite superior, neste caso, é o valor peticionado que foi fixado em 10 mil euros.

Depois, teremos de ter em conta que numa situação bem mais grave[17], o TCAN por decisão de 21.1.2020, Rec. 02581/09, manteve a quantia fixada em 7.500 euros, considerando que “se peca é por defeito”.

Depois, não podemos esquecer que o art. 494º, do CC., enuncia alguns factores: o montante dos danos causados; as circunstâncias do caso concreto; o grau de culpabilidade do agente e a situação económica do lesado.

No caso teremos de salientar a necessidade fixar este montante de forma elevada tendo em conta a natureza dolosa da conduta do réu. Este não apenas quis realizar a perseguição, naquelas circunstâncias como admitiu, por certo, que um acidente grave poderia ocorrer e conformou-se com essa possibilidade.

Depois, quer a velocidade, quer a multiplicidade de rodovias percorridas agravam o desvalor da sua conduta. O motivo que fundamentou essa conduta é manifestamente desproporcionado, assumindo natureza ilícita (acção directa visando cobrar uma divida monetária). E, por fim, a natureza da sua acção foi grave (velocidade) e aptar a causar na vítima, mais do que um mero susto mas um temor que deu causa ao descontrole e acidente. Por último, teremos de considerar que a dimensão do acidente e suas consequências (patentes nas fotos juntas aos autos) são graves e ainda podiam ser piores.

Diremos, por fim, que a duração da perseguição é relevante, mas não é um factor decisivo. Não é por serem rápidas ou instantâneas que agressões a direitos de personalidade, como por exemplo, uma simples injuria, não são indemnizadas em quantias relevantes.

Ponderando todos estes factores e tendo em conta a componente sancionatória da indemnização, julga-se adequado e suficiente fixar a mesma no valor de 12.000 euros.


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4. Da fixação dos danos não patrimoniais suportados pela ré

Considera esta que “Igualmente exagerada é, na opinião da R., a compensação/indemnização de € 15.000,00 atribuída ao A. a título de dano não patrimonial.

Pretende o autor/apelante que esta seja aumentada para 25 mil euros.

As circunstâncias do caso concreto são as seguintes:

1. Logo após acidente, o Autor foi assistido pelo INEM e conduzido ao Centro Hospitalar ..., sito em Vila Nova de Famalicão, com diversas escoriações na face e no couro cabeludo e no nariz com dores em diversas partes do corpo.

2. Nessa instituição hospitalar, foi realizada limpeza das feridas; Removidos os estilhaços de vidro do seu couro cabeludo. Lesão essa que foi suturada. Foi o Autor sujeito a TAC com vista a verificação da existência de traumatismo crânio-encefálico, raio X no tórax, coluna cervical, dorsal e lombar e ainda raio X ao ombro esquerdo, tendo sido detectada uma luxação acrómio-clavicular esquerda de grau III. Saindo do hospital com imobilização do membro superior esquerdo e um suporte braquial que manteve durante 15 dias.

3 - Não conseguia tomar banho sozinho, deixou de poder conduzir durante dois meses, As dores físicas que sentiu no dia dos factos intensificaram-se nos dias seguintes, fez fisioterapia, e em virtude do acidente em questão Autor ficou abalado psicologicamente.

4. Teve um Período de Défice Funcional Temporário Total: 1 dia; Período de Défice Funcional Temporário Parcial: 90 dias; Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total: 29 dias; e Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Parcial: 62 dias; bem como um Quantum Doloris: grau 3/7.

Analisando estes factos teremos de ter em conta que o grau de dores é elevado e que o autor as suportou durante 90 dias. Portanto se fixarmos a simples quantia de 30 euros por dia obtemos cerca de cerca de 3.000 euros (que corresponde a 6 meses de rendimentos do autor)

Depois, só a intervenção no acidente que assumiu elevada proporção implica um abalo psicológico forte e relevante que deve ser fixado, pelo menos, em 5.000 euros, ponderando a dimensão e local do embate, bem como a repercussão psicológica no autor.

O autor esteve ainda dependente de terceiros, incapaz de tomar banho sozinho e impedido de sair de casa.

E, por fim, o dano estético diminuto, mas sempre relevante (1/7).

Teremos de notar, porém que não resulta dos factos qualquer repercussão futura (exceptuando o valor do dano biológico que será considerado autonomamente).

Esses factores importam, pois, a diminuição do valor fixado.

Note-se, por exemplo que num caso semelhante foi fixada a quantia de € 20 000,00 para compensar um quadro de sofrimento físico e psicológico caraterizado por um quantum doloris de 3/7, repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer fixável no grau 1/7, perturbações significativas no sono e na vida sexual, perda de autonomia na realização de tarefas domésticas e na movimentação de objetos pesados, irritabilidade, desconforto constante, insegurança, baixa capacidade de atenção e concentração, baixa tolerância à frustração[18].

Por seu turno o Ac da RP de 11.1.22, nº 1017/19.7T8PVZ.P1 (João Ramos Lopes) fixou essa mesma quantia (12 mil euros), numa situação em que o quantum doloris era de 3/7, mas existia ainda um dano de grau 1 na vertente sexual e 2 no relacionamento social.

E, por exemplo, o Ac da RL de 11.5.21, nº 1777/19.5T8LRS.L1-7 (Diogo Ravara) fixou a quantia de 15 mil euros, num caso semelhante com QD de 3/7, dano estético 2, mas incluindo ainda um dano biológico de 1% e afetação de actividade de 1ª.

Logo, julga-se suficiente e proporcional fixar esse valor em 12 mil euros.


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5. Dos danos patrimoniais.

A ré seguradora põe apenas em causa o valor relativo á perda total do veículo nos seguintes termos; “nada há na factualidade dos autos que mostre que o A. era, à data, o proprietário e/ou até possuidor do veículo), não poderá em circunstância alguma receber o que quer que seja pela perda total do CF (no caso a diferença entre o respectivo valor venal e aqueloutro do salvado”.

Nesta matéria o tribunal a quo fixou a indemnização em 10.440,00€, mas não resulta dos factos provados a titularidade concreta desse veículo estando apenas provado que o autor o utilizava diariamente, tendo uma testemunha que o mesmo estaria em seu nome.

A indemnização por perda total implica a transferência da propriedade do veiculo e por isso é devido ao proprietário do mesmo,não ao mero utilizador precário.

Isso decorre dos termos gerais das regras de dominiabilidade dos bens.

É ainda confirmado pelas normas especificas do contrato de seguro.

Com efeito, nos termos do artº 43º, nº 4 do Decreto-Lei nº 291/2007 existe a possibilidade de a empresa de seguros adquirir o salvado, ficando, nesse caso, o pagamento da indemnização dependente da entrega, àquela, do documento único automóvel, ou do título de registo de propriedade e do livrete do veículo.

Daí resulta, pois, que o autor não demonstrou como lhe competia a titularidade do direito substantivo que lhe permitiria assumir a qualidade de titular desse direito à indemnização.

Terá, pois, de improceder esse pedido.


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6. Lucros cessantes/Dano biológico

Pretende a ré seguradora a alteração desta parte da decisão, identificada como dano biológico, que foi fixado em 8 mil euros.

Pretende também o autor que esta aumentada para 20 mil euros.

Esse dano foi peticionado nos seguintes termos “j) € 75.000,00 a título de lucros cessantes/ danos futuros, sem prejuízo do resultado da perícia médica que se requererá”.

Dos factos provados resulta:

58 - Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica: 1,5 pontos.

59 - As sequelas são compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares.

Retirando um rendimento mensal de 485€ e nasceu em ../../1965.

O acidente ocorreu em Dezembro de 2014.

O montante do dano biológico, que assume natureza patrimonial, deve ser fixado segundo juízos de equidade (art. 566.º, n.º 3, do CC), em função de vários factores, entre os quais:

(i) a idade do lesado;

(ii) o seu grau de incapacidade geral permanente;

(iii) as suas potencialidades de aumento de ganho em profissão ou actividade económica alternativa, aferidas, em regra pelas suas qualificações; e

(iv) todos os restantes que relevem casuisticamente, nomeadamente a sua profissão.

No caso presente teremos de notar que não está em causa a perda de qualquer capacidade de ganho, mas apenas a realização de esforços suplementares sendo que a mesma é de, apenas, 1,5%.

Mas, nestes casos a nossa jurisprudência tem entendido que não se deverá atender à remuneração, mas apenas fixar uma quantia proporcional à dificuldade que o lesado manterá ao longo da vida (Ac do STJ de 17.9.24, 425/18.5T8SSB.E1.S1 (Borges Carneiro)[19].

Nesse caso, foi decidido que “a lesada apresentou uma Incapacidade Geral Parcial Permanente de 11 (onze) pontos, ficou a padecer de sofrimento físico a indemnização foi fixada em 7.000 euros”.

Por seu turno o Ac do STJ de 6.10.2016 nº 1043/12.7TBPTL.G1.S1 fixou esse valor em 10 mil euros “assente na penosidade adveniente da diminuição de capacidades e do maior esforço físico que terá que desenvolver, na sua vida diária, que, atenta a sua idade (35 anos à data do acidente) e o grau de incapacidade (07 pontos).[20]

Neste caso o autor tinha 49 anos na data do acidente e apresenta 1,5 pontos de incapacidade.

Se atendermos à esperança medida de vida não posta em causa pelos apelantes (79 anos), teria, pois, 30 anos de dano ressarcível.

Se considerássemos a remuneração do mesmo à data do acidente auferiria o rendimento total de 203.700 (remuneraçaox14mesesx3 anos), pelo que a indemnização do dano percentual seria de 3055 euros.

É manifestamente pouco, tendo em conta o actual salário mínimo nacional e o seu mais do que provável aumento.

Se utilizarmos o salário mínimo actual (decorridos 11 anos do acidente) obtemos o valor anual de 12.180[21]x30x0,015 (incapacidade) = 5400 euros. Não se efectuará qualquer desconto, pois, o provável aumento da remuneração (não fixado neste caso será superior ao valor dos juros auferidos), ou seja, não pode a ré seguradora defender um desconto sem se considerar também um aumento da quantia por mero efeito da inflacção.

Este é um valor já mais razoável, tendo em conta a jurisprudência análoga supra citada.

Diremos, ainda que os valores peticionados pelo autor são manifestamente desconformes com o dano que apresenta (1,5%) e com as decisões jurisprudências relativas a esse valor [22].

Terá de ser, pois, improcedente o recurso do autor e proceder parcialmente a apelação da ré seguradora.


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Em resumo, as indemnizações fixadas ao autor serão as seguintes:

1. 12.000 euros a título de danos não patrimoniais devidos pelo Réu.

2. 12.000 euros a titulo de danos não patrimoniais suportados pela ré seguradora.

3. 5.400 euros a título de dano biológico

4. a título dos demais danos patrimoniais que não foram objecto de recurso no total de 1.727,90 euros

5. O valor relativo à perda total do veículo não é devido ao autor.


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7. Deliberação

Pelo exposto, este tribunal julga a apelação da ré seguradora e do autor parcialmente procedentes, julga a apelação do réu totalmente improcedente e por via disso, confirma parcialmente a decisão recorrida condenando:

a) o RÉU a pagar ao autor, a quantia de 12.000 (doze mil) euros a titulo de danos não patrimoniais

b) a Ré seguradora a pagar ao autor, a quantia de doze mil euros (12.000), a título de danos não patrimoniais e a quantia total de 7.127,90 (sete mil, cento e vinte e sete euros e noventa cêntimos), a título de danos patrimoniais.

c) quantias essas acrescidas de juros nos termos constantes da decisão.


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Custas das apelações nos seguintes termos: a do réu integralmente a cargo deste porque decaiu integralmente. A da apelante seguradora e autor a cargo dos mesmos na proporção do seu decaimento face ao pedido formulado.

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Porto, 27.11.2025
Paulo Duarte Teixeira
Paulo Dias da Silva
António Carneiro da Silva
________________
[1] Depoimento da Sra HH que viveu com este até 2016.
[2] No art. 211º é afirmado que O veículo em que circulava o Autor era por si usado diariamente, sendo o mesmo quem pagava e continuou a pagar a prestação mensal do crédito inerente à sua aquisição”.
[3]

[4] Entre vários, o Ac da RP de 7.11.24, nº 7516/22.6T8PRT (Paulo Duarte Teixeira), (mesmo relator).
[5] Sendo que afirma que “quando sai para fora viu que o poste de eletricidade estava derrubado).
[6] O autor admite até que “não pode ter certeza” quanto à arma (minuto 15).
[7] Diaz Picasso, derecho de Danos, Civitas, 343.
[8] Maria José Capelo, A sentença entre a autoridade e a prova, páginas 210, no qual defende, neste caso a eficácia plena da sentença penal quanto ao arguido.
[9] Factos provados nºs 21 - O Autor perdeu completamente o controlo da viatura que conduzia. 22 - Dando-se o despiste do veículo do CF para o lado direito da via. 23 - Embateu na traseira do veículo ..-FM-.. que seguia no mesmo sentido, mais à frente, na faixa da direita.
[10] Cfr. Ac da RC de 27.11.2013, nº 242/13.9TBSRT.C1 (Vasques Osório) e Ac da RL de 11.4.19, nº 220/17.7T8LSB.L1-6 (Gilberto Jorge).
[11] Responsabilidade por Conselhos, Recomendações e Informações, pág. 263 e segs.
[12] Como, por exemplo, “o acidente pode advir de uma causa não imputável ao condutor, reportada ao veículo ou à via onde circula (perda de travões, falha na direcção ou noutro componente integral, rebentamento de pneu, de motor, perda de direcção em circunstâncias climáticas adversas, tal como chuva intensa, neve ou gelo na via, defeito de design ou de construção do veículo, atravessamento inesperado de animal na via, más condições ou obstáculos no troço) ou à sua pessoa (síncope cardíaca, desmaio, encadeamento súbito ou qualquer outra doença repentina), cfr. Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde, ACIDENTES DE VIAÇÃO. RESPONSABILIDADE SUBJECTIVA, PRESUNÇÕES DE CULPA E RESPONSABILIDADE OBJECTIVA, Julgar nº 46, 2022.
[13] A Conduta do Lesado como Pressuposto e Critério de Imputação do Dano Extracontratual, págs. 416 e segs.
[14] Citado pela apelante.
[15] Veja-se que este no seu depoimento diz, como se fosse algo bom, consegui chegar à auto-estrada.
[16] Menezes Cordeiro, A Decisão segundo a Equidade, O Direito, 122º, 261 e segs. “o recurso à equidade tem em vista estimular a flexibilidade e a ampla compreensão da situação, subtraindo o julgador a princípios puros e rigorosos de carácter normativo”.
[17] Perseguição pela polícia em que foram disparados tiros que atingiram uma jovem passageiro.
[18] Ac do STJ de 4.7.23, nº 342/19.1T8PVZ.P1.S1 (Jorge Leal).
[19] Que decidiu: “Nas situações em que não ocorre uma perda efetiva de ganho, mas o lesado tem de fazer um maior esforço para obter o mesmo rendimento, no cálculo da indemnização não deve ser relevado o vencimento anual do lesado”.
[20] O Ac do STJ de 18.9.25, Processo n.o 1781/21.3T8PVZ.P2.S1 (Maria Graça Trigo) fixou este valor em 20 mil euros, numa lesada com 28 anos com Défice permanente de 2%.
O Ac do STJ de 30.01. 2025, nº 3062/22.6T8VCT.G1.S1fixou esse valor em 25 mil euros, num lesado com 19 anos de idade e DP de 3 pontos.
[21] É evidente que o s.m.n decorrido é inferior, mas os futuros, durante19 anos também serão superiores, pelo que por equidade se considera ajustado esse valor.
[22] Ac. Do STJ de 29.10.2019 7614/15.2T8GMR.G1.S1: “ Numa situação em que ao lesado, com 34 anos, foi atribuído um défice funcional de 16 pontos por força das lesões sofridas, sem rebate profissional mas com a subsequente sobrecarga de esforço no desempenho regular da sua atividade profissional (vendedor e empresário de materiais de construção civil e produtos agrícolas), afigura-se ajustado o montante de € 36 000,00 para indemnizar tal dano futuro.
Ac do STJ de 19.2.2015, nº 99/12.7TCGMR.G1.S1: “O dano biológico consubstancia uma violação da integridade físico-psíquica de uma pessoa, com tradução médico-legal, sendo que, estando em causa a incapacidade para o trabalho, o mesmo existe haja ou não perda efectiva de proventos laborais. I - Resultando dos autos apenas que em virtude das sequelas das lesões provocadas no acidente o autor passou a ter que empregar “esforços suplementares”, resta recorrer à equidade para determinar o quantum indemnizatório afigurando-se adequado o montante fixado pela Relação de € 25 000.
Ac da RE de 25.1.2018: Resultando provado que o autor contava 40 anos de idade à data do acidente e que em virtude das lesões sofridas ficou a padecer de um Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica de 3, sendo as sequelas compatíveis com a sua atividade profissional, mas implicando algumas restrições à realização dos atos normais da vida corrente, familiar e social e são causa de sofrimento, considera-se justa e equitativa a atribuição da indemnização de € 10.000 euros”.